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segunda-feira, 29 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19728: Notas de leitura (1173): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à análise da tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre Fausto Duarte, um escritor e divulgador injustamente esquecido. Romancista, publicista e afanoso vasculhador de documentação que inseriu nos dos projetos a que deu toda a sua dedicação, o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
Não se pode falar da literatura colonial na Guiné sem o pôr no pódio; não se pode falar na investigação e divulgação histórica sem o considerar como esforçado pioneiro na revelação da presença portuguesa naquela Guiné das praças e presídios. As entidades representativas da cultura de Portugal e da Guiné-Bissau só tinham a ganhar em mostrar Fausto Duarte tal como ele foi: um luso-cabo-verdiano emaranhado por grande paixão às terras da Guiné.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (3)

Beja Santos

Fausto Duarte pertence à vasta lista de escritores, divulgadores e investigadores injustamente esquecidos. Homem de uma cultura medularmente europeia, orgulhava-se das suas origens cabo-verdianas e vai revelar-se como o nome mais sonante da literatura colonial guineense e o investigador e divulgador de mérito das coisas guineenses. Continuamos a abordar a tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte, apresentada na universidade de Paris Sorbonne, no ano universitário de 1975-1976.

Fausto Duarte foi um importante investigador da história da Guiné. O seu propósito fundamental como Chefe da Secção História do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa era o de “inserir nas páginas do boletim material de grande importância histórica constituído por manuscritos, tais como avisos, contas, cartas patentes, consultas, registos, pareceres, etc e outros documentos que poderão interessar a quem se disponha a estudar as origens da formação da província e o seu progressivo desenvolvimento a partir da época em que a nossa ação estava circunscrita às pequenas Praças e Feitorias nascidas da exploração das fontes de riqueza dos Rios da Guiné… Por eles se conhecerá melhor o meio, e o homem, ou seja, a terra, o colono e o nativo, as suas paixões e as suas lutas”. Os artigos que ele publicou no Boletim denotam uma grande preocupação pelo rigor e o seu acrisolado amor por Portugal e pela Guiné: artigos em que abordava a mudança desde a época da permanente hostilidade ao branco até ao momento em que é o branco que passa a decidir tudo; Alexandre Herculano tribuno e a sua importante peça de oratória sobre a Guiné Portuguesa; uma chamada de atenção sobre o presídio de Bissau e o Ilhéu do Rei. Revela-se uma investigação para explicar uma estratégia de ocupação estrangeira frente a Bissau. Veja-se com mais pormenor.

O investigador pretende provar que três séculos após a sua descoberta a Guiné continuava a preocupar duplamente os portugueses pela sua insegurança, estamos em meados do século XVIII. De uma parte, as sublevações constantes dos autóctones e, por outro lado a presença indesejável no país de estrangeiros. Não era Bissau que atraía os franceses, era o Ilhéu do Rei, porque pertencia ao rei de Bissau, interessava cativá-lo para reduzir a influência portuguesa. Benjamim Pinto Bull encontra outra razão para este tipo de trabalhos de Fausto Duarte. Em 1950, a Guiné começava politicamente a mexer. Tudo se passava na clandestinidade mais absoluta. Era com interesse que os guineenses devoraram todos os artigos de história. O ilhéu, esclarece o autor, tinha uma excelente água potável e um clima mais agradável que Bissau. Era muito difícil a um simples turista, ou mesmo a um guineense não informado, de ter em conta a importância do ilhéu, dois séculos antes. Todo o comércio de escravos, de marfim e de cera passava pelo ilhéu do rei. Em meados do século XVIII, os franceses controlavam todo o comércio entre as ilhas Bijagós, Rio Grande e Serra Leoa, porque “ficava o dito ilhéu a menos de um tiro da peça da dita ilha de Bissau e que se os franceses se apossassem do ilhéu logo eram senhores da dita ilha e de todo o negócio daquela costa, com um grave prejuízo da Coroa”.

Todos os temas de história o interessavam: Aires Tinoco, que trouxe de volta a caravela de Nuno Tristão, em 1447; a rivalidade entre “Capitania” e “Igreja”, é próprio Fausto Duarte que explica o significado da rivalidade. A Capitania representava a Coroa e tinha como missão a supervisão absoluta da terra enquanto a presença da Igreja era de um caráter puramente espiritual, eram estes os dois grandes pilhares da conquista e da sua harmonia dependia a paz nas praças e presídios.

Fausto Duarte compulsou cartas de capitães-mores, feitores, bispos, visitadores e assistentes das praças e presídios da Guiné: feliz incitativa de nos pôr ocorrente de todos os problemas da Guiné-Bissau ao longo do século XVIII, publicando-as sem comentários. Dedicou igualmente atenção ao período em que a Guiné se desvinculou de Cabo Verde. É o caso do artigo sobre a Guiné ou Senegâmbia Portuguesa no tempo do Governador Pedro Inácio de Gouveia, publica o relatório de 10 de Outubro de 1982 deste segundo governador da Guiné, onde não se escondem as realidades e as numerosas contradições que cerceavam a ação do governador. O relatório tem o mérito de apresentar desapaixonadamente os aspetos políticos, económicos e sociais. A Guiné não tinha ainda as suas fronteiras bem definidas, já não havia tráfico de escravos, entrara-se com bastante entusiasmo no investimento agrícola, no conhecimento das potencialidades da terra. Isto num tempo em que a concorrência francesa era quase sufocante. Por carta assinada pelo rei D. Luís, em 18 de Março de 1879, dava-se a separação definitiva entre Cabo Verde e a Guiné, ficando claro que a Guiné Portuguesa seria uma província independente com governo sediado em Bolama. E Fausto Duarte não esconde as suas opções: “Terminava assim uma dependência de que apenas o arquipélago beneficiava”.

Benjamim Pinto Bull é muito parcimonioso na descrição que faz quanto ao trabalho de Fausto Duarte nos Anuários da Guiné Portuguesa de 1946 e 1948. O que é inexplicável e mesmo injustificável, é um dos trabalhos mais aturados e relevantes de Fausto Duarte, são levantamentos hoje incontornáveis para estudar a Guiné e mormente o que estava a acontecer graças à governação de Sarmento Rodrigues. Pinto Bull analisa detalhadamente o manuscrito da última obra de ficção de Fausto Duarte cuja publicação foi objetada pela censura, tal a crueza com que se fala de fomes e secas, miséria e emigração, é o texto em que excecionalmente Fausto Duarte regressa às suas origens cabo-verdianas. Curiosas são as análises de Pinto Bull sobre os contextos romanescos de Fausto Duarte e as suas principais ideias-força: as relações ilícitas, o conceito de “vencido” e os verbos vencer e lutar; a religião e a superstição. Em termos de conclusão, o doutorando mostra Fausto Duarte como um escritor que revela um grande desprezo pela hipocrisia, a ambição, as rivalidades e a inveja e a maledicência, erigido em defesa do povo guinéu e a insurgir-se permanentemente contra as expressões da violência colonial, caso das palmatórias. Define-o como um arauto da civilização portuguesa, um escritor que exalta o soldado, o missionário e o comerciante, em permanente orgulho pela gesta da civilização portuguesa naquele ponto de África.

Imagem que consta do Anuário da Guiné Portuguesa de 1946, organizado por Fausto Duarte, e já reproduzida no blogue
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Notas do editor

Postes anteriores de:

15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)
e
22 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19706: Notas de leitura (1171): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de26 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19719: Notas de leitura (1172): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19706: Notas de leitura (1171): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,

Prossegue a análise da tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Como se recordam, Benjamim Pinto Bull foi o único dirigente nacionalista recebido por Salazar, Pinto Bull era o líder da FLING, organização que aceitou fazer parte de um governo de transição, em 1963. Como escreveu o embaixador Luís Gonzaga Ferreira, cônsul em Dakar, montou-se a Operação Camaleão, Silva Cunha e Pinto Bull, entre outros, estavam em Bissau, a aguardar uma declaração pública de Salazar sobre política ultramarina. Para surpresa de todos, Salazar definiu uma linha de intransigência onde não sabia uma governação com a FLING.
São coisas da história.

Pinto Bull veio a morrer em Lisboa de acidente rodoviário.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2)

Beja Santos

Fausto Duarte pertence à vasta lista de escritores, divulgadores e investigadores injustamente esquecidos. Homem de uma cultura medularmente europeia, orgulhava-se das suas origens cabo-verdianas e vai revelar-se como o nome mais sonante da literatura colonial guineense e o investigador e divulgador de mérito das coisas guineenses. Continuamos a abordar a tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte.

Torna-se conhecido em Portugal quando o seu romance "Auá" ganha o primeiro prémio da literatura colonial, em 1934. Como se disse em texto anterior, o tema do romance é um conflito permanente entre duas civilizações, conflito que é protagonizado por Malan, um jovem Fula que trabalha em Bissau como criado, e Abdulai que permanece enraizado nas suas tradições e convicções. Malan é um admirador de tudo quanto fazem os brancos e orgulha-se de oferecer a Auá novas lembranças compradas nas lojas frequentadas pelos brancos, em Bissau, como sejam lenços e pulseiras, e não se esquece de juntar folhas de tabaco e cola para conquistar a simpatia da família da Auá. A vestimenta de Malan é também esclarecedora: “Tinha na sua bagagem um belo par de sapatos que o administrador lhe oferecera. Sobre a sua camisa, pendia um amuleto em prata, contendo um versículo do Alcorão”. Em Fausto Duarte pareciam convergir estas suas forças, a Europa e África, trata-se de uma tensão que perpassa toda a sua obra literária.

Voltando a Auá, todos os Fulas da tabanca criticam Ançatu que, desprezando a lei muçulmana, aceitou não somente viver com um funcionário de alfândega, um português branco, e de ter dele um filho. Auá também vive dividida, sente o choque das duas civilizações. Dividida entre Abdulai, jovem Fula que ficou na aldeia e que lhe oferece presentes genuinamente africanos; e Malan, seu noivo, que lhe envia lembranças fabricadas pelos brancos. E Fausto Duarte escreve: “Sentia uma invencível inclinação por Abdulai, um moço Fula que habitava ali próximo, em Saré-Boilela, e que lhe trazia mel de abelhas bravas e leite coalhado em boas cabaças… Era, senão com desdém, pelo menos com indiferença que, de vez em quando, recebia de Bissau alguns presentes enviados por Malan, que se mesclara no convívio permanente dos brancos do governo”. Malan irá novamente trabalhar em Bissau, quando regressa à sua aldeia para se casar é já em desenraizado, um abismo separa os seus valores dos da aldeia, então decide emigrar para Dakar. Aqui sente o aguilhão da nostalgia.

Aquilino Ribeiro, no seu prefácio, exalta o romance Auá, é fulminante: “Está dito, o primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo o autor de Auá”. Na introdução, muito didaticamente, Fausto Duarte contextualiza a cultura dos Fulas à luz dos conhecimentos da época e trata o seu livro como um documentário etnográfico, um novo capítulo de psicologia indígena. Mas o contraste vem na escrita, Fausto Duarte é um homem de cultura europeia com uma testa da sua prosa inequívoca:

“Era meio-dia quando a camioneta chegou a Nhacra. As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolos ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

Prosa mais naturalista não pode haver. A crítica literária do tempo embandeirou em arco com o romance Auá: “O primeiro grande romance português inspirado em motivos coloniais”; “A arquitectura da obra é um sólido equilíbrio e a cena do conselho dos anciãos coroa-se como cúpula magnífica”; “O escritor que entre nós melhor sabe traduzir o profundo mistério da alma negra”.

O romance conheceu três edições e hoje praticamente ninguém fala dele.

Passemos agora para a conferência proferida por Fausto Duarte no Porto, no âmbito da primeira exposição colonial, em 1934. Começa por referir a atitude dos escritores da sua época face a África e prossegue com comentários sobre a música dos negros, centrando-se na morna, dança tipicamente cabo-verdiana e aqui procura retratar o cabo-verdiano:

“Como poeta e músico, o cabo-verdiano é um eterno apaixonado. O amor, ponto de convergência desses dois estados de alma é tema que não cansa e antes rejuvenesce em cada morna, vai de aldeia em aldeia, surpreende epidermes virgens, sobe à cumeeira dos montes, transpõe o mar e abraça as ilhas no desejo insatisfeito de unir corações enamorados. E para fugir a uma vida de resignação e renúncia, o cabo-verdiano, poeta e místico, artista de provocação, baila e canta”.

A novela “Um crime” foge ao contexto africano. Versa o regresso de um prisioneiro da I Guerra Mundial, Hans Weiss, regressado do exílio da Sibéria. Perdeu toda a sua família. É num grande estado de revolta que comete um crime.

“O negro sem alma”, datado de 1935, publicado na Livraria Clássica Editora, é o regresso ao conflito entre duas civilizações. Bubacar Djaló recusa as pretensões de Songá à mão da sua filha Aminienta, porque Songá não é Mandinga. No final, vamos ser confrontados com a vitória dos princípios africanos sob os princípios ocidentais.

“O negro sem alma” também aborda o exílio e a separação. Momo deixa a sua aldeia no Tombali, atravessa a fronteira e entra na Guiné Francesa para vender dois sacos de arroz. Vive-se em plena I Guerra Mundial e todos os indígenas são apanhados para marchar em direção às trincheiras ocidentais. Momo, na confusão, é mobilizado à força, temos aqui um novo exílio forçado. Vemo-lo num campo de concentração com o uniforme soldado francês, irá combater nas trincheiras, será condecorado. No regresso, assistimos a novo choque de valores. Momo regressou com modos afetados, maneirosos, afrancesados. Atrai a curiosidade dos seus compatriotas, mas é nítido que há desenraizamento.

Antes de regressar à Guiné, Fausto Duarte escreve em 1936 novo romance, "Rumo ao degredo", publicado pela Guimarães Editora. Põe a seguinte dedicatória: “À minha mulher e ao meu filho”. Manuel da Gaita, inocente, é condenado ao exílio. Regressa 15 anos depois à sua aldeia, no Ribatejo. João Gaspar Simões, então sumidade da crítica literária, não foi meigo com Fausto Duarte, diz que "Rumo ao degredo" é um romance que ficou a meio o que devia ser. “Onde seria necessário pôr à prova o talento do romancista, Fausto Duarte sucumbiu”.

Veremos no próximo texto referências as seus últimos trabalhos literários e à sua atividade no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

(Continua)


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Notas do editor:

Poste anterior de 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série  de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19697: Notas de leitura (1170): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
É tempo de tirar do limbo uma figura altamente representativa da cultura luso-guineense, Fausto Duarte, escritor singular, divulgador emérito e um desbravador de documentos históricos guardados na poeira dos arquivos. Tinha formação superior e revelou ao longo da sua curta vida uma enorme paixão pela cultura guineense. Impôs a temática logo em "Auá", romance premiado em 1934.
Deixou o seu nome ligado a projetos incontornáveis, os anuários da Guiné de 1946 e 1948 e o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
Merecia ser melhor estudado por portugueses e guineenses.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1)

Beja Santos

Entrei na Biblioteca da Gulbenkian para consultar uma obra sobre património africano, acabei nos reservados a ler uma tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre o escritor Fausto Duarte, documento de leitura aliciante. Fausto Duarte não merecia o injusto silêncio que rodeia hoje o seu nome, foi grande escritor e investigador e deixou uma obra assinalável na Guiné.

A tese de Pinto Bull começa por contextualizar os ambientes de Cabo Verde e Guiné. Fausto Castilho Duarte nasceu na Praia, ilha de Santiago ou em 1902 ou 1903, não se sabe exatamente, era filho de padre. Passou a infância na Praia, foi enviado, concluída a instrução primária, para Lisboa, percorreu vários liceus, o Pedro Nunes, o Passos Manuel, o Camões, o Gil Vicente. Vivia no Colégio Universal, na Calçada de Santana n.º 180. Findo o liceu, inscreveu-se no Instituto Superior de Agronomia onde estudou principalmente Geodesia e Topografia. Em 1928, fez exame final do curso de Topografia e Elementos de Geodesia. Nesse ano viaja para a Guiné e trabalha para um empresário alemão, Frederick Karsten, como agrimensor. Entre 1929 e 1930 trabalha na delimitação das fronteiras da Guiné sob a direção do Tenente-Coronel Soares Zilhão, mais tarde o Governador da Guiné.
Ao percorrer a colónia, entusiasma-se com a natureza luxuriante e caprichosa, deixará as observações das suas descobertas na sua obra, caso dos morros de bagabaga que descreve no livro “Negro sem Alma”:
“A termiteira lembra uma pirâmide egípcia em miniatura. Um é habitação de vivos, outras jazida de mortos, mas ambas são fantasias de arquitectura ciclópica, ambas objectivam encarcerar a sombra e fazer dela o manto de um rei cujo corpo mumificado zomba dos cegos, ou de uma rainha-insecto extravagante – que governa com despotismo, porque perpetua a espécie, porque seu abdómen é um constante viveiro; ambas são ogivas de pedras trabalhadas por gerações inteiras. Numa falta a unidade interior, na outra há a fronteira religiosa. Desfeita a pirâmide, que resta da termiteira? Simples torrões, habitados por insectos que se refugiam instintivamente na treva, porque elas lhes extinguiu para sempre a luz dos olhos”.

Regressa a Lisboa em 1931, casa com Ilda Massano Sereno e volta à Guiné. No ano seguinte, temo-lo novamente em Lisboa onde vem frequentar o Curso Superior Colonial, que termina com brilho quatro anos mais tarde. Em 1934, publica "Auá", que obtém o primeiro prémio de literatura colonial desse ano. Tem 32 anos. Já deram pelos seus dotes Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, faz amizades, uma delas com um distinto médico, o professor Fernando da Fonseca, encontraram-se em Berlim. Nesse mesmo ano de 1934, na Exposição Colonial do Porto faz uma conferência sobre o tema “Da literatura colonial e da morna”.

Segue-se a novela “Um crime” e depois “O Negro sem Alma” e “Rumo ao Degredo”. Em 1936, regressa à Guiné, fora nomeado Secretário-Geral da Câmara Municipal de Bolama. Em 1942, publica “A Revolta”, que obtém o segundo prémio do concurso de literatura colonial. Em 1945, aparecem em Lisboa os contos “Foram estes os vencidos”. De 1946 a Janeiro de 1953, Fausto Duarte participa ativamente na redação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, tem a seu cargo a secção “História da Guiné”. Em 1950, depois de uma longa estadia na Guiné, é colocado no Gabinete de Urbanismo do Ministério do Ultramar. Em 1952, descobre-se que tem um cancro no estômago. Escreve sem parar, nessa época a censura exige-lhe a supressão de parágrafos no seu livro mais recente “Mãe Joaninha”. É operado duas vezes e morre em 1953, com 51 anos.

Inegavelmente que foi o romance "Auá" que lhe deu notoriedade como escritor, a Guiné encontrara um narrador de altíssima qualidade. O tema do romance é o conflito permanente entre duas civilizações, a europeia e a africana, mais precisamente a civilização ocidental e a civilização arábico-islâmica. Quem personifica esse conflito? Entre Malam, jovem Fula, que vem trabalhar para a cidade de Bissau como criado de um casal alemão, e que se vai imbuindo de preconceitos e valores ocidentais, e outro jovem Fula, Abdulai, que permanece enraizado nas suas tradições e convicções. Malam volta à sua terra para casar com Auá que 10 meses depois dá luz um bebé “branco”. Malam rejeita a criança enquanto na povoação todos afirmam que “o filho pertence a Malam porque foi gerado no ventre da mulher que ele escolheu. É uma recompensa de Deus”.

Para o leitor ocidental, esta trama tem o poderoso ingrediente de uma escrita cuidada, que detalha perfis e situações. Mais adiante, dar-se-ão exemplos da cultura europeia deste escritor embevecido com as culturas guineenses onde se mostra com solidez os seus conhecimentos de etnografia e religião islâmica. Benjamim Pinto Bull aventa a hipótese de que este mestiço que tinha orgulho em ser cabo-verdiano e que tinha uma forte atração pelas linhas dominantes da cultura europeia sentia-se vexado pelos preconceitos raciais que experimentou, tendo sido a experiência mais dolorosa a sua visita à Alemanha, num período já de ascensão nazi, que nunca mais esqueceu. A sua resposta foi o desenvolvimento de um processo cultural singular, onde predominava uma linguagem cultíssima, quase de pesquisa laboratorial, e o apego à temática colonial, em diferentes situações. Revelou-se um estudioso de gabarito, qualidades que lhe foram reconhecidas por outros estudiosos, como Teixeira da Mota. O topógrafo transforma-se em homem de secretária e dedica-se a projetos de fôlego, caso de dois trabalhos de indiscutível qualidade como foram os anuários de 1946 e 1948, hoje obras de consulta obrigatória dado o acervo de informações que ele coligiu, apensando imagens elucidativas, muitas delas aproveitadas das edições do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

Vejamos agora como "Auá" é um monumento literário referencial da Guiné colonial. Para o leitor mais interessado, recomenda-se o que sobre "Auá" já se escreveu no blogue:

Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19673: Notas de leitura (1168): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16370: Notas de leitura (867): O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Questiono se no sistema educativo e nas regiões em que estas crianças portuguesas descendentes de guineenses se contempla a realidade de um processo cultural que ele experimentam em casa ou sabem que existe, nas terras dos seus ascendentes.
Esta terá sido uma experiência, parece-me ter sido uma boa escolha incluir Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro é indiscutivelmente o nome sonante das letras guineenses e o segundo foi alguém que prestou serviços admiráveis ao que eu hoje chamo cultura luso-guineense, foi grande publicista, deixou obra que merecia ser cuidadosamente apreciada, é um caso raro de zelo nos estudos guineenses.

Um abraço
do Mário


O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas 

Beja Santos

No século passado, aí por 1996 ou 1997, o Grupo de Trabalho dos Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses organizou material de suporte sobre literaturas africanas de língua portuguesa, para os três ciclos. Eram coordenadores científicos do projeto Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas. O objetivo parece-nos óbvio: contribuir para o conhecimento de autores africanos de língua portuguesa, sugerir interpretações, apresentar leituras possíveis. No caso dos textos escolhidos para o terceiro ciclo de autores da Guiné-Bissau, os organizadores propuseram Abdulai Sila e Fausto Duarte, o primeiro com o excerto do seu livro “Eterna Paixão” e o segundo com o texto “Vamos à feira?” extraído do romance Auá, de Fausto Duarte.

O texto de Abdulai Sila foi uma escolha acertada, trata-se de uma narrativa de pendor urbano onde se apresentam conflitos entre dominador e dominado, mesmo num país que acedeu à independência. Tudo se inicia numa viagem de automóvel, alguém que regressa a casa, é um ponto de partida cinético, vigoroso: “Subitamente, sem ter reduzido a velocidade, encetou uma série de movimentos com ambos os braços, torcendo o volante do carro sem piedade. Deixou a estrada principal e meteu-se na estrada secundária que nascia logo ali, sem se anunciar. Segurou firmemente o volante enquanto os pneus gemiam ruidosamente e amaldiçoou, mais uma vez naquele dia, os que haviam decidido alterar o trajeto daquela estrada, desviando-a do circuito a que estava habituado”.

E depois o autor incute ao personagem sensações, aproxima-nos: “Durante alguns instantes sentiu-se impelido a abraçar e a puxar para mais perto de si o volante. Progressivamente, este sentimento foi-se tornando mais intenso e, subitamente, sem se dar conta disso, atingiu o seu auge, provocando uma vontade irresistível de fechar os olhos”.

Ele é cooperante, chama-se Daniel, vive numa moradia soberba, a empregada chama-se Mbubi, já entrada nos anos, fora muito bela, a sua filha mais velha era uma menina mulata, de patrão branco. Apercebemo-nos que Daniel está a viver um mau bocado, o seu entristecimento é explícito, Mbubi procura interpretá-lo. O Daniel está no seu escritório, aqui é confrontado com o processo multicultural que corresponde ao seu caráter: “Como um visitante de museu, foi apreciando as diversas obras de arte africana que apaixonadamente expusera na sala de visitas. Cada uma daquelas peças tinha um valor particular para ele: os primeiros tempos da sua estadia naquele país. Às vezes recordava com certa nostalgia aqueles tempos, que pareciam já tão remotos, que marcavam a abertura de um capítulo novo da sua vida. Recordava-se da avidez que tinha em descobrir e manifestar a sua africanidade, de explorar e valorizar tudo o que a seus olhos se apresentava como genuinamente africano. E foi precisamente nesses momentos que foi juntando os quadros, as estatuetas de madeira e outros objetos de arte que hoje enchiam as paredes e davam um aspeto museico, como dissera um dos amigos da época, à sua sala”.

Daniel e Mbubi conversam até que chega a Senhora, ressalta imediatamente a tensão existente no casal. A Senhora chama-se Ruth que asperamente recusa uma dispensa a Mbubi, esta sente-se humilhada.

Começam aqui as leituras possíveis deste trecho do romance “Eterna Paixão”: um cooperante, obviamente bem instalado naquela sociedade africana, atravessa um período de sofrimento, a empregada negra tem por ele uma grande afeição, mostra solicitude, a patroa é sobrecarregada na descrição pela autoridade intolerante, o egoísmo e o espírito de dominação. A sensibilidade de Mbubi é mais forte que a tensão no casal, ela sabe que aquela casa não voltará a ser a mesma.

Passemos agora para o trecho de Fausto Duarte, um escritor e publicista injustamente esquecido, intitulado “Vamos à feira?”. Este autor cabo-verdiano procura ir direto aos tons que são devidos a um ambiente africano: “Gigantescos poilões, árvores de grande porte, salientam-se no mato que abraça a cidade.

Ali em baixo, num martelar incessante, artífices consertam barcos, de quilhas voltadas, impelidos para a praia lamacenta. São estaleiros improvisados em barracões imundos. No porto, apesar da chuva, entrava embarcações tripuladas por Manjacos, marinheiros habituados às inclemências do tempo, tendo por bússola o instinto.

Lá no alto, um grande núcleo confuso de palhotas: Chão dos Papéis.

Na Morcunda, bairro Fula de Bissau, havia sossego nas ruas sinuosas, enlameadas pela chuva que corria abundante. Os homens, acocorados sob os alpendres de capim, conversavam distraídos a olhar a garotada nua que se banhava ao ar livre.

No céu sombrio, cor de chumbo, abriam-se paulatinamente claridades hesitantes, manchas vagas coloridas de azul translúcido. A chuva terminara, finalmente. - Auá, vamos à feira? – convidou Farió à Fula que tinha chegado na véspera.

As duas mulheres levando algumas cabaças na mão, desceram à cidade.

Bissau era um novo espetáculo para os olhos dessa rapariga habituada ainda à paisagem uniforme do mato e à vida de Sare-Sincham. Contemplava admirada os grandes armazéns, escassamente iluminados, sempre no mesmo estilo de igrejas provisórias, onde trabalham dezenas de indígenas, limpando mancarra, ensacando coconote para carregarem potentes camiões. Automóveis fugiam velozes, e Auá receosa de tanto bulício, agarrava-se a Farió, que lhe indicava a melhor forma de caminhar pela rua, que se tornara quase intransitável”. E chegam ao mercado, descrito primorosamente por Fausto Duarte, uma autêntica água-forte de pessoas, produtos, atmosferas.

Certamente que os autores pretenderam mostrar a Auá, vinda do interior, confrontada com o bulício de Bissau e o seu mercado, a babel étnica, os gritos e as lutas verbais, no fundo ambientes que o aluno conhece e reconhece.

Será que estas experiências de mostrar literatura africana a quem tem avós, pais e outros familiares guineenses, contribuem para ganhos de identidade e orgulho numa vivência pluricultural e de solidariedade com os ancestrais, com todos aqueles que ficaram e que sofrem a tragédia do subdesenvolvimento? Era bom que soubéssemos por onde param estas experiências e quais os seus resultados.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16361: Notas de leitura (864): “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015 (Mário Beja Santos)

sábado, 29 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6491: Notas de leitura (114): Antologia do Conto Ultramarino, de Amândio César (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Maio:

Queridos amigos,
Aqui está a oportunidade, por um euro, de ler escritores que tiveram a sua importância na literatura colonial, tais como Baltazar Lopes, Fausto Duarte, Fernando Reis, Mário António, Vimala Devi e Fernando Sylvan.

Creio que está esgotada a temática ultramarina, no que toca à Guiné e que o Leopoldo Amado tão lapidarmente estudou.

Um abraço do
Mário


Dois escritores cabo-verdianos que escreveram sobre a Guiné

Beja Santos

A “Antologia do Conto Ultramarino” (1972), de Amândio César, ainda se pode encontrar nos alfarrabistas por um euro. O autor tinha publicado em 1969 dois volumes “Contistas Portugueses do Ultramar”, abrangendo o espaço de Cabo Verde a Angola. Com esta edição destinada aos livros da RTP, Amândio César pretendeu abarcar algumas expressões representativas das literaturas de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé, Angola, Moçambique, Estado da Índia, Macau e Timor. Curiosamente, em 1969, no que tocava à Guiné, incluíra um escritor combatente, Álvaro Guerra, com um conto admirável “O Tempo em Uane” (Em “Os Anos da Guerra” João de Melo irá recuperar esta jóia literária).

Amândio César faz representar a literatura guineense através de dois cabo-verdianos, Fausto Duarte e João Augusto Silva, já referidos em recensões literárias anteriores. Fausto Duarte nasceu na cidade da Praia em 1903 e foi agrimensor na Guiné em 1932. Obteve um importante prémio no concurso de literatura colonial com o romance “Auá”, inequivocamente uma obra com méritos. João Augusto Silva nasceu na Brava em 1910 e de 1928 a 1936 viveu na Guiné onde colheu elementos para o seu livro “África – da vida e do amor na selva” que igualmente foi premiado pela Agência-Geral das Colónias. João Augusto Silva foi tio do Pepito, que já aqui contou algumas das suas histórias.

Não vale a pena acrescentar mais elementos àquilo que o nosso confrade Leopoldo Amado já observou sobre a literatura colonial guineense. Estamos perante dois homens viajados que não resistiram à sedução africana, renderam-se ao exotismo, abordando temáticas onde vemos privilegiados amores entre nativos, histórias de caçadores, lutas correspondentes ao período da pacificação (até 1936), descrições primorosas sobre a paisagem africana, a sua fauna e a sua flora, entre outros motivos.

O conto de Fausto Duarte escolhido para esta antologia chama-se “Regresso”. Trata a história de um coronel que fora governador no tempo das lutas correspondentes ao período de pacificação e que vai ao cemitério de Bissau onde está o túmulo do seu filho que ele, por rigidez e insensibilidade, enviara praticamente para a morte, a força pacificadora tinha sido massacrada pelos revoltosos. Provavelmente Fausto Duarte baseou-se nas guerras de Bissau com as contínuas escaramuças dos Papéis. O conto “Foi em Cuntabanim” de João Augusto Silva passa-se no chão do régulo Mutari, andavam caçadores brancos na pista de uma pequena manada de elefantes, um pisteiro de nome Hamadi relata histórias fabulosas à volta da lareira, aguarda-se o amanhecer para que os brancos retomem a caçada. Hamadi começa por falar numa caçada aos búfalos, a novidade eram aquelas espingardas, obra de feitiço, espingardas pareciam coisas de brincar, os buracos de entrada das balas eram uma coisinha pequenina que mal se via, mas, ao sair abriam um buraco grande que parecia uma flor de poilão-forro. Hamadi tem mais histórias para contar: hipopótamos feridos que levantaram no ar canoas, em rios cheios de crocodilos, contou peripécias sobre a caça de leopardos e gazelas. A história termina assim: “Hamadi conta mais uma história, uma fábula, onde o bicho é metido a ridículo. Por entre pasmos e risadas sucedem-se contos maravilhosos. Mas o branco está cansado e tem sono. De dentro da barraca de campanha manda-os calar e recomenda que se deitem, pois no dia seguinte, ao terceiro cantar do galo, deverão estar todos a pé, prontos para a caçada”.

Enfim, uma África típica do período colonial, um mundo captado pelos olhares “civilizados” para entreter, do outro lado do Atlântico, outra gente civilizada.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6483: Notas de leitura (113): As ausências de deus, de António Loja (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5144: Historiografia da presença portuguesa em África (25): A Literatura colonial guineense (Leopoldo Amado) (II): A primeira tipografia em 1879

A literatura colonial guineense (2)

Por Leopoldo Amado

Desde a primeira tipografia em 1879, até à década de 30 do século XX

O último quartel do século XIX foi deveras decisivo para a colonização portuguesa da Guiné, pois que ante a resistência dos guineenses e a cobiça estrangeira, Portugal foi obrigado a acelerar os seus propósitos de colonização com a implantação compulsória da administração e a criação de um mínimo de infra-estruturas que garantissem a soberania sobre o território. Em 1870 Portugal saiu vencedor da disputa por Bolama em que se vira envolvido com os Ingleses, mediante a sentença arbitral do Presidente norte-americano, Ulisses Grant. Criaram-se então as condições para a autonomização administrativa do território, até aí sob tutela do Governo-geral de Cabo Verde. Assim, em 1879, a Guiné tinha ganho o estatuto de Província e Bolama, que em 1871 tinha ganho estatuto de Concelho passa a ser a capital da Província, passando o Governo da Guiné a preocupar-se mais com as guerras de pacificação e consequente implantação da administração, processo esse que se estendeu, grosso modo, até aos finais da década de 30 do século XX.

Dominada (?) a resistência dos africanos, temperadas as desavenças, os colonos entregaram-se às tarefas mais prementes como, por exemplo, a instalação da tipografia em 1879 e a criação do Boletim Oficial da Guiné em 1880 que, não obstante alguns pequenos hiatos, foi publicado ininterruptamente até 1974. E o que as agruras do clima e as guerras de pacificação não conseguiam fazer, alcançava-o o anseio do tempo memorial vivido, a sombra de um passado esfumado ao longe, como atestam os primeiros jornais publicados na Guiné: Ecos da Guiné em 1920, A Voz da Guiné em 1922 e Pró-Guiné em 1924. Estava-se ainda na fase em que a saudade da terra-mãe gravitava em volta dos demais temas e motivos de literatura jornalística ao mesmo tempo que a apologia do desenvolvimento colonial era a tónica omnipresente.

Vivia-se até dos rescaldos decorrentes da implantação da República na metrópole, tanto mais que dois desses periódicos pioneiros, A Voz da Guiné e o Pró-Guiné se intitulavam, respectivamente, de quinzenário republicano independente e órgão do Partido Republicano Democrático. Raras vezes se fazia referência à população africana, pois era bastante diminuta, senão insignificante, a sua presença na vida urbana colonial, na qual, aliás, era somente a tolerada pelos serviços domésticos que realizavam junto dos colonos. Quando se dizia entusiasticamente que quando alcançarmos a meta das nossas mais caras aspirações, erguendo bem alto (...) o nome de Portugal..., faziam-no por exclusão de partes; decerto não pensavam na população africana que ainda não tinha conquistado qualquer outro estatuto social que não o de selvagens.

Se por um lado se assistia ao surgimento, ainda ténue, daquilo a que se poderia impropriamente chamar elite africana, por outro, a embrionária cristianização ainda não tinha desabrochado os seus frutos. O agente da administração, o soldado e o comerciante estavam todos entregues a uma vida enfadonha de procura de posses a que também os missionários não foram alheios. Era isso que reflectia a imprensa da época: um ambiente em que proliferava a maledicência, onde uma multidão burocrática efusiva se projectava nos jornais, uns contra os outros, em ataques e contra-ataques; em suma, um ambiente que denotava fortemente o sentimento generalizado de degradação moral e política a que estavam sujeitos os colonos na Guiné.

Daí que não se produziu literatura no sentido estrito da palavra, salvo algumas manifestações poéticas (poucas) que, mesmo assim, pouco ou nada tinham de africano. Era, pois, a fase da saudade, a saudade que os consumia porque além da inexistência de uma atmosfera propícia ao fluxo cultural recíproco entre europeus e africano - agravada ainda pelas guerras de pacificação –, o ethós curioso do colono foi insensível ao conhecimento das balizas do mundo, do diferente e, paradoxalmente, até do exótico. Nem a magnificência do cenário, de fascínio quase narcotizante aos olhos europeus da altura foi capaz de despoletar manifestações literárias, nem mesmo aquelas empapadas de exotismo como as produzidas, por exemplo, no mesmo período, em Angola ou Moçambique. Quando em Março de 1922 O Século publicou uma notícia que dava conta que um médico brasileiro provou ser capaz de mudar indivíduos negros em brancos, A Voz da Guiné comentou o facto da seguinte maneira: "... Ora lavre lá dos tentos o Senhor Oclávio, e faça rapidamente, essa maravilha, porque nos livra deste grande mal: a dúvida em que estamos sempre de quais serão os pretos... Mas por favor, não os deixe com malhas". De resto, é evidente a ousadia e a sem cerimónia com que foi publicado este comentário, o que só prova a inexistência na época de uma elite africana esclarecida que pudesse desencorajar a sua publicação.

É que na Guiné da época, já o dissemos, as condições de inserção social do africano na sociedade colonial não foram de molde a que isso pudesse acontecer, à semelhança, por exemplo, do papel precursor e catalisador que teve a Revista Luz e Crença em Angola, revista essa que impulsionou a criação da Associação Literária Angolense. Tanto assim era o ambiente de relacionamento entre portugueses e africanos que nas primeiras décadas do nosso século não surgiu nenhum guineense que merecesse o designativo de continuador da obra de Marcelino Marques Barros, figura importante do último quartel do século XIX que, em nossa opinião, terá lançado os germens da identidade nacional guineense, à qual está indiscutivelmente ligada a sua opção de estudo do crioulo e de algumas línguas nacionais.

Nem mesmo o escuro e obscuro português, como o próprio Honório Barreto se intitulava, foi tão longe em matéria de nacionalismo como Marcelino Marques de Barros, não obstante se deverem àquele as constantes denúncias do racismo colonial, hesitantes embora, dado os cargos que desempenhou em colaboração com o sistema colonial. Como repetidas vezes já dissemos, as condições de inserção do guineense na sociedade colonial eram muito reduzidas, salvo casos muito pontuais. E a provar isso recorremos ao artigo segundo do decreto número 16.473 de 6 de Dezembro de 1922, que pregava: para efeitos do presente estatuto são considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendente que, pela sua ilustração e costumes, se distingam do comum daquela raça; e não indígenas, os indivíduos de qualquer raça que não estejam nestas condições. Como se pode ver por esta disposição legal, estavam criadas as condições jurídicas para a marginalização social do guineense, se considerarmos a clivagem institucionalizada e ainda o grau de instrução, que era quase nulo.

Quanto à cristianização, também não prosperou significativamente. Cacheu, que antes de 1932 era o centro religioso mais importante da Guiné, tinha pouco mais de mil devotos que, mesmo assim, amiúde regressam às suas práticas religiosas tradicionais. A escola-oficina da Missão de Bolama, instituição que mais produziu guineenses letrados na altura, foi fundada em 1933, quando Cacheu, até então considerada como o apanágio da designação Roma da Guiné, perdeu o papel de primazia ante a importância religiosa que Bolama adquiriu devido essencialmente à emigração em massa de caboverdianos.

Antes da chegada em massa de caboverdianos, de facto, a bifurcação entre a sociedade guineense e a colonial era bastante mais acentuada. Foi o elemento étnico caboverdiano que aproximou as duas componentes sociais que coexistiam quase separadamente. E não foi por mero acaso que tal foi possível: a chegada em massa de emigrantes caboverdianos foi encorajada pelas autoridades coloniais com o fim de propiciar a miscigenação cultural e biológica, pensando erradamente – como mais tarde se provou – que o ambiente dela decorrente iria ao encontro dos propósitos do sistema colonial. Curiosamente, a emigração massiva de caboverdianos para a Guiné coincidiu no tempo com um período de menos tensão social, pelo que pode ser tido como um marco de referência no processo de implantação da colonização efectiva na Guiné, sem receio de exagerarmos, pois basta ter em conta o peso dos caboverdianos na administração colonial da Guiné.

Ora, se é verdade que a emigração cabo-verdiana para a Guiné provocou grandes alterações na estrutura social que prevalecia antes, não é menos verdade que, por outro lado, a sua presença e posição social terão facilitado a crioulização social em toda a Guiné. Assim, se por um lado o contacto entre caboverdianos e guineenses foi salutar graças às afinidades históricas e linguísticas (prova isso que ambos eram subjugados pelo colonialismo, pelo que decidiram lutar juntos pela sua libertação), por outro, os guineenses não viam com bons olhos a identificação e, em alguns casos, a colaboração que os caboverdianos, na verdade, prestaram ao aparelho colonial--administrativo na Guiné. Porém, hoje que a reminiscência do passado colonial tende a revelar-se menos forte do que a vontade dos povos em se entenderem, torna-se um imperativo inadiável a necessidade de enquadramento cultural das contribuições valiosas de características coloniais que alguns caboverdianos assinaram, sendo de destacar no domínio literário os exímios romancistas Fausto Duarte e João Augusto Silva, e no ensaio, Juvenal Cabral (pai de Amílcar Cabral) e Fernando Pais de Figueiredo (7).

No que diz respeito aos guineenses, se exceptuarmos os estudos de Marcelino Marques Barros e alguns artigos de Caetano Filomeno de Sá com interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial, somos forçados a admitir que aos guineenses, a política colonial nunca permitiu o acesso em massa à cultura e à instrução, o que explica em medida considerável as razões porque na Guiné colonial não terá existido um movimento literário ou cultural que pudesse de algum modo constituir-se no embrião da literatura nacional, à semelhança, por exemplo, de Vamos descobrir Angola ou do movimento Claridade, no caso caboverdiano. Estamos mesmo em crer que aos guineenses não foram abertos outros caminhos que não o da resistência contra a colonização, mesmo depois de terminadas as guerras de pacificação (8).

Escusado é pois dizer que as condições nas duas primeiras décadas não eram propícias ao florescimento literário. À excepção de alguma actividade jornalística que esporadicamente publicava uma poética saudosista-colonial, que saibamos, não foi publicado qualquer outra obra literária colonial além do poema Desejo Mórbido de Maria Archer e Mariazinha em África*, de Fernanda de Castro. Aquela, sequiosa de exotismo tropical, canta prodigiosamente os mistérios do sertão ao mesmo tempo que estabelece os contrastes entre a metrópole e a Guiné. Como quer que seja, Maria Archer figura como a primeira literata-colonial guineense e o seu poema Desejo Mórbido, data de 1918.

Foi, na verdade, Fernanda de Castro (s) quem, deliberadamente ou não, introduziu, se se quer, uma literatura social na qual era tida em linha de conta a realidade da sociedade guineense e colonial da altura. Ousamos mesmo dizer que a produção literária-colonial desta autora inaugurou – do ponto de vista historicista – um novo período, não só devido à introdução de um discurso literário novo, como também pelas transformações sociais e sociológicas de que a sua produção literária-colonial são o prenúncio, o testemunho e o reflexo. As reedições aumentadas, mas sobretudo alteradas, do best-seller Mariazinha em África (9) conferem uma particularidade flagrante aos escritos desta autora, na medida em que permitem-nos discernir as atitudes do Estado Novo perante a política colonial da Guiné. Além disso, não é apenas o exotismo, o paternalismo e o desconhecimento do outro civilizacional que faz da produção literária-colonial uma peça-chave para a compreensão das metamorfoses da política oficial de que também comungava Fernanda de Castro (10). É, digamos assim, a idiossincrasia com que encarou a sua produção literária-colonial, o que a forçou nas reedições havidas a alterações ideográficas de fundo, de forma a se equidistar do Estado Novo que, paradoxalmente, apregoava a multirracialidade. O racismo colonial, hábil, tinha também uma actuação e respectiva teorização correspondente. Nuns artigos que publicámos no jornal Angolê – Artes & Letras, demonstramos através de um estudo comparativo de diferentes edições de Mariazinha em África a forma como ela foi procedendo a uma gradual suavização da visão colonial ou colonialista do negro-africano, ou seja, da carga conceptual e preconceitual pejorativas.

Já escrevemos algures que o livro de Fernanda de Castro Mariazinha em África teve mais de um dezena de edições que percorreram gerações, e a autora vangloria-se quando diz que «este livro está certamente entre os livros mais vendidos em Portugal». Ora, se por um lado o facto se deveu à capacidade da autora enquanto escritora, por outro também é verdade que o facto de ter sido mulher de António Ferro (braço direito de Salazar) valeu-lhe intervenções públicas de particular interesse. Outro aspecto importante que ressalta dos escritos coloniais de Fernanda de Castro é o deles serem, em termos de intriga textual, factos arrancados à vida real a que não falta um certo teor autobiográfico, que derrapa, regra geral, em construções artificiais, empapados de elementos misteriosos – onde os nomes e as designações geográficas, mesmo quando verdadeiros, apenas figuram como criadores de uma atmosfera exótica.

Depois de Fernanda de Castro, seguir-se-ia um hiato até 1931, altura em que surge o primeiro jornal editado por um guineense. Trata-se de Armando António Pereira, de quem já recolhemos depoimentos para futuros trabalhos. O periódico em causa, O Comércio da Guiné representava não só os interesses comerciais da colónia como também atribuía uma grande importância aos aspectos culturais em geral. Depois do hiato a que já fizemos referência, O Comércio da Guiné aparece como corolário duma situação ambiental de menor tensão social e racial, decorrentes dos problemas que a resistência africana provocava e que absorvia quase totalmente o governo colonial. Doravante o Governo da Guiné tem unicamente a orientá-lo as exigências da nacionalização da colónia e o estabelecimento de condições indispensáveis ao florescimento do comércio colonial. É neste contexto que Bissau ganha rapidamente importância como porto de óptima navegação, e dela resulta o grande movimento comercial no seu interior, donde o reassumir da sua importância em relação a Bolama (11). Em termos da chamada política indígena, passa-se paulatinamente a uma fase que chamaríamos assimilacionismo, pois começou-se a vislumbrar na política colonial da Guiné a tendência para a aproximação social de alguns guineenses com fins previamente visados. Foi nestas condições histórico-sociológicas que O Comércio da Guiné surge em Bissau, em 1931, sendo dirigido por Armando António Pereira, talvez o único guineense com formação superior na altura.

Todavia, convém que se diga, O Comércio da Guiné não se afastou muito do discurso colonial, apesar de se ter assumido, vagamente, como defensor dos interesses indígenas (sic).

No que concerne à produção literária-colonial, O Comércio da Guiné publicou alguma poética que, também, pouco ou nada tinha a ver com a Guiné. No domínio do ensaio destacou-se Fausto Duarte, que também era repórter, cronista desportivo e colunista. Nomes como o de Juvenal Cabral, Alberto Gomes Pimentel e Álvaro Coelho de Mendonça, figuram n' O Comércio da Guiné como autores de inúmeros artigos com algum interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial. Embora se intitulasse de órgão dos interesses da colónia, O Comércio da Guiné transcendeu largamente os objectivos primeiros da sua fundação. Foi nele que Fausto Duarte começou a revelar os seus talentos de escritor colonial para mais tarde se transformar, em nossa opinião, no melhor e mais esclarecido romancista guineense. Por ocasião da primeira exposição colonial de Paris de 1931, O Comércio da Guiné dedicou um número especial ao evento, onde se destacou a etnografia guineense, os aspectos tradicionais da cultura guineense e ainda um artigo intitulado “Literatura Colonial”, não assinado, mas que supomos ser da autoria de Fausto Duarte. Este artigo representa por parte do autor uma consciência profunda dos aspectos teóricos e definicionais da Literatura, além de demonstrar que a década de 30 era caracterizada por um novo discurso literário para o caso guineense; um período em que a Literatura Colonial da Guiné, influenciada pela Literatura Colonial francófona, ia aos poucos relegando para segundo plano a faceta eivada de idealismos, de conceitos morais doutrinários, para se interessar pelo folclore africano... (12).

Em 1931, Afonso Correia publica o livro Bacomé Sambú (13). Trata-se, antes de mais, de uma obra deveras paternalista e exótica, em suma, um misto de ficção, romance e etnologia sobre os nalús. Bacomé Sambú, que é o protagonista da intriga textual, era um nalú a quem o administrador apadrinhara e acarinhava longamente a sua timidez, a sua inocência, encaminhando-o na vida, ensinando-lhe a língua portuguesa com uma paciência que tinha algo de evangélica. Deste extracto sobressai imediatamente o paternalismo feroz, produto de uma mentalidade estigmatizada e verdadeiramente colonial. Ao longo de toda a obra é-se forçado pelo autor a admitir que Bacomé Sambú não é preto mas sim pretito, isto é, duplamente diminuído, donde a necessidade de apadrinhamento da sua tribo/raça pelo administrador ou pelos colonos. Por isso, a dado passo escreveu: “Bacomé estava já no caminho amplo das leis dos brancos, aprendendo com eles a raciocinar sobre a vida e encontrando-se à sua protecção para viver farto e feliz(14) . Estava-se pois na fase do assimilacionismo colonial e Afonso Correia, amiúde, punha na boca das suas personagens uma espécie de auto-convicção da sua inferioridade nata em relação aos brancos. A par disso, associa os conceitos ocidentais de miséria e felicidade à análise que efectua sem qualquer relativismo cultural, de resto, muito comum na literatura colonial de então. Ao mato, associa todo um imaginário preconcebido ou estereotipado de perigo, do negro – sintomaticamente a cor do guineense –, da fauna selvagem, do exotismo e mistério, do medo e do tédio.

Porém, não recusamos a hipótese dum certo enraizamento africano de Afonso Correia tendo em linha de conta algumas incursões que efectua e bem sobre a psicologia nalú. Por outro lado, somos forçados a considerar a obra deste autor como um caso típico de retrocesso ideográfico em relação ao contexto histórico-cultural da sua época. Tanto assim é que, na sua obra, Afonso Correia recorre aos termos de referência obrigatória com que a Literatura Colonial dos primeiros tempos caracterizava o africano. São eles a indolência (insensibilidade moral, indiferença, apatia, inacção e ócio), os excessos (o sexo, a gula e a extravagância) e, por fim, a irresponsabilidade (que pregava que o negro é uma grande criança) e a sofreguidão (que atribuía ao negro a adjectivação de bêbados incorrigíveis). De resto, Bacomé Sambú é uma obra algo enfadonha que, como opinou 0 Comércio da Guiné, “serve-se de um enredo fantasista em que aparece a paisagem matizada de Cacine e a descrição dos usos e costumes pitorescos dós nalús. As observações ligeiras que enfeitam todo o motivo estampam-se numa prosa escorreita, despreocupada(15).

Quanto à imprensa, a década de 30 nem por isso foi fértil. Ao Comércio da Guiné sucederam três outros jornais, todos de número único e sem qualquer importância para o sujeito em estudo. Foram eles, respectivamente, o 15 de Agosto (1932), Sport Lisboa e Bolama (1938) e A Guiné Agradecida (1939).

Ainda na década de 30, António de Cértima revelou-se um escritor colonial de talento. Inicialmente como colaborador d' O Comércio da Guiné e, mais tarde, como cônsul português em Dakar, onde escreveu lindos poemas e prosas de inspiração guineo-senegalesa com muito interesse de estudo. António de Cértima foi autor do maravilhoso livro de viagens Sortilégio Senegalês, onde, numa amálgama de nacionalismo pátrio e algum enraizamento guineense, construiu todo um postulado teórico da sua visão colonial, numa narração plena e multímoda.

Mas foi sobretudo Fausto Duarte que, depois de ter chegado à Guiné em 1928, revela em 1934 com seu livro Auá** uma Guiné diferente daquela que fora pintada na Literatura Colonial até aí (16). As suas funções de agrimensor permitiram-lhe rapidamente um contacto profundo com as populações da Guiné, pelo que partiu, antes de mais, da identificação cultural do povo guineense para encetar uma incursão romanesca que revelou, de forma singular, um conhecimento não só das componentes sociocultural e linguística, como também da sua articulação intrínseca. Tal proeza originou por parte de Benjamim Pinto Bull uma atitude intelectual em que, sem hesitações, coloca Fausto Duarte entre os primeiros, senão mesmo o primeiro, a lançar as sementes de uma identidade nacional (17). Não obstante congratularmo-nos: em parte com Benjamim Pinto Bull, restam-nos as naturais reservas que nos sugerem o estudo global da produção literária-colonial de Fausto Duarte. Não há dúvidas de que Fausto Duarte apostou estranhadamente na descrição romanesca e omnipresente do confronto civilizacional, mas, por exemplo, em Auá descortina-se um paternalismo algo tímido na penetração nos valores culturais guineenses. Ora, Benjamim Pinto Bull atribui isso à vigilância da PIDE (18). Todavia, estamos em crer que a atitude de Fausto Duarte não se deveu unicamente ao poder dissuasivo da polícia política, mas também às condições ambientais da época em termos de visão que se tinha do africano. A provar isso está bem patente nas páginas do seu livro Foram Estes os Vencidos o seu paternalismo relativamente aos africanos. Igualmente, encontramos em Negro sem Alma considerações que denotam fortemente a existência em Fausto Duarte uma espécie de preconceito interiorizado. Senão vejamos: “...o instinto sanguinário adormecido na alma dos pretos despertou com inaudita violência...(19) ou ainda “...abandonando-o, o negro é um pobre corpo sem alma, um vagabundo nostálgico que caminha titubeante atraído pela sombra como as térmitas(20). Por outro lado, não esqueçamos que Fausto Duarte era mestiço, elemento que não era totalmente aceite nem pelos africanos, nem pelos europeus no contexto colonial, donde, talvez, a sua ambivalência e ambiguidade cultural. Seja como for, Fausto Duarte revelou-se como um conhecedor profundo da Guiné assim como da alma guineense. Também é certo que nenhum outro escritor colonial logrou atingir a plenitude das narrações sobre a Guiné que o seu punho brilhante impregnou nas suas obras. De facto, a sua produção literária-colonial foi revolucionária dentro do contexto colonial guineense, pelo simples facto desse autor possuir um poder de observação sociológica extraordinário e, ainda, uma paradoxal consciência de africanidade que se lhe pode atribuir sem reservas.

Por ocasião da primeira exposição colonial portuguesa no Porto, em 1934, Fausto Duarte foi prelector do seguinte tema: “Da Literatura Colonial e da Morna de Cabo Verde”. Descortina-se neste casamento temático, de alguma forma ligado por elos culturais, a tentativa de demonstrar que a Literatura Colonial e a Morna são ambas de mesma raiz cultural – a portugalidade dos trópicos. Não é nossa intenção problematizar aqui a fundamentação desta suposição que não cremos descabida de todo. Tão-somente queríamos chamar a atenção do quid híbrido de Fausto Duarte, o que abona em favor da tese que até aqui temos sustentado, sem anular a nossa profunda convicção de que Fausto Duarte também possuía a consciência da identidade cultural guineense, mas algo que se aproxima em muito daquilo a que hoje se chama, convencionalmente, de protonacionalismo.

Ora, o mérito de Fausto Duarte vai ainda mais longe. Era, digamos assim, o grande teorizador da ideografia literária-colonial, à qual associava um discurso de apelo à justiça ou, se quisermos, moralista: “...não se faz psicologia; descreveu-se apenas a floresta virgem, as cruéis fadigas da jornada, à medida que o litoral se confundia com a linha do horizonte. Os indígenas eram tão-somente animais de uma outra espécie, sem sensibilidade para amar, sem inteligência para compreender (...) depois procurou-se o horrível e o extraordinário. Surgem romances de aventuras que nos pintam o negro como o maior inimigo da selva, em constantes hostilidades. E a mulher indígena apaga-se ante os preconceitos aristocráticos. O amor entre eles tem apenas uma finalidade objectiva. Falta a justeza da expressão nessas literaturas incipientes. Adeja sobre a África uma incompreensível fatalidade (...) é necessário antes o contacto directo com a sua mentalidade, perguntar-lhe a vida e compreender-lhe as superstições(21). Em 1945, Fausto Duarte fecha o seu percurso literário colonial com o livro intitulado A Revolta. Mais que um romance, esta obra é um preciosíssimo documento histórico para a História cultural e das mentalidades subjacentes às guerras de pacificação pois, à semelhança das restantes, privilegia o confronto cultural, desta vez não só entre portugueses, guineenses e caboverdianos, mas fundamentalmente entre as diferentes identidades da Guiné.

Em 1935, Landerset Simões, que exercia funções administrativas e posteriormente militares, publica a Babel Negra, sem dúvida um livro de incalculável interesse, e talvez dos estudos etno-antropológicos cientificamente melhor elaborados sobre a Guiné. Por se tratar de uma espécie de antologia etnográfica e etnológica da Guiné, apresenta algum interesse do ponto de vista literário. E porque remete os leitores para uma ancestralidade étnica remota, que se reporta à História da Guiné e suas populações, Babel Negra figura como a primeira tentativa de desmistificação histórica num contexto ideográfico e cultural em que era lugar-comum supor-se que os africanos não possuem a escrita e, consequentemente, a História. Pela primeira vez um autor colonial debruça-se sobre a arte guineense com postulados metodológicos e conceptuais que se opõem diametralmente às ideias que na Europa se ventilavam sobre a arte africana.

Um ano depois, em 1936, João Augusto Silva publica África – da vida e do amor na selva, que obteve o primeiro prémio de Literatura Colonial. A par das obras de Fausto Duarte, ela surge como uma das obras que mais intensamente penetrou a psicologia e a cultura guineenses. Porém, o grande mérito desta obra reside no facto de ser um testemunho vivo das vicissitudes da implantação da administração na Guiné, além de representar um retrato, bem conseguido, da sociedade colonial da década de 30. Diz o autor – e com razão – que a colonização é feita pelas mais desvairadas gentes, desde os revolucionários e bandidos políticos que para ali foram, pacatamente gozar as recompensas que os seus grupos lhas concederam, até àquelas generosas almas que procuram em África o esquecimento das misérias terrenas (...) deste forçado entrechocar de educações e sensibilidade, nasce uma sociedade odiosa, onde, quase sempre, triunfam aqueles que deviam ser postos à margem dela, pelos seus crimes, suas vilanias e a sua desprezível moral (...); e só vivem para explorar o negro, maltratá-lo... (22)

OBS:-Subtítulo da responsabilidade do co-editor
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

(**) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Vd. primeiro poste da série de 22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução

sábado, 10 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3718: A literatura colonial (3): A antologia do conto ultramarino, por Amândio César (Beja Santos)

Capa do 1º primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, antaologia organizada por Amândio César

Capa de um livro de João Augusto Silva, um dos escritores que figuram na antologia do conto português ultramarino, organizada por Amãndio César.


Imagens: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados


1. Mensagem de 8 de Dezembro, do nosso camarada Beja Santos:

Amândio César (1921-1987) foi, desde sempre, um escritor ideologicamente comprometido com o Estado Novo, tendo desenvolvido actividade como poeta, ficcionista e ensaísta literário (*).

Foi um dos elementos do grupo Poesia Nova, dedicou parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, onde ganha realce a edição em dois volumes de Contos Portugueses do Ultramar. Deixou-nos uma poesia por vezes muito bela, por vezes caldeada num lirismo de pendor tradicionalista e os seus contos, associados carinhosamente ao Minho onde nasceu, têm um vigoroso recorte neo-realista.

Dedicou um livro de reportagens à Guiné, em 1965 (*), e entre as suas traduções mais importantes há a salientar Kaputt, de Curzio Malaparte, porventura um dos mais importantes retratos sobre a guerra que alguma vez se escreveu.

No primeiro volume de Contos Portugueses do Ultramar, a escolha de autores guineenses recaiu sobre Alexandre Barbosa, Álvaro Guerra, Armor Pires Mota, Artur Augusto Silva, Fausto Duarte, João Augusto Silva, Julião Quintinha, Manuel Barão da Cunha e Óscar Ruas.

Concorda-se com a análise que Leopoldo Amado fez no seu ensaio intitulado “A Literatura Colonial Guineense” e publicado na revista ICALP, vol. 20 e 21 (**) , a que já se fez referência: a emergência de um jornalismo na década de 20 do século passado, revelando uma Guiné exótica, uma natureza luxuriante, com dramas amorosos indígenas, tudo dentro de uma idiossincrasia de matriz colonial; a partir dos anos 30 e 40 também do século XX assistiu-se a um surto literário relacionado com o incipiente desenvolvimento económico, estamos na Guiné que tenta a cristianização e a valorização do indígena, isto a par de aspecto etnográficos que são mostrados já num estado de colonização efectiva e de uma colónia onde tudo parece correr bem; o movimento emancipador e a luta pela independência propriamente dita fizeram surgir uma literatura exaltando os feitos militares e o carácter ideológico da dessa mesma luta. A antologia de Amândio César reflecte essas sucessivas ondas.

Alexandre Barbosa, natural de Lisboa, fundou o jornal O Bolamense e colaborou no Boletim Cultural da Guiné, tendo sido nomeado membro residente do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. A sua prosa está repassada de episódios da vida africana, é uma bonita prosa portuguesa onde acidentalmente há caçadas, nomes guineenses, detalhes da floresta.

Álvaro Guerra (1936-2002) (***), talvez o nome mais importante dos escritores compilados desta antologia, fez serviço militar entre 1961 e 1963, tendo sido ferido em combate. Os seus primeiros livros reflectem inequivocamente essa Guiné em luta e o seu conto “O tempo em Uane” é uma pequena obra-prima digna de um Salinger ou de Hemingway. Ora oiçam:

“A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o cipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam arroz, enterrados na lama e na água estagnada da bolanha que se estendia, na geografia infalível dos canteiros, desde a margem do rio até à longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água, dentro do qual os negros se dobravam sobre o resto dos débeis caules verdes”.

Segue-se um conto de Armor Pires Mota, um escritor nacionalista que continua actuante nos dias de hoje. Dá-nos uma poderosa cena de combate entre os bons e os maus, entre os defensores da nossa pátria e aqueles cujos chefes tiveram a instrução em Praga e Moscovo.

Sucede Artur Augusto Silva (1912-1983), um poeta modernista e um estudioso da África ocidental. Voltamos às histórias indígenas, há fauna em desfile na floresta, tudo num português escorreito, é quase uma história de encantar para branco que nunca foi África (****).

Fausto Duarte (1903-1953) (*****) foi nome importante na literatura guineense e o seu romance Auá é seguramente o livro mais emblemático que se escreveu em toda a literatura colonial até aos anos 50. Fausto Duarte era um homem muito culto e dominava com absoluta segurança a técnica literária mas este seu conto “O mestiço” está muito bem escrito e pouco mais.

João Augusto Silva (1910-?) dedicou-se às artes plásticas, distinguiu-se nomeadamente como ilustrador de livros como comprova o livro “Grandes Chasses-Tourisme dans l’Afrique Portuguese”. As suas páginas revelam um gosto cosmopolita e um sentido requintado da descrição mas não se sente alma africana. O mesmo se dirá do contista seguinte, Julião Quintinha, intelectual muito viajado que escreveu sobre a Guiné cheio de curiosidade e para satisfazer a curiosidade alheia.

Manuel Barão da Cunha combateu na Guiné entre 1964 e 1965, está presentemente a refazer todos os seus trabalhos literários, em “O capelão” descreve a presença de um padre que acompanha as forças operacionais fazendo dele a irradiação da tranquilidade que animava todos aqueles que tinham deixado a sua terra natal para defender aquela terra.

Enfim, uma antologia ao sabor do seu tempo (Amândio César publicou em 1969, na Portucalense Editora), há lá páginas muito importantes, registam sentimentos, valores e atitudes que também conhecemos e com quem até convivemos.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. o poste de A. Marques Lopes, de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 – CLXXIII: Informação e Propaganda: os 'grandes repórteres' de guerra, disponível na I Série do blogue > http://www.blogueforanada.blogspot.com/2005_08_14_archive.html

(**) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

Vd. também:

5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3272: A novíssima literatura da Guerra Colonial (Leopoldo Amado)

6 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3275: Clarificar o conceito de novíssima literatura da Guerra Colonial (Beja Santos)


(***) Vd. poste de 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)

(****) Artur Augusto Silva (1912-1983), jurista e escritor, pai do nosso amigo Pepito:

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

(*****) Vd. postes anteriores desta série:

5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Capa do livro de Fausto Duarte, Auá, novela negra, 2ª ed. Lisboa: Livraria Clássica (1ª edição, 1934, 223 pp.).

Imagem: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados


1. Mensagem de Beja santos, com data de 8 de Outubro último:



Auá, de Fausto Duarte: A obra-prima da literatura colonial guineense

por Beja Santos


Coube a Leopoldo Amado (“A Literatura Colonial Guineense”, Revista ICALP, Julho – Outubro de 1990)(*) o mérito de destacar a importância do romance Auá, de Fausto Duarte, contextualizando-o ao sabor das transformações operadas na Guiné portuguesa a partir dos anos 20 do século passado.

Dera-se a “pacificação” ou estava em processo terminal; surgiam os primeiros jornais publicados na Guiné e com eles surgia a literatura jornalística; Maria Archer e Fernanda de Castro (**) escreviam sobre a Guiné em Portugal, e com relativo sucesso; uma elite cabo-verdiana (Fausto Duarte, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo) promovia os interesses africanos pugnando pelo alargamento do ensino aos guineenses.

Fausto Duarte [1903-1955] (***) apareceu como repórter, colunista e cronista desportivo numa Bissau que já é capital comercial da colónia; participou na primeira Exposição Colonial de Paris, dedicando um número especial ao evento no jornal O Comércio da Guiné onde destacou a etnografia guineense.

É um homem culto que capta as novas contradições da assimilação colonial e do gosto pelo exotismo. A Guiné que ele vai descrever em Auá é completamente diferente da retratada quer por Maria Archer e Fernanda de Castro e outros. Pela sua formação, revela atenção e um elevado espírito de observação pelas tensões de civilização: entre as etnias no mato remoto e em Bissau; entre o trabalho agrícola de sobrevivência e o trabalho ao serviço do colono em Bissau; mesmo ao de leve, refere estados de identidade de aproximação entre a realidade colonial e a adesão das populações guineenses. Tudo leva a supor que Fausto Duarte escreveu sinceramente e de acordo com o seu compromisso cultural de hibridação e de exaltação dos valores africanos.

Auá foi galardoada com o 1º prémio de Literatura Colonial em 1934, ano em que aparece editada pela Livraria Clássica Editora, de Lisboa, e com prefácio de Aquilino Ribeiro (ele escreve: “O primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo foi o autor de Auá... Com simplicidade encantadora, vai nos pintando o que é a vida naquele trato de terra e humanidade... Fausto Duarte é pela civilização, mas a sua sensibilidade não cala a ternura que lhe merece o homem escravizado. Os que sonham com um Portugal de além-mar engrandecido hão-de de ficar gratos à pena colorida, equilibrada, emotiva sem excesso que escreveu Auá, estreia literária de maior realce e obra de elevação lusíada”).

Aquilino Ribeiro exaltou o romancista mas também foi excessivo. Fausto Duarte era tudo menos simples: cita Schiller em alemão, Paul Morand em francês, conhece profundamente a cultura europeia e tem uma riqueza vocabular espantosa. Não acredito que a sua Novela Negra, como lhe chamou, tenha sido popular quer na Guiné quer em Portugal. Basta ver como se inicia a sua obra:

“As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolo ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

De que versa Auá ? Malam é um fula que trabalha em Bissau, tinha trabalhado como criado de alemães. Frau Wrede não resiste à beleza de Malam e fazem amor. Depois pede a alguém para escrever uma carta ao administrador de Bissau a oferecer os seus préstimos, quando os alemães partiram. Foi admitido ao serviço e agora vai a caminho do Gabu, vai casar com Auá, a mais bonita bajuda do leste da Guiné. É uma viagem longa, atravessam o Impernal, seguem para Mansoa, depois Mansabá, depois Bafatá. Leva na mala muitas prendas para a sua noiva: lenços, panos, bandas, missangas, manilhas de prata, um fio de ouro. Fica a descansar em Bafatá em casa de um tenente de 2ª linha.

Perguntado sobre como está Bissau, responde: “Os brancos fizeram grandes coisas. Ruas largas por onde passam automóveis e grande caminhões; lojas enormes de panos de todas as qualidades que os brancos fabricam na sua terra; contas douradas, bicicletas e até máquinas de lavrar a terra. Há tempos, veio de Lisboa um aeroplano que parece um grande pássaro”.

O motorista da casa Gouveia leva-o para Contubo-El, daqui seguirá para Sare-Sincham onde vivem as suas famílias, a dele e a de Auá. É uma viagem onde Fausto Duarte aproveita para falar de usos e costumes, da religião e até das povoações. Por exemplo, Geba é descrita como uma vila tristonha, outrora berço do catolicismo heróico, tem o aspecto místico habitado por um povo indigente. De um modo geral, as povoações têm uma rua com casas e lojas comerciais, estão cercadas pelas moranças dos indígenas. Nisto, avista-se a tabanca de Sare-Sincham, onde ele vai ficar em casa dos pais, Braima e Tacô. Fausto Duarte polvilha a obra de frases em fula e até mandinga e crioulo. Mostra-nos Auá e o seu amor por Abdulai, os preparativos para o casamento, há grandes descrições das lutas dos fulas durante a festa, Abdulai desafia Malam para o combate, é derrotado.

A critica social também abundante: o colono que vive com indígena, a superstição e a feitiçaria, o peso da religião muçulmana entre os fulas, a profunda simpatia de Malam pela cultura dos brancos. Segue-se o casamento, a chegada de um feiticeiro, um hipócrita e arranjista que acabará por violar Auá. Malam e Auá irão viver em Bissau, cidade que é descrita por Fausto Duarte como um local de sensualidade, um permanente bordel. Em Sare-Sincham, virão os guardas-fiscais que levarão o curandeiro, Issilda, preso. Terminam entretanto as colheitas, Auá está grávida, dará à luz um filho de Issilda. Malam pratica justiça e mata o curandeiro. O conselho dos anciãos reúne-se para ouvir Malam e praticar justiça. Fausto Duarte é primoroso na descrição do choque de civilizações. Abdulai propõe comprar Auá, Malam aceita e deixa Sare-Sincham. As tradições sobrepunham-se a uma grande paixão. Malam vai trabalhar em Dakar e à noite tem saudades de Auá. A velha cultura conseguira vencer os sentimentos transbordantes de Malam, o criado dos brancos.

A despeito de uma escrita laboriosa e quase laboratorial, o escritor Fausto Duarte descreveu a Guiné com um olhar novo de grande desvelo pela paisagem, com rigor no registo das tradições, destacando os contrastes de uma Guiné onde a aculturação se transformou num problema maior da civilização. É uma pequena jóia literária e merecia ser reeditada tanto em Portugal como na Guiné-Bissau.

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Notas de L.G.:

(*) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões: Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

(**) 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

(***) Vd. Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau, por Filomena Embaló (Novembro de 2004)

(...) "I. A fase anterior a 1945

"Autores marcados pelo cunho colonial

"Os primeiros escritos no território guineense foram produzidos por escritores estabelecidos ou que viveram muitos anos na Guiné, muitos deles de origem cabo-verdiana. A maior parte das suas obras têm um caracter histórico, com a excepção da de Fausto Duarte (1903-1955), que se destacou como romancista, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo, ambos ensaístas, Maria Archer, poetisa do exotismo, Fernanda de Castro, cuja obra dá conta das transformações sociais da colónia na época e João Augusto Silva, que recebeu o primeiro prémio de literatura colonial. Porém a maior parte destes autores caracterizam-se por uma abordagem paternalista e/ou próxima do discurso colonial.

"Durante este período apenas uma figura guineense se destaca : o Cónego Marcelino Marques de Barros que deixou trabalhos no domínio da etnografia, nomeadamente 'A literatura dos negros' e uma colaboração com carácter literário dispersa em obras diversas. A ele se deve a recolha e a tradução de contos e canções guineenses em diferentes publicações e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada 'Contos, Canções e Parábolas'. "
(...)