Guiné > Região do Cacheu > Ingoré > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2831 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler... Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (região de Quínara e região de Tombali)...
Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados
1. Mensagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70 (*):
Caríssimos editores. Depois de uma conversa que tive ontem com o Chefe de Tabanca, Luís, o qual me deixou a pensar, resolvi escrever este texto inspirado numa cena hoje vivida. Se merecer ter entrada no blogue, façam favor . abraço fraterno para tudo dgenti.
José Teixeira.
O QUE NOS DEVE UNIR COMO VETERANOS DE GUERRA (**)
por José Teixeira
É meu hábito, desde longa data, todos os sábados de manhã ir à feira de Custóias, [no concelho de Matosinhos,] abastecer-me de frutas e legumes.
Um dos feirantes, onde normalmente adquiro a fruta , bateu com os costados na Guiné. Soube-o há pouco tempo e desde então a nossa forma de estar e conversar modificou-se, para admiração dos seus dois filhos, já que minha esposa conhece o que a casa gasta. Desde os bons dias como "na pinda” ou "corpo di bó, o “vai no gosse” ou “manga di ronco” etc. Os rapazes devem legitimamente pensar que o pai estar "apanhado pelo clima”.
Neste sábado a conversa centrou-se nos locais por onde passámos e para alegria de ambos, Ingoré foi o nosso hotel por algum tempo, embora em épocas diferentes. Barro, Antotinha, Sedengal, Ingorezinho, etc nomes sonantes para nós, com aventuras pelo meio que logo começaram a ser contadas.
Continuando a nossa conversa/caminhada, deslocamo-nos para o Sul, onde Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Gandembel foram estrelas para mim que o meu amigo e camarada não chegou a conhecer.
A meu lado postou um possível comprador de fruta, o qual de repente e sem ninguém contar, começa a cantar:
Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira,
onde nós, pobres soldados,
imitamos as toupeiras...
Que espanto! Que alegria ! o meu coração já bailava ao som da cantiga, que tantas vezes cantei no terreno e ainda o ano passado foi show no Simpósio de Guiledge.
- Quem é você ?
- Um pára-quedista da Companhia 121, que esteve em Gandembel, Aldeia Formosa, Cantanhez na segunda metade de 1968.
Segui-se o rosário habitual das cenas vividas naquele inferno, algumas delas em comum, como a coluna que foi a Gandembel levar mantimentos com os Páras na mata a montar segurança e eu/nós na picada a levantar minas e fazer caminho, para que as viaturas carregadas pudessem chegar ao destino.
Que bela manhã de sábado !
Esta minha feliz vivência, quarenta e um anos depois, creio, vir a propósito perante o momento que a Tabanca Grande vive neste momento. Momento, no mínimo apreensivo, para quem cá anda desde 2005, quando estávamos a chegar aos cinquenta tertulianos. Desde essa data, leio avidamente tudo quanto aparece escrito, porque me diz muito. Fala-me de uma terra que é a minha segunda pátria. Também lá pus as minhas marcas; o meu Diário, escrito a quente e outras estórias que não couberam no diário, mas que ficaram gravadas no coração (*).
O desafio que nos é posto, simples e concreto – não deixes que sejam os outros a contar a tua História, por ti – é estimulante e pode vir a ter muito valor, se é que já não tem, na realidade histórica que os nossos vindouros vão querer saber no que respeita à guerra colonial.
Nós somos os actores da História que vivenciamos e temos condições para sermos os autores dessa mesma História. Isto é, as nossas estórias, serão a base verdadeira e real suporte para os historiadores, que no futuro farão da nossa estória, uma História de factos reais vividos e testemunhados e não uma lenda.
Ultimamente, o nosso blogue,(como o Moreira de Gandembel, recém-chegado, me dizia há dias pelo telefone) por intervenção de alguns camaradas, tem-se desviado do seu objectivo central, para se perder em questiúnculas estéreis, vazias de conteúdo histórico, atiçadas por paixões pessoais, de índole, politica, partidarites, e até militarites.
Assim, não fazemos/construímos a História, a nossa verdadeira história, vivida e sofrida de tal modo que ninguém conseguirá substituir-nos.
Basta-me o que vivi no terreno como escrevi no meu Diário:
Janeiro 1969 / Chamarra / 23
É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrém.
Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furrieis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.
Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer. (...)
Abril,1969 / Buba / 19
Pela primeira vez, num ano de guerra com diversos casos graves e mortais, vi camaradas meus serem varados por balas de armas manejadas por companheiros só porque já não se houve a voz da razão.
Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia e um Comando Africano, quando tomavam banho originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece está tudo louco.
Um Comando branco defendeu o Africano e alguns 'Fuzas' intrometeram-se. A coisa azedou e surgiu uma cena de pancadaria de que resultou algumas cabeças partidas e olhos negros. Aparece uma G 3 a vomitar uma rajada e quatro meros espectadores ficam gravemente feridos. Uma perna desfeita, um braço cortado e o mais grave veio a falecer com uma bala na cabeça. Foi este o resultado de uma simples discussão.
Eu estava de saída para o mato e mal vi os feridos. Pela primeira vez na minha vida de guerra, chorei. Lágrimas de raiva ... e de sangue.
Amigos e camaradas, contemos as nossas estórias sem as carregarmos com espartilhos, estribilhos e outros ilhos. Deixemos que a melancolia de um passado que não voltará, lhe dê um toque de romance, porque não! Mas não as sobrecarreguemos com as marcas que a vida que se seguiu, se encaixaram dentro de cada um de nós.
Sobretudo, saibamos, compreender os camaradas que, ao contar as suas estórias, reflectem uma visão ou pontos de vista diferentes dos nossos. Admitamos que eles viram e viveram os acontecimentos à sua maneira.
Não nos esqueçamos que somos todos iguais como homens, mas todos diferentes na essência, na educação, nas marcas que a vida nos foi deixando. São essas diferenças um enorme factor de riqueza que permitiu ao homem, nascer, crescer e caminhar no cosmos, promovendo a mudança e o crescimento, que nos permite esta forma de viver que ninguém sonhava há alguns anos atrás.
É essa diferença de pontos de vista sobre a mesma vivência, sem ataques pessoais que nos vai permitir uma visão de conjunto, mais realista, permitindo um crescimento cultural efectivo.
Há tanta coisa que nos une, porque havemos de alimentar e dar força a pequenas coisas /paixões que nos desunem, nos fazem sofrer e tiram valor à história que vivenciamos, a qual ninguém jamais nos poderá substituir.
Para todos um abraço fraterno do tamanho... Talvez da vida que vivemos.
José Teixeira
2. Comentário de L.G.:
Zé: Obrigado pela tua história de hoje... Tens um especial talento para fazer um bela história com pouca matéria-prima... Ou melhor, com dois ou três pequenos apontamentos ou observações. A tua ida, ontem, à feira de Custóias veio mostrar que, afinal, o mundo é pequeno e que o nosso blogue é...grande. À volta de coisas tão essenciais como a fruta e os legumes, fostes descobrir , por acaso, camaradas que andaram pelos mesmos sítios que tu, nos idos anos de 1968... E como foi genuína e bonita a manifestação das tuas emoções, do teu espanto e da tua alegria!...
Nem sempre os nossos familiares e amigos entendem esta capacidade de ainda nos emocionarmos, quarenta anos depois, ao encontrar alguém que passou pelos sítios que nós... durante a guerra da Guiné. Às vezes, até ficam com uma pontinha de ciúme pelos novos amigos que fazemos, os camaradas da Guiné...
Esse, é de facto, o maior denominador comum que nos une, a capacidade de falarmos uma linguagem comum como ex-combatentes, falarmos de coisas comuns, lugares, episódios, pessoas, emoções, experiências, que partilhamos uns com os outros...
Pessoalmente, não exijo mais deste blogue que criei, e que ajudo a alimentar todos os dias, com o talento, o apoio, o entusiasmo, a entrega, a paixão, a criatividade e a camaradagem de tanta gente fantástica como tu e os meus/nossos queridos co-editores, Carlos Vinhal, Virgínio Briote e Eduardo Magalhães...
Obrigado, meu Esquilo Sorridente! Que este blogue continue a proporcionar-te outros felizes encontros e a dar-te muitas outras alegrias... Julgo ser essa a sua missão primordial...
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 14 Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.
(**) 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4652: O mundo é pequeno e o nosso Blogue... é grande (14): O mundo é do tamanho duma ervilha (António Matos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 12 de julho de 2009
Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)
1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Coronel, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 6 de Julho de 2009:
Olá Camarada
Fiquei a saber que a filha do Beja Santos faleceu.
Que é que se diz nestas alturas? Num caso como este, não sei porquê, o melhor é nada dizer... Os que nos seguem de longe, quando se nos dirigem nestas alturas, dizem coisas... E eu não quero dizer coisas.
Pois eu escrevi um texto sobre os ex-combatentes no qual procuro saber Quem Somos? São quatro páginas a computador e, por isso, parece-me um pouco infuncional para o blog, pois vai ocupar um grande espaço e a malta terá dificuldade em lê-lo.
Que farei com este texto? Ora dá uma ideia e informa, como se dizia naquele tempo.
Um Ab do
António Costa
2. Cabe aqui uma pequena intervenção antes de apresentarmos o texto do nosso camarada A. Pereira da Costa.
Face a este depoimento, que podia ser igual ao que cada um de nós faria, se para o efeito tivesse a mesma arte e engenho, fica provado que temos tanto em comum, mesmo admitindo as divergências normais e salutares, que todos os conflitos criados recentemente, artificialmente talvez, empolados propositadamente, são insignificantes, comparado com aquilo que nos une.
Vamos definitivamente enterrar os machados, esquecer ou pelo menos desculpar os nossos camaradas que não pensam como nós, e de uma vez por todas deixar de utilizar palavras provocatórias e ofensivas. Problemas pessoais devem ser tratados por mail ou telefone, e nunca nos comentários.
Estou a falar por mim, não entrei para a Tabanca e muito menos para a edição do Blogue para ver a minha caixa de correio cheia de tricas. Quero trabalho, muito, mas construtivo. Para outra coisa, acreditem, não estou cá.
Optei por publicar o texto do nosso camarada por inteiro, porque o achei demasiado importante para o dividir. Leiam por favor, porque é muito importante e leva-nos a reflectir sobre o que foi o nosso passado.
C.V.
Quem somos nós?António J. Pereira da Costa
Afinal quem somos nós, os ex-combatentes, como hoje, se diz?
Primeiro, interroguemo-nos acerca das razões que nos levaram a participar numa guerra, chame-se ela colonial, do ultramar ou de África. O nome é o menos importante e não deve constituir motivo de discussão. O que verdadeiramente interessa é o que se passou, o que fizemos ou não fizemos, porque fizemos isto e não aquilo, o que estava à nossa volta, quer fossem outros compatriotas, o inimigo, a terra ou clima. Por mim, não me restam dúvidas de que participámos na História do nosso país de um modo com que todos tínhamos sonhado, ao aprendermos a nossa História, nos bancos da escola, mas também nunca tínhamos pensado que pudesse acontecer.
Nós que, de vez em quando, em tantos sítios do país e às vezes no estrangeiro, nos reunimos para conviver, temos, como denominador comum, um tempo que passámos em África – mais ou menos dois anos – pouco tempo numa vida inteira e numa situação que, quando terminámos a escola primária, nem sonhávamos que pudesse ocorrer. Pouco tempo depois do fim da escola, fomos surpreendidos por alguma coisa que acontecia naquilo que tínhamos estudado como sendo parte integrante do nosso país e que nem sequer imaginávamos que contornos podia ter. Quantos de nós conheceriam a África? E se era nossa? De quem? Nossa mesmo? E era-o como e porquê? Como exercíamos essa posse? No fundo, nunca tínhamos pensado no assunto. Éramos uma comunidade una, mas dispersa? Ou simplesmente um conjunto de territórios povoados por povos diferentes? De países, em última análise...
Começara a guerra, dizia-se.
Os governantes do tempo procuravam reduzi-la a simples operações contra terroristas infiltrados a partir dos países limítrofes, bandoleiros, tresloucados etc. quase como se fossem operações de polícia. Porém, ainda hoje não tenho conhecimento de qualquer ofensiva diplomática ou protesto, junto das instâncias internacionais, por parte do governo português, para que o apoio estrangeiro aos tais terroristas terminasse. Era o mínimo que se exigia.
Começamos hoje a não ter dúvidas de que se tratava de um fenómeno sociológico previsível e previsto por vários visitantes e residentes naquelas terras, que observaram o que se passava e se aperceberam do aumento das tensões entre os diferentes grupos sociais: mais ou menos pobres, mais ou menos detentores ou condicionadores do funcionamento dos meios de produção. Se a isto juntarmos as diferenças rácicas e as tensões acumuladas, ao longo de séculos, temos uma mistura explosiva que, só poderia ter sido evitada com algo que se não fez antes e que, quando se pretendeu fazer era tarde demais: o desenvolvimento económico e social e a integração. Os que anunciaram que havia perigo ficaram mal vistos e foram tidos como mensageiros da desgraça, às vezes mesmo como elementos perturbadores, interessados em desequilibrar o país e as suas instituições, espiões, quase. Não há dúvida de que o pior cego é o que não quer ver.
Infelizmente, a ciência, mesmo quando não é exacta, não deixa de ser ciência e de prever as consequências dos factos que vão acontecendo. É inutil fingir que se ignora que as sociedades funcionam num processo dinâmico e que a repressão a esse processo sempre deu mal resultado.
Não sabíamos que era assim, mas aquilo a que a dada altura passámos a chamar guerra era afinal, consequência de um domínio virado para a exploração de recursos, naturais ou não, e dos primitivos habitantes daquelas terras. Se os primeiros servem mesmo para isso mesmo, a exploração e ao mau trato aos segundos revela-se, a prazo, uma fonte de tensão que, neste caso, terminou numa revolta, com largo apoio no exterior mercê da conjuntura internacional favorável, mas com larga implantação na população, como vimos à chegada à Guiné.
Éramos assim, uma espécie de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio numa floresta, batida com vento forte. Era um incêndio que tinha por onde arder e boas condições para lavrar. Podem crer que, desde a primeira hora, a guerra estava perdida.
Com a idade que tínhamos quando ela começou, os nossos pais, só tarde, começaram a pensar que a sorte também nos iria tocar.
Que fazer então quando, à data de embarque, a guerra era velha de dez anos e nós jovens com pouco mais de vinte?
Havia, como se lembram, os muitos que já tinham ido e voltado – amigos e conhecidos – e que nos davam a ideia de que afinal as coisas não seriam assim tão más. Poderíamos correr o risco.
A opção não era fácil. As escolhas, quase desconhecidas. Vivíamos num país atrasado e todos os que vieram a emigrar ou os poucos que então visitaram o estrangeiro sabem do que falo. As diferenças que encontrávamos falavam por si. Estávamos encurralados entre dois fogos. Se, por um lado, a incerteza da guerra se aproximava – e hoje todos entendem o que digo – por outro, a certeza da impossibilidade de ficar, era um dado a que não podíamos fugir. Entre as duas soluções, só o diabo sabia escolher. Quantos de nós pensámos na outra solução?... Quantos de nós pensámos em fugir? Quantas vezes não nos arrependemos de não o termos feito?
Fugir. Aqui estava outra expressão que a nós, homens de bem e bem formados, repugnava. Tudo aquilo que pudesse ser confundido com fugir não era para os homens da nossa geração. Mas as coisas não são assim tão simples e fugir pode ser um acto de valentia, quando se sabe, porquê. Quando se recusa fazer algo, arrostando com as consequências que, às vezes, nem adivinhamos quais possam vir a ser, entrando numa espécie de opção “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”, então fugir é um acto de valentia que pode exigir maior integridade moral do que aceitar passivamente o destino comum.
Vale a pena voltarmos a pensar nos que tinham ido e voltado. Por estranho que pareça, à chegada, eles pareciam ter esquecido tudo. Não falavam do que tinham vivido. Não procuravam passar-nos – como se tal fosse possível – a sua experiência. Não nos aconselhavam, nem nos desaconselhavam. Partiam para a sua vida com a ânsia de quem tinha perdido tempo e agora só pensavam em começar a viver.
Hoje não temos dificuldade em compreender a atitude destes camaradas.
A sociedade, à chegada, não lhes reconhecia o mínimo valor. Eram um corpo estranho que lembrava aos políticos a sua incapacidade, teimosia e intransigência. À sociedade relembravam um problema que ela tinha, mas que não sabia como resolver e, por isso, deixava o tempo passar e o problema agudizar-se.
E se voltavam deficientes, estavam condenados a sobreviver.
Desde aqueles que ficaram depositados numa cama ou numa cadeira de rodas, sobrecarregando a família e sofrendo o esquecimento dos amigos, até àqueles que conseguiram, sabe-se lá com que esforço e vencendo que combates, progredir na vida, parecendo esquecer-se do que lhes tinha sucedido. Não podiam. No fundo, não lhes era fácil recordar, ao fim de cada dia, que lhes faltava um bocado do corpo.
E os que por lá se tinham perdido, caídos nas mãos do inimigo e sofrendo, na prisão, uma culpa que não sabiam se tinham? E aqueles a quem a família não teve outro remédio senão esquecer, apagados na sequência dos dias? As mães, os pais, as esposas, os irmãos ou um outro amigo ainda os procuravam, de vez em quando, no local do último repouso, mas depois...
Depois... o resto já todos sabemos. A vida é isso mesmo e não há nada a fazer.
Enfim chegou a nossa vez.
– “Se os outros foram e voltaram, eu também poderei ir e voltar” – era um dos nossos pensamentos.
– “E até pode ser que não seja bem assim. Pode ser que o sítio não seja mau e que o tempo passe depressa. No fundo são só dois anos” – dizíamos também.
– “Tenho fé de que comigo vai ser diferente” – pensávamos para nos animarmos.
À chegada, o choque foi grande. O desembarque numa cidade militar e num teatro de operações não tinha nada a ver com a simples chegada a um país que não era o nosso. Era o mergulhar num desconhecido, que se mostrava cada vez mais soturno e dramaticamente enigmático, à medida que trocávamos impressões com os veteranos. Alguns, poucos, pareciam ter ganho a guerra. Outros revoltavam-se. Outros aceitavam a sua sorte como algo que não podia ser modificado. A confusão no nosso espírito era grande. Todavia, numa coisa estávamos todos de acordo: aquilo era outra terra e – porque não dizê-lo? – outro país. Deixada para trás a cidade, a vida no quartel do mato, numa localidade pequena do interior, em que os camponeses nos eram estranhos, não falavam a nossa língua, não cultivavam a terra como nós e tinham hábitos de que só vagamente tínhamos ouvido falar, era algo que nos paralisava.
Quem eram? O que queriam? De que lado estavam e porquê? Se recusavam a protecção e a ligação ao inimigo, preferindo o nosso apoio e colaborando com a nossa acção, tendo nascido e sempre vivido ali, quais seriam as razões para tal? Estas talvez fossem questões que não púnhamos, ao princípio, mas que ao fim dos primeiros tempos de acção, com as primeiras horas de mato feitas e a recepção das diferentes notícias do inimigo começaram a preocupar-nos.
O tempo escorria no calendário, com as operações – quem não se lembra das emboscadas, quando o tempo não passa? – as tarefas monótonas de cada dia e as notícias ou a falta delas dos nossos, a quem tínhamos de escrever, contando verdades ou mentindo, consoante entendêssemos que era melhor para o destinatário.
Começávamos a ser cada vez mais experientes e fazer uma ideia do que se passava à nossa volta. Envelhecíamos, sem darmos por isso. Sabíamos agora mais o que era importante na vida. As amizades ganhas nas horas de incerteza, o contacto próximo e diário com outros – civis e militares – as tarefas desempenhadas em equipa. Numa palavra: amadurecíamos. Claro que poderíamos questionar se, para amadurecermos, seria necessário expormo-nos assim e virmos para tão longe.
Mas afinal quem éramos? Cidadãos-patriotas? Soldados-heróis? Acomodados à espera que o tempo passasse e jogando na lotaria do “não há-de ser nada!” como então se dizia?
Talvez uma mistura de tudo isto. Hoje, se regressarmos ao passado, havemos de encontrar muitos momentos em que fomos tudo aquilo e muito mais a que a vida impiedosamente nos obrigava. Estávamos ali, sem podermos alterar drasticamente a nossa situação e, mesmo assim ficávamos. Entregues ao fluir do tempo, sabíamos que a sua contagem decrescente corria a nosso favor e, até lá, havíamos de nos aguentar. É certo que alguns dos nossos camaradas... Mas... connosco havia de ser diferente! Era a nossa convicção. E foi assim, felizmente.
Passámos a alegria breve do regresso, a inserção no mundo do trabalho e a constituição de família. Tal como os nossos antecessores, sofremos a incapacidade de transmitir, mesmo aos que nos são muito próximos, o que tínhamos passado. Sentimos a frustração de não sermos ouvidos, e o desinteresse dos outros, perante a nossa mensagem e, por fim, a necessidade de, a bem da nossa saúde mental, esquecermos o sucedido. Isso levou-nos a evitar falar do que tínhamos passado. Era coisa “para esquecer”. Agora era necessário viver e desfrutar da luta diária da vida, no fundo a razão pela qual os Homens vivem.
A vida foi correndo e a curiosidade em sabermos o que seria feito deste camarada que nos ajudou nesta ou naquela situação, daquele a quem apoiámos num momento em que se foi abaixo ou daquele outro que se tornou notado num episódio cómico, que a todos fez rir. Primeiro a curiosidade, depois as saudades e, por fim uma vontade irresistível de recordar. Ficamos velhos. E os velhos têm necessidade de recordar para se sentirem gente ao contemplarem a vida. Daí aos convívios foi um passo. Mas, afinal porque nos irmanamos à volta de uma mesa?
Porque todos temos em comum o facto de termos sido os homens que estavam na esquina errada da História. Fomos apanhados num turbilhão e não pudemos fazer nada para sair dele. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo.
Há quem diga que cada homem é ele próprio mais as suas circunstâncias. As nossas foram estas. Bem difíceis, temos que concordar. Sobrevivemos e demos a nossa contribuição, modesta como é sempre é a dos homens do povo feitos soldados. A História só muito excepcionalmente recordará os nossos nomes, numa pequena rua da nossa terra natal. Para que serviu o que fizemos? Não sabemos. Talvez para pouco. Se calhar não passou de um esforço inútil, ao qual fomos coagidos, sem qualquer espécie de fuga. Custa, mas teremos que o admitir, mais tarde ou mais cedo.
Estamos condenados ao esquecimento que o tempo sempre traz, mas, enquanto pudermos, havemos de lutar contra isso. Temos de deixar a nossa assinatura na marcha do tempo. Toca-nos procurar passar aos vindouros uma mensagem. Qual é ela? Será de paz? Há quem diga que os ex-soldados são sempre os mais ardentes pacifistas. Pacifistas pela análise fria e pausada do que sucedeu, mas não medrosos. E, se o futuro perguntar, a nossa resposta será sempre sim ou não, mas, desta vez, convicta e justificada.
Creio que devemos sentir-nos orgulhosos. Passámos por uma prova que, esperemos, não se repetirá tão depressa. E quem sabe? A nossa própria experiência demonstra claramente a margem de incerteza que sempre marca a vida dos povos. Vencemos a prova. Mal ou bem, mas vencemo-la. Não temos hoje nada para provar a ninguém nem podemos aceitar que nos censurem por aquilo que fizemos.
Fizemos uma guerra pobre. Era pobre a nossa logística e os meios operacionais escassos, como se lembram. Faltava muitas vezes o essencial. Tive sob o meu comando um soldado que lhe chamava “a guerra a petróleo”, por semelhança com os fogareiros da nossa meninice que usavam aquele combustível. Os meios do inimigo, como se recordam, evoluíam a olhos vistos. As guerras ou se perdem ou se ganham. E nós perdemos. Perdemo-la, sim. E depois? Alguém esperava ganhá-la? Ninguém. Nem os que a aprovavam naquele tempo, nem os que hoje, por preconceito, saudosismo ou desonestidade intelectual, afirmam que a poderíamos e deveríamos ter ganho.
Nós perdemos porque fomos lá. E só quem ali viveu sabe o que é ganhar e perder.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2341: Siga a Marinha que o Exército já lá está (Coronel Pereira da Costa)
Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)
Olá Camarada
Fiquei a saber que a filha do Beja Santos faleceu.
Que é que se diz nestas alturas? Num caso como este, não sei porquê, o melhor é nada dizer... Os que nos seguem de longe, quando se nos dirigem nestas alturas, dizem coisas... E eu não quero dizer coisas.
Pois eu escrevi um texto sobre os ex-combatentes no qual procuro saber Quem Somos? São quatro páginas a computador e, por isso, parece-me um pouco infuncional para o blog, pois vai ocupar um grande espaço e a malta terá dificuldade em lê-lo.
Que farei com este texto? Ora dá uma ideia e informa, como se dizia naquele tempo.
Um Ab do
António Costa
2. Cabe aqui uma pequena intervenção antes de apresentarmos o texto do nosso camarada A. Pereira da Costa.
Face a este depoimento, que podia ser igual ao que cada um de nós faria, se para o efeito tivesse a mesma arte e engenho, fica provado que temos tanto em comum, mesmo admitindo as divergências normais e salutares, que todos os conflitos criados recentemente, artificialmente talvez, empolados propositadamente, são insignificantes, comparado com aquilo que nos une.
Vamos definitivamente enterrar os machados, esquecer ou pelo menos desculpar os nossos camaradas que não pensam como nós, e de uma vez por todas deixar de utilizar palavras provocatórias e ofensivas. Problemas pessoais devem ser tratados por mail ou telefone, e nunca nos comentários.
Estou a falar por mim, não entrei para a Tabanca e muito menos para a edição do Blogue para ver a minha caixa de correio cheia de tricas. Quero trabalho, muito, mas construtivo. Para outra coisa, acreditem, não estou cá.
Optei por publicar o texto do nosso camarada por inteiro, porque o achei demasiado importante para o dividir. Leiam por favor, porque é muito importante e leva-nos a reflectir sobre o que foi o nosso passado.
C.V.
Quem somos nós?António J. Pereira da Costa
Afinal quem somos nós, os ex-combatentes, como hoje, se diz?
Primeiro, interroguemo-nos acerca das razões que nos levaram a participar numa guerra, chame-se ela colonial, do ultramar ou de África. O nome é o menos importante e não deve constituir motivo de discussão. O que verdadeiramente interessa é o que se passou, o que fizemos ou não fizemos, porque fizemos isto e não aquilo, o que estava à nossa volta, quer fossem outros compatriotas, o inimigo, a terra ou clima. Por mim, não me restam dúvidas de que participámos na História do nosso país de um modo com que todos tínhamos sonhado, ao aprendermos a nossa História, nos bancos da escola, mas também nunca tínhamos pensado que pudesse acontecer.
Nós que, de vez em quando, em tantos sítios do país e às vezes no estrangeiro, nos reunimos para conviver, temos, como denominador comum, um tempo que passámos em África – mais ou menos dois anos – pouco tempo numa vida inteira e numa situação que, quando terminámos a escola primária, nem sonhávamos que pudesse ocorrer. Pouco tempo depois do fim da escola, fomos surpreendidos por alguma coisa que acontecia naquilo que tínhamos estudado como sendo parte integrante do nosso país e que nem sequer imaginávamos que contornos podia ter. Quantos de nós conheceriam a África? E se era nossa? De quem? Nossa mesmo? E era-o como e porquê? Como exercíamos essa posse? No fundo, nunca tínhamos pensado no assunto. Éramos uma comunidade una, mas dispersa? Ou simplesmente um conjunto de territórios povoados por povos diferentes? De países, em última análise...
Começara a guerra, dizia-se.
Os governantes do tempo procuravam reduzi-la a simples operações contra terroristas infiltrados a partir dos países limítrofes, bandoleiros, tresloucados etc. quase como se fossem operações de polícia. Porém, ainda hoje não tenho conhecimento de qualquer ofensiva diplomática ou protesto, junto das instâncias internacionais, por parte do governo português, para que o apoio estrangeiro aos tais terroristas terminasse. Era o mínimo que se exigia.
Começamos hoje a não ter dúvidas de que se tratava de um fenómeno sociológico previsível e previsto por vários visitantes e residentes naquelas terras, que observaram o que se passava e se aperceberam do aumento das tensões entre os diferentes grupos sociais: mais ou menos pobres, mais ou menos detentores ou condicionadores do funcionamento dos meios de produção. Se a isto juntarmos as diferenças rácicas e as tensões acumuladas, ao longo de séculos, temos uma mistura explosiva que, só poderia ter sido evitada com algo que se não fez antes e que, quando se pretendeu fazer era tarde demais: o desenvolvimento económico e social e a integração. Os que anunciaram que havia perigo ficaram mal vistos e foram tidos como mensageiros da desgraça, às vezes mesmo como elementos perturbadores, interessados em desequilibrar o país e as suas instituições, espiões, quase. Não há dúvida de que o pior cego é o que não quer ver.
Infelizmente, a ciência, mesmo quando não é exacta, não deixa de ser ciência e de prever as consequências dos factos que vão acontecendo. É inutil fingir que se ignora que as sociedades funcionam num processo dinâmico e que a repressão a esse processo sempre deu mal resultado.
Não sabíamos que era assim, mas aquilo a que a dada altura passámos a chamar guerra era afinal, consequência de um domínio virado para a exploração de recursos, naturais ou não, e dos primitivos habitantes daquelas terras. Se os primeiros servem mesmo para isso mesmo, a exploração e ao mau trato aos segundos revela-se, a prazo, uma fonte de tensão que, neste caso, terminou numa revolta, com largo apoio no exterior mercê da conjuntura internacional favorável, mas com larga implantação na população, como vimos à chegada à Guiné.
Éramos assim, uma espécie de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio numa floresta, batida com vento forte. Era um incêndio que tinha por onde arder e boas condições para lavrar. Podem crer que, desde a primeira hora, a guerra estava perdida.
Com a idade que tínhamos quando ela começou, os nossos pais, só tarde, começaram a pensar que a sorte também nos iria tocar.
Que fazer então quando, à data de embarque, a guerra era velha de dez anos e nós jovens com pouco mais de vinte?
Havia, como se lembram, os muitos que já tinham ido e voltado – amigos e conhecidos – e que nos davam a ideia de que afinal as coisas não seriam assim tão más. Poderíamos correr o risco.
A opção não era fácil. As escolhas, quase desconhecidas. Vivíamos num país atrasado e todos os que vieram a emigrar ou os poucos que então visitaram o estrangeiro sabem do que falo. As diferenças que encontrávamos falavam por si. Estávamos encurralados entre dois fogos. Se, por um lado, a incerteza da guerra se aproximava – e hoje todos entendem o que digo – por outro, a certeza da impossibilidade de ficar, era um dado a que não podíamos fugir. Entre as duas soluções, só o diabo sabia escolher. Quantos de nós pensámos na outra solução?... Quantos de nós pensámos em fugir? Quantas vezes não nos arrependemos de não o termos feito?
Fugir. Aqui estava outra expressão que a nós, homens de bem e bem formados, repugnava. Tudo aquilo que pudesse ser confundido com fugir não era para os homens da nossa geração. Mas as coisas não são assim tão simples e fugir pode ser um acto de valentia, quando se sabe, porquê. Quando se recusa fazer algo, arrostando com as consequências que, às vezes, nem adivinhamos quais possam vir a ser, entrando numa espécie de opção “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”, então fugir é um acto de valentia que pode exigir maior integridade moral do que aceitar passivamente o destino comum.
Vale a pena voltarmos a pensar nos que tinham ido e voltado. Por estranho que pareça, à chegada, eles pareciam ter esquecido tudo. Não falavam do que tinham vivido. Não procuravam passar-nos – como se tal fosse possível – a sua experiência. Não nos aconselhavam, nem nos desaconselhavam. Partiam para a sua vida com a ânsia de quem tinha perdido tempo e agora só pensavam em começar a viver.
Hoje não temos dificuldade em compreender a atitude destes camaradas.
A sociedade, à chegada, não lhes reconhecia o mínimo valor. Eram um corpo estranho que lembrava aos políticos a sua incapacidade, teimosia e intransigência. À sociedade relembravam um problema que ela tinha, mas que não sabia como resolver e, por isso, deixava o tempo passar e o problema agudizar-se.
E se voltavam deficientes, estavam condenados a sobreviver.
Desde aqueles que ficaram depositados numa cama ou numa cadeira de rodas, sobrecarregando a família e sofrendo o esquecimento dos amigos, até àqueles que conseguiram, sabe-se lá com que esforço e vencendo que combates, progredir na vida, parecendo esquecer-se do que lhes tinha sucedido. Não podiam. No fundo, não lhes era fácil recordar, ao fim de cada dia, que lhes faltava um bocado do corpo.
E os que por lá se tinham perdido, caídos nas mãos do inimigo e sofrendo, na prisão, uma culpa que não sabiam se tinham? E aqueles a quem a família não teve outro remédio senão esquecer, apagados na sequência dos dias? As mães, os pais, as esposas, os irmãos ou um outro amigo ainda os procuravam, de vez em quando, no local do último repouso, mas depois...
Depois... o resto já todos sabemos. A vida é isso mesmo e não há nada a fazer.
Enfim chegou a nossa vez.
– “Se os outros foram e voltaram, eu também poderei ir e voltar” – era um dos nossos pensamentos.
– “E até pode ser que não seja bem assim. Pode ser que o sítio não seja mau e que o tempo passe depressa. No fundo são só dois anos” – dizíamos também.
– “Tenho fé de que comigo vai ser diferente” – pensávamos para nos animarmos.
À chegada, o choque foi grande. O desembarque numa cidade militar e num teatro de operações não tinha nada a ver com a simples chegada a um país que não era o nosso. Era o mergulhar num desconhecido, que se mostrava cada vez mais soturno e dramaticamente enigmático, à medida que trocávamos impressões com os veteranos. Alguns, poucos, pareciam ter ganho a guerra. Outros revoltavam-se. Outros aceitavam a sua sorte como algo que não podia ser modificado. A confusão no nosso espírito era grande. Todavia, numa coisa estávamos todos de acordo: aquilo era outra terra e – porque não dizê-lo? – outro país. Deixada para trás a cidade, a vida no quartel do mato, numa localidade pequena do interior, em que os camponeses nos eram estranhos, não falavam a nossa língua, não cultivavam a terra como nós e tinham hábitos de que só vagamente tínhamos ouvido falar, era algo que nos paralisava.
Quem eram? O que queriam? De que lado estavam e porquê? Se recusavam a protecção e a ligação ao inimigo, preferindo o nosso apoio e colaborando com a nossa acção, tendo nascido e sempre vivido ali, quais seriam as razões para tal? Estas talvez fossem questões que não púnhamos, ao princípio, mas que ao fim dos primeiros tempos de acção, com as primeiras horas de mato feitas e a recepção das diferentes notícias do inimigo começaram a preocupar-nos.
O tempo escorria no calendário, com as operações – quem não se lembra das emboscadas, quando o tempo não passa? – as tarefas monótonas de cada dia e as notícias ou a falta delas dos nossos, a quem tínhamos de escrever, contando verdades ou mentindo, consoante entendêssemos que era melhor para o destinatário.
Começávamos a ser cada vez mais experientes e fazer uma ideia do que se passava à nossa volta. Envelhecíamos, sem darmos por isso. Sabíamos agora mais o que era importante na vida. As amizades ganhas nas horas de incerteza, o contacto próximo e diário com outros – civis e militares – as tarefas desempenhadas em equipa. Numa palavra: amadurecíamos. Claro que poderíamos questionar se, para amadurecermos, seria necessário expormo-nos assim e virmos para tão longe.
Mas afinal quem éramos? Cidadãos-patriotas? Soldados-heróis? Acomodados à espera que o tempo passasse e jogando na lotaria do “não há-de ser nada!” como então se dizia?
Talvez uma mistura de tudo isto. Hoje, se regressarmos ao passado, havemos de encontrar muitos momentos em que fomos tudo aquilo e muito mais a que a vida impiedosamente nos obrigava. Estávamos ali, sem podermos alterar drasticamente a nossa situação e, mesmo assim ficávamos. Entregues ao fluir do tempo, sabíamos que a sua contagem decrescente corria a nosso favor e, até lá, havíamos de nos aguentar. É certo que alguns dos nossos camaradas... Mas... connosco havia de ser diferente! Era a nossa convicção. E foi assim, felizmente.
Passámos a alegria breve do regresso, a inserção no mundo do trabalho e a constituição de família. Tal como os nossos antecessores, sofremos a incapacidade de transmitir, mesmo aos que nos são muito próximos, o que tínhamos passado. Sentimos a frustração de não sermos ouvidos, e o desinteresse dos outros, perante a nossa mensagem e, por fim, a necessidade de, a bem da nossa saúde mental, esquecermos o sucedido. Isso levou-nos a evitar falar do que tínhamos passado. Era coisa “para esquecer”. Agora era necessário viver e desfrutar da luta diária da vida, no fundo a razão pela qual os Homens vivem.
A vida foi correndo e a curiosidade em sabermos o que seria feito deste camarada que nos ajudou nesta ou naquela situação, daquele a quem apoiámos num momento em que se foi abaixo ou daquele outro que se tornou notado num episódio cómico, que a todos fez rir. Primeiro a curiosidade, depois as saudades e, por fim uma vontade irresistível de recordar. Ficamos velhos. E os velhos têm necessidade de recordar para se sentirem gente ao contemplarem a vida. Daí aos convívios foi um passo. Mas, afinal porque nos irmanamos à volta de uma mesa?
Porque todos temos em comum o facto de termos sido os homens que estavam na esquina errada da História. Fomos apanhados num turbilhão e não pudemos fazer nada para sair dele. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo.
Há quem diga que cada homem é ele próprio mais as suas circunstâncias. As nossas foram estas. Bem difíceis, temos que concordar. Sobrevivemos e demos a nossa contribuição, modesta como é sempre é a dos homens do povo feitos soldados. A História só muito excepcionalmente recordará os nossos nomes, numa pequena rua da nossa terra natal. Para que serviu o que fizemos? Não sabemos. Talvez para pouco. Se calhar não passou de um esforço inútil, ao qual fomos coagidos, sem qualquer espécie de fuga. Custa, mas teremos que o admitir, mais tarde ou mais cedo.
Estamos condenados ao esquecimento que o tempo sempre traz, mas, enquanto pudermos, havemos de lutar contra isso. Temos de deixar a nossa assinatura na marcha do tempo. Toca-nos procurar passar aos vindouros uma mensagem. Qual é ela? Será de paz? Há quem diga que os ex-soldados são sempre os mais ardentes pacifistas. Pacifistas pela análise fria e pausada do que sucedeu, mas não medrosos. E, se o futuro perguntar, a nossa resposta será sempre sim ou não, mas, desta vez, convicta e justificada.
Creio que devemos sentir-nos orgulhosos. Passámos por uma prova que, esperemos, não se repetirá tão depressa. E quem sabe? A nossa própria experiência demonstra claramente a margem de incerteza que sempre marca a vida dos povos. Vencemos a prova. Mal ou bem, mas vencemo-la. Não temos hoje nada para provar a ninguém nem podemos aceitar que nos censurem por aquilo que fizemos.
Fizemos uma guerra pobre. Era pobre a nossa logística e os meios operacionais escassos, como se lembram. Faltava muitas vezes o essencial. Tive sob o meu comando um soldado que lhe chamava “a guerra a petróleo”, por semelhança com os fogareiros da nossa meninice que usavam aquele combustível. Os meios do inimigo, como se recordam, evoluíam a olhos vistos. As guerras ou se perdem ou se ganham. E nós perdemos. Perdemo-la, sim. E depois? Alguém esperava ganhá-la? Ninguém. Nem os que a aprovavam naquele tempo, nem os que hoje, por preconceito, saudosismo ou desonestidade intelectual, afirmam que a poderíamos e deveríamos ter ganho.
Nós perdemos porque fomos lá. E só quem ali viveu sabe o que é ganhar e perder.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2341: Siga a Marinha que o Exército já lá está (Coronel Pereira da Costa)
Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)
sábado, 11 de julho de 2009
Guiné 63/74 - P4671: Histórias de José Marques Ferreira (2): Domingos – A Mascote da minha CCAÇ 462
1. Mensagem de José Marques Ferreira, ex-Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, com data de 11 de Julho de 2009:
Camaradas,
Hoje, passados todos estes anos, quando quero escrever uma estória sobre o Domingos, faltam-me as palavras, os verbos e é difícil juntar as sílabas.
Ainda me estão a martelar no cérebro as palavras escritas pelo Engº Pedro Moço, funcionário de uma empresa do grupo Soares da Costa, que, recordo o que disse em tempos, esteve 18 meses na Guiné, fazendo parte da equipa que dirigiu a construção da ponte “Euro-Africana”, que para nós será sempre a ponte (onde foi jangada) de S. Vicente.
Dizia então o Pedro:
"Penso que qualquer cidadão europeu devia viver em África, pelo menos 6 meses, para poder dar valor ao que tem disponível no seu país, coisas que para qualquer europeu são banais, tais como, o direito à saúde, educação, o poder dispor de electricidade, água potável, etc., etc. Aqui nada existe, a não ser a tentativa de sobrevivência do dia-a-dia.
Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação, na educação, dói o tipo de vida resignada, dói que a única solução seja emigrar, ainda que precariamente. Dói que o eldorado esteja sempre do lado de lá. Dói pensar nas desilusões de quem passa para o lado de lá e encontra o que não esperava. Dói a ausência de futuro e de estratégias de desenvolvimento. Dói que se morra de “coisas da Guiné”, espécie de doença generalista que agrupa tudo o que mata e se desconhece."
Vamos à história.
O DOMINGOS – UMA CRIANÇA SOLDADO
O Domingos era uma criança, em 1964, de estatura normal para os seus cinco, seis anos (talvez nem tantos na altura), os olhitos pareciam estar em permanente melancolia (como os de muitos putos guineenses), mas já o seu porte e presença eram um tanto diferentes.
O Domingos, fazendo fé nas recordações um tanto esfumadas, porque o tempo não perdoa e não é eterna a sua permanência nas minhas memórias cerebrais, começou a aparecer com a mãe, que lavava a roupa de alguns camaradas nossos, o que, como sabemos, constituía mais alguma fonte de sobrevivência para a família.
Ingoré - Edifíco de Comando
Tantas vezes lá foi que começou a ter contacto mais directo com os militares que, pelo seu feitio e postura simpáticas, eram afáveis para aquela criança de tenra idade. Ficou lá connosco um dia, depois outro e outro...
Todos o acarinhavam e brincavam com ele, e o Domingos ia demonstrando alguma sociabilidade, retribuindo simpaticamente com as peripécias próprias das crianças, o trato que lhe ia sendo dispensado.
Até que, para não alongar mais esta “lengalenga”, o Domingos foi adoptado, oficialmente, como mascote da CCAÇ 462. Passou a ter uma farda verde igual à nossa, com excepção do camuflado e do vestuário de trabalho. Comia connosco, e durante muito tempo, chegou a dormir na nossa caserna, tal como todos nós. Os pais sabiam desta situação, o comandante da Companhia também. Já fazia parte da nossa "família".
Por isso, as palavras do Engº Pedro Moço e que peço, voltem agora atrás e, releiam o primeiro parágrafo.Muitos de nós, estejamos onde estivermos hoje, lembramo-nos com certeza que conhecemos e convivemos com muitos simpáticos e afáveis Domingos, por toda a Guiné, e sei que, como eu, ficarão doentes ao lerem esta infeliz realidade: «Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação e na educação…»
Ao fim de dezasseis meses, a minha companhia foi “embalada” e enviada para Bula, pelo que perdemos o rasto do Domingos. Continuamos sem o ver quando fomos ocupar, pela primeira vez, o território de Có, Ponate, Jolmete e Pelundo.
E perdemos-lhe completamente o rasto, quando destas localidades seguimos para Mansoa.
Nunca mais soube nada do Domingos, aquele puto simpático e meigo, de olhar melancólico, que viveu connosco durante vários e saudosos meses.
Um dia, a Guiné tal como a conhecemos então, acabou para a nossa companhia, pois regressamos a casa no paquete Niassa…
Do Domingos ficou-me as naturais saudades do seu sorriso e traquinices, e a única foto que tenho dele…
Na foto podemos ver o Domingos sentado no chão, entretido a colcocar um capacete na cabeça.
Fotos: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
Um abraço,
José M. Ferreira
____________
Notas de M.R.:
(**) Vd. último poste da série em:
Guiné 63/74 - P4670: Álbum de memórias de Bafatá, 1968/70 (1): Bafatá, álbum de memórias (Regina Gouveia)
1. No decorrer do IV Encontro Nacional do nosso blogue, e m 20 de Junho passado, na Quinta do Paul, Ortigosa, Luís Graça convidou o novo membro desta nossa Tabanca Grande, Regina Gouveia, esposa do nosso Camarada Fernando Gouveia, que cumpriu a sua comissão em Bafatá, 1968/70, como Alf Mil Pel Rec Inf, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá, que na altura era comandado pelo Cor Hélio Felgas (já falecido), a escrever, para o nosso blogue, histórias desse tempo... aqui está a primeira:
Foi o que a Regina fez e aqui está mais um excelente e bem contada história:
Caro Luís Graça,
As partidas que a Internet nos prega…
Fiquei perfeitamente estupefacta ao ver o meu currículo exposto no Blog. Nele não consta, nem podia constar, qualquer actividade minha no âmbito da fotografia. Esse pelouro é do Fernando…
Em tempos escrevi um conto baseado nas minhas vivências na Guiné. Agora, fazendo o percurso contrário, escrevi um texto, depurando do conto apenas as referidas vivências. É o que agora te envio.
Um abraço.
A Regina, na tabanca da Rocha em Bafatá onde morámos - 1969
Bafatá: álbum de memórias
Agosto de 1969. Sobrevoo o Atlântico com destino a Bissau. O meu baptismo de voo. O avião fez escala no Sal e ainda tenho a sensação da extrema humidade que me envolveu quando saí do avião.
Agora, por sobre as nuvens, vejo o sol nascer. Gostaria de ter “engenho e arte” para descrever quão fantástico é este espectáculo.
Cá estou eu, de novo perdida nas minhas longínquas recordações.
É certo que recordo muitas vezes as minhas duas idas à Guiné. Por vezes, basta-me olhar para o pano, em tons de azul, que tenho na parede ao cimo das escadas que levam ao 2º andar, ou para as fotos no álbum, ou ainda para a bilha de Teixeira Pinto ou para o cesto de Contubuel. Mas desta vez as lembranças invadiram-me com uma intensidade inusitada.
Bilha de Teixeira Pinto
Cesto de Contuboel com a árvore de Natal de 1969 na nossa casa em Bafatá
O avião acaba de aterrar. Já vejo o Fernando, na sua farda de alferes, alferes miliciano por força da guerra cujo espectro paira, como espada de Demóstenes, sobre a cabeça de todos os jovens varões.
Pensou ainda em fugir, como tantos outros fizeram, mas foi adiando a decisão e acabou por se ver embarcado no navio Ana Mafalda com destino à Guiné. Felizmente foi mobilizado para Bafatá, onde praticamente não havia guerra, embora o obus de Piche, que se ouvia ribombar todos os dias, se encarregasse de lembrar quão sem sentido era ali a palavra paz.
E parece-me ouvir o obus de Piche ao pôr do sol e, simultaneamente, recordo-me da indescritível beleza do pôr do sol naquelas paragens.
Olho, estupefacta, o chão do aeroporto. Nacarado pelas inúmeras asas de insectos efémeros cuja vida cessou durante a noite.
Ouço, junto de mim, uma voz arrastada: “Parte um peso”. E vejo a meu lado, envolvido num pano de tom cinza, um velho de rosto muito enrugado mas simultaneamente muito belo, que me estende a mão. O Fernando explica-me o sentido da frase. Em vez de me pedir para lhe dar uma moeda de um peso, pede-me para a repartir com ele. Bonita expressão.
No Ramadão junto à Mesquita
A beleza do rosto deste velho fui encontrá-la em outros rostos que revejo, folheando o álbum de fotografias. Vejo também jovens e crianças, mulheres envoltas em panos coloridos, transportando os filhos nas costas, homens deitados no chão, voltados para Meca, nas horas de oração. Fotografias belíssimas em que o Fernando, amante de fotografia, conseguiu captar como que a beleza visível e a invisível, o explícito e o implícito.
Viajo agora de Bissau para Bafatá num Dakota velhíssimo tendo vários companheiros de viagem, alguns um pouco estranhos como galináceos e cabritos.
Continuo a folhear o álbum. Um conjunto de mulheres jovens que, envoltas em panos dum colorido exuberante transportam, sobre a cabeça, recipientes com água.
Estou na tabanca da Ponte Nova. Vim ver a arte de colorir os panos. Ali está um belíssimo em tons de azul. É mesmo aquele que eu quero. Já tem destino, a parede ao fundo das escadas que levam ao 2º andar.
Pano tingido na tabanca da Ponte Nova em Bafatá
E de novo as imagens no álbum. Imagens belíssimas do pôr do sol. E eis que surgem a Angelina, o Carlos, o Domingos e o Adrião.
O Dakota aterra na pista onde se encontram várias pessoas. Desperta-me a atenção o olhar curioso de algumas crianças de sorriso brilhante. Tento conversar com elas mas recuam timidamente e acabam por fugir embora, furtivamente, se voltem para olhar.
Chego a casa. Simples mas acolhedora. Um pequeno jardim à frente, com vários mangueiros. Três degraus e eis uma varanda coberta, a todo o correr da fachada, e uma porta de acesso ao interior.
A nossa casa, mesmo em frente ao café do Senhor Teófilo em Bafatá
Há anos, durante a campanha eleitoral que levou Kumba Yalá à presidência, vi a casa numa reportagem da TV. Os mangueiros frondosos, as paredes já desbotadas e a varanda, essa apinhada de gente.
Chego à varanda, vejo algumas crianças a espreitar do outro lado da rua. Parecem-me as mesmas que ontem estavam na pista quando o Dakota aterrou. De novo tento entabular uma conversa com elas, mas a tentativa é infrutífera e acabam por se afastar, olhando furtivamente para trás.
Como justificar este comportamento? Apenas timidez ou sentem que de certa forma represento o colonizador indesejável, o militar que vem combater o libertador? Que pensarão estas crianças da guerra?
A fotografia à porta do café do Infali, a Transmontana.
Na esplanada do Transmontana com o empregado Enfali em Bafatá
Nha na bai tomá café?
Mas isso foi algum tempo depois, quando a timidez deu lugar à confiança que lhes permitia saudar-me e dar-me conta dos seus passos, ao passarem na rua, muitas vezes a caminho da fonte.
Nó na bai fonti.
Outras vezes, se nada havia para fazer, abriam o portão, entravam no quintal, subiam as escadas de acesso à varanda, sentavam-se no chão e esperavam que a porta se abrisse e eu aparecesse umas vezes de mãos vazias, outras com um pequeno agrado como uma guloseima ou um lápis.
Nó na bai papia com bó.
Quando lhes pedi para me ensinarem algumas palavras e frases em crioulo olharam-me sorrindo com um ar desconfiado, um pouco malicioso. Mas, pouco a pouco, começaram a levar a sério a sua tarefa. E assim fui aprendendo alguma fonologia, possivelmente um pouco adulterada pela minha interpretação dos seus sons. Se as crianças soubessem escrever teria sido mais fácil pois a grafia ajudaria a melhor compreender a fonética.
De tal modo se empenhavam na sua tarefa que chegavam a dizer-me que não me entendiam para me forçarem a tentar falar a sua língua.
Mi cá ôbi português.
Sei que tenho algures uma cassete com gravações das suas conversas. Mas onde estará ela, passados tantos anos?
Bô na disquice tudo…
Ouço a vozita na gravação. Um pouco agastado porque já não me recordava de algumas palavras que tinha aprendido na véspera. Qual deles seria? A voz da Angelina é fácil de distinguir, mas as outras… Já passaram tantos anos…No entanto, tenho quase a certeza que esta é a voz do Carlos.
Tão pequeninos ainda. As suas idades rondavam os seis, sete anos.
De novo no avião, mas de regresso à metrópole. Acabaram as minhas férias. Comigo viajam o pano destinado à parede ao cimo das escadas que levam ao 2º andar, a bilha de Teixeira Pinto e o cesto de Contubuel , ofertas do Fernando.
O sentimento que agora me envolve é o oposto do que me envolvia na viagem que há dois meses fiz em sentido contrário. Parto com tristeza, já cheia de saudades. Do Fernando, obviamente, mas também da terra, das suas cores, dos seus cheiros, dos seus sabores e das crianças. Fazem-me já falta o seu riso cristalino, a algaraviada das suas vozes, a alegria da sua infância.
Foram despedir-se de mim à pista. Já no ar, ainda via os seus bracitos oscilando, dizendo adeus. Mas estavam com um ar triste, embora lhes dissesse que voltaria no Natal.
Cá jubi, cá obi, cá miste , na jubi, na obi, na miste.
No tempo que mediou entre a partida e o regresso, embrenhada no trabalho, não tive tempo para pensar nas lições de crioulo que esperava retomar quando chegasse.
Hoje já pouco recordo do crioulo que aprendi. Ao ouvir a cassete já não entendo o significado de muitas frases. Mas, curiosamente, surgiram-me com toda a nitidez os rostitos das crianças. É terrível este sentido inexorável do tempo, do mesmo modo que é fantástica esta capacidade selectiva da memória que nos permite esquecer tantas coisas e simultaneamente recordar tantas outras que apesar de tão distantes no tempo, nos surgem como se estivessem a ocorrer precisamente no momento.
O Dakota prepara-se de novo para aterrar na pista de Bafatá. As crianças sabem da minha chegada, pois quase diariamente inquiriam o Fernando.
Desço do avião e correm para mim numa alegria contagiante. Não consigo evitar que duas lágrimas teimosas me escorram pelo rosto.
Vejo que as crianças ficam um pouco confusas ao ver-me chorar. Abraço-me então a cada uma delas e digo-lhes no meu crioulo tão deficiente: Mi gosta Angelina, mi gosta Adrião, mi gosta Carlos, mi gosta Domingos.
Dirijo-me para casa e as crianças acompanham-me. Retiro do saco de viagem umas lembranças que trouxe: uns lápis, umas borrachas, uns apara-lápis, uns cadernos e uns chocolates. Reflicto sobre a pobreza das minhas lembranças quando as comparo com a dádiva do seu riso cristalino, dum valor infinitamente superior.
Recordo a expressão “parte um peso” que tantas vezes ouvi, após aquela primeira vez, ao desembarcar em Bissau. Expressão bonita…
Que “parti” eu com eles? Afectos, por certo, mas recebi muito mais que aquilo que dei. Jamais eu poderei esquecer aquelas crianças.
A cassete chegou ao fim. Fecho o álbum e a imagem das crianças apresenta-se-me com toda a nitidez. Parece-me ouvir as suas vozes e o seu riso de cristal. Que será feito delas hoje? Por certo nenhuma se lembrará de mim. Foram efémeras as lembranças que lhes dei. Eu, pelo contrário, recordo-as com a nitidez nos seus seis, sete anos.
Que será feito delas? Serão por certo pais e até avós, dado que geralmente casam muito novos. Ainda viverão em Bafatá?
Ainda viverão? E quando me faço esta pergunta sinto um enorme aperto no peito.
Fotos e legendas: Regina Gouveia (2009). Direitos reservados.
Regina Gouveia
____________
Notas de M.R.:
(*) Vd. último poste da autora em:
30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4615: Blogpoesia (52): Telejornal... ou uma viagem no tempo, Bafatá, 1969 (Regina Gouveia)
(**) Vd. último poste da série em:
Guiné 63/74 - P4669: Tabanca Grande (161): Manuel Tavares Oliveira, um sobrevivente de Gandembel / Balana, ex-1º Cabo da CCAÇ 2317 (1968/1969)
1. Manuel Fernando Tavares de Oliveira foi 1º Cabo, do 1º Pelotão da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835, em Gandembel e Ponte Balana (1968/69), e é mais um Camarada-de-armas que se apresenta à nossa Tertúlia, passando a integrar o nosso blogue (*). O Oliveira havia-nos já enviado, em 6 de Julho de 2009, uma curta mensagem acompanhada de oito raras fotos de Gandembel, que se encontram publicadas no P4647.
A certo momento na sua mensagem dizia o Manuel Oliveira:
“Já reparei que um dos Tertulianos é o Alferes Idálio Reis, também da CCAÇ 2317, a quem aproveito esta oportunidade para enviar aquele abraço, cujo efeito sentimental só o pessoal que esteve na Guiné conhece.”
Ao que o ex-Alferes Idálio Reis já respondeu, afirmativamente, através do seguinte e-mail:
"Meu caro Oliveira:
"Tenho estado ausente, e só há pouco fui ver o correio electrónico. Uma boa nova foi saber do teu paradeiro. Em boa hora, a Tabanca Grande acaba de poder encontrar-te.
"A tua Companhia, já tinha perdido as esperanças de te reencontrar, pois a tua ausência aos nossos convívios, assim o indiciava. Há uns quantos que estavam nas tuas condições.
"Da tua Lamego de origem, não havia qualquer indicação.
"Mas agora com o conhecimento dos nossos endereços, teremos possibilidade de te pôr ao corrente de alguns aspectos que mais te interessem.
"Diz-me da receptividade deste mail, e cá espero notícias tuas.
Um grande abraço do Idálio Reis,
que efectivamente conheceste enquanto Alferes Reis"
Caso alguém queira contactar o Manuel Tavares Olibveira, pode fazê-lo para:
maneltoliveira@hotmail.com
ou, Ubr. Ortigosa Bloco 10 - R/C Esq.
5100 - 183 LAMEGO,
Telefone 254614325
Telemóvel 966 174 331
____________
Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
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