segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25905: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (32): uma gazela furtiva em Sare Ganá



Motivo central de um pano traeional de Cabo-Verde.  Mulher cozinhando. Imagem reeditada por LG (2024).




Guiné > Carta de Bambadinca (1955) >  Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Sinchã Jobel (IN) e de aquartelamentos, destacamentos e tabancas em autodefesa (NT): a sul, Missirá e Fá Mandinga; a leste, Geba, Sare Ganá, Sinchã Sutu... Pelo meio o rio Geba Estreito...Sare Banda ficava mais a norte (vd. carta de Banjara, 1956).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


Contos com mural  ao  fundo >  

Uma gazela furtiva em  Sare Ganá

por Luís Graça (*)



Não, hoje já não saberias lá chegar... a Sare Ganá, passando pela povoação  de Geba. Parece que fora  outrora, Geba,  uma praça forte, entreposto de escravos, feitoria, presídio. Terra de deportados e de grumetes. Mas também de lindas mulheres... Em 1969, quando a atravessaste, de Unimog,   estava há muito em total decadência, ofuscada pelo progresso e pela beleza de Bafatá. A "princesa do Geba", do rio Geba, como lhe chamavam os comerciantes locais e a tropa...

Nem te lembravas sequer  já de passar pela ponte nova, uma bela ponte em betão sobre o rio Geba Estreito… Ponte Salazar, que o "homem grande de Lisboa" ainda era vivo … Mas já ninguém queria saber dele nem do seu nome. Mesmo assim, ninguém se atrevia ainda a cometer o sacrilégio de mudar os nomes das terras e obras que ostentavam o seu nome: Vila Salazar, Bacau, Timor; Ponte Salazar, estuário do Tejo,Lisboa; Avenida Salazar, Melgaço, etc....  

O novo "homem grande de Lisboa" agora  era o Marcello (com dois ll) Caetano, cujo nome os teus soldados, de 2ª classe, guineenses,  eram simplesmente incapazes de pronunciar e muito menos de soletrar. Não admirava: não falavam português, eram muçulmanos, não comiam carne de porco, não bebiam "água de Lisboa", nem muito menos sabiam onde era a maravilhosa Lisboa e o mítico Terreiro do Paço onde se condecoravam os heróis do 10 de Junho como o João Bacar Jaló.

Falavas em português apenas com o 1º cabo Suleimane, o Zé Carlos,   que era o teu intérprete, guarda-costas, secretário e cozinheiro, quando eram destacados para alguma tabanca em autodefesa da região, como era o caso de Sare Ganá,  do regulado de Joladu.  Era ele, de resto, quem ia junto dos furtivos  caçadores da tabanca procurar comprar alguma peça de caça para o teu frugal almoço.  Ou, junto das mulheres grandes, em busca de ovos e franganitos, raquíticos (sete pesos e meio cada bico)...Partilhavas as refeições com ele, mesmo sendo desarranchado. Onde comia um, comiam dois. 

Além do cabo guineense, levavas uma secção, 11 militares contigo, nove praças, todos do recrutamento local, mais um operador de transmissões, metropolitano. Cabo auxiliar de enfermagem não havia, era um luxo.  "E se houver um azar, meu capitão ?"... (Nem bolsa de primeiros socorros tinhas, pedias por rádio uma evacuação Ípsilon, em caso de emergência.)

Em pleno agosto, no tempo das chuvas. Sare Ganá, no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá...

Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu,,, Estiveste aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa... O que não era ironia, porque a população era fula, estava ao lado dos "tugas",  seus antigos inimigos e agora aliados. Os "cães dos colonialistas", denunciava a "Maria Turra" aos microfones da rádio "Libertação"...

Saré Gané, a mais de 4500 quilómetros de distância da tua casa… "O que fazes aqui, meu sacana ?"... (Como gostarias de ter ouvido alguém teu conhecido, da tua terra, a interpelar-te, eufórico,  pelo caminho!...).  Será que Sare Ganá ainda existe ? Será que alguma vez existiu ? Ou não terá sido fruto de um delírio teu, da tua imaginação já febril, já palúdica ? ... Ah!, malditas sezões, maldito paludismo!...

Sim, Saré Ganá existiu... Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia  e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá era  uma espécie de aldeia estratégica, que tu descreveste no teu diário.  Uma tabanca-tampão. Aqui terminava a "nossa" soberania territorial, a norte do Rio Geba e começava a zona de intervenção do Com-Chefe que incluia, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio”. 

"Nossa" ?,,, Tinhas relutância em usar o adjetivo possível no plural. Como se aquela maldita guerra não fosse também a tua, ou tua... Não,  não era a tua guerra, não a tinhas escolhido de livre vontade, mas também era tua, tinha sobrado para ti... Sim, depressa tiveste que aprender a salvar o pêlo, o teu e dos soldados que te foram confiados. Alguns, putos, "djubis", de 15 e 16 anos...

Era aqui que vivia o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula, de elevada estatura. A sua cabeça destacava-se acima da cabeça dos demais. É isso que queria dizer a palavra chefe, etimologicamente falando.  Presumias que fosse futa-fula. Não fixaste o seu nome. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha, ou foram obrigados a fugir, acossados de um lado e do outro). O seu regulado estava circunscrito ao perímetro de Sare Ganá e a mais duas ou três tabancas: Sinchã Sutu, Sare Banda. 

O teu camuflado ainda cheirava a goma, trazia os odores das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exército. Tinhas acabado de chegar do  Centro de Instrução Militar de Contuboel, um "oásis de paz", como tu eufemisticamente dizias, na única carta mensal que tinhas por hábito escrever à família. Carta por correio aéreo, nunca gastaste um aerograma ao Movimento Nacional Feminino.

Em Contuboel,  usavas a farda nº 3, dita de "trabalho". A  tua companhia, de guarnição normal,  depois da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, a IAO,  tinha passado a ser uma subunidade de intervenção,   ao serviço do Agrupamento de Bafatá (do temível coronel Hélio Felgas, se bem te lembras)... 

Como tu dizias com sarcasmo, eras agora um preto de 1ª e os teus soldados pretos de 2ª.

E quase todos os dias ouvías os Fiat G-91 bombardearem Sinchã Jobel, uma base da guerrilha a 10 km a norte, e que era inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeavam... 

Base ? "Barraca", diziam os milícias, em crioulo... “Até Farim é tudo terra para queimar” (sic). Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atrevia então a penetrar neste santuário do IN. Falava-se aqui da "mata do Óio", como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte. A guerra, em todo o lado e em todos os tempos,  era fértil em criar lendas e narrativas. O mito do Óio começava em Saré Ganá...

Ainda estava na memória da população o ataque de há um ano atrás, em 12 de agosto de 1968, ao tempo da CART 1690: à meia noite em ponto, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos, ou seja um bigrupo reforçado, vindo de Sinchã Jobel, tinha atacado Sare Ganá.

“Um ataque medonho”, segundo o testemunho de alguns milícias com quem falaste, com o Suleimane a servir de intérprete.  Já não apanhaste a "velhice" de Geba, tinha acabado a comissão em março de 1969.

O ataque iniciou-se por tiros de morteiro, lança-granadas-foguete (os temíveis RPG que tinham fama de arrancar cabeças) e metralhadoras, com uso de balas incendiárias. O IN conseguiu alcançar o arame farpado do lado Norte,   penetrando na tabanca. Uma falha de segurança, no perímetro de arame farpado, mesmo armadilhado,  terá permitido a passagem de uns alguns atacantes, empunhando armas ligeiras automáticas. Algumas moranças começaram logo a arder. 

A reação das NT não se fez esperar: os valentes milícias fulas, uns a partir dos abrigos, outros dispersos pela tabanca, reagiram pelo fogo, aguentando o ímpeto inicial do ataque e dificultando o mais que puderam a infiltração dos "turras".  Parte da população, os homens, estava armada e colaborou na defesa da tabanca. Mas depressa se esgotaram as munições, obrigando a milícia a recuar. A disciplina de fogo nunca foi apanágio do guineense, quer empunhasse uma G3 quer manejasse uma Kalash. 

Em Geba, sede da CART 1690, a escassa meia-dúzia de quilómetros, logo que se ouviram os primeiros rebentamentos, saiu um piquete de socorrro, num viatura: meio pelotão, enquadrado por um alferes e um furriel. Nas proximidades de Sare Ganá, cerca de meia hora de depois, o grupo subdividiu-se, aproximando-se, a pé, da tabanca, com a intenção de procurar surpreender as forças atacantes.

Ao mesmo tempo que apoiavam a retirada da população, as forças da CART 1690 iam abrindo caminho, morança a morança, à força de bazucadas e curtas rajadas de G3. Gente brava e sacrificada, essa companhia de Geba!...

Às tantas, o IN, surpreendido pelo contra-ataque, lançou um “very light” e iniciou a sua retirada, arrastando consigo as baixas que sofrera e carregando o respetivo material. Devido à escassez de efetivos e à escuridão da noite, a perseguição encetada pelas NT não terá ido além da orla da mata próxima. Ninguém, de resto, gostava de combater à noite...

Uma hora e tal depois do ataque chegou uma coluna de socorro, em viaturas, oriunda de Bafatá, composta por cerca de dois pelotões reforçados, da CCS/BCAV 1904, do EREC 2350, e do Pel Caç Nat 64. 

Controlada a situação, as forças de Bafatá, com exceção do Pel Caç Nat 64, regressaram com os feridos mais graves da milícia e da população local. Foi montada segurança à tabanca nessa noite e dias seguintes.

Apurou-se então que o IN terá tido 5 mortos e outras baixas prováveis. De entre o material capturado, contaram-se duas armas ligeiras, uma metralhadora Dectyarev, com bipé, e uma pistola metralhadora Sudayev PPS-43, de origem russa, uma das lendárias armas ligeiras da II Guerra Mundial, variante da PPSh-41, mais conhecido por "costureirinha"... 

 Do lado dos defensores, soube-se que tinha havido baixas entre a milícia e a população local. Parte da tabanca teve que ser reconstruída.

Um ano depois  aqui estavas tu, "periquito", de 5 a 17 de agosto de 1969, integrado no grupo de combate da tua CCAÇ,  temporariamente em reforço do Sector L2 (Bafatá). Uma secção fora destacada para Sare Ganá e duas para Sare Banda. O alferes deve ter ido para Sare Banda, se é que não se baldou, mas já te lembras...


Dias antes da tua chegada a Sare Ganá,  o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutu, mais a Norte. Tocaram as campainhas de alarme em Bafatá, tal como acontecera com Madina Xaquili,  a sul.  

Agora, por causa de um possível ataque da guerrilha (mesmo no auge do tempo das chuvas) era proibido, à noite, fazer lume ou fumar na tabanca de Sare Ganá. Contava-se que num outro destacamento do subsetor de Geba, tempos antes,  dois militares das NT haviam "lerpado" com um roquetada quando acenderam uma lanterna na tenda...   Jogavam às cartas, dizia-se, para matar o tédio... Tiro de um "snipper"... Uma morte horrorosa, como todas as mortes na guerra...

Em Saré Ganá o pessoal comia  cedo e deitava-se cedo. Ficavam os vampiros dos mosquitos a velar-te. Por sorte, não apreciavam lá muito o teu sangue. Devia-lhes saber a uísque. Tinhas levado uma garrafa contigo...

E mais à frente, no teu diário, a 15 de agosto de 1969, perguntavas:

(...) “Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma seção de combate, uma bazuca 8.9, um morteiro 60, 10 G-3 e um rádio se isto der para o torto ? 

"Depois do ataque malogrado à tabanca próxima, Sinchã Sutu, a população fula anda compreensivelmente nervosa,  inquieta... Sinto-me como os bombeiros, atrás da ameaça de fogo-posto, mas ainda não fiz sequer o meu batismo de fogo, contrariamente à maior parte da companhia, que teve os seus primeiros feridos graves em Madina Xaquili, no sul do chão fula, há menos de 3 semanas." (...)

Perguntavas a ti próprio qual o sentido e o alcance desta tua missão:

(...) “Limito-me a estar aqui e vigiar os postos de sentinela: adormeço sobre a manhã,mas não posso durmir como um porco; às dez ou onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota é já absolutamente insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou, e que em dias de sorte pode ser um bife de gazela, com algumas legumes das hortas locais...

Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Jalon (leia-se "Djalon") eram donos e senhores destas terras, derrubado o reino de Gabu em Cassalá há 100 anos atrás.

Ao fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional, converso com a população e recapitulo  o plano de defesa da tabanca” (,..)

Dormir que nem um porco!...  Aqui convinha  lembrar o sábio conselho do provérbio popular: 'Três horas dorme o santo, quatro o que não é santo, cinco o viajante, seis o estudante, sete o porco e oito o morto'... Seria, afinal, aqui  que irias aprender que dormir muito fazia mal à saúde...

E relatavas, no teu diário, uma bravata estúpida, bem típica de um inconsciente "periquito”, feita logo no princípio das tuas andanças por aqui. É uma das tuas duas recordações marcantes da estadia em Sare Ganá:

(...) “Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. Talvez Sinchã Famora, a sul, não fixei o nome. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco (!), tentando detetar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis.

" A meio do percurso, apanho um susto, pondo à prova os meus reflexos: um antílope, que pastava perto, atravessou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada". (...)

 Foi mais do que um susto, apanhaste um calafrio: é que na noite anterior, uma hiena, que lá chamava "lobo", e que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito acionar uma das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto começaste a ouvir, de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal, assustadiço, andava com os nervos em franja.

Ainda hoje te perguntas como é que tu arriscaste a tua vida e a do milícia local, nesta estúpida e inútil aventura de ir “reconhecer” uma aldeia abandonada e armadilhada ?!… Puro voyeurismo, grosseira infantilidade... Não fazia parte da tua missão!... 

Em suma, uma pura bravata!... Talvez quisesses provar a ti mesmo que também eras “um gajo com tomaste", tu que nem sequer eras um atirador de infantaria, nem tinhas, ao certo, nem pelotão nem secção...Eras o "pião das nicas", como te chamava o teu capitão, suprias as faltas de graduados, em todos os pelotões... 

Quiseste-te armar em "ranger", ou pior ainda, de sapador, tu que nem sequer tinhas conhecimentos rudimentares de minas e armadilhas... Podias ter acabado logo ali,a  escassos a dois meses e meio de Guiné, crivado de estilhaços.  Saré Ganá era, francamente, um sítio desolador para se morrer e, pior ainda, para se ficar inumado na vala comum do esquecimento...

A outra recordação marcante foi a da visita à tua morança, de uma  "gazela furtiva", cujo nome nunca soubeste, e que ficou no teu diário como uma simples "Fatumatá":

Ainda não me tinhas habituado ao ‘black-out’ total, imposto por óbvias razões de segurança: não podias ler nem escrever na tua morança de comandante...

(...) "Faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas, o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganá, em plena época das chuvas" (...).

Logo na segunda ou terceira noite tiveste a companhia silenciosa, misteriosa e furtiva de uma mulher da aldeia (nunca pudeste confirmar a suspeita de que era uma mulheres do comandante da milícia  local)...

Nem deste conta: introduziu-se, lesta como uma gazela, na palhota onde durmias, junto ao espaldão do morteiro 60. Tapou-te a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-te o seu esguio corpo de ébano, ressumando húmidos odores da floresta!...

(.,..) “De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fêmea de felino!" (...).

Não te olhou olhos nos olhos, mas tu fizeste questão de a mirar de alto a baixo, de frente:

(...) “Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... É sensual e ainda jovem, de seios duros mas pequenos... 'Mama firme', como se diz aqui. É provável que seja infértil e nunca tenha parido.” (...)

Assim de chofre, tiveste dificuldade em perceber o seu comportamento e muito menos em adivinhar-lhe a idade:

(...) “Terá vinte e tal anos, menos de trinta.  (...)

E, tal como tinha chegado, partiu depois, discreta, silenciosa, furtiva, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo...

(...) “Um 'affaire' no mato ? Que palavra tão deslocada, para mais francesa,  aqui no cú do mundo, numa tabanca fula, num país em guerra!” (...)

De qualquer modo, aquele momento de todo inesperado acabou por ser  celebrado com uma singela troca de "roncos": deste-lhe uma toalha de banho turca, colorida (haverias de comprar outra na Casa Gouveia, em Bafatá),  e ficaste-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação daquela estranha noite de Sare Ganá. Passaste a usá-la como amuleto.


Nem sequer te ocorreu "partir patacão" com ela: não querias, de modo algum, que o "vil metal" viesse  estragar a singeleza e até a beleza daquele momento, a partilha de corpos entre um homem e uma mulher que pertenciam a dois mundos completamente opostos...mas tinham em comum quiçá a infelicidade e a solidão do "hic et nunc", do aqui e agora...

Ainda hoje tens dificuldade em entender o significado daquela cena!...  O significado s
ocioantropológico, acrescenta lá o chavão: 

(...) "Simples atração sexual de um mulher por um estrangeiro ? Simples favores sexuais sem pedir mais nada em troca ? Cumprimento da obrigação feminina de hospitalidade, por ordens expressas do régulo ou do comandante de milícias que tu mal conheceras ? Ritual de submissão ao representante dos tugas, os 'senhores da guerra'? Solidão, despeito, ciúme, não sendo a mais nova das mulheres do seu marido e senhor, e muito provavelmente sendo infértil, e se calhar até repudiada,  uma das piores maldições que pode recair sobre a honra de uma mulher em África ? (...)

Este caso não era único, na época, e não acontecera por certo pelos teus lindos olhos... Nunca te armaste propriamente em sedutor... Soubeste mais tarde de outras estórias semelhantes de partilha de favores sexuais, de iniciativa aparentemente feminina... em contexto de guerra.


E concluias esse apontamento no teu diário, antes de regressares à sede do batalhão:

(...) “Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados, infelizes e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória. Nem sequer o seu nome. Nem quem a teria mandado. Nem sei se algum dia voltarei a Sare Ganá. Mas a sua imagem de gazela furtiva, essa, não vou tão cedo apagá-la da minha memória."


Nãp, nunca mais voltaste a Sare Ganá, é verdade...

Já em Contuboel, nos menos de dois meses de paz de Contuboel, tu havias escrito:

(...) Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros. 

O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes ou nas poças da chuva; (iv) os homens grandes, sempre eles, a tagarelar uns com os outros sentados no bentém, mascando nozes de cola. (...)

Em suma, um fim de tarde calmo numa tabanca fula (ou mandinga, ainda não sabias distinguir),   dos arredores de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para uma exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI). 

E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que estava traçado: em breve a guerra, e a militarizaçáo do seu "chão", e com ela a morte e a desolação, chegariam até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…

E acrescentavas em tom algo premonitório ou até profético, juntamente peças dispersas do pouco conhecimento que detinhas da situação político-militar do território, em meados de 1969:

(...) "O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Dulombi a Fajonquito, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, e até desarmados, como se fossem turistas em férias! (...).

Meio intrigado ou embaraçado com a hospitalidade local (deram-te 
uma morança, uma cama, um banquinho ou uma "turpeça", além de uma mulher, ainda jovem mas mais velha do que tu...),   foi lá , em Saré Ganá, que te apercebeste do profundo significado socioantropológico do "dom", do dar e receber, do ter ou não ter.... uma "turpeça", um morança, uma mulher, e uma esteira para dormir, atributos afinal do poder dos pequenos senhores da guerra...  

© Luís Graça (2006). Revisto: 1 de setembro de  2024.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25904: Notas de leitura (1723): Breve história da evangelização da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Estamos chegados ao Estado Novo e os autores dão-nos conta das atividades desenvolvidas desde a Missão da Guiné, constituída em 1940, até praticamente aos finais do século XX. Esta Missão foi desafetada do bispado de Cabo Verde, começaram grandes desafios para Franciscanos e para as Franciscanas Hospitaleiras, estas ficaram à frente dos Asilos de Bor e Bafatá. Logo a seguir vieram os missionários italianos de duas ordens, dinamizou-se o trabalho na leprosaria de Cumura. Dinamizou-se a atividade educativa que, evidentemente, foi fustigada pela guerra de libertação, e que levou ao encerramento de muitas escolas missionárias. Com a libertação, Roma decide criar a diocese de Bissau, aumentaram as vocações sacerdotais e religiosas, nasceram novas missões, a evangelização abriu as causas da saúde, educação e da promoção da mulher, uma evangelização que abarca hospitais, uma leprosaria, um liceu diocesano e duas escolas profissionais médias. Esta monografia tem o mérito de atualizar o trabalho de referência do padre Henrique Pinto Rema.

Um abraço do
Mário



Breve história da evangelização da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Já aqui se deu amplo acolhimento à obra magna do Padre Henrique Pinto Rema, "História das Missões Católicas na Guiné", dela até coligi um resumo para um livro que tenho em preparação sobre os textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. Mas também não se pode descurar outras iniciativas como esta "Breve História da Evangelização da Guiné", da autoria de dois franciscanos devotados a estudos guineenses. Trata-se de uma edição do Secretariado Nacional das Comemorações dos 5 Séculos, datada de maio de 1997. Os autores explicam o significado daquele ano jubilar, tem a ver com a deslocação de D. Frei Victoriano Portuense, há precisamente 300 anos, saiu da sua sede de diocese, na Cidade Velha, na ilha de Santiago, e foi visitar as comunidades cristãs da Guiné; o significado também abrange os 20 anos de existência da Diocese de Bissau.

Já estamos em plenos anos 1940 e 1950. Viviam-se tempos anteriores ao Concilio Vaticano II, a tolerância dialogante sobre valores existentes em todas as religiões eram palavras desconhecidas. A evangelização na Guiné não escapava à regra – religião única era apenas a cristã. Com boa vontade, talvez possamos encontrar duas pequenas exceções a esta regra: o interesse dos Franciscanos no século XVIII em conhecer os usos e costumes dos Pepéis da ilha de Bissau (o desejo de conhecer é o primeiro passo para o respeito e pelo diálogo subsequentes); na morte de Becampolo Có em Bissau, em finais do século XVII, como era cristão o corpo do rei foi sepultado na capela do hospício franciscano em Bissau – os pepéis condescenderam, mas exigiram e conseguiram obter dos frades que nas cerimónias do choro que se pudessem matar vacas, bem como beber e comer à vontade.

Falemos agora da Missão da Guiné, 1940. Em 4 de setembro desse ano, o Papa Pio XII separou definitivamente a Missão da Guiné do bispado de Cabo Verde, ao qual estivera ligado desde 1533. Autónoma nos seus destinos, já com duas congregações religiosas permanentes (Franciscanos portugueses e Franciscanas Hospitaleiras portuguesas) e com a perspetiva de se poder abrir a outras congregações, com uma nova organização missionária voltada para a evangelização e promoção social, a Missão da Guiné trazia amplas expetativas.

Em 1932, os Franciscanos portugueses foram quase obrigados a regressar onde, nos séculos anteriores tinham estado mais de 170 anos seguidos. Regressaram e estabeleceram quartel-general em Bula, sendo durante alguns anos os únicos missionários presentes no território. Mas “arrastaram” consigo as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras portuguesas (logo em 1933), primeiramente em Bula e depois nos Asilos de Bor e Bafatá e no Hospital Central de Bissau. A seguir chegaram os missionários estrangeiros, os primeiros foram os missionários do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, e com o seu precioso auxílio foi possível garantir melhor a assistência religiosa permanente a Geba-Bafatá, Bambadinca, Catió, Farim e Suzana. Em 1955, juntaram-se também à missionação os Franciscanos da província de Santo António de Veneza. Deste grupo faziam parte D. Settimio A. Ferrazzetta, o primeiro bispo de Bissau, e Frei Epifânio Cardin, que trabalhou na missão de Cumura. Em 1969, assumiram a direção da leprosaria. Mais tarde estenderiam a sua ação de bem fazer e de evangelização até Bolama, Biombo, Nhacra e Bissau. Também os Franciscanos italianos virão a “arrastar” consigo as Irmãs Franciscanas do Coração Imaculado de Maria, que chegarão à Guiné em 1970, trabalhando primeiro na leprosaria de Cumura e posteriormente em Quinhamel. Em 1969, chegavam à Prefeitura Apostólica da Guiné as Irmãs do Instituto do Santo Nome de Deus, italianas, que se instalaram em Suzana e em Bubaque até 1993.

A ação educativa missionária ir-se-á revelar do maior interesse. A partir da entrega do ensino primário não-oficial às Missões, muitas escolas espalharam-se pelo interior da Guiné. Para o regular funcionamento das aulas, os missionários socorreram-se de professores catequistas, formados sobretudo das escolas das missões de Bula e Bafatá.

Na assistência social e sanitária, foi igualmente relevante o papel das missões católicas em Bor, Bafatá, Bula, Bissau, sem esquecer os internatos menores de Bubaque, Mansoa, Quinhamel e Cumura. A guerra de libertação, como é facilmente compreensível, causou uma enorme perturbação da atividade missionária da Guiné. Muitas escolas missionárias tiveram de fechar as portas por falta de gente que as fizesse funcionar.

E assim chegamos à Diocese de Bissau (1977-1996). Pela Bula Rerum Catholicorum, de 21 de março de 1977, o Papa Paulo VI elevou a Prefeitura Apostólica da Guiné à dignidade de diocese. A sede ficou em Bissau, o seu templo principal é a igreja catedral de Nossa Senhora da Candelária.

Houve um fomento claro e decidido de vocações sacerdotais e religiosas no país. Em 1977 não havia um sacerdote autóctone, em 1997 eram 15. Após 1977 abriram-se mais 6 paróquias em Bissau e novas missões em Tite, Buba, Empada, Bedanda, Ingoré, Cacheu, Caió, Bajob, Betenta, Bigene, Nhoma, Bissorã, entre outras. É uma evangelização que não esquece a promoção social: na saúde, educação e promoção da mulher. Além de 3 hospitais de maiores proporções e de uma leprosaria, há uma trintena de pequenos centros onde diariamente as pessoas acorrem e onde bebés desnutridos ou adultos com toda a sorte de doenças ou problemas vêm procurar alívio.

Por fim, os autores resumem as atividades da educação e da promoção da mulher. A diocese possuiu já um liceu diocesano e duas escolas profissionais médias. Mais de 200 guineenses estudaram fora da Guiné com bolsas obtidas pela diocese, graças aos Amigos das Missões. Hoje as bolsas continuam a ser dadas, mas para estudos dentro do país, no liceu João XXIII e nas faculdades de Medicina e Direito em Bissau.

Trata-se pois de uma monografia que reatualiza o indispensável trabalho do padre Henrique Pinto Rema.


Igreja de Catió, agosto de 1973. Imagem retirada do blogue Arquivo Digital, com a devida vénia
Festa religiosa de Nossa Senhora de Fátima, Padroeira de Catió, 2014
Igreja de Nova Lamego (hoje Gabu), imagem retirada do nosso blogue
Imagem tirada durante a celebração de uma missa no Gabu, 2014
Administração do Crisma a jovens da Paróquia de Santa Isabel de Gabu
Cerimónia presidida pelo segundo bispo de Bissau, D. José Lampra Cá
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 26 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25882: Notas de leitura (1721): Breve história da evangelização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25896: Notas de leitura (1722): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25903: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VII: A Bolama de finais dos anos 30


Os BVB tinham a sede na Rua Gov Sequeira


Não sabemos ao certo qual era avenida ou rua...


Em segundo plano, do lado direito a um dos imponentes "sobrados" da cidade


Onde ficava também o mercado municipal...

Guiné > Bolama > 1938 > Imagens da cidade, que foi capital da colónia  até 1941


Jornal-programa (sic) editado pelo "Sport Lisboa e Bolama", novembro de 1938. Composto e impresso pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama. Nº de páginas: 12 (doze).Visado pela Comissão de Censura,


Fonte: Câmara Municipal de Lisboa > Hemeroteca Digital >  Sport Lisboa e Bolama, novembro de 1938 (com a devida vénia).




1. Já fizemos referência ao jornal do Sport Lisboa e Bolama (**), com data de novembro de 1938. Foi feita na altura uma edição única, com o  propósito de comemorar  o 5.º aniversário do fundação do clube, em Bolama, em novembro de 1933.  

Pelo cabeçalho que acima se repoduz, vê-se que era uma filial  do Sport Lisboa e Benfica (fundado, por sua vez, em  28 de fevereiro de 1904).  (Com a transferência, em 1943,  da capital de Bolama para Bissau, irá nascer o Sport Bissau e Benfica, em 27 de maio de este1944, sendo este a vigésima nona filial do Sport Lisboa e Benfica.)
 
Mas a nós interessa-nos agora ter uma ideia da toponímia da cidade bem como do comércio local existente em meados dos anos 30. 



Croquis de Bolama que o António Estácio (Bissau, 1947-Algueirão, Sintram  2022) conheceu nos anos 1950 por lá ter morado com os pais, e lá ter feito a instrução primária. Este croquis permite-nos reconstituir a malha urbana, identificando  avenidas, ruas e edifícios (adminstração pública, comércio e habitaçáo). A cidade. já em decadência, com a transferência da capital para Bissau, em 1943,  era organizada numa malha ortogonal com dois grandes eixos de avenidas, e com ruas que se cruzavam dividindo-a em quatro setores. Vários pontos de referência são sinalizados: a ponte-cais,  a câmara municipal,  a alfândega, os bombeiros, o Sport Lisboa e Bolam, o BNU,  a praça Infante Domn Henrique, a estátua de Ulysses Grant, o Mercado, a Casa Gouveia, etc. 

Fonte:  Estácio (2012) (*)



Nada como selecionar e analisar as fotos (mesmo de fraca qualidade) da cidade e os anúncios que vêm inseridos nesta edição única.  Uma coisa que salta à vista, pelo conjunto de anúnciios, que reproduzimos abaixo,  é a ausência da Casa Brandão, de Manuel de Pinho Brandão. 

Ora, ele na época já era um comerciante conhecido, e dono  de um dos principais "sobrados" de Bolama, edifício que dava nas vistas. Em 1935 ele morava em Bolama, e devia ter já perto dos 45 anos de idade.  

Segundo uma fonte que nos acaba de chcgar às mãos (por intermédio do nosso camarada Manuel  Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAÇ 414, que esteve em Catió, quase um ano antes da Op Tridente, entre abril de 1963 e fevereiro de 1964, e conheceu o velho Brandão), este terá chegado à Guiné em finais da década de 1910. Em 1963  teria já 71  anos, pelas nossas contas.  

Não sabemos ao certo quando, na década de 1930, se mudou para a zona de Catió, e se tornou um dos grandes agricultores da região de Tombali. No final da  década de 1950 produzia duas mil toneladas de arroz e tinha um efetivo de 50 trabalhadores (fora os sazonais). Mais: já dispunha de tractores e máquinas agrícolasm sem nunca ter  deixado também de ser comerciante, como se vê por este documento de 1934.



Guiné > Bolama > Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas > Nota de dívida ao comerciante Manuel de Pinho Brandão, pelo "fornecimento de uma secretária americana e de uma cadeira", no valor de 3300 escudos, valor que foi liquidado em 11 de junho de 1934.


Portal Casa Comum | Fundação Mário Soares | Instituição: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau | Pasta: 10427.126 | Assunto: Nota de dívida da Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas à empresa Manoel de Pinho Brandão, pelo fornecimento de mobiliário de escritório. | Data: Terça, 29 de Maio de 1934 | Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas | Tipo Documental: DocumentosPágina(s): 1


Citação:
(1934), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10427.126 (2024-9-1)



2. Podemos admitir que o Manuel de Pinho Brandão fosse forreta e não quisesse gastar patacão em publicidade... Por outro lado, podia não ser benquista e não querer, portanto,  contribuir para a festa do clube local. Mas, o mais provável, era já não viver na cidade, em  finais de 1938.

De entre os comerciantes e industriais que patrocionaram a edição (única) do jornal "Sport Lisboa e Bolama" , o destaque vai para alguns nossos conhecidos  como   Fausto [da Silva] Teixeira ("Serração Eléctro-Mecânica") e Júlio Lopes Pereira (representante na Guiné da máquina de escrever Royal).

Recorde-se que o Fausto Teixeira foi um dos primeiros militantes comunistas [segundo reivindicação do PCP] a ser deportado para a Guiné, logo em 1925, com 25 anos, ainda no tempo da I República.  

Era dono, em novembro de 1938, segundo o anúncio que abaixo se reproduz, de "a mais apetrechada de todas as Serrações existente nesta Colónia". E o anúncio acrescenta: "Em 'stock' sempre as mais raras madeiras. Preços especiais a revendedores. Agentes em Bolama, Bissau e nos principais centros comerciais da Guiné"... 

Na altura a sede ou o estabelecimento principal era no Xitole... Foi expandindo a sua rede de serrações pelo território: Fá Mandinga, Bafatá, Banjara... Era exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960... Naturalmente, sempre vigiado pela PIDE

outros  nomes das empresas que patrocinaram o 5.º aniversário do Sport Lisboa e Bolama, como o libanês João Saad,  a casa Guedes, a casa Machado, a casa Antunes, a "Competidora", de António de Almeida, o Lourenço Marques Duarte, o José Lopes, o Cipriamo José Jacinto, o João Alves da Silva, etc. 

Outras firmas comerciais, por sua vez,  não estão aqui representadas como o BNU, a Casa Gouveia (a "poderosa empresa de António da Silva Gouveia"),  o António dos Santos Teixeira ("rico e respeitado comerciante guineense"), o Manuel Simões Marcelino, a casa Pintosinho (como era mais conhecido o português Ernesto Gonçaves de Carvalho"),  o guineense Carlos Domingos Gomes ("Cadogo Pai"). (**)

Em suma, não atribuímos particular significado à ausência da Casa Brandão nesta amostra de anúncios comerciais.

 
   















  














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Notas do editor:


Vd. também poste de 25 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23200: 18º aniversário do nosso blogue (5): Roteiro da nossa saudosa Bolama (Antonio Júlio Emerenciano Estácio, luso-guineense, nascido em 1947, e escritor)

(**) Vd. poste de 17 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20152: Jorge Araújo: memórias de Bolama: a imprensa e o comércio locais há oito décadas atrás.

domingo, 1 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25902: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (33): "Na senda do poema azul"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Na senda do poema azul

Cruzaram as portas, correram os campos das árvores novas e os olhos de trabalhar não cederam ao sono nem triangularam o medo nem cavaram rugas no solo imponente das alamedas sombreadas de tílias.

Nesse dia, demorou um pouco mais o beijo que ele habitualmente depunha na sua face sedosa e apertou-a levemente contra o peito. Era uma mulher cheia de ternura e singularmente bela, uma daquelas belezas que roubam tudo o que se é no curto instante em que os olhos se cruzam.

Não se erguem pedestais de peso vazio, nem mulheres de vitrina são granito de amor ou seara ondulante que o vento não quebra, ou lágrima doce de criança com cheiro a alecrim.

Anos mais tarde, abraçou-a longamente e apertou-a fortemente, tentando beijá-la, mas ela cruzou o dedo sobre os seus lábios. De ambos, era apenas a poesia seu único elo de ligação.

Força centenária nunca inventada, criada dia a dia na cultura do percurso, na perenidade do ser, na alegria renascida da memória revisitada sem mágoa num espelho de lágrimas pode, um dia, o amor renascer e ganhar flor na miragem do deserto.

Tempos depois, beijou-a sofregamente e disse que tinha de fazer amor com ela, pois morreria se tal não acontecesse.

- Nem pense, respondeu. Não porque também o não desejasse ardentemente, mas não conseguiria ultrapassar a barreira que a impedia. Não… não eram os vinte anos a menos, mas o facto de ser casada.

Na posse de um presente incerto, de nada valem carismas de futuro nem linguagem detergente, nem jogos de vitrina nem letras ficcionais de reinvento externo, encenando convulsas narrativas de amor eterno.

Um dia, ela veio. Veio firme e decidida. Os cabelos caídos, a beleza amadurecida pela idade e por um lindo rosto ardendo de fogo. Beijou-o suavemente na testa, roçou os lábios pelos seus e espetou o dedo indicador no sítio onde o beijara, avisando com firmeza: “A primeira e última vez, nunca mais.”

O amor, naturalmente estético, não faz profecias nem confere paradigmas de futuro nas assimetrias das almas, o amor triunfa na força de ser fraco, na doçura decisória do dilema, na transparência da lágrima, na equação matemática da razão, que reduz harmoniosamente o tempo e o espaço a uma alma louca de paixão.

Sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés e começou a voar, estonteado pelos céus vibrantes da emoção, quando ela começou, delicadamente, a despir-se.

Abraçou-a pela cintura como chama escaldante e os dois ajoelharam num fino tremor que lhes atravessava o corpo como prenúncio de terramoto. Ela apertou-lhe a face entre as mãos e colou a sua boca à dele numa avidez devoradora. Abriu as entranhas num vulcão de lume e, a um passo do céu, sentiram um novo tempo a eternizar a vida.

Uma hora depois, seus corpos jaziam abraçados no chão, envoltos num pegajoso manto de suor. Um sorriso doce caía dos olhos semicerrados e dos lábios ligeiramente entreabertos dessa eterna imagem que nunca mais haveria de libertar-se do Poema Azul. O poema, onde a luz de sempre, que a noite amanhece, muda o espaço, inverte o tempo, descobre o sonho. E no mais fundo do ser, a dimensão aparece.

Uma hora mais até que os corpos se descolassem, e uma profunda tristeza começasse lentamente a invadirlhes a alma à medida que o sangue arrefecia e o coração insistentemente repetia: Nunca mais, nunca mais!

Voltou a vê-la, dois anos depois, num cruzar de olhos e quatro anos mais tarde, quando ela lhe ofereceu a face e um sorriso, onde umas finas rugas se inscreviam e diziam: Nunca mais!

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Nota do editor

Último post da série de 25 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25879: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (32): "Ciência e poesia"

Guiné 61/74 - P25901: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VII: "Carvalhinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata! " (ten cor Fernando Cavaleiro, cmdt da Op Tridente)



Foto à direita: os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda), e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita



1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não conseguimos ainda  apurar a data);

 (iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QG/CTIG); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27 meses, no TO da Guiné, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

 (v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.) ("C" é o "nickname" pelo qual o pai o tratava); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também como quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda, de que  o Zé Álvaro era diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez , por exemplo, a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).

2. Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho (*), estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66: ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à BAC (Bateria de Artilharia de Campanha) (ou ao BCAÇ 600, estamos na dúvida).

Este Pel Art participaria em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

Estamos  na Ilha do Como, no decorrer da Op Tridente (jan-mar 1964). O texto que se segue, será completado por um apontamento do Mário Dias sobre o "alferes Carvalhinho" como comandante do Pel Art que apoiou as NT no Como.

 
Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > O sargento do Pel Art / BAC obus 8.8, comandando pelo alf mil art José Álvaro Carvalho. O obus .8,8 cm m/943.possuía uma plataforma circular,  fazia tiro empregando munições de carga variada (granada explosiva 11,3 kg e granada de fumos) tnha em alcance de 12250 metros a + 44º.  Peso: 1796 kg (incluindo reparo). Tracção por tractor de rodas. Na Op Tridente terão sido disparadas c. 1200 granadas de obus 8,8.


Fotos  (e legendas): © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (*)


Parte VII: "Carvalhinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata"



Era noite e o alf mil art Carvalho, cmdt do Pel Art 8.8,  preparava-se para dormir quando foi chamado ao comando do batalhão porque o rádio emitia preocupantes pedidos de socorro, que partiam dum pelotão estacionado a cerca de 7 km que estava a ser atacado por um grupo numeroso de guerrilheiros impossíveis de conter sem ajuda.

A água, a lama e a mata cerrada que na zona crescia tornavam impossível enviar reforços à noite,  só de manhã. Mandaram-lhe ver o que conseguia fazer com os obuses. 

O pelotão a cerca de 7 kms de distância, encontrava-se entre os atacantes e um canal e rodeado de mata com lama exceto por onde estava a ser atacado. Só havia a possibilidade de fazer fogo de barreira para trás dos atacantes e começar a rodar os tubos na direcção do pelotão, havendo sempre o perigo de com algum descuido lhe acertar. As pontarias em direcção eram mais delicadas que em alcance. No rádio, os pedidos de socorro sucediam-se cada vez com mais insistência.

O alferes decidiu trabalhar só com um obus e verificar pessoalmente as pontarias. Disse ao sargento para carregar sempre e só o primeiro obus e só disparasse por sua ordem depois da pontaria ser por si verificada.

− Alça 8000 jardas, direcção 81º.

Verificou os elementos introduzidos pelo apontador e ordenou:

− Fogo!

A primeira granada partiu. Disparou mais 3 granadas com alcances intervalados de 300 jardas.

Ouviu-se no rádio :

− Mais para cá. Estão a cair longe. Mais para cá!

Sempre junto do apontador disse-lhe :

− Alça 7500 jardas, direção 80º. 

Verificou os elementos e ordenou:

− Fogo!

Mandou disparar mais 2 granadas com alcances de 300 jardas para mais e para menos.

No rádio ouviu-se:

− Está melhor. O ataque diminuiu. Mas mais para cá.

A voz já estava menos assustada mas pedia granadas para junto de si próprio. A preocupação que tinha de acertar no pelotão aumentou.

− Alça 7200 jardas, direção 79.5º. 

Verificou de novo os elementos e ordenou:

− Fogo!

No rádio ouviu-se:

− O ataque continua a diminuir. Mas mais para cá! Mais para cá!

Mandou disparar outras 2 granadas com a diferença no alcance de mais e menos 300 jardas. O rádio continuou a pedi-las mais próximas, tendo chegado á direção de 79º. Àquela distância,  1º representava muitos metros. Daqui a sua preocupação. Continuou a disparar granadas de flagelação para a zona com direções diferenciadas em alguns minutos até o operador rádio dizer:

− Obrigado, o ataque terminou por agora.

A preocupação que teve nesta operação fê-lo desprezar a necessidade de abrir a boca quando de cada disparo, o que lhe originou a perfuração dum tímpano com infeção e dores violentas nos dias que se seguiram. O médico começou a dar-lhe injeções de penicilina 2 vezes por dia e só passadas 2 semanas conseguiu entrar de novo em operações com o ouvido muito protegido e afastado das zonas de disparo tanto quanto possível .

No dia seguinte o comandante do batalhão visitou o local de helicóptero e verificou que tinham rebentado granadas a cerca de 150m do sítio onde o pelotão se encontrava estacionado.

(Revisão / fixação de texto/ título e subtítulo: LG)



2. Excerto do poste P356 (**),  de Mário Dias, ex-srgt 'comando' (Brá, 1963/66), que participou na Op Tridente, integrando o Gr Comds do alf mil 'cmd' Maurício Saraiva

(...) A Base Logística onde também funcionava o posto de comando, estava ampliada e melhorada. Pousavam lá os aviões ligeiros (Auster e Dornier) bem como helicópteros desde que a maré não estivesse totalmente cheia. A areia molhada formava uma excelente pista de aterragem. 

Também já lá estavam duas bocas de fogo de obus 8,8cm, comandadas pelo alf mil Carvalhinho, exímio tocador de guitarra e igualmente exímio tocador de garrafa de cerveja que nunca abandonava.

Uma tarde, depois de almoço, estava eu a descansar um pouco e ouvi um tiro de obus. Fui ver. O alferes Carvalinho, de calções, tronco nu, indispensável cerveja na mão, alguns passos atrás das peças ia ordenando ao apontador:

 Pá, levanta um bocadinho… não, foi demais, baixa… um pouco para a direita… está bom. Fogo!

E a granada partiu rumo ao seu destino. Salta de lá o tenente-coronel  Fernando Cavaleiro, comandante da Op Tridente:

 
− Ó Carvalinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata!

 
− Calma,  meu tenente coronel, isto vai ter aonde eu quero . 

E continuou:

 Eh pá, baixa um pouco… está bom. Fogo! 

E foi assim até disparar 4 granadas. Acercando-me dele perguntei:

− Meu alferes, para onde foram esses tiros? 

Mostrando-me a carta,  indicou:

 Para o cruzamento destes caminhos. 

E apontou um cruzamento de um caminho com a picada de Cassaca.

Não é que, alguns dias depois, ao passar pelo referido local, lá estavam, muito próximos uns dos outros, os 4 impactos das granadas?!

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos: LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25830: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VI: dois meses na ilha do Como, na Op Tridente: farto do arroz com conservas, o pessoal comia búzios, e carne e ovos de tartaruga