A literatura colonial guineense (3)
Por Leopoldo Amado
(Epílogo)
Da década de 40 até ao Portugal democrático
Entretanto, a década de 40 inicia-se com um acontecimento importante: a capital da Guiné é transferida de Bolama para Bissau, e dela resulta que Bissau cresce a olhos vistos, enquanto Bolama perde a sua vitalidade. Na verdade, a transferência da capital para Bissau foi um duro golpe para a elite africana de cariz pequeno-burguesa de Bolama. Consequentemente, a inteligentsia guineense, que era sobretudo representada por bolamenses militantes, dispersou-se por imperativos de força maior. Por isso, a actividade literária e cultural em geral foi o primeiro sector a apresentar sinais palpáveis de um retraimento significativo, a ponto de se paralisar qualquer actividade editorial na Guiné, exceptuando as publicações do Boletim Oficial da Guiné.
Foi o Arauto* que quebrou este silêncio editorial em 1943, quando as autoridades religiosas sentiram que as suas actividades careciam de um meio de divulgação, dado o crescimento cada vez maior da população católica guineense. Aliás, em 1940, tal crescimento era assinalado pela bula Solemnibus Conventionibus, na qual o território da Guiné foi separado da Diocese de Cabo Verde e erigido em Missão sui juris. Estava-se pois num período de relativa acalmia social, em que a política de assimilação, ainda que de forma subtil, estava a dar os seus primeiros resultados. Esta situação traduziu-se na prática pelo reforço do sistema administrativo colonial, cujos corolários foram a realização do Congresso da Guiné na Sociedade de Geografia de Lisboa em 1944, seguido em 1946 pelas comemorações do quinto centenário da descoberta da Guiné. É nesse contexto que o Arauto foi publicado em Bolama até 1947. Durante esse período, a temática central deste periódico gravitava à volta do espírito anti-capital que os bolamenses nutriam contra Bissau. A par disso e além da acção religiosa, o Arauto privilegiou os aspectos históricos de Bolama e do cristianismo na Guiné. Por ironia do destino e por razões que ignoramos, o Arauto fechou as portas em Bolama para reaparecer em Bissau, em 1950. É nesta sua segunda fase que se regista alguma produção literária-colonial com certo interesse de estudo, na qual se destacam os artigos de opinião assinados por Fausto Duarte, Juvenal Cabral e o guineense Caetano Filomeno Sá, entre outros.
Em 1945, Sarmento Rodrigues toma posse como Governador da Guiné e funda o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, do qual nasce o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa**, que viria a congregar um grande número de estudiosos da Guiné nas mais variadas áreas das ciências e, também, da literatura. Trata-se, segundo o africanista René Pélissier, da melhor produção científica no contexto das ex-colónias portuguesas de África. Avelino Teixeira da Mota, Fausto Duarte, James Walter e António Carreira foram, sem dúvida, pela sua capacidade polivalente e interdisciplinar, aqueles que deram o impulso decisivo àquilo que comummente denominamos de geração do Boletim Cultural. Quanto à produção literária-colonial patente nos 110 números publicados, seria omissão imperdoável não acrescentarmos nomes como o de Egídio Santos, Fernando Barrigão, João Eleutério Conduto e Fernando Rogado Quintino. São esses os autores que através da narrativa ou da simples descritiva sociológica, nos dão a medida exacta das preocupações intelectuais da geração do Boletim Cultural. De facto, as inquietações preocupação intelectuais desta geração dirigiam-se no sentido de forjar elos entre uma experiência africana que viveram intensamente e que já incorporava os seus ethós, e a espiritualidade mística, natural, que os prendia à terra-mãe. Para isso, usaram diversos géneros literários que vão do ensaio sociológico à novelística e à fixação de contos tradicionais. E é nesta linha de força que são publicados os Contos Bijagós, por João Eleutério Conduto; os “Contos Fulas”, por A. Pereira Gomes; os “Contos Mandingas”, por Manuel Dias Belchior; “Dois contos do ciclo do Lobo”, por Maria Cecília de Castro, e “Contos de Caramô”, por Viriato Augusto Tadeu. Ainda dentro dessa perspectiva se pode incluir o livro Terra Ardente, de Norberto Lopes, e Guinéus, de Alexandre Barbosa (respectivamente, reportagem jornalística e impressões de viagem), embora não apresentem grande interesse para o estudo da Literatura Colonial Guineense.
Em 1959, Romeu Martins publica 15 poemas e ainda: o Roteiro Moderno, que dedica à memória de Caetano Filomeno de Sá. No entanto, por amor à verdade, devemos reconhecer que a poética-colonial de Romeu Martins é de grande qualidade estética, talvez comparável com África Raiz, a grande poesia de Fernanda de Castro. É ainda uma poética de natureza historiográfica que, com um discurso típico da ideologia do Estado Novo, procura aqui e acolá enaltecer os heróis da colonização e cruzada guineenses, ao mesmo tempo que coloca Portugal como o horizonte messiânico dos guineenses, em suma, uma elegia ao culto da magnanimidade histórica de Portugal, o Portugal das descobertas que deu novos mundos ao Mundo.
Porém, antes de fecharmos este percurso pela Literatura Colonial Guineense, permitam-nos debruçarmos um pouco sobre dois autores cujos nomes se pode apontar entre os mais válidos da geração que viveu a guerra colonial na Guiné. Trata-se de José Martins Garcia, que escreveu O Lugar de Massacre, sem dúvida a melhor obra de literatura da guerra colonial da Guiné: de um realismo extraordinário, nela se descreve a essência filosófica dos que na arena de guerra lutaram por um ideal que se esforçavam em vão por compreender; o ideal que jamais se poderá omitir, ou seja, o princípio transcendente que supera as capacidades conjecturais do homem confrontado com o abandono e a morte e que está para aquém e para além dos marcos sensíveis – o espírito. Ousamos mesmo dizer que O Lugar de Massacre revela-se de uma importância incomensurável, mesmo do ponto de vista africano. O outro autor é o Armor Pires Mota, autor do Diário íntimo de um soldado, Tarrafo, e do livro de poemas Baga-Baga e ainda do livro de contos intitulado Guiné Sol e Sangue. Nos seus escritos, não é raro depararmos amiúde com considerações que denotam a existência no autor de preconceitos:
Sou o teu irmão mais velho,
Sou negro também dentro de mim! (23)
Mas em Armor Pires também se vislumbra a mensagem da igualdade e da justiça entre europeus e africanos, numa descrição poética que se reporta à guerra colonial e cujo principal mérito é a serenidade dramática, testemunhando, sobretudo, um estado de alma – uma visão poética da guerra colonial:
É urgente libertar os meninos negros e brancos,
e dar às mães as estrelas
e as rosas de uma madrugada pura e imensa (24)
Porém, foi em 1956 que surgiu O Bolamense, sem dúvida, o jornal guineense de maior impacto cultural e literário. Nele, foram publicados muitos poemas que cantam com saudosismo os tempos difíceis em que Bolama, a velha cidade, era a capital da Guiné. Dos poemas publicados, vislumbra-se urna poética um tanto ou quanto apolíticas ou se quisermos, pitoresca e turística. Era, de resto, um jornal que pugnava pela História da Guiné – entenda-se História Colonialista –, ao mesmo tempo que procurava legitimar a colonização portuguesa ante o movimento libertário que, embrionariamente, ia dando os primeiros passos.
Conclusão
Em jeito de conclusão, gostaríamos de referir alguns aspectos deste estudo que merecem uma melhor explicação. E a primeira ideia que nos ocorre é a de que a Literatura Colonial não depende da realidade habitual e do contexto em que foi produzida uma vez que dela se separou e continua a viver depois de esta ter morrido. Isto é tanto mais verdade quanto é certo que, na obra literária, o assunto é de tal modo elaborado que não subsiste como valor puramente humano, sujeito a qualquer juízo prático. O assunto extingue-se para renascer noutra esfera. É exactamente tendo em conta este postulado que atribuímos à Literatura Colonial uma importância particular no que concerne ao seu relacionamento com a Literatura Nacional.
Com isto, não pretendemos inferir que a Literatura Nacional nasceu directamente na sequência da Colonial. Somos da opinião que, efectivamente, são duas coisas distintas, mas que se articulam por elos histórico-culturais e linguísticos. É axiomático que as motivações nortearam um e outro discurso literário em direcções opostas. Por isso, não nos parece legítimo a evocação de autores como Amílcar Cabral e Vasco Cabral – cujos alguns poemas datam da época colonial – para argumentar que a Literatura Nacional não nasceu do nada.
Ora, não esqueçamos que estes dois autores guineenses comparticiparam do espírito da Casa dos Estudantes do Império, da Negritude literária e demais inquietações a que estavam expostos os estudantes africanos em Portugal, ainda em pleno período colonial. Torna-se pois necessários (utilizando a expressão de Manuel Ferreira) separar o trigo do joio sem, todavia, esquecermos as grandes afinidades culturais entre uma e outra literatura, donde a finalidade fundamental do nosso estudo, convictos como estamos de que a História Literária só pode ser a História da Cultura Literária.
Eis chegado o momento de fecharmos esta modesta incursão pela Literatura Colonial Guineense. Ora, fazemo-lo com a consciência de que muito falta ainda para esclarecer e informar a seu respeito. Só a crítica e a estilística poderão penetrar mais profundamente o objecto de estudo em questão, pelo que aqui se regista um apelo aos especialistas na matéria. E porque aspectos positivos há a extrair da Literatura Colonial, interessa – como dizia Amílcar Cabral – aproveitar os aspectos positivos decorrentes da colonização, não só para enriquecermos a descolonização literária em curso, mas também para enquadrarmos sem complexos a componente cultural do passado que se cimentou indelevelmente na nossa cultura nacional.
E porque também no arraial de provações, de quezílias, de lutas e agravos que constitui a História Política da Guiné-Bissau, orgulhosa da sua luta de libertação, importa afastar derrotismos que de alguma forma possam gerar uma crise cultural de consciência e identidade, toma-se necessária a inclusão da Literatura Colonial no conjunto temático preferencial de estudo, a par de outros que se afiguram importantes. Isto porque, passados quinze anos do fecho do ciclo colonial, o Portugal Democrático e os novos Estados africanos de língua oficial portuguesa não são meros co-herdeiros de uma mesma tradição cultural – a colonial. São, creio bem, portadores da mesma missão que é a da construção da nação.
Leopoldo Amado
____________
OBS do Editor:
- Subtítulo da responsabilidade do Editor
- Leopoldo Amado é Doutor em História Contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa, (Faculdade Letras de Lisboa), sob a temática Guerra Colonial da Guiné versus Luta de libertação Nacional, 1961 – 1974)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 16 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2766: Álbum das Glórias (42): As melhores ostras de Bissau, em O Arauto, de 27 de Julho de 1967 (Benito Neves, CCAV 1484)
(**) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3878: Historiografia da presença portuguesa (18): O sítio Memória de África ® (Afonso Sousa
Vd. postes da série de:
22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução
e
23 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5144: Historiografia da presença portuguesa (25): A Literatura colonial guineense (Leopoldo Amado) (II): A primeira tipografia em 1879
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 24 de outubro de 2009
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Guiné 63/74 - P5146: Humor de caserna (15): O fim dos Ui!Ui!... e o milagroso comprimido LM do Zé Teixeira (José Belo)
Esta é a singela página principal do sítio, na Net, dos Maiorais de Empada, a malta da CCAÇ 2381 (1968/70), declarados inimigos dos Ui!Ui! do Rio Grande de Buba... Editor: José Teixeira. Colaboradores: José Belo e J. Manuel Samoco.
A CCAÇ 2381 teve como unidade mobilizadora o RI 2 (Abrantes). Partiu para a Guiné em 1/5/1968 e regressou à Metrópole em 3/4/1970. O seu comandante original, Cap Mil Inf Jacinto Joaquim Aidos, continua a frequentar os encontros anuais. O próximo convívio está marcado para o dia 1 de Maio de 2010 nas Grutas de Santo António, pero de Fátima.
1. Novo texto do José Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia há mais de três dezenas de anos...
Como bom Ui!Ui! que é, raramente se deixa fotografar... A foto que dele temos publicado, é de tão má qualidade que eu hoje resolvi não voltar a inseri-la... Até por razões de segurança do nosso querido amigo e camarada José Belo (os Ui!Ui! sempre foram muito apreciados no norte da Europa, com destaque para a Finlândia, que como toda a gente sabe faz fronteira com a Suécia...), pelo que optámos por deixar em branco o espaço reservado à chapa de identificação (LG).
2. O Fim dos UiUi! (*)
por José Belo
Caros Amigos e Camaradas:
Para não cair na tentação de criar um, menos conveniente, folhetim quanto aos estranhos, excessivos, por vezes contra natura, hábitos sexuais dos Ui!Ui! do sul da Guiné, que iria sair fora do âmbito de algumas profundas formações morais e militares de muitos dos camaradas (com o consequente arrastamento de sérios problemas para os editores do blogue com o Patriarcado, e mesmo a Nunciatura), resolvi, a bem de todos, encerrar definitivamente o assunto.
Sinto, no entanto, como profundo dever, compartilhar a técnica recomendada pelo Laboratório Militar (anos 70/71) quanto à obtenção de uma perfeita pele de Ui!Ui!
O facto da pelagem destes animais atingir valores comerciais muito elevados (não esquecer que existiam especialistas internacionais na casa Gouveia de Bissau com o fim único de exportar as mesmas para a Finlândia), a 2ª Repartição do Estado Maior de Bissau utilizou (abusivamente?) grande parte das verbas destinadas à Campanha por uma Guiné Melhor para subsidiar um estudo por parte de conhecido laboratório alemão quanto ao melhor isco para Ui!Ui!
Diz-se que, em muito oportuna intervenção, o então Capitão Almeida Bruno convenceu o Comando Chefe a não gastar enormes verbas com laboratórios internacionais para serem obtidas técnicas a serem utilizadas pelos simples dos bandos armados. E qual era o defeito do Laboratório Militar?
Bem haja meu General, porque a resposta científica para o problema foi deste modo muito mais rápida, profunda e eficiente,ou não fosse um laboratório.....militar! (ainda hoje me pergunto: Como se dirá desenrrascar em alemão?)
A sugestão recomendada pelos nossos era, obviamente, baseada nos célebres comprimidos LM. Quem os não recorda com saudade? Os tais utilizados para diarreias, gonorreias, e tudo o que de eias afligia as nossas tropas no vasto império africano, e não só. Como muito inteligentemente salientou a repartição de logística do Estado Maior em Lisboa, este medicamento sofisticado estava distribuído por tudo que era bolsa de enfermagem no nosso exército.
Cito NEP do Comando Chefe da Guiné para as Unidades existentes nas zonas do habitat dos Ui!Ui!, com instruções a serem rigorosamente seguidas pelas mesmas:
(i) Espalhar criteriosamente os comprimidos LM na parte mais escura das margens do tarrafo.
(ii) Aguardar o mais próximo possível dos comprimidos a chegada dos animais. (Recomenda-se a utilização das árvores mais próximas, tendo em conta os devidos cuidados a ter caso nelas se encontrem pendurados alguns guerrilheiros [Vd. foto à esquerda]. Estes costumam chatear-se com isso!)
(iii) Os animais, depois de uma demorada observação dos comprimidos, viram-se uns para os outros, e, em gesto reguila, levam a pata dianteira esquerda à pálpebra inferior do olho direito em típico gesto significativo de Queres ver estes chicos-espertos?!
É nesse momento que, apontando ao branco dos olhos, se devem abater os enormes Ui!Ui! sem produzir os tais buracos desnecessários na pele.
PS - Não quero terminar sem pedir as desculpas devidas a dois Camaradas:
(i) Ao Zé Teixeira, o nosso doutor da mata, pelas quantidades de comprimidos LM abusivamente desviados pelos Furriéis e por mim, do seu posto de enfermagem. Ele que os contava todos ao despertar,e os colocava em impecável formatura sobre a secretária ao recolher! O nosso ingénuo alibi quanto a um possível aumento de casos de gonorreia resultantes de intensivas campanhas nocturnas psico-sociais, não foi de modo algum aceite por um expert na sanidade das bajudas de Mampatá.
(ii) Ao meu companheiro de colégio lisboeta Mexia-Rambo-Alves (**) por não lhe ter feito chegar às mãos os azimutes da zona em que os Ui!Ui! viviam, por simples e miserável inveja, de que ele com as minibazucas de bolso compradas na estranja (as minhas eram marca Sagres da Manutenção) viria a abater os maiores exemplares de entre os Ui!Ui!
Um abraço amigo do José Belo.
Estocolmo 20/10/09
3. Comentário do Zé Teixeira, a pedido dos editores:
Um pouco de graça faz bem para baixar a tensão de alguns camaradas. Confesso que não conhecia esta veia do Belo.
Vou tenta explorar os LM - os tais comprimidos que davam para tirar dores de unhas encravads até às dores de cabeça, passando pela composição do 1214, o célebre composto à base de tintura de iodo e LM, um excelente remédio para caspa. Melhore que as meias da Casa Baiona, pois estas só davam da ponta dos pés até à porta da c...
Amanhã digo alguma coisa
Abraço.
José Teixeira
____________
Nota de L.G.:
(*) Vd. último poste da série:
20 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5135: Humor de caserna (14): Curiosidades zoológicas: Os Ui!Ui!, animais nocturnos, do tarrafo do Rio Grande de Buba (José Belo)
(...) É sem dúvida um dos animais de maior porte e com a mais bela pelagem escura de todos os que vivem no Sul da Guiné. O seu habitat natural limita-se a um triângulo que, grosso modo, tem os vértices em Empada-Buba-Mampatá, sendo as suas maiores concentrações junto às margens do rio grande de Buba.
Animal nocturno, extremamente tímido, e de muito difícil observação, é só nos períodos do ano em que as águas põem a descoberto enormes quantidades de ostras (alimento favorito dos Ui!Ui!) que os mesmos se conseguem abater. As suas peles, pela sua qualidade e beleza, vendem-se caro. Servem de perfeitos cobertores, casacos, tapetes, ou simples decorações. (...)
(**) Vd. poste de 19 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5132: Humor de caserna (13): Rambo uma vez, rambo para sempre (Joaquim Mexia Alves)
A CCAÇ 2381 teve como unidade mobilizadora o RI 2 (Abrantes). Partiu para a Guiné em 1/5/1968 e regressou à Metrópole em 3/4/1970. O seu comandante original, Cap Mil Inf Jacinto Joaquim Aidos, continua a frequentar os encontros anuais. O próximo convívio está marcado para o dia 1 de Maio de 2010 nas Grutas de Santo António, pero de Fátima.
1. Novo texto do José Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia há mais de três dezenas de anos...
Como bom Ui!Ui! que é, raramente se deixa fotografar... A foto que dele temos publicado, é de tão má qualidade que eu hoje resolvi não voltar a inseri-la... Até por razões de segurança do nosso querido amigo e camarada José Belo (os Ui!Ui! sempre foram muito apreciados no norte da Europa, com destaque para a Finlândia, que como toda a gente sabe faz fronteira com a Suécia...), pelo que optámos por deixar em branco o espaço reservado à chapa de identificação (LG).
2. O Fim dos UiUi! (*)
por José Belo
Caros Amigos e Camaradas:
Para não cair na tentação de criar um, menos conveniente, folhetim quanto aos estranhos, excessivos, por vezes contra natura, hábitos sexuais dos Ui!Ui! do sul da Guiné, que iria sair fora do âmbito de algumas profundas formações morais e militares de muitos dos camaradas (com o consequente arrastamento de sérios problemas para os editores do blogue com o Patriarcado, e mesmo a Nunciatura), resolvi, a bem de todos, encerrar definitivamente o assunto.
Sinto, no entanto, como profundo dever, compartilhar a técnica recomendada pelo Laboratório Militar (anos 70/71) quanto à obtenção de uma perfeita pele de Ui!Ui!
O facto da pelagem destes animais atingir valores comerciais muito elevados (não esquecer que existiam especialistas internacionais na casa Gouveia de Bissau com o fim único de exportar as mesmas para a Finlândia), a 2ª Repartição do Estado Maior de Bissau utilizou (abusivamente?) grande parte das verbas destinadas à Campanha por uma Guiné Melhor para subsidiar um estudo por parte de conhecido laboratório alemão quanto ao melhor isco para Ui!Ui!
Diz-se que, em muito oportuna intervenção, o então Capitão Almeida Bruno convenceu o Comando Chefe a não gastar enormes verbas com laboratórios internacionais para serem obtidas técnicas a serem utilizadas pelos simples dos bandos armados. E qual era o defeito do Laboratório Militar?
Bem haja meu General, porque a resposta científica para o problema foi deste modo muito mais rápida, profunda e eficiente,ou não fosse um laboratório.....militar! (ainda hoje me pergunto: Como se dirá desenrrascar em alemão?)
A sugestão recomendada pelos nossos era, obviamente, baseada nos célebres comprimidos LM. Quem os não recorda com saudade? Os tais utilizados para diarreias, gonorreias, e tudo o que de eias afligia as nossas tropas no vasto império africano, e não só. Como muito inteligentemente salientou a repartição de logística do Estado Maior em Lisboa, este medicamento sofisticado estava distribuído por tudo que era bolsa de enfermagem no nosso exército.
Cito NEP do Comando Chefe da Guiné para as Unidades existentes nas zonas do habitat dos Ui!Ui!, com instruções a serem rigorosamente seguidas pelas mesmas:
(i) Espalhar criteriosamente os comprimidos LM na parte mais escura das margens do tarrafo.
(ii) Aguardar o mais próximo possível dos comprimidos a chegada dos animais. (Recomenda-se a utilização das árvores mais próximas, tendo em conta os devidos cuidados a ter caso nelas se encontrem pendurados alguns guerrilheiros [Vd. foto à esquerda]. Estes costumam chatear-se com isso!)
(iii) Os animais, depois de uma demorada observação dos comprimidos, viram-se uns para os outros, e, em gesto reguila, levam a pata dianteira esquerda à pálpebra inferior do olho direito em típico gesto significativo de Queres ver estes chicos-espertos?!
É nesse momento que, apontando ao branco dos olhos, se devem abater os enormes Ui!Ui! sem produzir os tais buracos desnecessários na pele.
PS - Não quero terminar sem pedir as desculpas devidas a dois Camaradas:
(i) Ao Zé Teixeira, o nosso doutor da mata, pelas quantidades de comprimidos LM abusivamente desviados pelos Furriéis e por mim, do seu posto de enfermagem. Ele que os contava todos ao despertar,e os colocava em impecável formatura sobre a secretária ao recolher! O nosso ingénuo alibi quanto a um possível aumento de casos de gonorreia resultantes de intensivas campanhas nocturnas psico-sociais, não foi de modo algum aceite por um expert na sanidade das bajudas de Mampatá.
(ii) Ao meu companheiro de colégio lisboeta Mexia-Rambo-Alves (**) por não lhe ter feito chegar às mãos os azimutes da zona em que os Ui!Ui! viviam, por simples e miserável inveja, de que ele com as minibazucas de bolso compradas na estranja (as minhas eram marca Sagres da Manutenção) viria a abater os maiores exemplares de entre os Ui!Ui!
Um abraço amigo do José Belo.
Estocolmo 20/10/09
3. Comentário do Zé Teixeira, a pedido dos editores:
Um pouco de graça faz bem para baixar a tensão de alguns camaradas. Confesso que não conhecia esta veia do Belo.
Vou tenta explorar os LM - os tais comprimidos que davam para tirar dores de unhas encravads até às dores de cabeça, passando pela composição do 1214, o célebre composto à base de tintura de iodo e LM, um excelente remédio para caspa. Melhore que as meias da Casa Baiona, pois estas só davam da ponta dos pés até à porta da c...
Amanhã digo alguma coisa
Abraço.
José Teixeira
____________
Nota de L.G.:
(*) Vd. último poste da série:
20 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5135: Humor de caserna (14): Curiosidades zoológicas: Os Ui!Ui!, animais nocturnos, do tarrafo do Rio Grande de Buba (José Belo)
(...) É sem dúvida um dos animais de maior porte e com a mais bela pelagem escura de todos os que vivem no Sul da Guiné. O seu habitat natural limita-se a um triângulo que, grosso modo, tem os vértices em Empada-Buba-Mampatá, sendo as suas maiores concentrações junto às margens do rio grande de Buba.
Animal nocturno, extremamente tímido, e de muito difícil observação, é só nos períodos do ano em que as águas põem a descoberto enormes quantidades de ostras (alimento favorito dos Ui!Ui!) que os mesmos se conseguem abater. As suas peles, pela sua qualidade e beleza, vendem-se caro. Servem de perfeitos cobertores, casacos, tapetes, ou simples decorações. (...)
(**) Vd. poste de 19 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5132: Humor de caserna (13): Rambo uma vez, rambo para sempre (Joaquim Mexia Alves)
Guiné 63/74 - P5145: Agenda Cultural (35): Anos 70 Atravessar Fronteiras, exposição no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2009:
Malta,
Fui à exposição e o Amílcar Cabral apanhou-me de surpresa.
De acordo com o catálogo, já fora exposto na exposição “Retratos de Amílcar Cabral”, Ar.Co, Lisboa 1977.
Para quem quiser ir recordar o antes e depois do período revolucionário, não há melhor.
Um abraço do Mário
Amílcar Cabral numa exposição da Gulbenkian
Por Beja Santos
Decorre no CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, na Gulbenkian, uma exposição intitulada “Anos 70 atravessar fronteiras”, comissariada pela investigadora Raquel Henriques da Silva. Visitei a exposição à procura de mais informação sobre o reflexo da sociedade de consumo nas artes plásticas, cujas primeiras expressões datam dos anos 60. Se é verdade que a generalidade dos artistas entrou em oposição ao regime, no final dos anos 50, importa realçar o papel dos novos mecenas, do aparecimento da Fundação Gulbenkian, de coleccionadores e de tecnologias que vieram a permitir a acessibilidade da arte (caso da gravura e da serigrafia e das novas ousadias do desenho gráfico). A arte dos anos 60 para os anos 70 projecta esses múltiplos sonhos: a arte pop, a desconstrução do objecto de consumo, a proliferação das galerias de arte para satisfazer novas clientelas ávidas dos novos sinais de uma arte que tratava a fotografia, a colagem, os tecidos, os novos materiais como o spray, que punha em código desafios como os direitos humanos, as expressões afectivas, a sátira consumista, por exemplo. Os anos 70 são decisivamente marcados pelo 25 de Abril, e as novas profissões de fé políticas, mas tolheram experiências inerentes ao novo mundo do consumo e respectivos valores de civilização. Ia, pois, à procura de temas da minha profissão, revisitar artistas admirados como Lurdes Castro, Carlos Calvet, Eduardo Nery e Sá Nogueira, entre outros.
É nesta deambulação que fui confrontado com o retrato de Amílcar Cabral, datado de 1977, em tinta celulósica, de Noronha da Costa. Luís Noronha da Costa é considerado um dos mais originais artistas do século XX e seguramente um dos mais prolíficos. Tudo experimentou: fotografia e cinema; o acasalamento dos objectos com e sem a tela; a tensão permanente entre a luz que jorra e ilumina vários pontos do quadro no meio da neblina e dos esfumados. Um verdadeiro artífice, impaciente, atrevido, jogador das formas e das cores, manipulando as técnicas da performance e as evocações da arte multiplicada, reprodutível, tipo Andy Warhol.
Aqui fica pois um convite para ir ver uma fotografia de culto de Amílcar Cabral reinventada em tela fotossensível por Luís Noronha da Costa. Faz parte do nosso património, temos que ter orgulho nesta intenção de um grande artista português.
__________
Notas de CV:
Vd. poste de 21 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5139: Notas de leitura (30): Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, de Saturnino Monteiro (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5114: Agenda Cultural (34): A China de Ontem e de Hoje. Conferência proferida por António Graça de Abreu no dia 13OUT09 (Carlos Silva)
Malta,
Fui à exposição e o Amílcar Cabral apanhou-me de surpresa.
De acordo com o catálogo, já fora exposto na exposição “Retratos de Amílcar Cabral”, Ar.Co, Lisboa 1977.
Para quem quiser ir recordar o antes e depois do período revolucionário, não há melhor.
Um abraço do Mário
Amílcar Cabral numa exposição da Gulbenkian
Por Beja Santos
Decorre no CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, na Gulbenkian, uma exposição intitulada “Anos 70 atravessar fronteiras”, comissariada pela investigadora Raquel Henriques da Silva. Visitei a exposição à procura de mais informação sobre o reflexo da sociedade de consumo nas artes plásticas, cujas primeiras expressões datam dos anos 60. Se é verdade que a generalidade dos artistas entrou em oposição ao regime, no final dos anos 50, importa realçar o papel dos novos mecenas, do aparecimento da Fundação Gulbenkian, de coleccionadores e de tecnologias que vieram a permitir a acessibilidade da arte (caso da gravura e da serigrafia e das novas ousadias do desenho gráfico). A arte dos anos 60 para os anos 70 projecta esses múltiplos sonhos: a arte pop, a desconstrução do objecto de consumo, a proliferação das galerias de arte para satisfazer novas clientelas ávidas dos novos sinais de uma arte que tratava a fotografia, a colagem, os tecidos, os novos materiais como o spray, que punha em código desafios como os direitos humanos, as expressões afectivas, a sátira consumista, por exemplo. Os anos 70 são decisivamente marcados pelo 25 de Abril, e as novas profissões de fé políticas, mas tolheram experiências inerentes ao novo mundo do consumo e respectivos valores de civilização. Ia, pois, à procura de temas da minha profissão, revisitar artistas admirados como Lurdes Castro, Carlos Calvet, Eduardo Nery e Sá Nogueira, entre outros.
É nesta deambulação que fui confrontado com o retrato de Amílcar Cabral, datado de 1977, em tinta celulósica, de Noronha da Costa. Luís Noronha da Costa é considerado um dos mais originais artistas do século XX e seguramente um dos mais prolíficos. Tudo experimentou: fotografia e cinema; o acasalamento dos objectos com e sem a tela; a tensão permanente entre a luz que jorra e ilumina vários pontos do quadro no meio da neblina e dos esfumados. Um verdadeiro artífice, impaciente, atrevido, jogador das formas e das cores, manipulando as técnicas da performance e as evocações da arte multiplicada, reprodutível, tipo Andy Warhol.
Aqui fica pois um convite para ir ver uma fotografia de culto de Amílcar Cabral reinventada em tela fotossensível por Luís Noronha da Costa. Faz parte do nosso património, temos que ter orgulho nesta intenção de um grande artista português.
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Notas de CV:
Vd. poste de 21 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5139: Notas de leitura (30): Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, de Saturnino Monteiro (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5114: Agenda Cultural (34): A China de Ontem e de Hoje. Conferência proferida por António Graça de Abreu no dia 13OUT09 (Carlos Silva)
Guiné 63/74 - P5144: Historiografia da presença portuguesa em África (25): A Literatura colonial guineense (Leopoldo Amado) (II): A primeira tipografia em 1879
A literatura colonial guineense (2)
Por Leopoldo Amado
Desde a primeira tipografia em 1879, até à década de 30 do século XX
O último quartel do século XIX foi deveras decisivo para a colonização portuguesa da Guiné, pois que ante a resistência dos guineenses e a cobiça estrangeira, Portugal foi obrigado a acelerar os seus propósitos de colonização com a implantação compulsória da administração e a criação de um mínimo de infra-estruturas que garantissem a soberania sobre o território. Em 1870 Portugal saiu vencedor da disputa por Bolama em que se vira envolvido com os Ingleses, mediante a sentença arbitral do Presidente norte-americano, Ulisses Grant. Criaram-se então as condições para a autonomização administrativa do território, até aí sob tutela do Governo-geral de Cabo Verde. Assim, em 1879, a Guiné tinha ganho o estatuto de Província e Bolama, que em 1871 tinha ganho estatuto de Concelho passa a ser a capital da Província, passando o Governo da Guiné a preocupar-se mais com as guerras de pacificação e consequente implantação da administração, processo esse que se estendeu, grosso modo, até aos finais da década de 30 do século XX.
Dominada (?) a resistência dos africanos, temperadas as desavenças, os colonos entregaram-se às tarefas mais prementes como, por exemplo, a instalação da tipografia em 1879 e a criação do Boletim Oficial da Guiné em 1880 que, não obstante alguns pequenos hiatos, foi publicado ininterruptamente até 1974. E o que as agruras do clima e as guerras de pacificação não conseguiam fazer, alcançava-o o anseio do tempo memorial vivido, a sombra de um passado esfumado ao longe, como atestam os primeiros jornais publicados na Guiné: Ecos da Guiné em 1920, A Voz da Guiné em 1922 e Pró-Guiné em 1924. Estava-se ainda na fase em que a saudade da terra-mãe gravitava em volta dos demais temas e motivos de literatura jornalística ao mesmo tempo que a apologia do desenvolvimento colonial era a tónica omnipresente.
Vivia-se até dos rescaldos decorrentes da implantação da República na metrópole, tanto mais que dois desses periódicos pioneiros, A Voz da Guiné e o Pró-Guiné se intitulavam, respectivamente, de quinzenário republicano independente e órgão do Partido Republicano Democrático. Raras vezes se fazia referência à população africana, pois era bastante diminuta, senão insignificante, a sua presença na vida urbana colonial, na qual, aliás, era somente a tolerada pelos serviços domésticos que realizavam junto dos colonos. Quando se dizia entusiasticamente que quando alcançarmos a meta das nossas mais caras aspirações, erguendo bem alto (...) o nome de Portugal..., faziam-no por exclusão de partes; decerto não pensavam na população africana que ainda não tinha conquistado qualquer outro estatuto social que não o de selvagens.
Se por um lado se assistia ao surgimento, ainda ténue, daquilo a que se poderia impropriamente chamar elite africana, por outro, a embrionária cristianização ainda não tinha desabrochado os seus frutos. O agente da administração, o soldado e o comerciante estavam todos entregues a uma vida enfadonha de procura de posses a que também os missionários não foram alheios. Era isso que reflectia a imprensa da época: um ambiente em que proliferava a maledicência, onde uma multidão burocrática efusiva se projectava nos jornais, uns contra os outros, em ataques e contra-ataques; em suma, um ambiente que denotava fortemente o sentimento generalizado de degradação moral e política a que estavam sujeitos os colonos na Guiné.
Daí que não se produziu literatura no sentido estrito da palavra, salvo algumas manifestações poéticas (poucas) que, mesmo assim, pouco ou nada tinham de africano. Era, pois, a fase da saudade, a saudade que os consumia porque além da inexistência de uma atmosfera propícia ao fluxo cultural recíproco entre europeus e africano - agravada ainda pelas guerras de pacificação –, o ethós curioso do colono foi insensível ao conhecimento das balizas do mundo, do diferente e, paradoxalmente, até do exótico. Nem a magnificência do cenário, de fascínio quase narcotizante aos olhos europeus da altura foi capaz de despoletar manifestações literárias, nem mesmo aquelas empapadas de exotismo como as produzidas, por exemplo, no mesmo período, em Angola ou Moçambique. Quando em Março de 1922 O Século publicou uma notícia que dava conta que um médico brasileiro provou ser capaz de mudar indivíduos negros em brancos, A Voz da Guiné comentou o facto da seguinte maneira: "... Ora lavre lá dos tentos o Senhor Oclávio, e faça rapidamente, essa maravilha, porque nos livra deste grande mal: a dúvida em que estamos sempre de quais serão os pretos... Mas por favor, não os deixe com malhas". De resto, é evidente a ousadia e a sem cerimónia com que foi publicado este comentário, o que só prova a inexistência na época de uma elite africana esclarecida que pudesse desencorajar a sua publicação.
É que na Guiné da época, já o dissemos, as condições de inserção social do africano na sociedade colonial não foram de molde a que isso pudesse acontecer, à semelhança, por exemplo, do papel precursor e catalisador que teve a Revista Luz e Crença em Angola, revista essa que impulsionou a criação da Associação Literária Angolense. Tanto assim era o ambiente de relacionamento entre portugueses e africanos que nas primeiras décadas do nosso século não surgiu nenhum guineense que merecesse o designativo de continuador da obra de Marcelino Marques Barros, figura importante do último quartel do século XIX que, em nossa opinião, terá lançado os germens da identidade nacional guineense, à qual está indiscutivelmente ligada a sua opção de estudo do crioulo e de algumas línguas nacionais.
Nem mesmo o escuro e obscuro português, como o próprio Honório Barreto se intitulava, foi tão longe em matéria de nacionalismo como Marcelino Marques de Barros, não obstante se deverem àquele as constantes denúncias do racismo colonial, hesitantes embora, dado os cargos que desempenhou em colaboração com o sistema colonial. Como repetidas vezes já dissemos, as condições de inserção do guineense na sociedade colonial eram muito reduzidas, salvo casos muito pontuais. E a provar isso recorremos ao artigo segundo do decreto número 16.473 de 6 de Dezembro de 1922, que pregava: para efeitos do presente estatuto são considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendente que, pela sua ilustração e costumes, se distingam do comum daquela raça; e não indígenas, os indivíduos de qualquer raça que não estejam nestas condições. Como se pode ver por esta disposição legal, estavam criadas as condições jurídicas para a marginalização social do guineense, se considerarmos a clivagem institucionalizada e ainda o grau de instrução, que era quase nulo.
Quanto à cristianização, também não prosperou significativamente. Cacheu, que antes de 1932 era o centro religioso mais importante da Guiné, tinha pouco mais de mil devotos que, mesmo assim, amiúde regressam às suas práticas religiosas tradicionais. A escola-oficina da Missão de Bolama, instituição que mais produziu guineenses letrados na altura, foi fundada em 1933, quando Cacheu, até então considerada como o apanágio da designação Roma da Guiné, perdeu o papel de primazia ante a importância religiosa que Bolama adquiriu devido essencialmente à emigração em massa de caboverdianos.
Antes da chegada em massa de caboverdianos, de facto, a bifurcação entre a sociedade guineense e a colonial era bastante mais acentuada. Foi o elemento étnico caboverdiano que aproximou as duas componentes sociais que coexistiam quase separadamente. E não foi por mero acaso que tal foi possível: a chegada em massa de emigrantes caboverdianos foi encorajada pelas autoridades coloniais com o fim de propiciar a miscigenação cultural e biológica, pensando erradamente – como mais tarde se provou – que o ambiente dela decorrente iria ao encontro dos propósitos do sistema colonial. Curiosamente, a emigração massiva de caboverdianos para a Guiné coincidiu no tempo com um período de menos tensão social, pelo que pode ser tido como um marco de referência no processo de implantação da colonização efectiva na Guiné, sem receio de exagerarmos, pois basta ter em conta o peso dos caboverdianos na administração colonial da Guiné.
Ora, se é verdade que a emigração cabo-verdiana para a Guiné provocou grandes alterações na estrutura social que prevalecia antes, não é menos verdade que, por outro lado, a sua presença e posição social terão facilitado a crioulização social em toda a Guiné. Assim, se por um lado o contacto entre caboverdianos e guineenses foi salutar graças às afinidades históricas e linguísticas (prova isso que ambos eram subjugados pelo colonialismo, pelo que decidiram lutar juntos pela sua libertação), por outro, os guineenses não viam com bons olhos a identificação e, em alguns casos, a colaboração que os caboverdianos, na verdade, prestaram ao aparelho colonial--administrativo na Guiné. Porém, hoje que a reminiscência do passado colonial tende a revelar-se menos forte do que a vontade dos povos em se entenderem, torna-se um imperativo inadiável a necessidade de enquadramento cultural das contribuições valiosas de características coloniais que alguns caboverdianos assinaram, sendo de destacar no domínio literário os exímios romancistas Fausto Duarte e João Augusto Silva, e no ensaio, Juvenal Cabral (pai de Amílcar Cabral) e Fernando Pais de Figueiredo (7).
No que diz respeito aos guineenses, se exceptuarmos os estudos de Marcelino Marques Barros e alguns artigos de Caetano Filomeno de Sá com interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial, somos forçados a admitir que aos guineenses, a política colonial nunca permitiu o acesso em massa à cultura e à instrução, o que explica em medida considerável as razões porque na Guiné colonial não terá existido um movimento literário ou cultural que pudesse de algum modo constituir-se no embrião da literatura nacional, à semelhança, por exemplo, de Vamos descobrir Angola ou do movimento Claridade, no caso caboverdiano. Estamos mesmo em crer que aos guineenses não foram abertos outros caminhos que não o da resistência contra a colonização, mesmo depois de terminadas as guerras de pacificação (8).
Escusado é pois dizer que as condições nas duas primeiras décadas não eram propícias ao florescimento literário. À excepção de alguma actividade jornalística que esporadicamente publicava uma poética saudosista-colonial, que saibamos, não foi publicado qualquer outra obra literária colonial além do poema Desejo Mórbido de Maria Archer e Mariazinha em África*, de Fernanda de Castro. Aquela, sequiosa de exotismo tropical, canta prodigiosamente os mistérios do sertão ao mesmo tempo que estabelece os contrastes entre a metrópole e a Guiné. Como quer que seja, Maria Archer figura como a primeira literata-colonial guineense e o seu poema Desejo Mórbido, data de 1918.
Foi, na verdade, Fernanda de Castro (s) quem, deliberadamente ou não, introduziu, se se quer, uma literatura social na qual era tida em linha de conta a realidade da sociedade guineense e colonial da altura. Ousamos mesmo dizer que a produção literária-colonial desta autora inaugurou – do ponto de vista historicista – um novo período, não só devido à introdução de um discurso literário novo, como também pelas transformações sociais e sociológicas de que a sua produção literária-colonial são o prenúncio, o testemunho e o reflexo. As reedições aumentadas, mas sobretudo alteradas, do best-seller Mariazinha em África (9) conferem uma particularidade flagrante aos escritos desta autora, na medida em que permitem-nos discernir as atitudes do Estado Novo perante a política colonial da Guiné. Além disso, não é apenas o exotismo, o paternalismo e o desconhecimento do outro civilizacional que faz da produção literária-colonial uma peça-chave para a compreensão das metamorfoses da política oficial de que também comungava Fernanda de Castro (10). É, digamos assim, a idiossincrasia com que encarou a sua produção literária-colonial, o que a forçou nas reedições havidas a alterações ideográficas de fundo, de forma a se equidistar do Estado Novo que, paradoxalmente, apregoava a multirracialidade. O racismo colonial, hábil, tinha também uma actuação e respectiva teorização correspondente. Nuns artigos que publicámos no jornal Angolê – Artes & Letras, demonstramos através de um estudo comparativo de diferentes edições de Mariazinha em África a forma como ela foi procedendo a uma gradual suavização da visão colonial ou colonialista do negro-africano, ou seja, da carga conceptual e preconceitual pejorativas.
Já escrevemos algures que o livro de Fernanda de Castro Mariazinha em África teve mais de um dezena de edições que percorreram gerações, e a autora vangloria-se quando diz que «este livro está certamente entre os livros mais vendidos em Portugal». Ora, se por um lado o facto se deveu à capacidade da autora enquanto escritora, por outro também é verdade que o facto de ter sido mulher de António Ferro (braço direito de Salazar) valeu-lhe intervenções públicas de particular interesse. Outro aspecto importante que ressalta dos escritos coloniais de Fernanda de Castro é o deles serem, em termos de intriga textual, factos arrancados à vida real a que não falta um certo teor autobiográfico, que derrapa, regra geral, em construções artificiais, empapados de elementos misteriosos – onde os nomes e as designações geográficas, mesmo quando verdadeiros, apenas figuram como criadores de uma atmosfera exótica.
Depois de Fernanda de Castro, seguir-se-ia um hiato até 1931, altura em que surge o primeiro jornal editado por um guineense. Trata-se de Armando António Pereira, de quem já recolhemos depoimentos para futuros trabalhos. O periódico em causa, O Comércio da Guiné representava não só os interesses comerciais da colónia como também atribuía uma grande importância aos aspectos culturais em geral. Depois do hiato a que já fizemos referência, O Comércio da Guiné aparece como corolário duma situação ambiental de menor tensão social e racial, decorrentes dos problemas que a resistência africana provocava e que absorvia quase totalmente o governo colonial. Doravante o Governo da Guiné tem unicamente a orientá-lo as exigências da nacionalização da colónia e o estabelecimento de condições indispensáveis ao florescimento do comércio colonial. É neste contexto que Bissau ganha rapidamente importância como porto de óptima navegação, e dela resulta o grande movimento comercial no seu interior, donde o reassumir da sua importância em relação a Bolama (11). Em termos da chamada política indígena, passa-se paulatinamente a uma fase que chamaríamos assimilacionismo, pois começou-se a vislumbrar na política colonial da Guiné a tendência para a aproximação social de alguns guineenses com fins previamente visados. Foi nestas condições histórico-sociológicas que O Comércio da Guiné surge em Bissau, em 1931, sendo dirigido por Armando António Pereira, talvez o único guineense com formação superior na altura.
Todavia, convém que se diga, O Comércio da Guiné não se afastou muito do discurso colonial, apesar de se ter assumido, vagamente, como defensor dos interesses indígenas (sic).
No que concerne à produção literária-colonial, O Comércio da Guiné publicou alguma poética que, também, pouco ou nada tinha a ver com a Guiné. No domínio do ensaio destacou-se Fausto Duarte, que também era repórter, cronista desportivo e colunista. Nomes como o de Juvenal Cabral, Alberto Gomes Pimentel e Álvaro Coelho de Mendonça, figuram n' O Comércio da Guiné como autores de inúmeros artigos com algum interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial. Embora se intitulasse de órgão dos interesses da colónia, O Comércio da Guiné transcendeu largamente os objectivos primeiros da sua fundação. Foi nele que Fausto Duarte começou a revelar os seus talentos de escritor colonial para mais tarde se transformar, em nossa opinião, no melhor e mais esclarecido romancista guineense. Por ocasião da primeira exposição colonial de Paris de 1931, O Comércio da Guiné dedicou um número especial ao evento, onde se destacou a etnografia guineense, os aspectos tradicionais da cultura guineense e ainda um artigo intitulado “Literatura Colonial”, não assinado, mas que supomos ser da autoria de Fausto Duarte. Este artigo representa por parte do autor uma consciência profunda dos aspectos teóricos e definicionais da Literatura, além de demonstrar que a década de 30 era caracterizada por um novo discurso literário para o caso guineense; um período em que a Literatura Colonial da Guiné, influenciada pela Literatura Colonial francófona, ia aos poucos relegando para segundo plano a faceta eivada de idealismos, de conceitos morais doutrinários, para se interessar pelo folclore africano... (12).
Em 1931, Afonso Correia publica o livro Bacomé Sambú (13). Trata-se, antes de mais, de uma obra deveras paternalista e exótica, em suma, um misto de ficção, romance e etnologia sobre os nalús. Bacomé Sambú, que é o protagonista da intriga textual, era um nalú a quem o administrador apadrinhara e acarinhava longamente a sua timidez, a sua inocência, encaminhando-o na vida, ensinando-lhe a língua portuguesa com uma paciência que tinha algo de evangélica. Deste extracto sobressai imediatamente o paternalismo feroz, produto de uma mentalidade estigmatizada e verdadeiramente colonial. Ao longo de toda a obra é-se forçado pelo autor a admitir que Bacomé Sambú não é preto mas sim pretito, isto é, duplamente diminuído, donde a necessidade de apadrinhamento da sua tribo/raça pelo administrador ou pelos colonos. Por isso, a dado passo escreveu: “Bacomé estava já no caminho amplo das leis dos brancos, aprendendo com eles a raciocinar sobre a vida e encontrando-se à sua protecção para viver farto e feliz” (14) . Estava-se pois na fase do assimilacionismo colonial e Afonso Correia, amiúde, punha na boca das suas personagens uma espécie de auto-convicção da sua inferioridade nata em relação aos brancos. A par disso, associa os conceitos ocidentais de miséria e felicidade à análise que efectua sem qualquer relativismo cultural, de resto, muito comum na literatura colonial de então. Ao mato, associa todo um imaginário preconcebido ou estereotipado de perigo, do negro – sintomaticamente a cor do guineense –, da fauna selvagem, do exotismo e mistério, do medo e do tédio.
Porém, não recusamos a hipótese dum certo enraizamento africano de Afonso Correia tendo em linha de conta algumas incursões que efectua e bem sobre a psicologia nalú. Por outro lado, somos forçados a considerar a obra deste autor como um caso típico de retrocesso ideográfico em relação ao contexto histórico-cultural da sua época. Tanto assim é que, na sua obra, Afonso Correia recorre aos termos de referência obrigatória com que a Literatura Colonial dos primeiros tempos caracterizava o africano. São eles a indolência (insensibilidade moral, indiferença, apatia, inacção e ócio), os excessos (o sexo, a gula e a extravagância) e, por fim, a irresponsabilidade (que pregava que o negro é uma grande criança) e a sofreguidão (que atribuía ao negro a adjectivação de bêbados incorrigíveis). De resto, Bacomé Sambú é uma obra algo enfadonha que, como opinou 0 Comércio da Guiné, “serve-se de um enredo fantasista em que aparece a paisagem matizada de Cacine e a descrição dos usos e costumes pitorescos dós nalús. As observações ligeiras que enfeitam todo o motivo estampam-se numa prosa escorreita, despreocupada” (15).
Quanto à imprensa, a década de 30 nem por isso foi fértil. Ao Comércio da Guiné sucederam três outros jornais, todos de número único e sem qualquer importância para o sujeito em estudo. Foram eles, respectivamente, o 15 de Agosto (1932), Sport Lisboa e Bolama (1938) e A Guiné Agradecida (1939).
Ainda na década de 30, António de Cértima revelou-se um escritor colonial de talento. Inicialmente como colaborador d' O Comércio da Guiné e, mais tarde, como cônsul português em Dakar, onde escreveu lindos poemas e prosas de inspiração guineo-senegalesa com muito interesse de estudo. António de Cértima foi autor do maravilhoso livro de viagens Sortilégio Senegalês, onde, numa amálgama de nacionalismo pátrio e algum enraizamento guineense, construiu todo um postulado teórico da sua visão colonial, numa narração plena e multímoda.
Mas foi sobretudo Fausto Duarte que, depois de ter chegado à Guiné em 1928, revela em 1934 com seu livro Auá** uma Guiné diferente daquela que fora pintada na Literatura Colonial até aí (16). As suas funções de agrimensor permitiram-lhe rapidamente um contacto profundo com as populações da Guiné, pelo que partiu, antes de mais, da identificação cultural do povo guineense para encetar uma incursão romanesca que revelou, de forma singular, um conhecimento não só das componentes sociocultural e linguística, como também da sua articulação intrínseca. Tal proeza originou por parte de Benjamim Pinto Bull uma atitude intelectual em que, sem hesitações, coloca Fausto Duarte entre os primeiros, senão mesmo o primeiro, a lançar as sementes de uma identidade nacional (17). Não obstante congratularmo-nos: em parte com Benjamim Pinto Bull, restam-nos as naturais reservas que nos sugerem o estudo global da produção literária-colonial de Fausto Duarte. Não há dúvidas de que Fausto Duarte apostou estranhadamente na descrição romanesca e omnipresente do confronto civilizacional, mas, por exemplo, em Auá descortina-se um paternalismo algo tímido na penetração nos valores culturais guineenses. Ora, Benjamim Pinto Bull atribui isso à vigilância da PIDE (18). Todavia, estamos em crer que a atitude de Fausto Duarte não se deveu unicamente ao poder dissuasivo da polícia política, mas também às condições ambientais da época em termos de visão que se tinha do africano. A provar isso está bem patente nas páginas do seu livro Foram Estes os Vencidos o seu paternalismo relativamente aos africanos. Igualmente, encontramos em Negro sem Alma considerações que denotam fortemente a existência em Fausto Duarte uma espécie de preconceito interiorizado. Senão vejamos: “...o instinto sanguinário adormecido na alma dos pretos despertou com inaudita violência...” (19) ou ainda “...abandonando-o, o negro é um pobre corpo sem alma, um vagabundo nostálgico que caminha titubeante atraído pela sombra como as térmitas” (20). Por outro lado, não esqueçamos que Fausto Duarte era mestiço, elemento que não era totalmente aceite nem pelos africanos, nem pelos europeus no contexto colonial, donde, talvez, a sua ambivalência e ambiguidade cultural. Seja como for, Fausto Duarte revelou-se como um conhecedor profundo da Guiné assim como da alma guineense. Também é certo que nenhum outro escritor colonial logrou atingir a plenitude das narrações sobre a Guiné que o seu punho brilhante impregnou nas suas obras. De facto, a sua produção literária-colonial foi revolucionária dentro do contexto colonial guineense, pelo simples facto desse autor possuir um poder de observação sociológica extraordinário e, ainda, uma paradoxal consciência de africanidade que se lhe pode atribuir sem reservas.
Por ocasião da primeira exposição colonial portuguesa no Porto, em 1934, Fausto Duarte foi prelector do seguinte tema: “Da Literatura Colonial e da Morna de Cabo Verde”. Descortina-se neste casamento temático, de alguma forma ligado por elos culturais, a tentativa de demonstrar que a Literatura Colonial e a Morna são ambas de mesma raiz cultural – a portugalidade dos trópicos. Não é nossa intenção problematizar aqui a fundamentação desta suposição que não cremos descabida de todo. Tão-somente queríamos chamar a atenção do quid híbrido de Fausto Duarte, o que abona em favor da tese que até aqui temos sustentado, sem anular a nossa profunda convicção de que Fausto Duarte também possuía a consciência da identidade cultural guineense, mas algo que se aproxima em muito daquilo a que hoje se chama, convencionalmente, de protonacionalismo.
Ora, o mérito de Fausto Duarte vai ainda mais longe. Era, digamos assim, o grande teorizador da ideografia literária-colonial, à qual associava um discurso de apelo à justiça ou, se quisermos, moralista: “...não se faz psicologia; descreveu-se apenas a floresta virgem, as cruéis fadigas da jornada, à medida que o litoral se confundia com a linha do horizonte. Os indígenas eram tão-somente animais de uma outra espécie, sem sensibilidade para amar, sem inteligência para compreender (...) depois procurou-se o horrível e o extraordinário. Surgem romances de aventuras que nos pintam o negro como o maior inimigo da selva, em constantes hostilidades. E a mulher indígena apaga-se ante os preconceitos aristocráticos. O amor entre eles tem apenas uma finalidade objectiva. Falta a justeza da expressão nessas literaturas incipientes. Adeja sobre a África uma incompreensível fatalidade (...) é necessário antes o contacto directo com a sua mentalidade, perguntar-lhe a vida e compreender-lhe as superstições” (21). Em 1945, Fausto Duarte fecha o seu percurso literário colonial com o livro intitulado A Revolta. Mais que um romance, esta obra é um preciosíssimo documento histórico para a História cultural e das mentalidades subjacentes às guerras de pacificação pois, à semelhança das restantes, privilegia o confronto cultural, desta vez não só entre portugueses, guineenses e caboverdianos, mas fundamentalmente entre as diferentes identidades da Guiné.
Em 1935, Landerset Simões, que exercia funções administrativas e posteriormente militares, publica a Babel Negra, sem dúvida um livro de incalculável interesse, e talvez dos estudos etno-antropológicos cientificamente melhor elaborados sobre a Guiné. Por se tratar de uma espécie de antologia etnográfica e etnológica da Guiné, apresenta algum interesse do ponto de vista literário. E porque remete os leitores para uma ancestralidade étnica remota, que se reporta à História da Guiné e suas populações, Babel Negra figura como a primeira tentativa de desmistificação histórica num contexto ideográfico e cultural em que era lugar-comum supor-se que os africanos não possuem a escrita e, consequentemente, a História. Pela primeira vez um autor colonial debruça-se sobre a arte guineense com postulados metodológicos e conceptuais que se opõem diametralmente às ideias que na Europa se ventilavam sobre a arte africana.
Um ano depois, em 1936, João Augusto Silva publica África – da vida e do amor na selva, que obteve o primeiro prémio de Literatura Colonial. A par das obras de Fausto Duarte, ela surge como uma das obras que mais intensamente penetrou a psicologia e a cultura guineenses. Porém, o grande mérito desta obra reside no facto de ser um testemunho vivo das vicissitudes da implantação da administração na Guiné, além de representar um retrato, bem conseguido, da sociedade colonial da década de 30. Diz o autor – e com razão – que a colonização é feita pelas mais desvairadas gentes, desde os revolucionários e bandidos políticos que para ali foram, pacatamente gozar as recompensas que os seus grupos lhas concederam, até àquelas generosas almas que procuram em África o esquecimento das misérias terrenas (...) deste forçado entrechocar de educações e sensibilidade, nasce uma sociedade odiosa, onde, quase sempre, triunfam aqueles que deviam ser postos à margem dela, pelos seus crimes, suas vilanias e a sua desprezível moral (...); e só vivem para explorar o negro, maltratá-lo... (22)
OBS:-Subtítulo da responsabilidade do co-editor
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)
(**) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)
Vd. primeiro poste da série de 22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução
Por Leopoldo Amado
Desde a primeira tipografia em 1879, até à década de 30 do século XX
O último quartel do século XIX foi deveras decisivo para a colonização portuguesa da Guiné, pois que ante a resistência dos guineenses e a cobiça estrangeira, Portugal foi obrigado a acelerar os seus propósitos de colonização com a implantação compulsória da administração e a criação de um mínimo de infra-estruturas que garantissem a soberania sobre o território. Em 1870 Portugal saiu vencedor da disputa por Bolama em que se vira envolvido com os Ingleses, mediante a sentença arbitral do Presidente norte-americano, Ulisses Grant. Criaram-se então as condições para a autonomização administrativa do território, até aí sob tutela do Governo-geral de Cabo Verde. Assim, em 1879, a Guiné tinha ganho o estatuto de Província e Bolama, que em 1871 tinha ganho estatuto de Concelho passa a ser a capital da Província, passando o Governo da Guiné a preocupar-se mais com as guerras de pacificação e consequente implantação da administração, processo esse que se estendeu, grosso modo, até aos finais da década de 30 do século XX.
Dominada (?) a resistência dos africanos, temperadas as desavenças, os colonos entregaram-se às tarefas mais prementes como, por exemplo, a instalação da tipografia em 1879 e a criação do Boletim Oficial da Guiné em 1880 que, não obstante alguns pequenos hiatos, foi publicado ininterruptamente até 1974. E o que as agruras do clima e as guerras de pacificação não conseguiam fazer, alcançava-o o anseio do tempo memorial vivido, a sombra de um passado esfumado ao longe, como atestam os primeiros jornais publicados na Guiné: Ecos da Guiné em 1920, A Voz da Guiné em 1922 e Pró-Guiné em 1924. Estava-se ainda na fase em que a saudade da terra-mãe gravitava em volta dos demais temas e motivos de literatura jornalística ao mesmo tempo que a apologia do desenvolvimento colonial era a tónica omnipresente.
Vivia-se até dos rescaldos decorrentes da implantação da República na metrópole, tanto mais que dois desses periódicos pioneiros, A Voz da Guiné e o Pró-Guiné se intitulavam, respectivamente, de quinzenário republicano independente e órgão do Partido Republicano Democrático. Raras vezes se fazia referência à população africana, pois era bastante diminuta, senão insignificante, a sua presença na vida urbana colonial, na qual, aliás, era somente a tolerada pelos serviços domésticos que realizavam junto dos colonos. Quando se dizia entusiasticamente que quando alcançarmos a meta das nossas mais caras aspirações, erguendo bem alto (...) o nome de Portugal..., faziam-no por exclusão de partes; decerto não pensavam na população africana que ainda não tinha conquistado qualquer outro estatuto social que não o de selvagens.
Se por um lado se assistia ao surgimento, ainda ténue, daquilo a que se poderia impropriamente chamar elite africana, por outro, a embrionária cristianização ainda não tinha desabrochado os seus frutos. O agente da administração, o soldado e o comerciante estavam todos entregues a uma vida enfadonha de procura de posses a que também os missionários não foram alheios. Era isso que reflectia a imprensa da época: um ambiente em que proliferava a maledicência, onde uma multidão burocrática efusiva se projectava nos jornais, uns contra os outros, em ataques e contra-ataques; em suma, um ambiente que denotava fortemente o sentimento generalizado de degradação moral e política a que estavam sujeitos os colonos na Guiné.
Daí que não se produziu literatura no sentido estrito da palavra, salvo algumas manifestações poéticas (poucas) que, mesmo assim, pouco ou nada tinham de africano. Era, pois, a fase da saudade, a saudade que os consumia porque além da inexistência de uma atmosfera propícia ao fluxo cultural recíproco entre europeus e africano - agravada ainda pelas guerras de pacificação –, o ethós curioso do colono foi insensível ao conhecimento das balizas do mundo, do diferente e, paradoxalmente, até do exótico. Nem a magnificência do cenário, de fascínio quase narcotizante aos olhos europeus da altura foi capaz de despoletar manifestações literárias, nem mesmo aquelas empapadas de exotismo como as produzidas, por exemplo, no mesmo período, em Angola ou Moçambique. Quando em Março de 1922 O Século publicou uma notícia que dava conta que um médico brasileiro provou ser capaz de mudar indivíduos negros em brancos, A Voz da Guiné comentou o facto da seguinte maneira: "... Ora lavre lá dos tentos o Senhor Oclávio, e faça rapidamente, essa maravilha, porque nos livra deste grande mal: a dúvida em que estamos sempre de quais serão os pretos... Mas por favor, não os deixe com malhas". De resto, é evidente a ousadia e a sem cerimónia com que foi publicado este comentário, o que só prova a inexistência na época de uma elite africana esclarecida que pudesse desencorajar a sua publicação.
É que na Guiné da época, já o dissemos, as condições de inserção social do africano na sociedade colonial não foram de molde a que isso pudesse acontecer, à semelhança, por exemplo, do papel precursor e catalisador que teve a Revista Luz e Crença em Angola, revista essa que impulsionou a criação da Associação Literária Angolense. Tanto assim era o ambiente de relacionamento entre portugueses e africanos que nas primeiras décadas do nosso século não surgiu nenhum guineense que merecesse o designativo de continuador da obra de Marcelino Marques Barros, figura importante do último quartel do século XIX que, em nossa opinião, terá lançado os germens da identidade nacional guineense, à qual está indiscutivelmente ligada a sua opção de estudo do crioulo e de algumas línguas nacionais.
Nem mesmo o escuro e obscuro português, como o próprio Honório Barreto se intitulava, foi tão longe em matéria de nacionalismo como Marcelino Marques de Barros, não obstante se deverem àquele as constantes denúncias do racismo colonial, hesitantes embora, dado os cargos que desempenhou em colaboração com o sistema colonial. Como repetidas vezes já dissemos, as condições de inserção do guineense na sociedade colonial eram muito reduzidas, salvo casos muito pontuais. E a provar isso recorremos ao artigo segundo do decreto número 16.473 de 6 de Dezembro de 1922, que pregava: para efeitos do presente estatuto são considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendente que, pela sua ilustração e costumes, se distingam do comum daquela raça; e não indígenas, os indivíduos de qualquer raça que não estejam nestas condições. Como se pode ver por esta disposição legal, estavam criadas as condições jurídicas para a marginalização social do guineense, se considerarmos a clivagem institucionalizada e ainda o grau de instrução, que era quase nulo.
Quanto à cristianização, também não prosperou significativamente. Cacheu, que antes de 1932 era o centro religioso mais importante da Guiné, tinha pouco mais de mil devotos que, mesmo assim, amiúde regressam às suas práticas religiosas tradicionais. A escola-oficina da Missão de Bolama, instituição que mais produziu guineenses letrados na altura, foi fundada em 1933, quando Cacheu, até então considerada como o apanágio da designação Roma da Guiné, perdeu o papel de primazia ante a importância religiosa que Bolama adquiriu devido essencialmente à emigração em massa de caboverdianos.
Antes da chegada em massa de caboverdianos, de facto, a bifurcação entre a sociedade guineense e a colonial era bastante mais acentuada. Foi o elemento étnico caboverdiano que aproximou as duas componentes sociais que coexistiam quase separadamente. E não foi por mero acaso que tal foi possível: a chegada em massa de emigrantes caboverdianos foi encorajada pelas autoridades coloniais com o fim de propiciar a miscigenação cultural e biológica, pensando erradamente – como mais tarde se provou – que o ambiente dela decorrente iria ao encontro dos propósitos do sistema colonial. Curiosamente, a emigração massiva de caboverdianos para a Guiné coincidiu no tempo com um período de menos tensão social, pelo que pode ser tido como um marco de referência no processo de implantação da colonização efectiva na Guiné, sem receio de exagerarmos, pois basta ter em conta o peso dos caboverdianos na administração colonial da Guiné.
Ora, se é verdade que a emigração cabo-verdiana para a Guiné provocou grandes alterações na estrutura social que prevalecia antes, não é menos verdade que, por outro lado, a sua presença e posição social terão facilitado a crioulização social em toda a Guiné. Assim, se por um lado o contacto entre caboverdianos e guineenses foi salutar graças às afinidades históricas e linguísticas (prova isso que ambos eram subjugados pelo colonialismo, pelo que decidiram lutar juntos pela sua libertação), por outro, os guineenses não viam com bons olhos a identificação e, em alguns casos, a colaboração que os caboverdianos, na verdade, prestaram ao aparelho colonial--administrativo na Guiné. Porém, hoje que a reminiscência do passado colonial tende a revelar-se menos forte do que a vontade dos povos em se entenderem, torna-se um imperativo inadiável a necessidade de enquadramento cultural das contribuições valiosas de características coloniais que alguns caboverdianos assinaram, sendo de destacar no domínio literário os exímios romancistas Fausto Duarte e João Augusto Silva, e no ensaio, Juvenal Cabral (pai de Amílcar Cabral) e Fernando Pais de Figueiredo (7).
No que diz respeito aos guineenses, se exceptuarmos os estudos de Marcelino Marques Barros e alguns artigos de Caetano Filomeno de Sá com interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial, somos forçados a admitir que aos guineenses, a política colonial nunca permitiu o acesso em massa à cultura e à instrução, o que explica em medida considerável as razões porque na Guiné colonial não terá existido um movimento literário ou cultural que pudesse de algum modo constituir-se no embrião da literatura nacional, à semelhança, por exemplo, de Vamos descobrir Angola ou do movimento Claridade, no caso caboverdiano. Estamos mesmo em crer que aos guineenses não foram abertos outros caminhos que não o da resistência contra a colonização, mesmo depois de terminadas as guerras de pacificação (8).
Escusado é pois dizer que as condições nas duas primeiras décadas não eram propícias ao florescimento literário. À excepção de alguma actividade jornalística que esporadicamente publicava uma poética saudosista-colonial, que saibamos, não foi publicado qualquer outra obra literária colonial além do poema Desejo Mórbido de Maria Archer e Mariazinha em África*, de Fernanda de Castro. Aquela, sequiosa de exotismo tropical, canta prodigiosamente os mistérios do sertão ao mesmo tempo que estabelece os contrastes entre a metrópole e a Guiné. Como quer que seja, Maria Archer figura como a primeira literata-colonial guineense e o seu poema Desejo Mórbido, data de 1918.
Foi, na verdade, Fernanda de Castro (s) quem, deliberadamente ou não, introduziu, se se quer, uma literatura social na qual era tida em linha de conta a realidade da sociedade guineense e colonial da altura. Ousamos mesmo dizer que a produção literária-colonial desta autora inaugurou – do ponto de vista historicista – um novo período, não só devido à introdução de um discurso literário novo, como também pelas transformações sociais e sociológicas de que a sua produção literária-colonial são o prenúncio, o testemunho e o reflexo. As reedições aumentadas, mas sobretudo alteradas, do best-seller Mariazinha em África (9) conferem uma particularidade flagrante aos escritos desta autora, na medida em que permitem-nos discernir as atitudes do Estado Novo perante a política colonial da Guiné. Além disso, não é apenas o exotismo, o paternalismo e o desconhecimento do outro civilizacional que faz da produção literária-colonial uma peça-chave para a compreensão das metamorfoses da política oficial de que também comungava Fernanda de Castro (10). É, digamos assim, a idiossincrasia com que encarou a sua produção literária-colonial, o que a forçou nas reedições havidas a alterações ideográficas de fundo, de forma a se equidistar do Estado Novo que, paradoxalmente, apregoava a multirracialidade. O racismo colonial, hábil, tinha também uma actuação e respectiva teorização correspondente. Nuns artigos que publicámos no jornal Angolê – Artes & Letras, demonstramos através de um estudo comparativo de diferentes edições de Mariazinha em África a forma como ela foi procedendo a uma gradual suavização da visão colonial ou colonialista do negro-africano, ou seja, da carga conceptual e preconceitual pejorativas.
Já escrevemos algures que o livro de Fernanda de Castro Mariazinha em África teve mais de um dezena de edições que percorreram gerações, e a autora vangloria-se quando diz que «este livro está certamente entre os livros mais vendidos em Portugal». Ora, se por um lado o facto se deveu à capacidade da autora enquanto escritora, por outro também é verdade que o facto de ter sido mulher de António Ferro (braço direito de Salazar) valeu-lhe intervenções públicas de particular interesse. Outro aspecto importante que ressalta dos escritos coloniais de Fernanda de Castro é o deles serem, em termos de intriga textual, factos arrancados à vida real a que não falta um certo teor autobiográfico, que derrapa, regra geral, em construções artificiais, empapados de elementos misteriosos – onde os nomes e as designações geográficas, mesmo quando verdadeiros, apenas figuram como criadores de uma atmosfera exótica.
Depois de Fernanda de Castro, seguir-se-ia um hiato até 1931, altura em que surge o primeiro jornal editado por um guineense. Trata-se de Armando António Pereira, de quem já recolhemos depoimentos para futuros trabalhos. O periódico em causa, O Comércio da Guiné representava não só os interesses comerciais da colónia como também atribuía uma grande importância aos aspectos culturais em geral. Depois do hiato a que já fizemos referência, O Comércio da Guiné aparece como corolário duma situação ambiental de menor tensão social e racial, decorrentes dos problemas que a resistência africana provocava e que absorvia quase totalmente o governo colonial. Doravante o Governo da Guiné tem unicamente a orientá-lo as exigências da nacionalização da colónia e o estabelecimento de condições indispensáveis ao florescimento do comércio colonial. É neste contexto que Bissau ganha rapidamente importância como porto de óptima navegação, e dela resulta o grande movimento comercial no seu interior, donde o reassumir da sua importância em relação a Bolama (11). Em termos da chamada política indígena, passa-se paulatinamente a uma fase que chamaríamos assimilacionismo, pois começou-se a vislumbrar na política colonial da Guiné a tendência para a aproximação social de alguns guineenses com fins previamente visados. Foi nestas condições histórico-sociológicas que O Comércio da Guiné surge em Bissau, em 1931, sendo dirigido por Armando António Pereira, talvez o único guineense com formação superior na altura.
Todavia, convém que se diga, O Comércio da Guiné não se afastou muito do discurso colonial, apesar de se ter assumido, vagamente, como defensor dos interesses indígenas (sic).
No que concerne à produção literária-colonial, O Comércio da Guiné publicou alguma poética que, também, pouco ou nada tinha a ver com a Guiné. No domínio do ensaio destacou-se Fausto Duarte, que também era repórter, cronista desportivo e colunista. Nomes como o de Juvenal Cabral, Alberto Gomes Pimentel e Álvaro Coelho de Mendonça, figuram n' O Comércio da Guiné como autores de inúmeros artigos com algum interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial. Embora se intitulasse de órgão dos interesses da colónia, O Comércio da Guiné transcendeu largamente os objectivos primeiros da sua fundação. Foi nele que Fausto Duarte começou a revelar os seus talentos de escritor colonial para mais tarde se transformar, em nossa opinião, no melhor e mais esclarecido romancista guineense. Por ocasião da primeira exposição colonial de Paris de 1931, O Comércio da Guiné dedicou um número especial ao evento, onde se destacou a etnografia guineense, os aspectos tradicionais da cultura guineense e ainda um artigo intitulado “Literatura Colonial”, não assinado, mas que supomos ser da autoria de Fausto Duarte. Este artigo representa por parte do autor uma consciência profunda dos aspectos teóricos e definicionais da Literatura, além de demonstrar que a década de 30 era caracterizada por um novo discurso literário para o caso guineense; um período em que a Literatura Colonial da Guiné, influenciada pela Literatura Colonial francófona, ia aos poucos relegando para segundo plano a faceta eivada de idealismos, de conceitos morais doutrinários, para se interessar pelo folclore africano... (12).
Em 1931, Afonso Correia publica o livro Bacomé Sambú (13). Trata-se, antes de mais, de uma obra deveras paternalista e exótica, em suma, um misto de ficção, romance e etnologia sobre os nalús. Bacomé Sambú, que é o protagonista da intriga textual, era um nalú a quem o administrador apadrinhara e acarinhava longamente a sua timidez, a sua inocência, encaminhando-o na vida, ensinando-lhe a língua portuguesa com uma paciência que tinha algo de evangélica. Deste extracto sobressai imediatamente o paternalismo feroz, produto de uma mentalidade estigmatizada e verdadeiramente colonial. Ao longo de toda a obra é-se forçado pelo autor a admitir que Bacomé Sambú não é preto mas sim pretito, isto é, duplamente diminuído, donde a necessidade de apadrinhamento da sua tribo/raça pelo administrador ou pelos colonos. Por isso, a dado passo escreveu: “Bacomé estava já no caminho amplo das leis dos brancos, aprendendo com eles a raciocinar sobre a vida e encontrando-se à sua protecção para viver farto e feliz” (14) . Estava-se pois na fase do assimilacionismo colonial e Afonso Correia, amiúde, punha na boca das suas personagens uma espécie de auto-convicção da sua inferioridade nata em relação aos brancos. A par disso, associa os conceitos ocidentais de miséria e felicidade à análise que efectua sem qualquer relativismo cultural, de resto, muito comum na literatura colonial de então. Ao mato, associa todo um imaginário preconcebido ou estereotipado de perigo, do negro – sintomaticamente a cor do guineense –, da fauna selvagem, do exotismo e mistério, do medo e do tédio.
Porém, não recusamos a hipótese dum certo enraizamento africano de Afonso Correia tendo em linha de conta algumas incursões que efectua e bem sobre a psicologia nalú. Por outro lado, somos forçados a considerar a obra deste autor como um caso típico de retrocesso ideográfico em relação ao contexto histórico-cultural da sua época. Tanto assim é que, na sua obra, Afonso Correia recorre aos termos de referência obrigatória com que a Literatura Colonial dos primeiros tempos caracterizava o africano. São eles a indolência (insensibilidade moral, indiferença, apatia, inacção e ócio), os excessos (o sexo, a gula e a extravagância) e, por fim, a irresponsabilidade (que pregava que o negro é uma grande criança) e a sofreguidão (que atribuía ao negro a adjectivação de bêbados incorrigíveis). De resto, Bacomé Sambú é uma obra algo enfadonha que, como opinou 0 Comércio da Guiné, “serve-se de um enredo fantasista em que aparece a paisagem matizada de Cacine e a descrição dos usos e costumes pitorescos dós nalús. As observações ligeiras que enfeitam todo o motivo estampam-se numa prosa escorreita, despreocupada” (15).
Quanto à imprensa, a década de 30 nem por isso foi fértil. Ao Comércio da Guiné sucederam três outros jornais, todos de número único e sem qualquer importância para o sujeito em estudo. Foram eles, respectivamente, o 15 de Agosto (1932), Sport Lisboa e Bolama (1938) e A Guiné Agradecida (1939).
Ainda na década de 30, António de Cértima revelou-se um escritor colonial de talento. Inicialmente como colaborador d' O Comércio da Guiné e, mais tarde, como cônsul português em Dakar, onde escreveu lindos poemas e prosas de inspiração guineo-senegalesa com muito interesse de estudo. António de Cértima foi autor do maravilhoso livro de viagens Sortilégio Senegalês, onde, numa amálgama de nacionalismo pátrio e algum enraizamento guineense, construiu todo um postulado teórico da sua visão colonial, numa narração plena e multímoda.
Mas foi sobretudo Fausto Duarte que, depois de ter chegado à Guiné em 1928, revela em 1934 com seu livro Auá** uma Guiné diferente daquela que fora pintada na Literatura Colonial até aí (16). As suas funções de agrimensor permitiram-lhe rapidamente um contacto profundo com as populações da Guiné, pelo que partiu, antes de mais, da identificação cultural do povo guineense para encetar uma incursão romanesca que revelou, de forma singular, um conhecimento não só das componentes sociocultural e linguística, como também da sua articulação intrínseca. Tal proeza originou por parte de Benjamim Pinto Bull uma atitude intelectual em que, sem hesitações, coloca Fausto Duarte entre os primeiros, senão mesmo o primeiro, a lançar as sementes de uma identidade nacional (17). Não obstante congratularmo-nos: em parte com Benjamim Pinto Bull, restam-nos as naturais reservas que nos sugerem o estudo global da produção literária-colonial de Fausto Duarte. Não há dúvidas de que Fausto Duarte apostou estranhadamente na descrição romanesca e omnipresente do confronto civilizacional, mas, por exemplo, em Auá descortina-se um paternalismo algo tímido na penetração nos valores culturais guineenses. Ora, Benjamim Pinto Bull atribui isso à vigilância da PIDE (18). Todavia, estamos em crer que a atitude de Fausto Duarte não se deveu unicamente ao poder dissuasivo da polícia política, mas também às condições ambientais da época em termos de visão que se tinha do africano. A provar isso está bem patente nas páginas do seu livro Foram Estes os Vencidos o seu paternalismo relativamente aos africanos. Igualmente, encontramos em Negro sem Alma considerações que denotam fortemente a existência em Fausto Duarte uma espécie de preconceito interiorizado. Senão vejamos: “...o instinto sanguinário adormecido na alma dos pretos despertou com inaudita violência...” (19) ou ainda “...abandonando-o, o negro é um pobre corpo sem alma, um vagabundo nostálgico que caminha titubeante atraído pela sombra como as térmitas” (20). Por outro lado, não esqueçamos que Fausto Duarte era mestiço, elemento que não era totalmente aceite nem pelos africanos, nem pelos europeus no contexto colonial, donde, talvez, a sua ambivalência e ambiguidade cultural. Seja como for, Fausto Duarte revelou-se como um conhecedor profundo da Guiné assim como da alma guineense. Também é certo que nenhum outro escritor colonial logrou atingir a plenitude das narrações sobre a Guiné que o seu punho brilhante impregnou nas suas obras. De facto, a sua produção literária-colonial foi revolucionária dentro do contexto colonial guineense, pelo simples facto desse autor possuir um poder de observação sociológica extraordinário e, ainda, uma paradoxal consciência de africanidade que se lhe pode atribuir sem reservas.
Por ocasião da primeira exposição colonial portuguesa no Porto, em 1934, Fausto Duarte foi prelector do seguinte tema: “Da Literatura Colonial e da Morna de Cabo Verde”. Descortina-se neste casamento temático, de alguma forma ligado por elos culturais, a tentativa de demonstrar que a Literatura Colonial e a Morna são ambas de mesma raiz cultural – a portugalidade dos trópicos. Não é nossa intenção problematizar aqui a fundamentação desta suposição que não cremos descabida de todo. Tão-somente queríamos chamar a atenção do quid híbrido de Fausto Duarte, o que abona em favor da tese que até aqui temos sustentado, sem anular a nossa profunda convicção de que Fausto Duarte também possuía a consciência da identidade cultural guineense, mas algo que se aproxima em muito daquilo a que hoje se chama, convencionalmente, de protonacionalismo.
Ora, o mérito de Fausto Duarte vai ainda mais longe. Era, digamos assim, o grande teorizador da ideografia literária-colonial, à qual associava um discurso de apelo à justiça ou, se quisermos, moralista: “...não se faz psicologia; descreveu-se apenas a floresta virgem, as cruéis fadigas da jornada, à medida que o litoral se confundia com a linha do horizonte. Os indígenas eram tão-somente animais de uma outra espécie, sem sensibilidade para amar, sem inteligência para compreender (...) depois procurou-se o horrível e o extraordinário. Surgem romances de aventuras que nos pintam o negro como o maior inimigo da selva, em constantes hostilidades. E a mulher indígena apaga-se ante os preconceitos aristocráticos. O amor entre eles tem apenas uma finalidade objectiva. Falta a justeza da expressão nessas literaturas incipientes. Adeja sobre a África uma incompreensível fatalidade (...) é necessário antes o contacto directo com a sua mentalidade, perguntar-lhe a vida e compreender-lhe as superstições” (21). Em 1945, Fausto Duarte fecha o seu percurso literário colonial com o livro intitulado A Revolta. Mais que um romance, esta obra é um preciosíssimo documento histórico para a História cultural e das mentalidades subjacentes às guerras de pacificação pois, à semelhança das restantes, privilegia o confronto cultural, desta vez não só entre portugueses, guineenses e caboverdianos, mas fundamentalmente entre as diferentes identidades da Guiné.
Em 1935, Landerset Simões, que exercia funções administrativas e posteriormente militares, publica a Babel Negra, sem dúvida um livro de incalculável interesse, e talvez dos estudos etno-antropológicos cientificamente melhor elaborados sobre a Guiné. Por se tratar de uma espécie de antologia etnográfica e etnológica da Guiné, apresenta algum interesse do ponto de vista literário. E porque remete os leitores para uma ancestralidade étnica remota, que se reporta à História da Guiné e suas populações, Babel Negra figura como a primeira tentativa de desmistificação histórica num contexto ideográfico e cultural em que era lugar-comum supor-se que os africanos não possuem a escrita e, consequentemente, a História. Pela primeira vez um autor colonial debruça-se sobre a arte guineense com postulados metodológicos e conceptuais que se opõem diametralmente às ideias que na Europa se ventilavam sobre a arte africana.
Um ano depois, em 1936, João Augusto Silva publica África – da vida e do amor na selva, que obteve o primeiro prémio de Literatura Colonial. A par das obras de Fausto Duarte, ela surge como uma das obras que mais intensamente penetrou a psicologia e a cultura guineenses. Porém, o grande mérito desta obra reside no facto de ser um testemunho vivo das vicissitudes da implantação da administração na Guiné, além de representar um retrato, bem conseguido, da sociedade colonial da década de 30. Diz o autor – e com razão – que a colonização é feita pelas mais desvairadas gentes, desde os revolucionários e bandidos políticos que para ali foram, pacatamente gozar as recompensas que os seus grupos lhas concederam, até àquelas generosas almas que procuram em África o esquecimento das misérias terrenas (...) deste forçado entrechocar de educações e sensibilidade, nasce uma sociedade odiosa, onde, quase sempre, triunfam aqueles que deviam ser postos à margem dela, pelos seus crimes, suas vilanias e a sua desprezível moral (...); e só vivem para explorar o negro, maltratá-lo... (22)
OBS:-Subtítulo da responsabilidade do co-editor
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)
(**) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)
Vd. primeiro poste da série de 22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução
Guiné 63/74 - P5143: Os nossos médicos (7): Prof Doutor José Madeira da Silva, otorrino, em busca dos ex-camaradas de Bula e Pelundo, 1973/74
Guiné > Região do Cacheu > Chão Manjaco > Pelundo > "Aqui, neste quartel, vivi uma parte da guerra colonial na Guiné. No Pelundo, perto de Teixeira Pinto (hoje, Canchungo). Foto que me foi gentilmente enviada por João Lemos, ex-Alferes Miliciano que viveu depois, no mesmo quartel, a independência da Guiné-Bissau " (João Tunes, Alf Mil Trms, BCAÇ 2884, 1969/70)
Talvez o ex-Alf Mil Médico José Madeira da Silva se possa lembrar deste lugar, Pelundo, por onde passou e viveu algum tempo, presumivelmente em 1973.
Foto: © João Tunes (2004) (com a devida vénia. vd. Blogue Bota Acima > 30 de Abril de 2004)
1. Mensagem de 22/7/2009, enviada para o mail profissional do editor L.G.:
Caro camarada:
Fui Alferes Miliciano Médico e estive na Guiné em 1973 e 1974 (fechei a guerra em Outubro de 1974).
Quando voltei, nunca mais quis ouvir falar da Guiné mas o passar do tempo faz-me recordar com saudade alguns camaradas. Simplesmente, a minha atitude inicial de rejeição fez-me esquecer quase tudo e nem sequer me lembro ao certo dos batalhões onde estive colocado.
É precisamente aí que lhe peço ajuda, já que me parece um grande conhecedor. Como médico estive em dois batalhões, antes de ser aproveitado do Teatro de Operações para o Hospital Militar de Bissau (como anestesista), embora, mesmo já colocado em Bissau, tenha acompanhado algumas operações no terreno integrando uma equipa cirúrgica (Nova Lamego e outros lugares com nomes de que já não me lembro)...
Onde deixei realmente amigos foi nos Batalhões, em Bula (Cavalaria?) e no Pelundo ( BART ?). Seria possível enviar-me os números desses batalhões? Talvez assim conseguisse contactar alguém.
De algum modo somos colegas, porque sou docente da UNL.
Com os meus melhores cumprimentos,
José Madeira da Silva
2. Resposta de L.G.:
Meu caro Prof Doutor José Madeira da Silva, meu colega da UNL e meu camarada da Guiné:
Não tenho o grato de o conhecer pessoalmente. Presumo que o meu amigo seja o Prof Doutor José Francisco Higino Madeira da Silva, conhecido especialista em otorrinolaringologia, docente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, director do Serviço Universitário de Otorrinolaringologia, sito no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE, Hospital de Egas Moniz, Rua da Junqueira, 126, 1349-019 Lisboa- Portugal. Não tenho dúvidas.
Pelos elementos que apurei, o José Francisco Higino Madeira da Silva doutorou-se em Medicina pela FCM/UNL, em 31/3/1992, na especialidade de Cirurgia (Otorrinolaringologia). Título da Tese: Biomecânica coclear e otoemissões acústicas.
Eu próprio sou docente da Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, doutorado em Saúde Pública. Começo por saudá-lo e, ao mesmo tempo, pedir-lhe desculpa pelo atraso da resposta ao seu pedido. Só agora dei conta desse mail esquecido na minha caixa de correio da ENSP/UNL, desde as férias de verão...
Espero, em todo o caso, que ainda possa ir a tempo de responder ao pedido que me faz, de modo a poder retomar os contactos, perdidos, com os camaradas e amigos que estiveram consigo em Bula e Pelundo, no período de 1973/74. (Ou possivelmente só em 1973, já que não me diz emq ue data precisa foi para o HM 241, em Bissau).
Eis os elementos que consegui apurar nas nossas fontes de informação, relativamente a possíveis unidades e subunidades que passaram por Bula e Pelundo, no período de 1973/74. Contarei também com a preciosa ajuda de muitos outros camaradas que me estão a ler,e que nos poderão dar preciosas na volta do correio...
Infelizmente, não temos na nossa tertúlia (ou Tabanca Grande) muitos camaradas que tenham estado nessas duas povoações, e menos ainda nos últimos dois anos de guerra (1973/74) .
Quem conheceu o Pelundo foi o ex-Alf Mil Trms João Tunes, membro da nossa Tabanca Grande, só que uns anos antes (1969/70)... Pertenceu ao BCAÇ 2884 (*), antes de ser transferido para Catió...
A foto do quartel de Pelundo (que deve de 19773 ou 1974), acima divulgada (por cortesia do João Tunes, nosso camarada), poderá ajudar a avivar-lhe a memória relativamente ao aspecto do respectivo aquartelamento.
Em contrapartida, gente de Bula são os nossos camaradas António Matos e Luís Faria (**), mas também de outra época (1970/72)...
As nossas pistas apontam para duas unidades: o EREC 8740/72 (Bula, 1973/74) e o BART 6521 (Pelundo, 1972/74).
Fico ao seu dispôr e mais: convido-o a integrar o nosso blogue. Teria muita honra em publicar algumas das suas histórias, como médico militar no TO da Guiné. Para o o efeito já criámos esta série Os Nossos Médicos (***)... Saudações bloguísticas. Luís Graça.
PS - Boa sorte na pesquisa de contactos de antigos camaradas e amigos da Guiné, não só os de Bula e Pelundo como os de Bissau e Nova Lamego.
A. Bula
Esquadrão de Reconhecimento (EREC) 8740/72:
(i) Mobilizado pelo RC 7 (Calçada da Ajuda, Lisboa)
(ii) Partiu para Guiné em 3/4/1973;
(iii) Regressou em 8/9/1974;
(iv) Esteve em Bula e Bissau;
(v) Comandante: Cap Cav Armindo José Pinto Machado;
(vi) Unidade de composição: 1ª, 2ª e 3ª Companhias do BCAÇ 4514/72:
1ª C/BCAÇ 4514/72:
Esteve em Nova Lamego, Cadique e Contuboel; Comandante: Cap Mil Inf José Custódio Sanches Antunes.
2ª C/BCAÇ 4514/72:
Estve em Farim, Cafine e Fajonquito. Comandante: Cap Mil Inf Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins.
3ª C/BCAÇ 4514/72:
Esteve em Jumbembém, Guidage, Jemberém, Geba. Comandante: Cap Mil Inf Jorge Manuel Pedroso de Oliveira Martins; Cap Mil INf Tiago Frederico.
BCAÇ 4514/72:
(i) Mobilizado pelo RI 15;
(ii) Partiu em 3/4/1973;
(iii) Regressou em 8/9/1974;
(iv) Esteve em Nova Lamego, Cadique e Bafatá;
(v) Comandante: Ten Cor Inf António Manuel Dias de Sousa Teles.
B. Pelundo:
BART 6521/72:
(i) Mobilizado pelo RAL 5 (Penafiel);
(ii) Partiu em 22/9/1972;
(iii) Regressou em 27/8/1974;
(iv) Esteve no Pelundo;
(v) Comandante: Ten-Cor Art Luís Filipe de Albuquerque Campos Ferreira.
1ª C/BART 6521/72:
Foi mobilizada pelo RAL 5. Esteve no Pelundo, Cadique, Jemberém e Pelundo. Partiu em 23/9/1972 e regressou em 27/8/1974. Comandante: Cap Mil Cav Casimiro Gomes.
2ª C/BART 6521/72:
Esteve em Có. Comandante: Cap Mil Art Américo Licínio Romeiro da Rocha.
3ª C/BART 6521/72:
Esteve em Jolmete. Comandantes: Cap Mil Art Luís Carlos Queiroz da Silva Fonseca; Cap Mil Inf Edmundo Graça de Freitas Gonçalves.
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes
(**) Vd. postes de:
1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)
31 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3388: Tabanca Grande (94): Luís Sampaio Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto (1970/72)
(***) Postes da série Os Nossos Médicos:
15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)
2 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)
6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4910: Os Nossos Médicos (3): Os especialistas eram poucos, e não gostavam de ir para... o mato (Armandino Alves, CCAÇ 1589, 1966/68)
8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4918: Os nossos médicos (4): Um grande amigo, o Dr. Fernando Enriques de Lemos (Mário Fitas, ex-Fur Mil, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)
8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4920: Os nossos médicos (5): Um grande homem, militar, clínico e matosinhense que me marcou, o Dr. Azevedo Franco (José Teixeira)
8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4923: Os nossos médicos (6): Homenagem ao Alf Mil Med Barata (Binta) e ao HM 241 (Bissau) (JERO, ex-Fur Mil Enf, CCAÇ 675, 1964/66)
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Guiné 63/74 - P5142: Tabanca Grande (181): António Amaral Brum, ex-Soldado da CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel (1971/73)
1. Mensagem de Elizabeth Brum, filha do nosso camarada António Amaral Brum, ex-Sold da CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1971/73, com data de 17 de Outubro de 2009:
Olá senhor Graça
Envio-lhe algumas fotos de meu pai para escolher as que quiser publicar no seu Blogue.
Gostaria de lhe agradecer o tentar localizar os amigos da tropa de meu pai. Ele anda muito contente.
Gostaria que me desculpasse por esta mensagem ir tão mal escrita, porque não sei escrever em bom português, como pode verificar.
Elizabeth Brum
Filha de António Amaral Brum
2. Comentário de CV:
Cara amiga Elizabeth, permita de fala por seu internédio para o seu pai.
Caro camarada António Brum, por sugestão do Editor do Blogue, Luís Graça, a partir de hoje és membro da nossa Tabanca Grande.
Se quiseres podes enviar textos com as tuas histórias passadas na Guiné e enviar fotografias. Desta vez mandaste algumas, mas nenhuma delas trazia uma legenda a dizer quem eram as pessoas que retratavam, local, data, etc.
Por favor para a próxima não te esqueças.
Manda uma foto tua actual e uma antiga para eu fazer umas fotos tipo passe, como as dos Bilhetes de Identidade, para os nossos arquivos e para aparecerem nos textos que venhas a enviar.
Amiga Elizabeth, não se preocupe com o português porque nós aqui daremos um jeito. O que interessa é a participação do pai e aí a sua colaboração é indispensável.
Resta-me deixar, em nome da tertúlia, um abraço de boas-vindas ao camarada Brum e para a Elizabeth um beijinho colectivo destes velhos camaradas de seu pai que estimam cada filho de um camarada como se seu filho fosse.
Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5116: Em busca de... (98): CAÇ 3326 - Os Jovens Assassinos de Mampatá (1971/73) (António Amaral Brum, Ontário, Canadá)
Vd. último poste da série de 10 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5091: Tabanca Grande (180): Alfredo Dinis Gonçalves Tapado, 1º Cabo Enfermeiro da CCS/BART 6523, Nova Lamego, 1973/74
Olá senhor Graça
Envio-lhe algumas fotos de meu pai para escolher as que quiser publicar no seu Blogue.
Gostaria de lhe agradecer o tentar localizar os amigos da tropa de meu pai. Ele anda muito contente.
Gostaria que me desculpasse por esta mensagem ir tão mal escrita, porque não sei escrever em bom português, como pode verificar.
Elizabeth Brum
Filha de António Amaral Brum
2. Comentário de CV:
Cara amiga Elizabeth, permita de fala por seu internédio para o seu pai.
Caro camarada António Brum, por sugestão do Editor do Blogue, Luís Graça, a partir de hoje és membro da nossa Tabanca Grande.
Se quiseres podes enviar textos com as tuas histórias passadas na Guiné e enviar fotografias. Desta vez mandaste algumas, mas nenhuma delas trazia uma legenda a dizer quem eram as pessoas que retratavam, local, data, etc.
Por favor para a próxima não te esqueças.
Manda uma foto tua actual e uma antiga para eu fazer umas fotos tipo passe, como as dos Bilhetes de Identidade, para os nossos arquivos e para aparecerem nos textos que venhas a enviar.
Amiga Elizabeth, não se preocupe com o português porque nós aqui daremos um jeito. O que interessa é a participação do pai e aí a sua colaboração é indispensável.
Resta-me deixar, em nome da tertúlia, um abraço de boas-vindas ao camarada Brum e para a Elizabeth um beijinho colectivo destes velhos camaradas de seu pai que estimam cada filho de um camarada como se seu filho fosse.
Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5116: Em busca de... (98): CAÇ 3326 - Os Jovens Assassinos de Mampatá (1971/73) (António Amaral Brum, Ontário, Canadá)
Vd. último poste da série de 10 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5091: Tabanca Grande (180): Alfredo Dinis Gonçalves Tapado, 1º Cabo Enfermeiro da CCS/BART 6523, Nova Lamego, 1973/74
Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa em África (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução
1. Dizia-nos Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), em mensagem do dia 1 de Outubro de 2009:
Luís e Carlos,
Para mim, este livro é uma inteira revelação. Nem o Leopoldo Amado o menciona no seu importantíssimo ensaio "A literatura colonial guineense". Tenho muito orgulho em passar esta informação para dentro da nossa caserna.
Um abraço do Mário
Esta mensagem e respectivo anexo deu origem ao poste 5069* que começava assim:
A Guiné e o 1.º Prémio da literatura colonial, 1936
por Beja Santos
É curioso como o título "África, da vida e do amor da selva” consta de toda a bibliografia elementar da história da Guiné e nunca foi me foi possível encontrar a obra nas principais bibliotecas. Na verdade, o autor mencionado é sempre João Silva e agora, quando finalmente encontrei o livro, o nome que consta é João Augusto. Trata-se de uma obra a vários títulos singular, pode perfeitamente emparceirar, pelo grau de importância, com “Mariazinha em África”, de Fernanda de Castro, e “Auá”, de Fausto Duarte, duas obras pioneiras na literatura colonial guineense. Não consegui encontrar quaisquer referências a João Augusto que, conforme se pode ler no livro “África, da vida e do amor da selva” viveu bastantes anos na Guiné (e pelo menos durante seis anos foi caçador). O que ainda aguça mais a curiosidade é querer descobrir o que ali fez João Augusto (Silva) e como estabeleceu uma relação tão profunda com a Guiné e o seu povo. Um desafio para todos nós, em Portugal e na Guiné. [...]
2. Em 7 de Outubro recebemos de Carlos Schwarz (Pepito), que é Eng.º Agrónomo, dirigente da AD - Acção para o Desenvolvimento, e membro da nossa Tabanca Grande, uma mensagem que deu origem ao poste 5084**, de onde salientamos:
Luís,
Vi hoje a observação do Beja Santos com a descoberta do João Augusto Silva. Fartei-me de rir com o facto, uma vez que ele é meu tio e deixou marca na sua passagem por cá. Tinha um sentido de humor fabuloso e eu tinha uma adoração especial por ele, até porque era muito parecido com o irmão mais novo, o meu pai. Tinha uma imaginação prodigiosa. [...]
3. No dia 17 de Outubro de 2009, recebemos do nosso Tertuliano Leopoldo Amado (Doutor em História Contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa, Faculdade Letras de Lisboa), sob a temática Guerra Colonial da Guiné versus Luta de libertação Nacional, 1961 – 1974) esta mensagem:
Caro Beja Santos,
É verdade que não mencionei este livro no pequeno trabalho que escrevi (e partilhei convosco) sobre a literatura de guerra colonial sobre a Guiné. Mas conheço a obra desde os idos anos de oitenta (talvez 1985) pela mão do meu então mestre da cadeira de História da Cultura Portuguesa da FLL, Prof. João Medina, que na altura deu-me emprestado o livro sem me informar que era do pai.
Lembro-me que li de um só fôlego esse livro que achei maravilhoso e só foi então que o meu mestre (eterno mestre, diga-se de passagem!) deu-me a conhecer que o autor era seu pai. Aliás, foi também o Prof. Medina que me proporcionou a leitura de Auá, de Fausto Duarte e Babel Negra, de Landerset Simões, obras que me serviram de base à pesquisa e posterior elaboração de um extenso artigo sobre a Literatura Colonial Guineense, publicado primeiro na extinta Revista do ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa) e depois em Bissau (revisto e aumentado), na Revista Soronda, do INEP.
Nessas publicações, obviamente, foi referenciado o livro de João Augusto Silva (vide anexo).
Aqui vai, para ti, Luís Graça, João Tunes, Carlos Vinhal, Pedro Fiso, Pepito, Santiago, Mário Dias e ainda todos os outros camaradas da Tabanca Grande - que vêm esforçando para que a memória simplesmente não se apague - um singelo mas grande abraço de saudades.
Leopoldo Amado
A Literatura colonial guineense - Parte I (1)
por Leopoldo Amado
Uma tentativa de análise histórico-cultural da Literatura Colonial Guineense, da sua evolução diacrónica e sociológica que desembocou nesta cumplicidade cultural de que hoje somos portadores.
Introdução
Remonta ao século XIX o surgimento massivo da Literatura Colonial Portuguesa, não obstante podermos recuar até ao século XVII para situar alguma literatura que, ocasionalmente, se produziu no contexto do Império Colonial Português (2) . Todavia, foi essencialmente na década de 20 do século XIX, após a independência do Brasil, que este género literário ganhou corpus devido essencialmente à política colonial portuguesa de então que, no intuito de substituir a importância económica do Brasil, delineou todo um plano de emigração massiva de colonos portugueses para territórios africanos, com particular incidência para Angola.
Repare-se que na época, como aliás em todo o processo de colonização da Guiné, as preocupações da política colonial eram secundárias em relação, por exemplo, a Angola ou Moçambique. O facto de a política de fomento colonial não ter assumido proporções consideráveis na Guiné, justifica a quase inexistência de uma produção literária no século XIX, assim como nos períodos que lhe antecedem. A associar a isso, ocorre que em termos da definição dos objectivos económico-coloniais da altura, a ocupação da Guiné Portuguesa era justificada mais por questões de prestígio, às quais se juntavam, obviamente, preocupações estritamente comerciais. Consequentemente, os anais da altura põem a descoberto uma sociedade deletéria de degredados e personas non gratas a que não era alheio o sentimento de abandono a que estava votada a Guiné, agravado ainda pelo cenário constante das guerras de pacificação, ou melhor, da resistência africana.
Num momento em que as Literaturas Africanas de expressão portuguesa começam a se afirmar em paralelo com outras literaturas, não só por um processo de redimensionamento cultural que lhe subjaz, mas também pela descolonização literária em curso, pareceu-nos oportuno chamar a atenção para a existência de uma Literatura Colonial produzida na Guiné, ou melhor, de inspiração guineense. Por isso, e por se tratar – ao que sabemos – de uma das primeiras tentativas do género, com todos os riscos que acarreta, vai pois o nosso pedido de indulgência para que este modesto estudo seja tomado como notas a lápis, conquanto possa contribuir para despoletar o interesse de estudos por temáticas como esta com serenidade isenta de ressentimentos reminiscentes ou, ainda, com a naturalidade histórica resultante da convivência intercultural de séculos. Foi apesar disso, e por isso mesmo, que intitulámos este estudo de Literatura Colonial Guineense.
Do ponto de vista metodológico, não nos detivemos tanto em apresentar uma definição da Literatura Colonial que sabemos ser – e com razão – controversa, carecendo de debate conceitual e epistemológico dado o reduzido número de trabalhos publicados sobre o assunto (3).
Por isso, procurámos não utilizar unicamente o critério literário na selecção de fontes, recorrendo também a textos de natureza etnográfica, etnológica, antropológica e, ainda aos contos da tradição oral fixados através da escrita. Para colmatar a ausência definicional da Literatura Colonial, procuraremos ao longo de todo este estudo anunciar, explícita ou tacitamente, a configuração daqueles elementos que encerram um conjunto de valores que cremos essenciais à definição caracteriológica do que eufemísticamente (ainda) se designa por Literatura Colonial.
Como quer que seja, optámos por não nos coibirmos à problematização de algumas considerações conceituais que se prendem com a Literatura Colonial: anteriormente denominada Literatura Ultramarina e mais tarde Literaturas Africanas, a Literatura Colonial, por este facto, revelava-se sincrética nos conceitos a ela ligados. A consciência de que este género literário situado em África mas que nem por isso era africano, levou a que se combatesse tanto a ex pressão Literatura Ultramarina como a de Literatura Africana. Esta por razões que interrogam a sua africanidade, e aquela porque era notória a imagem lírica que os autores transportavam da sua terra. Começou-se então a vislumbrar uma nova definição e, consequentemente, a prática literária-colonial adquiriu uma nova dinâmica de conteúdo Nos anos trinta deste século já não era fácil a aceitação de revelações de turismo intelectual, assim como de sensações estranhas e exóticas.
Ao exotismo passou-se a contrapor a necessidade de avaliar o nível de adaptação dos colonos e ainda o seu relacionamento com o colonizado, numa perspectiva de redefinição conceitual que apontava para a necessidade de privilegiar o estudo da alma primitiva, secundando os conhecimentos técnicos, a sociologia e a antropologia. Isto porque, segundo Robert Cornevin, “os autores coloniais não são metropolitanos de passagem que ficaram ligados à mãe pátria, eles optaram pela colónia e é já não da Europa mas da colónia, que eles presenciam o evoluir dos acontecimentos…” (4) . Posto isto, resta referir que a designação Literatura Colonial possui conotações político-ideológicas que tendem a sobrepor-se à sua axiologia literária-cultural em termos conceptuais. A título de exemplo, autores coloniais como Castro Soromenho (Angola) e Fausto Duarte (Guiné) puderam transpor em certa medida, os parâmetros que a designação impunha para vislumbrarem a busca de uma identidade nacional (5).
E porque houve autores coloniais que avançaram e/ou recuaram relativamente ao contexto histórico-cultural da sua época, resta-nos esperar que o debate conceitual e epistemológico que se avizinha possa aclarar com novas luzes a problemática da Literatura Colonial. Do nosso ponto de vista, temos sempre presente que o que mais interessa de momento é encarar de modo problemático o estudo da Literatura Colonial, convencidos de que só em certo sentido a literatura é objecto historiavel: na exacta medida em que se prende à História das ideias, à História de uma sociedade ou de grupos sociais, à História (biográfica) dos autores ou ainda na medida em que as leituras da obra literária se vão sucedendo no tempo, condicionadas por diferentes conjunturas socioculturais e mutuamente se influenciando. Aliás, concordamos com Tzevetan Todorov quando afirma que “o texto escreve-se através do seu autor mais do que é escrito por ele” (6). Só assim se compreende, cremos nós, o simplismo estéril e lacónico com que, por agora, ousamos definir a Literatura Colonial: obras de carácter literário e afins que se produziram no contexto colonial.
O que pretendemos é proceder a uma tentativa de análise histórico-cultural da Literatura Colonial Guineense, da sua evolução diacrónica e sociológica, que desembocou nesta cumplicidade cultural de que hoje somos portadores. Em seguida procuraremos interrogar as razões porque a Literatura Colonial da Guiné teve um percurso e uma evolução algo diferente em relação às congéneres de Angola, Moçambique e mesmo de São Tomé e Príncipe. Outro objectivo deste estudo prende-se com a preocupação de tentar delimitar ou discernir, tanto quanto possível, as intersecções de ruptura e/ou continuidade entre a Literatura Colonial e a Nacional, no caso guineense. Porém, uma preocupação pedagógica nos move: a de lançar dados e elementos de reflexão sobre a nova Literatura, a nacional, na perspectiva de uma descolonização literária em curso – se assim se pode dizer –, que terá de deitar os olhos ao passado para melhor enquadrar o presente literário.
(Observação do Editor: Por ser muito extenso, este trabalho vai ser publicado em três partes, correspondentes a outros tantos postes)
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5069: Historiografia da presença portuguesa (22): África, da Vida e do Amor na Selva, Edições Momentos, 1936 (Beja Santos)
(**) Vd. poste de 9 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5084: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (17): João Augusto Silva é meu tio (Pepito)
Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5127: Historiografia da presença portuguesa (23): Aquela Guiné dos anos 50 (Beja Santos)
Luís e Carlos,
Para mim, este livro é uma inteira revelação. Nem o Leopoldo Amado o menciona no seu importantíssimo ensaio "A literatura colonial guineense". Tenho muito orgulho em passar esta informação para dentro da nossa caserna.
Um abraço do Mário
Esta mensagem e respectivo anexo deu origem ao poste 5069* que começava assim:
A Guiné e o 1.º Prémio da literatura colonial, 1936
por Beja Santos
É curioso como o título "África, da vida e do amor da selva” consta de toda a bibliografia elementar da história da Guiné e nunca foi me foi possível encontrar a obra nas principais bibliotecas. Na verdade, o autor mencionado é sempre João Silva e agora, quando finalmente encontrei o livro, o nome que consta é João Augusto. Trata-se de uma obra a vários títulos singular, pode perfeitamente emparceirar, pelo grau de importância, com “Mariazinha em África”, de Fernanda de Castro, e “Auá”, de Fausto Duarte, duas obras pioneiras na literatura colonial guineense. Não consegui encontrar quaisquer referências a João Augusto que, conforme se pode ler no livro “África, da vida e do amor da selva” viveu bastantes anos na Guiné (e pelo menos durante seis anos foi caçador). O que ainda aguça mais a curiosidade é querer descobrir o que ali fez João Augusto (Silva) e como estabeleceu uma relação tão profunda com a Guiné e o seu povo. Um desafio para todos nós, em Portugal e na Guiné. [...]
2. Em 7 de Outubro recebemos de Carlos Schwarz (Pepito), que é Eng.º Agrónomo, dirigente da AD - Acção para o Desenvolvimento, e membro da nossa Tabanca Grande, uma mensagem que deu origem ao poste 5084**, de onde salientamos:
Luís,
Vi hoje a observação do Beja Santos com a descoberta do João Augusto Silva. Fartei-me de rir com o facto, uma vez que ele é meu tio e deixou marca na sua passagem por cá. Tinha um sentido de humor fabuloso e eu tinha uma adoração especial por ele, até porque era muito parecido com o irmão mais novo, o meu pai. Tinha uma imaginação prodigiosa. [...]
3. No dia 17 de Outubro de 2009, recebemos do nosso Tertuliano Leopoldo Amado (Doutor em História Contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa, Faculdade Letras de Lisboa), sob a temática Guerra Colonial da Guiné versus Luta de libertação Nacional, 1961 – 1974) esta mensagem:
Caro Beja Santos,
É verdade que não mencionei este livro no pequeno trabalho que escrevi (e partilhei convosco) sobre a literatura de guerra colonial sobre a Guiné. Mas conheço a obra desde os idos anos de oitenta (talvez 1985) pela mão do meu então mestre da cadeira de História da Cultura Portuguesa da FLL, Prof. João Medina, que na altura deu-me emprestado o livro sem me informar que era do pai.
Lembro-me que li de um só fôlego esse livro que achei maravilhoso e só foi então que o meu mestre (eterno mestre, diga-se de passagem!) deu-me a conhecer que o autor era seu pai. Aliás, foi também o Prof. Medina que me proporcionou a leitura de Auá, de Fausto Duarte e Babel Negra, de Landerset Simões, obras que me serviram de base à pesquisa e posterior elaboração de um extenso artigo sobre a Literatura Colonial Guineense, publicado primeiro na extinta Revista do ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa) e depois em Bissau (revisto e aumentado), na Revista Soronda, do INEP.
Nessas publicações, obviamente, foi referenciado o livro de João Augusto Silva (vide anexo).
Aqui vai, para ti, Luís Graça, João Tunes, Carlos Vinhal, Pedro Fiso, Pepito, Santiago, Mário Dias e ainda todos os outros camaradas da Tabanca Grande - que vêm esforçando para que a memória simplesmente não se apague - um singelo mas grande abraço de saudades.
Leopoldo Amado
A Literatura colonial guineense - Parte I (1)
por Leopoldo Amado
Uma tentativa de análise histórico-cultural da Literatura Colonial Guineense, da sua evolução diacrónica e sociológica que desembocou nesta cumplicidade cultural de que hoje somos portadores.
Introdução
Remonta ao século XIX o surgimento massivo da Literatura Colonial Portuguesa, não obstante podermos recuar até ao século XVII para situar alguma literatura que, ocasionalmente, se produziu no contexto do Império Colonial Português (2) . Todavia, foi essencialmente na década de 20 do século XIX, após a independência do Brasil, que este género literário ganhou corpus devido essencialmente à política colonial portuguesa de então que, no intuito de substituir a importância económica do Brasil, delineou todo um plano de emigração massiva de colonos portugueses para territórios africanos, com particular incidência para Angola.
Repare-se que na época, como aliás em todo o processo de colonização da Guiné, as preocupações da política colonial eram secundárias em relação, por exemplo, a Angola ou Moçambique. O facto de a política de fomento colonial não ter assumido proporções consideráveis na Guiné, justifica a quase inexistência de uma produção literária no século XIX, assim como nos períodos que lhe antecedem. A associar a isso, ocorre que em termos da definição dos objectivos económico-coloniais da altura, a ocupação da Guiné Portuguesa era justificada mais por questões de prestígio, às quais se juntavam, obviamente, preocupações estritamente comerciais. Consequentemente, os anais da altura põem a descoberto uma sociedade deletéria de degredados e personas non gratas a que não era alheio o sentimento de abandono a que estava votada a Guiné, agravado ainda pelo cenário constante das guerras de pacificação, ou melhor, da resistência africana.
Num momento em que as Literaturas Africanas de expressão portuguesa começam a se afirmar em paralelo com outras literaturas, não só por um processo de redimensionamento cultural que lhe subjaz, mas também pela descolonização literária em curso, pareceu-nos oportuno chamar a atenção para a existência de uma Literatura Colonial produzida na Guiné, ou melhor, de inspiração guineense. Por isso, e por se tratar – ao que sabemos – de uma das primeiras tentativas do género, com todos os riscos que acarreta, vai pois o nosso pedido de indulgência para que este modesto estudo seja tomado como notas a lápis, conquanto possa contribuir para despoletar o interesse de estudos por temáticas como esta com serenidade isenta de ressentimentos reminiscentes ou, ainda, com a naturalidade histórica resultante da convivência intercultural de séculos. Foi apesar disso, e por isso mesmo, que intitulámos este estudo de Literatura Colonial Guineense.
Do ponto de vista metodológico, não nos detivemos tanto em apresentar uma definição da Literatura Colonial que sabemos ser – e com razão – controversa, carecendo de debate conceitual e epistemológico dado o reduzido número de trabalhos publicados sobre o assunto (3).
Por isso, procurámos não utilizar unicamente o critério literário na selecção de fontes, recorrendo também a textos de natureza etnográfica, etnológica, antropológica e, ainda aos contos da tradição oral fixados através da escrita. Para colmatar a ausência definicional da Literatura Colonial, procuraremos ao longo de todo este estudo anunciar, explícita ou tacitamente, a configuração daqueles elementos que encerram um conjunto de valores que cremos essenciais à definição caracteriológica do que eufemísticamente (ainda) se designa por Literatura Colonial.
Como quer que seja, optámos por não nos coibirmos à problematização de algumas considerações conceituais que se prendem com a Literatura Colonial: anteriormente denominada Literatura Ultramarina e mais tarde Literaturas Africanas, a Literatura Colonial, por este facto, revelava-se sincrética nos conceitos a ela ligados. A consciência de que este género literário situado em África mas que nem por isso era africano, levou a que se combatesse tanto a ex pressão Literatura Ultramarina como a de Literatura Africana. Esta por razões que interrogam a sua africanidade, e aquela porque era notória a imagem lírica que os autores transportavam da sua terra. Começou-se então a vislumbrar uma nova definição e, consequentemente, a prática literária-colonial adquiriu uma nova dinâmica de conteúdo Nos anos trinta deste século já não era fácil a aceitação de revelações de turismo intelectual, assim como de sensações estranhas e exóticas.
Ao exotismo passou-se a contrapor a necessidade de avaliar o nível de adaptação dos colonos e ainda o seu relacionamento com o colonizado, numa perspectiva de redefinição conceitual que apontava para a necessidade de privilegiar o estudo da alma primitiva, secundando os conhecimentos técnicos, a sociologia e a antropologia. Isto porque, segundo Robert Cornevin, “os autores coloniais não são metropolitanos de passagem que ficaram ligados à mãe pátria, eles optaram pela colónia e é já não da Europa mas da colónia, que eles presenciam o evoluir dos acontecimentos…” (4) . Posto isto, resta referir que a designação Literatura Colonial possui conotações político-ideológicas que tendem a sobrepor-se à sua axiologia literária-cultural em termos conceptuais. A título de exemplo, autores coloniais como Castro Soromenho (Angola) e Fausto Duarte (Guiné) puderam transpor em certa medida, os parâmetros que a designação impunha para vislumbrarem a busca de uma identidade nacional (5).
E porque houve autores coloniais que avançaram e/ou recuaram relativamente ao contexto histórico-cultural da sua época, resta-nos esperar que o debate conceitual e epistemológico que se avizinha possa aclarar com novas luzes a problemática da Literatura Colonial. Do nosso ponto de vista, temos sempre presente que o que mais interessa de momento é encarar de modo problemático o estudo da Literatura Colonial, convencidos de que só em certo sentido a literatura é objecto historiavel: na exacta medida em que se prende à História das ideias, à História de uma sociedade ou de grupos sociais, à História (biográfica) dos autores ou ainda na medida em que as leituras da obra literária se vão sucedendo no tempo, condicionadas por diferentes conjunturas socioculturais e mutuamente se influenciando. Aliás, concordamos com Tzevetan Todorov quando afirma que “o texto escreve-se através do seu autor mais do que é escrito por ele” (6). Só assim se compreende, cremos nós, o simplismo estéril e lacónico com que, por agora, ousamos definir a Literatura Colonial: obras de carácter literário e afins que se produziram no contexto colonial.
O que pretendemos é proceder a uma tentativa de análise histórico-cultural da Literatura Colonial Guineense, da sua evolução diacrónica e sociológica, que desembocou nesta cumplicidade cultural de que hoje somos portadores. Em seguida procuraremos interrogar as razões porque a Literatura Colonial da Guiné teve um percurso e uma evolução algo diferente em relação às congéneres de Angola, Moçambique e mesmo de São Tomé e Príncipe. Outro objectivo deste estudo prende-se com a preocupação de tentar delimitar ou discernir, tanto quanto possível, as intersecções de ruptura e/ou continuidade entre a Literatura Colonial e a Nacional, no caso guineense. Porém, uma preocupação pedagógica nos move: a de lançar dados e elementos de reflexão sobre a nova Literatura, a nacional, na perspectiva de uma descolonização literária em curso – se assim se pode dizer –, que terá de deitar os olhos ao passado para melhor enquadrar o presente literário.
(Observação do Editor: Por ser muito extenso, este trabalho vai ser publicado em três partes, correspondentes a outros tantos postes)
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5069: Historiografia da presença portuguesa (22): África, da Vida e do Amor na Selva, Edições Momentos, 1936 (Beja Santos)
(**) Vd. poste de 9 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5084: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (17): João Augusto Silva é meu tio (Pepito)
Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5127: Historiografia da presença portuguesa (23): Aquela Guiné dos anos 50 (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P5140: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Mistura 79 ou quando tive que mandar o Manel a Moricanhe...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > CART 2339 (1968/69) > Inícios de 1968 (Jan/Abr) > O Alf Mil Torcato Mendonça, com o seu inseparável cachimbo, alimentado com a famosa "mistura 79", comprada numa tabacaria dos Restauradores. Na cabeça, um típico gorro árabe...
Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > 1969 > O Torcato Mendonça jogando pingue-pongue com um outro camarada (Alf Mil Rodrigues ?) no famoso bu...rako de abrigo do 4º Gr Comb). O Torcato e o seu grupo de combate, o 2º, viedram para Mansambo em Maio de 1968, para construir de raíz o novo aquartelamento. Aqui viveu, lutou e sofrei até Novembro de 1968. Na altura (até Junho de 1968) em Bambadinca, estava sediado o BART 1904, que virá depois ser substituído pelo BCAÇ 2852 (1968/70).
Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados
1. Mensagem do Torcato Mendonça (Fundão):
Assunto - Outono
Caro Carlos e Editores
Chove lá fora. Chuva de Outono e frio de Inverno (dizem-me que na Estrela já neva). Assim sendo fui teclando. Devia ter teclado o que por aí há. Não convém. O computas novo borregou. Isto dos novos é sempre um problema. O velho, com maleitas piores que o dono, vai gemendo, protestando...´mas lá responde...lenta, lentamente. Espero que a garantia funcione e o novo seja o que dele disseram. Enfim!
Pois lembrei-me do meu cachimbo, ainda vivo mas só a fornalha, e escrevi esta velha recordação sobre um amigo com mais de cinquenta anos. Coisas de velhos amigos ou amigos velhos e podes ter a certeza que são sempre bons. Isto apesar de aparecerem novos com a força da amizade e que vale a pena, mas vale mesmo, cultivar e respeitar.
Pára aí, ooh teclador...como há tanto tempo nada mandava, como enviei um mail dirigido a vós e a pensar "no muro de Jerusalém", aqui vai. Isto está mais suave. Talvez a sofrer a influencia dos Gatos...tudo bem.
Depois, se tiveres tempo,diz se aí chegou. Não confio no...nada mais digo pois se ele se zanga...
Um abração
Torcato
2. Estórias de Mansambo II (*) > Mistura 79
por Torcato Mendonça
Após o jantar, sentei-me numa daquelas cadeiras fulas esperando a noite ou o nada. Fazer o quê no meio do vazio. Esperava para não desesperar.
A noite desceu rápida deformando, apagando as formas, os vultos, à medida que a escuridão aumentava, dos que por ali ficaram conversando. Falavam e riam. Riam pouco apesar da sua juventude, mas ainda riam nestes poucos meses de comissão, ainda se ria.
Eu fumava cachimbo, desgastando quer o tempo quer a minha já diminuta reserva de Mistura 79. Ainda durava em poupança cada vez maior à medida que o fundo da lata se aproximava. Lisboa e os Restauradores tão longe, tão longe, tão diferente a vida lá e eu ali entrando em mais uma noite.
Certamente o pensamento voava para o meu País, para as suas gentes, os amores breves ou longos, os amigos ou só a recordação da vida, da minha vida interrompida pelo chamamento de uma pátria que diziam ser minha e de mim precisava. Parei então tudo. Aos poucos fui sendo outro, tão diferente do original, do jovem de antes do chamamento da pátria, aos poucos, sem por isso dar, fiquei tão longe de mim. Hoje, pouco desse mim restava. Talvez, quase uma certeza, ser ainda esse pouco o que voava em pensamento para os amores, os amigos em recordação longínqua e, contudo, tão pouco tempo se tinha passado mas, cada vez mais, era recordação difusa, recordação a afastar-se de mim, deste novo eu em conflito ainda entre o outrora e o hoje.
Ali estava sentado cachimbando, pensando, esperando a noite e, para animar, a sentir as picadelas de um mosquito e a seguir outro nos tornozelos ou no tronco e eu enxotava, enxotava só.
Talvez esse gesto de só enxotar, levasse os meus fantasmas, os meus pesadelos e as minhas raivas para longe de mim nas asas da mosquitada.
E a noite ia entrando as vozes dos camaradas a serem cada vez menos.
De repente de forma brusca, brutal, inesperada o som do ataque. Sons de rebentamentos e tiros a chegarem como um ruído em espiral de som.
- É a Moricanhe (**) a embrulhar.
A voz veio de um dos furriéis ali sentados.
Olhei os ponteiros luminosos do relógio, fixei a hora e chamei o militar das transmissões.
Quase desnecessário porque todos sabiam o que tinham a fazer. Aquilo era uma máquina e todos nós meras peças dela. Se alguma se avariava era de pronto substituída. As outras peças choravam então em silêncio e raiva. Nada mais. Num silêncio similar ao vivido agora, esperando, somente esperando, o fim do ataque à Tabanca a meia dúzia de quilómetros dali. Estava lá o Pelotão de Milícia 145. Tempos antes tínhamos sofrido lá o primeiro morto da Companhia, o enfermeiro Fernando.
- Meu alferes, Bambadinca pergunta onde é o ataque.
- Diz em claro: Moricanhe.
Que merda. Então estava lá o comandante da companhia e outros militares e não viam na carta. Certamente ficaram lixados por deixarem outras cartas. Foi isso, foi isso e foi aborrecido, foi e logo quando algum tinha bom jogo. Foi-se.
- Nova mensagem: Bambadinca diz para irem lá amanhã.
- Diz que sim e que o ataque já acabou.
Agora um oficial vai pôr, na Carta, mais um alfinete na Moricanhe, escreve breves palavras no Impresso das flagelações e rapidamente volta a aconchegar os cotovelos no pano verde. Talvez vá antes ao bar beber um uísque com muito gelo. Má-língua e logo sobre o Batalhão 1904. Mau feitio o meu, mas bebia um uísque agora. Prefiro puro. Agora ia com gelo, muito gelo e Pérrier ou Vichy. Bolas onde há disso aqui, neste buraco? Água da fonte, cerveja e fanta quentes, vinho marado e ainda a coca-cola. Os do meu País só a bebiam em Espanha, a coca-cola claro.
- Chama o Manel.
- Estou aqui.
- Vamos conversar um pouco.
- Manel…
A voz saiu atabalhoada e limpei a garganta.
- Não te atrapalhes, porque já sei: amanhã vou à Moricanhe.
- A garganta é do tabaco. Pois tens que ir lá. Vai preparar a malta. Eu vou á Tabanca falar com o Leonardo Baldé (***). É melhor não ir pela picada. Os picadores conhecem bem o trilho.
Palmada dupla nas costas e um até amanhã.
Fiquei um pouco a pensar, a sentir o mau estar causado pela ordem dada. Conhecíamo-nos há tanto tempo, nove, dez anos ou mais, lá pelo Liceu no sexto ou sétimo ano e depois em Évora no RAL 3, muito antes da mobilização. Tantas farras juntos. Amizade forte e agora eu dizia:
- Manel, vais à Moricanhe.
Era bom condutor de homens, o Manel. Nomeado para uma Cruz de Guerra que, indecentemente, não recebeu (****). Mas isso foi já a terminar a comissão. Para depois…
Isto de dar ordens tem, por vezes, um sentimento estranho. Diabos!
Falei com o Leonardo e acordámos tudo rapidamente. Depois falámos um pouco mais e ele foi informando. O velho Leonardo tinha razão. A tropa estava mal distribuída naquela zona. Do Batalhão pouco havia a esperar e a nossa Companhia era pau para toda a obra. O IN assim estava bem.
Ainda o sol não se levantara e já o som, som leve, dos homens do 1º Grupo da [CART]2339 se fazia sentir. Eu com os picadores olhava e íamos trocando umas palavras.
O Manuel à frente do Grupo aproximou-se. Paragem breve e rápida despedida. Picadores à frente e a Moricanhe era o destino.
O pessoal já andava pelo aquartelamento e eu volteei por um lado e outro, ouvido à escuta. Parte de mim ia com eles num sentimento natural. Talvez só se sinta na guerra, nas situações de perigo. Talvez não só e dependa de cada um. Mas esperava e lembrava os obuses já prometidos, a falta de militares ali na construção do aquartelamento. Só ficaram dois grupos e alguns não operacionais – condutores, cozinheiros e outros assim. Um grupo estava em diligência algures às ordens do Batalhão, o outro devia estar de volta com a coluna de abastecimentos e material. O Comando, secretaria e outros, estavam em Bambadinca. Instalações mais condizentes com a protecção de papelada, os altos pensamentos da coordenação militar e a condição de serem profissionais. Nem todos, nem todos.
O dia foi passando. Primeiro chegou a coluna com o reabastecimento, material e o correio. Quase ao mesmo tempo uma mensagem a dizer que na Moricanhe tudo estava bem e iam regressar.
Esperava. Com o sol já a pique fui alertado pela chegada deles. Ia-os vendo passar, rostos duros, um leve sorriso e um aceno de quando em vez.
O Manel aproximou-se com o riso que só ele ainda hoje, quarenta anos depois, sabe dar.
- Está tudo bem e também não tivemos qualquer problema.
- Pronto. Vai descansar e escreve um pequeno relatório. Depois falamos.
- Escrevo, eu?
- Claro, não és professor ?!...
Afastou-se rindo e eu senti-me mais aliviado.
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores desta série:
18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3474: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): De Évora a Mansambo...
28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (6): De Évora a Mansambo...instrução, viagem...Adeus ao meu País.
29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá
4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68
1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969
3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio
14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4683: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Cansamba II, o Serra e o Burro
11 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4809: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Fá Mandinga, o único sítio onde tive direito ao luxo de um quarto
(**) Destacamento de milícias e aldeia fula em autodefesa, a norte de Mansambo, do lado direito da estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole. Será abandonado e meados de 1969 (takvez Julho), por decisão do comando do BCAÇ 2852.
(***) Chefe do grupo de picadores e guias que residiam, com as suas famílias, em Mansambo, dentro do "campo fortificado"... O Leonardo tinha vindode Bissau e era um elemento da inteira confiança do Alf Mil Art Torcato Mendonça.
(****) Embora o Torcato não goste de identificar as personagens das suas estórias, trata-se do Fur Mil Manuel Mantinhas, natural de Évora, professor primário, que na prática, e na ausência do alferes, comandava então o 1º Grupo de Comnbate. Estudaram juntos no liceu (em Beja), encontraram-se na tropa no RAL 3, em Évora, eram amigos e continuaram amigos pela vida fora... O Manuel devia ter cebido uma cruz de guerra, pela defesa de Candamã, em Julho de 1969, diz o seu amigo Torcato. Continuam a visitar-se, agora um bocado mais velhos e mais surdos... (Inconfidências do José, ao telefone).
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