1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2018:
Queridos amigos,
Iniciou-se este punhado de reflexões com uma carta endereçada ao Governador da Guiné a propósito de um questionário etnográfico onde se conferia larga importância ao conhecimento da vida dos indígenas, a sua vida material e a sua constituição moral, conhecê-lo para educá-lo nos bons valores da cultura ocidental, a preponderante.
Nesse mesmo ano surgiu a obra a que agora se faz referência, surgida no início do Estado Novo, maturada durante a Ditadura Nacional, apologia do Império Português, mas onde se fala do perigo espanhol, da indiferença do povo para os valores imperiais, são inquiridas personalidades vincadamente nacionalistas, integralistas, militares das campanhas de África, um grande empresário e até um republicano, que é zurrado pelo seu comentário ao militarismo nacionalista. Seja como for, levantava-se a consciência imperial, pobretes na Europa, mas com vasto Império, imensas riquezas para explorar, o sonho de muitos era levantar a agricultura e desbravar tais riquezas pelas várias partidas do mundo.
Do racismo se falará mais adiante.
Um abraço do
Mário
A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2)
Beja Santos
Em 1934, em circunstâncias completamente diferentes àquelas em que o Capitão Vellez Caroço se dirigiu ao Governador da Guiné para justificar o seu questionário etnográfico para melhor se conhecerem as minúcias da vida material dos indígenas, para melhor se exercer a ação colonizadora e de soberania na Guiné, a Imprensa Nacional publica um inquérito organizado por Augusto da Costa entre 1926 e 1933, o inquérito aparecera no Jornal do Comércio e das Colónias, tinham sido ouvidos Afonso Lopes Vieira, Pequito Rebelo, Fernando Pessoa, Bento Carqueja, Sousa Costa, Marcello Caetano, José Francisco da Silva, Fernando Garcia, João Ameal, João de Almeida, Paiva Couceiro, João de Azevedo Coutinho, Hipólito Raposo, Fidelino de Figueiredo, Alberto de Monsaraz, Américo Chaves de Almeida.
Augusto da Costa era inequivocamente nacionalista e tradicionalista, as suas preocupações aqui expressas prendem-se com o Império, o que fazer dele quando potências poderosas como o III Reich e o Reino Unido procuram entendimento para retalhar Angola e Moçambique, Augusto da Costa insiste que Portugal é a terceira potência colonial do mundo, que o país permanece indiferente a todas estas potencialidades e verbera:
“Aos intelectuais portugueses se impõe o dever sagrado de levantar as forças morais do país, acordando a consciência nacional. A imprensa, não há que esconde-lo, tem graves responsabilidades: porque os jornais e jornalistas são capazes de manter o espírito público em tensão durante um mês seguido, dando-lhe todas as minúcias e particularidades de um crime misterioso, são os mesmos que se negam, pelo cansaço, a manter no público esse mesmo estado de espírito, quando se trata de mostrar os perigos que ameaçam as colónias portuguesas”.
O escritor e jornalista endereçou a um conjunto de intelectuais um pequeno questionário, com as seguintes fórmulas:
- sim ou não Portugal, potência de primeira grandeza na Renascença, guarda em si a vitalidade necessária para manter no futuro, na nova Renascença que há de seguir-se à Idade Média que atravessamos, o lugar de uma grande potência?;
- sim ou não Portugal, sendo a terceira potência colonial, tem todos os direitos a ser considerada uma grande potência europeia?;
- sim ou não Portugal, amputado das suas colónias, perderá toda a razão de ser como povo independente no concerto europeu?;
- sim ou não o moral da nação pode ser levantado por uma intensa propaganda, pelo jornal, pela revista e pelo livro, de forma a criar uma mentalidade coletiva capaz de impor aos políticos uma política de grandeza nacional, e na hipótese afirmativa, qual o caminho a seguir?
Como se depreenderá, até porque este inquérito se espraiou por diferentes anos compulsivos da Ditadura Nacional e na alvorada do Estado Novo, para além da diversa substância das respostas houve perspetivas políticas de diferente valência. Entenda-se o que Augusto da Costa pretendia: a Idade Média eram as trevas que atravessaram a monarquia constitucional e o republicanismo, gente que acreditava no parlamentarismo e liberalismo de má memória, o Renascimento aparecera com a Ditadura Nacional, havia perigos, a Espanha republicana ali ao lado, esperanças como o Acto Colonial de 1931, mas tudo imerso em dúvidas. A escolha dos intelectuais não fora arbitrária. Marcello Caetano não era indicado como assessor de Salazar mas como diretor da revista Ordem Nova, há muito boa gente que tem esquecido que o último líder do Estado Novo era simpatizante da extremíssima-direita. Fernando Pessoa acreditara em Sidónio Pais e deu apoio à Ditadura, no início; alguns deles, como Pequito Rebelo ou Hipólito Raposo, vinham do integralismo; foram questionados militares das campanhas de África como o Contra-Almirante José Francisco da Silva, Brigadeiro João de Almeida e Paiva Couceiro. Pequito Rebelo considerava que Portugal era uma nação agrária e colonial, o seu futuro estava na agricultura e nas colónias, Fernando Pessoa terá respondido em dia não, torcia o nariz à grande potência, deve ter arreliado quem o questionava respondendo coisas assim:
“Portugal grande potência construtiva, Portugal Império – aqui, sim, é que, através de grandeza e de decadência, se revela o nosso instinto, e se mantém a nossa tradição. Nas mais negras horas da nossa decadência, prosseguiu, sobretudo no Brasil, a nossa acção imperial, pela colonização; e foi nessas mesmas horas que em nós nasceu o sonho sebastianista, em que a ideia do Império Português atinge o estado religioso”.
Fernando Pessoa, por Almada Negreiros
A generalidade dos inquiridos não admite a hipótese da perda das colónias. Há quem aproveite para bater em tudo o que se passou depois da revolução francesa, veja-se o Dr. Sousa Costa:
“Quanto à anarquia, essa explica-se pelas ideias falsas que os enciclopedistas, os seus filhos, netos e todos os outros herdeiros ou parentes espirituais inocularam nas grandes massas urbanas e proletárias. São essas massas, como se sabe, numa época de centralização absolutista e de activo industrialismo, quem constitui as elites populares. Para onde elas se inclinam, para aí se inclina a balança do equilíbrio social”.
O mesmo deponente, questionado se seríamos uma grande potência europeia, responde assim:
“O exemplo da Holanda é flagrante, e constitui a melhor resposta a dar àqueles que consideram Portugal pequeno demais para tão grande território. A nossa pequenez continental serviria de justificação a todos os ataques, a todas as ambições que pairam sobre as nossas colónias. Porque não atacam a Bélgica? Porque não atacam a Holanda? Simplesmente porque nem a Holanda nem a Bélgica dão as provas de abandono que nós damos à nossa melhor riqueza; porque tanto a Bélgica como a Holanda cuidam seriamente da sua riqueza, não dando motivos a que os outros as apodem de povos perdulários. Porque tanto a Bélgica como a Holanda administram a sua fortuna. Se nós entrássemos pelo mesmo caminho, se tanto interna como externamente administrássemos as riquezas que ainda nos restam de um património já largamente desfalcado, não seria a nossa pequenez continental argumento que servisse para alguém justificar os seus instintos de rapina”.
O jovem Marcello Caetano
Marcello Caetano também parecia estar em dia não, respondendo que o moral da nação podia ser levantado por uma intensa propaganda de forma a criar uma mentalidade coletiva, deu resposta terminante:
“Acredito pouco na formação de uma mentalidade colectiva, irmã-gémea da soberania nacional e da opinião pública. Quanto a mim, o remédio é este: a par da propaganda intensa, a acção dirigida no intuito de alcançar o poder para uma minoria inteligente realizar aquilo que vagamente a grande massa poderá apoiar, mas não compreender. Eu não espero nada dos políticos. Espero, sim, de uma política nobre servida por homens dignos. Livro, revista,… Acho-os úteis para chamar a atenção dos homens de escola para o problema. Mas que, os que já se interessam por ele há muito e para ele acharam soluções, busquem pô-las em prática no ambiente novo em que vivemos, sem as peias da politiquice e os embaraços da verborreia estéril do Parlamento”.
A verdadeira voz dissonante foi a de Fidelino de Figueiredo, desdramatizou a perda das colónias, se tal acontecesse não atingiria as garantias da nossa independência, e escreveu:
“Há muitos países na Europa sem os prestígios históricos e sem a individualidade de Portugal, que gozam tranquilamente a sua independência, sem possuírem colónias e sem as terem perdido”.
E enquanto é perguntado sobre uma política de grandeza nacional, o antigo diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa não esconde ser adverso do militarismo político, o que deixou Augusto da Costa encabulado, ainda por cima Fidelino atacara como gato a bofe a censura prévia, Augusto da Costa sentiu-se no dever de apoiar o 28 de Maio e lançar as suas estocadas à Rússia e à Espanha republicana.
O livro com base no inquérito de Augusto da Costa fazia a apologia do Império Português, apresentava-nos como imperialistas, havia que reabilitar o orgulho do vasto império, estabelecer os nossos deveres imperiais, rever a nossa fraca cultura histórica e lembrar a superfície total do Império Português, distribuída pelas sete partidas do mundo, um império com missão espiritual, se o nosso patriotismo era vibrante, havia que dar definição e consciência ao instinto vital da raça, moldar a opinião pública, dar-lhe consciência imperial, definir novas leis para o império, o Dr. Salazar já resolvera o problema financeiro e fizera aprovar em 1931 o Acto Colonial: Portugal, depois de ter sido a pequena casa lusitana, transformou-se, por força da fatalidade histórica e geográfica, num vasto império. O Estado Novo terá ouvido Augusto da Costa, nesse mesmo ano de 1934 realiza-se a I Exposição Colonial no Porto, lá esteve presente a Guiné, com pompa e circunstância. O Império tomara conta das elites, de alguns bancos e de alguns empresários. A Agência Geral das Colónias começou a trabalhar a todo o vapor. Mas não se desenvolveu a tal mentalidade coletiva que Augusto da Costa aspirava. E quando se desenvolveu, bastantes anos mais tarde, foi para mandar gente empobrecida para os colonatos, o novo Eldorado.
Do racismo que se irá aparelhar ao colonialismo, falaremos mais adiante.
(continua)
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Notas do editor
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