terça-feira, 9 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21058: Blogues da nossa blogosfera (133): A Tabanca do Centro publica uma preciosa carta do Joaquim Pinto Carvalho, ex-alf mil da CCAÇ 6 (Bedanda, 1972/73), sobre o resgaste do ten pilav Miguel Pessoa, em 26 de março de 1973, por um grupo de tropas paraquedistas da CCP 123 / BCP 12 e pelo grupo do Marcelino da Mata


Lourinhã > Atalaia > Porto das Barcas > 7 de junho de 2020 > O Joaquim Pinto Carvalho na sua casa de verão, onde fez o "confinamento" por causa da pandemia de COVID-19, e onde  se  reune também a Tabanca de Porto Dinheiro / Lourinhã.  

Esta casa dos "Duques do Cadaval",  é também conhecida por "Atira-te ao Mar" ou "Porta-aviões", designação dada pelos amigos (e camaradas), Luís Graça e João Rebelo, respetivamente. ("By the way", a "duquesa do Cadaval" tem, por graça, o nome Maria do Céu Pinteus.)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Com a devida vénia. e as necessárias adaptações ao nosso formato (*),  transcrevemos o seguinte poste do blogue da Tabanca do Centro, de que é "régulo" o Joaquim Mexia Alves e editor principal o Miguel Pessoa (, diretor também da "Karas de Monte Real"):

Sábado, 30 de maio de 2020 > P1231: Uma relíquia com  47 anos...

Do nosso camarigo Joaquim Pinto Carvalho recebemos um mail em que dava a conhecer correspondência trocada há cerca de 47 anos com a então sua namorada, mais tarde esposa, em que referia o contacto tido com o famoso Marcelino da Mata e as histórias por ele contadas nessa ocasião, nomeadamente um resgate de um piloto da FAP perdido no meio das matas de Guileje.

Aqui fica a história, que publicamos na data em que este nosso camarigo comemora mais um aniversário (   ).

Que os festejos sejam adequados às normas de contenção que a actual situação exige...
A Tabanca do Centro

Caro Miguel

Tomo a liberdade de te enviar um excerto duma carta que escrevi, há cerca de 47 anos, quando me encontrava na Guiné (Bedanda). Essa carta e o que nela descrevo ficou no esquecimento, por todo este tempo. Encontrei-a porque ando a recolher tudo o que escrevi durante o período em que estive na guerra para eventual publicação.

O relato dos “factos”, por quanto retive, foi-me feito directamente pelo próprio Marcelino da Mata.

Penso que, tomado como verdadeiro o depoimento, não defraudará a verdade histórica, mas poderás, ou não, confirmar. Também não é “essa” verdade o mais importante para mim, mas a leitura que nesse momento fiz do episódio. Para mim é um documento que, agora ao ler, me traz alguma emoção, mais que nostalgia, e que me é grato partilhar contigo. (...)

O excerto faz parte de uma carta que escrevi à então minha namorada, com quem vim a casar (doutra forma ter-se-ia provavelmente perdido este relato) e, por essa razão, envio-te uma reprodução da carta original.

No entanto, para facilitar a leitura, abaixo transcrevo, na íntegra, esse meu relato, sem pretensões jornalísticos nem de exercício literária, mas que é genuíno, acredita! Se corresponde à factualidade e aos sentimentos pessoais que, em tais circunstâncias, procurei então perscrutar em quem não conhecia, logo me dirás!



Guiné > Região de Tombali > Susetor de Guileje > 26 de março de 1970 > Resgaste do ten pilav Miguel Pessoa, cujo Fiat G-91 timha sido abatido na véspera por um míssil Strela (**). No resgate, dois bigrupos  da CCP 123 / BCP 12,  cap João Cordeiro era o comandante do 1.º bigrupo e o cap Norberto Bernardes do 2. bigrupo, que actuavam isolados. A outra força é o grupo "Os Vingadores", do Marcelino da Mata-

Os créditos fototográficos são  atribuídos ao gen ref Norberto Bernardes, que entre 11 de junho de 1972 e 17 de fevereiro de 1974,  prestou serviço na CCP123 / BCP12. Cortesia do Miguel Pessoa.


O MARCELINO DA MATA

(Carta enviada pelo Joaquim Pinto Carvalho em 28 de Março de 1973)

“Decerto não ouviste ainda falar dum tal Marcelino da Mata e do seu grupo de “Vingadores” – tal como são chamados aqui. É um grupo especial de combate que não atinge a vintena de homens. Não são “turras” ainda que fardem e se armem à maneira turra, utilizando mesmo emblemas do PAIGC.

Pois o Marcelino e o seu grupo estiveram entre nós alguns dias e, porque se foram embora esta manhã, já poderei falar-te deles. Para reconheceres as qualidades (?) desse grupo basta o seu nome - “OS VINGADORES”.

Nas veias corre-lhes a guerra em vez de sangue e não importam os objetivos. São chamados a actuar isoladamente quando as circunstâncias o exigem e só se sentem bem aí.

O Chefe tem nada menos que três cruzes de guerra e uma Torre Espada. É, entre nós, o combatente mais famoso, depois de Spínola, creio, tal como nas fileiras do PAICG, o Nino de quem se diz primo.

Não vou repetir-te as histórias que ele contou, mas relato a última saída que fizeram já durante a sua estadia aqui.

Chegou notícia de que um piloto de FIAT (bombardeiro a jacto) tinha desaparecido junto da fronteira com a República da Guiné, a algumas dezenas de quilómetros daqui. Uma companhia de “páras” andou durante várias horas à sua procura sem qualquer resultado. Na madrugada seguinte, este grupo saiu e ainda não era meio dia, já o haviam localizado e enviado para Bissau. Este é um outro aspecto da guerra.

Agora imagina o que seja um homem sozinho, numa região estrangeira (Rep. Guiné), desarmado, sofrendo ainda o susto que apanhou ao sentir o avião atingido e ao lançar-se de para-quedas.

Andou cerca de dois quilómetros na direcção do quartel e se os “páras” o não encontraram terá sido pela necessidade de se esconder em qualquer buraquinho logo que ouvisse o mínimo ruído de gente, pois dizem que os paraquedistas passaram a cerca de 100 metros dele, o que em plena mata é bastante.

Pois, “os Vingadores” conseguiram recuperá-lo. Esse piloto terá nascido uma segunda vez, não duvido. Estava deitado – e talvez já meio alucinado, quando o encontraram. Ao ver o grupo aproximar-se chamou-lhes todos os nomes possíveis e imagináveis, mandou-os para a merda e outras coisas mais, dado que seria difícil reconhecê-los. Quando o Marcelino que é alferes por promoção, o agarrou quando tentava fugir e lhe disse quem era deve ter sido um momento de loucura.

Esse piloto que deveria sentir-se já irremediavelmente perdido poderá seguir descansado para Bissau e reabilitar-se do temor e de toda a revolução psicológica que deverá ter experimentado dentro de si.


Foi-se um avião (que deve ter custado alguns milhares de contos), mas salvou-se uma vida que não se pode avaliar em dinheiro. É, sem dúvida, uma outra dimensão da guerra. Mesmo assim não terá saldado as muitas mortes que já devem ter feito nas operações em que entraram.

Mas, deixando em paz os vingadores…"





Original da carta enviada em março de 1973


Não sei se te surpreendi, nem sei se outros “camaradas”, ao tempo, fizeram igual… Há memórias que não podem ser esquecidas!

Fica um forte abraço, esperando que no meio desta “guerra” pandémica tudo vos esteja a correr bem.

Joaquim Pinto Carvalho

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Nota do editor da Tabanca do Centro:

O texto apresentado está conforme a carta enviada pelo Joaquim Pinto Carvalho em 28 de Março de 1973, que quisemos manter. Mas será conveniente prestar alguns esclarecimentos sobre o que aqui é descrito.

Na verdade não houve forças nossas no terreno a tentar recuperar o piloto no dia em que ele foi abatido. A primeira identificação do local em que ele se encontrava só ocorreu cerca das cinco da tarde, não havendo tempo disponível para efectuar o resgate (, com a  noite iria cair muito rapidamente).

No dia seguinte foram posicionados dois grupos na orla da mata referenciada - um com 25 pára-quedistas chefiados pelo Cap Norberto Bernardes e um segundo grupo com 25 pára-quedistas chefiados pelo Cap Cordeiro, que acompanhavam o grupo de Operações Especiais do Marcelino da Mata (14 elementos).

Foi aliás o primeiro grupo que localizou os destroços do avião e recuperou o pára-quedas e o capacete do piloto. Foi depois mandado parar e estabelecer a segurança, avançando então os grupos do Cap. Cordeiro e do Marcelino da Mata para resgatar o piloto, entretanto localizado.

Quanto ao possível estado alucinado do piloto, não exageremos... embora já começasse a ter os platinados a falhar... E os insultos que ele mandou ao pessoal parecem totalmente justificáveis, quando os primeiros elementos da equipa de resgate com que se depara são africanos equipados com fardas cubanas e armados com Kalashnikovs... (**)

O editor (que por sinal era o piloto em questão...)
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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 24 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21006: Blogues da nossa blogosfera (131): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (47): Palavras e poesia

(**) Vd. postes de:

Guiné 61/74 - P21057: Parabéns a você (1819): Ernesto Duarte, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1421 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21053: Parabéns a você (1818): Antero Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 e CCAÇ 18 (Guiné, 1972/74) e João Gabriel Sacôto, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 617 (Guiné, 1964/66)

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21056: Tabanca Grande (494): Edgar Tavares Morais Soares, ex-Fur Mil Op Especiais da CCS/BART 3873 (Bambadinca, 1971/74), 808.º Grã-Tabanqueiro da nossa tertúlia

1. Por intermédio do camarada Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873, tertuliano n.º 2 do nosso Blogue, chegou até nós esta mensagem de Edgar Tavares Morais Soares, ex-Fur Mil Op Especiais da CCS/BART 3873 (Bambadinca, 1971/74), com data de 28 de Abril de 2020, que, apadrinhado pelo Sousa de Castro, passa a partir de hoje a figurar entre os antigos combatentes da Guiné sentados à sombra do nosso poilão sagrado. 

Edgar Soares passa a ser o 808.º Grã-Tabanqueiro do nosso Blogue e escreveu o texto abaixo em memória do Tenente Graduado Comando Abdulai Queta Jamanca, Comandante da CCAÇ 21.

Carísimo! 

Escrevi este texto no dia 25 de abril em respeito à memória de um bravo homem, Tenente Jamanca da CCAÇ 21, fuzilado como todos os homens da sua Companhia, com quem partilhei várias situações de “desprezo” pela vida em defesa de uma causa que no fundo nos empurrava para aquela situação de sobreviver, “matando para não morrer”, em nome da Pátria…

Edgar Soares
Ex-Fur Mil Op Esp


Edgar Soares em Bambadinca


Edgar Soares na actualidade


Bambadinca: messe de sargentos


Uma festa em Bambadinca na messe de sargentos


Bambadinca: Equipa de futebol

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Hoje, 25 de abril, de 2020, também a mim me apetece contar algumas histórias das minhas vivências da época.

Como todos os Portugueses de boa memória, é obvio e natural que rejubilei com os acontecimentos e princípios que presidiram ao 25 de abril de 1974. Todavia, existe um passado que se torna sempre muito recente no meu ego, que me persegue muito profundamente e, como tal, não posso mais calar.


1.º Cabo Comando Jamanca
Como à data, 1974, denunciei, fui militar na Guiné, durante 27 meses e meio, com términos da comissão a 04 de abril de 1974, data de desembarque em Lisboa. Na Guiné, estive integrado no BART 3873, sediado no setor Leste, na região de Bambadinca. 

Do nosso Batalhão, faziam parte as Companhias CCS, CART 3492, CART 3493 e CART 3494, que ocuparam os aquartelamentos, respetivamente, de Bambadinca, Xitole, Mansambo e Xime. Em Bambadinca, tínhamos um centro de formação de tropas nativas, e, afeta à CCS, uma Companhia de Intervenção nativa, a CCAÇ 12, comandada pelo Capitão Bordalo,  ranger, que viveu os seus últimos anos em Lamego, sendo os mais graduados do continente. 

Posteriormente, a CCAÇ 12, foi rendida por uma outra companhia de nativos, na sua totalidade, a CCAÇ 21, comandada pelo magnifico Tenente Jamanca.

Ainda como tropas nativas, tínhamos múltiplos pelotões de milícias, em autodefesa, nas zonas de Mato Cão, Amedalai, Finete, Fá Mandinga, Missirá, Enxalé, no reordenamento de Nhabijões, etc…

Durante o Comando-Chefe do General Spínola, na Guiné, foi desenvolvida toda uma Acção Psicológica, junta das populações nativas e até das nossas tropas, onde destaco a máxima “Guiné de Hoje Guiné Melhor”, e mal daquele que agredisse, fisicamente ou verbalmente, um nativo… 

Mais se dizia nessa “Psico”, “juntem-se a nós, porque quando a independência chegar, vocês serão os futuros detentores do poder que vier a ser constituído”.

Foi então naquele contexto militar, e já com o General Bettencourt Rodrigues a render o General Spínola, que ali permaneci com os meus camaradas de armas. Após 15 dias do regresso, por términos de comissão, aconteceu o 25 de Abril, estando eu nesse mesmo dia, por coincidência, no Quartel do RAP 2, em Gaia, quando chegou a notícia que estava a haver um levantamento militar em Lisboa…

Muito rapidamente, notou-se o Povo a começar a vir para a rua e então logo se começaram a ouvir alguns gritos, que se foram tornando muitos: - “liberdade, abaixo o fascismo, morte à Pide…” e muitos outros slogans que as circunstâncias impunham…

Lembro-me de estar no meio de um tiroteio, na Av. Rodrigues de Freitas, frente à biblioteca, em S. Lázaro e ter socorrido uma jovem que, ao fugir tropeçou, bateu com a cabeça na berma do passeio e desmaiou. Os tiros vinham da esquadra da PSP e de uma viatura da mesma polícia que, entretanto, estava a ser apedrejada pelos populares…

Sim! Sim! Sim! Viva o 25 de Abril, enquanto movimento de uns tantos militares, “os capitães de abril”, em luta pela liberdade intelectual e moral de um Povo amordaçado no falar, no dizer, de pensamento condicionado pela censura, com toda a sua juventude refém de acontecimentos inopinados, motivados pela obrigatoriedade do cumprimento do serviço militar…

Entretanto, decorridos os primeiros entusiasmos, eis que o poder, depois de ter passado pela rua, “MFA/POVO/POVO/MFA”, é entregue aos supra interesses “manipulados e manipuláveis” dos emergentes políticos, que, com retóricas, quais as mais iluminadas, perante um povo vazio de doutrinas ideológicas, mais preparado para um seguidismo fácil, e foi assim que vimos o processo a evoluir, abruptamente, com vários ziguezagues, até ao ponto aonde eu agora quero chegar... A descolonização.

Com aquele processo de descolonização, das nossas então províncias ultramarinas, surgiu, quanto a mim, uma das maiores vergonhas da nossa história… Após guardarem os CRAVOS, eis que se fez jorrar o SANGUE dos “mártires portugueses agora anónimos” do 25 de Abril…

Sabiam que de um momento para o outro, àqueles portugueses, tropa nativa, que sempre estiveram na linha da frente, ao nosso lado, a lutar tal como nós, por ideias e ideais um tanto desconhecidos de muitos, mas que nos eram impostos, ao serviço da PÁTRIA, lhes foram retiradas todas as armas e mais elementos de defesa, pessoal e coletiva?

Sabiam que aqueles autênticos guerrilheiros foram deixados ficar para trás, pela sua Pátria de então, entregues única e exclusivamente às suas sortes, acabando, na sua grande maioria, foragidos nas matas?

Sabiam que os nossos políticos outorgantes da Independência ao PAIGC, os deixaram sem qualquer obrigatoriedade de indulto impositivo, para não terem de enfrentar os pelotões de fuzilamento, do inimigo de outrora?

Sabiam que todos aqueles que estiveram identificados como nossos tropas ou aliados, foram passados a bala, em fuzilamentos individuais e coletivos, sem qualquer possibilidade de defesa, vindo a ser sepultados uns e enterrados outros, quais campos nazis, em balas comuns, quantos deles, soldados sargentos e oficiais, “Tenente JAMANCA”, com condecorações múltiplas por atos e atitudes de distinção ao serviço da PATRIA? 

Pois tudo isto se passou e muito mais, o que considero a vergonha do “25 de ABRIL” …

Mas, reparem os comentadores e nossos historiadores, que não foram só os nossos soldados, sargentos e oficiais nativos que enterramos ingloriamente!!! Que havemos de pensar e dizer de todos aqueles que um dia também daqui partiram com os mesmos propósitos militares, ao serviço da PÁTRIA, e lá tombaram, ou regressaram, com problemas de natureza múltiplas, outros tantos com as mesmas condecorações, pelos mesmos atos de distinções??? 

Não estará na hora de nos perguntarmos, portugueses, se tudo pelo que passamos, os de cá e os de lá, valeu a pena?...

É bem capaz que os maiores culpados dos acontecimentos supra, sejam os do velho regime, “Fascismo”, até por não terem sabido ou querido resolver os problemas da independência a seu tempo!!! Na realidade, cada um por si, se me afigura que o socialismo e as outras ditas ideologias, democráticas, também não estiveram em nada melhor na gestão daquela “herança”, e bem pior, desonraram-se e desonraram historicamente todo um Povo... “Por negligência agnóstica?” Não acredito. Com certeza, outros valores que a razão ainda quer desconhecer, estiveram por detrás de todos aqueles acontecimentos…

Uma coisa é certa, toda uma geração, que também é a minha, terá que ficar com a amargura dos factos da história não contada, desvirtuada no nosso desempenho de serviço à dita PÁTRIA, ficando-nos sem dúvida, como maior consolação, as muitas amizades que ao tempo fomos acumulando, lá e cá, e que vamos alimentando nos momentos que promovemos dos sãos convívios dos velhos “guerrilheiros”…

Como dizia o Camões, para o bem e para o mal:
- “…DITOSA PÁTRIA QUE TAIS FILHOS TENS” (?)…

“Glória aos vencedores, honra aos vencidos”!...
Descansa em Paz,  JAMANCA e Todos Aqueles que te acompanharam na dita e na desdita!...

Alvarenga 25 de abril de 2020
Edgar Soares

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2. Comentário do editor:

Caro Edgar Soares, bem-vindo à nossa Tabanca Grande e à sombra do nosso poilão.

Como não temos lugares marcados, que estão todos de acordo com as normas de afastamento e segurança nesta época de COVID, podes entrar e sentar-te onde quiseres. Prepara os teus textos e fotos, que partilharás connosco na cadência que te convier, para que possas contribuir com as tuas memórias de guerra. 

Quem sabe, não estaremos a fazer história e a deixar aos nossos vindouros registos na primeira pessoa para que se possa fazer a história da guerra na Guiné.

O BART 3873 tem 189 entradas no Blogue, muitas delas graças ao Sousa de Castro, julgo eu, mas, como sargento da CCS, terás outras perspectivas e outras vivências a contar-nos.
Estamos ao teu dispor em luis.graca.prof@gmail.com e/ou nos endereços dos outros dois editores, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães, que encontrarás na aba esquerda da nossa página.

Em nome da tertúlia e dos editores, deixo-te um abraço de boas-vindas. Carlos Vinhal,
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20900: Tabanca Grande (493): José Carvalho, natural do Bombarral, com amigos na Lourinhã, ex-alf mil inf, CCAÇ 2753, "Os Barões do K3" (Bissau, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim / K3 e Mansába, 1970/72): senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar n.º 807

Guiné 61/74 - P21055: Da Suécia com saudade (71): O colonizador, o colonizado, a língua materna, o "pretoguês"... O caso da escrita do Luandino Vieira (José Belo)

1. Mensagem do José Belo, com data de 25 de maio p.p.

[José Belo: (i) ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70; (ii) manteve-se no ativo, no exército português, durante uma década;; (iii) está reformado como capitão de infantaria do exército português; (iv) jurista, vive entre Estocolmo, Suécia, nem como nas imediações de Abisco, Kiruna, Lapónia, no círculo polar ártico, já próximo da fronteira com a Finlândia, mas também Key-West, Florida, EUA; (v) é o único régulo da tabanca de um homem só, a Tabanca da Lapónia (, mas sempre bem acompanhado das suas renas, dos seus cães. dos seus alces e dos seus ursos)]

Assunto: Colonialismo e língua materna

Não recordo se já terei enviado esta perspectiva quanto aos efeitos "paralelos" do colonialismo quanto a algo täo importante como a língua materna como forma de expressão íntima.
Os membros do blogue,principalmente escritores, certamente terão opiniões interessantes sobre assunto tão sensível mas täo pouco analisado.
Um abraço,

J. Belo

2. Segunda mensagm, com dat de 4 do corrente:

Meu Caro Sr. Editor

E eu que julgava que iríamos ter uma troca de ideias interessante sobre o texto da brasileira Tânia Macedo sobre o Luandino Vieira quanto à "linguagem do colonizador imposta ao colonizado".[Publicado na revista de linguística "Alfa", de São Paulo Brasil; o artigo completo está disponível aqui.]

O preço da integração social à custa da destruição das culturas inferiores aos olhos dos civilizados.... Exemplo mais próximo do que o Ibérico näo podemos ter...Só os Bascos mantiveram a sua língua.
Os Romanos não os colonizaram como aos restantes.

Como se diriam na Lusitânia, ou em outros locais da Península,  as palavras "mãe", "pai" ,"irmão", "amor",   "ódio", "saudade", "casa"..., antes da língua latina dos senhores que nos... civilizaram?

Havendo no Blogue escritores ,historiadores,e outros amadores,(e não escrevo "poetas",  por não rimar com escritores, historiadores, amadores) certamente que opiniões díspares existem.

Um abraço do J. Belo

José Luandino Vieira. Cortesia do
portal Wook
3. Excertos do artigo  "O  'pretoguês' e a literatura de José Luandino Veira"
Alfa, Sào Paulo. 36: 171-176,1992 171

por Tânia Macedo 

[Departamento de Literatura - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP -19800 - Assis]

RESUMO: O texto examina a elaboração artística do 'pretoguês' - forma pejorativa com que os colonizadores portugueses denominavam a linguagem híbrida português/quimbundo utilizada pela
população angolana - na obra do escritor angolano José Luandino Vieira. (...)

O jogo de forças e tensões presente na situação colonial é marcado por dois pólos antagônicos: colonizador e colonizado. O primeiro, como conquistador, impõe a uma maioria numérica seus valores, línguas, técnicas e estruturas socioeconómicas sob a lógica da unidade: uma só lei, uma só língua (obviamente a sua). O colonizado, em conseqüência, passa a constituir uma minoria sociologicamente dada, a qual será submetida e, constantemente, espoliada de seus valores em nome da 'civilização' do outro.

A essa luz, não se pode esquecer que do quadro de contradições engendrado pelo colonialismo avulta o "drama do bilinguismo": o colonizado deve assumir a língua de seu conquistador e, paulatinamente, distanciar-se de sua própria forma de expressão, conforme muito bem salientou Albert Memmi [, 1977,]: "A língua materna do colonizado, aquela que é nutrida por suas sensações, suas paixões e seus sonhos (...), enfim, aquela que contém a maior carga afetiva, essa é precisamente amenos valorizada (...). Se quer obter uma colocação, conquistar seu lugar, existir na cidade e no mundo, deve, primeiramen aplicar-se à língua dos outros, a dos colonizadores, seus senhores". (...)

Lembre-se, todavia, que os danos causados pelo colonialismo não se restringem apenas a esse fato: se por um lado temos uma língua imposta a uma população, por outro, a escolarização dada na língua de maior prestígio é reduzida. Estamos frente, portanto, a mais uma das contradições do sistema, pois fazer do colonizado um indivíduo que dominasse totalmente o sistema lingüístico do colonizador seria incluí-lo nos seus mecanismos de poder e, destarte, selar a sorte do próprio sistema. (...)

Temos, dessa maneira, uma população condenada a renunciar a seu código valorativo, ao mesmo tempo em que lhe é vedado o inteiro domínio de outro código. Em resumo, se o bilíngüe colonial conhece duas línguas, nenhuma domina totalmente.

A literatura efetuada sob tal situação contraditória, desde que não seja uma literatura do colonizador, será, necessariamente, a veiculação da carência da população marginalizada na luta por sua forma própria de expressão e deverá forjar-se sob o signo da dualidade.

No caso da literatura angolana, por exemplo, os cinco séculos de dominação colonial portuguesa constituíram forte entrave à sua sistematização, pois apenas na década de 50 de nosso século toma corpo um sistema literário coerente no país, integrando a tríade autor-obra-público. Sistema esse que se traduz em autores conscientes de seu papel, nas obras veiculadoras de conteúdos eminentemente acionais sob aspectos codificados de linguagem e estilos e no conjunto de receptores,
ainda que pequeno, formado por angolanos alfabetizados e preocupados com sua especificidade cultural. 

Conforme bem assinala Carlos Ervedosa [, 1979,], "enquanto [os escritores] estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles faziam parte mas quemntão mal lhes haviam ensinado, começa a germinar uma literatura que seria a expressão da sua maneira de sentir, o veículo de suas aspirações, uma literatura de combate pelo seu povo". (...9

Ora, a literatura oriunda de tal tomada de consciência de seus produtores não Estava dissociada da certeza de que o sistema colonial deveria ter termo. Dessa forma, autores como Agostinho Neto, Costa Andrade, Luandino Vieira ou Jofre Rocha têm seus nomes ligados tanto às melhores produções literárias angolanas quanto a um combate direto pela independência de seu país. (...)

Português e quimbundo construindo a angolanidade

Dentre os escritores da moderna literatura angolana, José Luandino Vieira  (#) é, sem dúvida, um dos ficcionistas mais significativos. Seus textos revelam, nos níveis temático e estilístico, as contradições do sistema colonial, apresentando uma linguagem que acaba por tomar o partido dos que, à força de conhecerem duas línguas, a nenhuma dominam totalmente. É assim que suas estórias tematizam os musseques de Landa - bairros pobres equivalentes às nossas favelas - e sua população bilíngüe
português/quimbundo, majoritariamente negra.(...)

 Dessa forma, Luandino ousa levar para as páginas da literatura - em plena vigência do regime colonial português emAngola - (...)  'o pretoguês', ou seja, a forma híbrida de expressão dos bilíngües coloniais, a qual constituía motivo de freqüente menosprezo destes e, portanto, uma das fontes alimentadoras do racismo do colonizador em relação ao colonizado. 

Sob esse aspecto, a escolha do material lingüístico efetuada pelo autor redunda em uma reivindicação
de prestígio para a fala híbrida do homem do povo, dando-lhe status literário. Vale notar que a escrita de Luandino Vieira, apesar da forte vinculação ao falar dos musseques luandenses, vai além, pois seus textos não se constituem apenas em registros literais da forma de expressão de uma parte da população angolana. Ao criar neologismos e subverter a estrutura da língua portuguesa através do uso do quimbundo e do 'pretoguês', ele detém o mérito dos grandes empreendimentos da literatura
de nosso tempo: obriga a avançar devagar. 

Ou seja, a ficção luandina força o leitor a rever seus conceitos de literatura, arte e linguagem, em um esforço de dupla orientação: tomar distância dessa ficção, vinculando-a a valores universais, ao mesmo tempo em que busca a sua localização em uma geografia literária. Assim, sem se Aperceber, o decodificador das estórias do autor angolano vai sendo mobilizado a repensar seus códigos estéticos, suas estruturas lingüísticas, em um esforço de entendimento do universo narrativo apresentado.

Destarte, verifica-se que o trabalho artístico efetuado a partir do 'pretoguês' nos textos de Luandino Vieira vincula-se à recusa e à denúncia da situação colonial, afirmando uma 'angolanidade' ao mesmo tempo em que se inscreve na corrente da modernidade, convergindo pois para a realização literária plena de nosso tempo.

Façamos referência a alguns aspectos lingüísticos da ficção do autor, a fim de explicitarmos como se constroem a modernidade e a recusa ao colonialismo nos seus textos.

O substantivo quimbundo muxima (coração) pode nos servir como excelente início, já que em várias oportunidades o mesmo apresenta-se como base para a formação de neologismos, recebendo desinências da língua portuguesa que irão se desdobrar em outros matizes de significação:

(...) lhe traziam sussuradas palavras dela na hora que as mãos dele muximavam ou serebelavam nas fronteiras, queriam mais demarcar na leia mata de se corpo, descobrir e abrir
picadas. (Vieira, 1974, p. 32)

(Traziam-lhe suas palavras sussurradas no momento em que as mãos dele a acariciavam
ou se rebelavam nas fronteiras, no momento em que elas desejavam demarcar a estranha mata
de seu corpo, descobrir e abrir picadas.)

(...) não conseguiu de fugir no quinzar, lhe falou até, lhe muximou perdão, (p. 71)

(Não conseguiu fugir do monstro antropófago, chegou a falar-lhe, pediu perdão.)

(...) mas o Mangololo afirmava, cada vez mais mwúmadoi, que o bilhete recebera-lhe do
Joaquim Ferreira. (Vieira, 1978, p. 60) (##)

(Mas Mangololo afirmava, cada vez mais adulador, que recebera o bilhete de Joaquim
Ferreira.) (...)
____________

 Notas da autora:

(#) José Luandino Vieira passou onze anos nas cadeias do colonialismo português. Em 1965, seu livro Luuanda foi agraciado com o Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, o que provocou o encerramento daquela Sociedade, bem como o assalto e depredação de sua sede pela PIDE.

(##) VIEIRA, J. L.

João Vêncio: os seus amores. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1979.

Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto e eu. Luanda: União dos Escritores
Angolanos, 1981.

Macandumba, Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1978.

Velhas estórias. Lisboa: Plátano, 1974.

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20970: Da Suécia com saudade (70): O verdadeiro rei das florestas escandinavas, o alce ("älg") (José Belo)

Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Muitos foram os historiadores e investigadores que se debruçaram sobre o pensamento e ação de Amílcar Cabral, basta pensar em Patrick Chabal, Mustafah Dhada ou Lars Rudebeck. Porém, nenhum deles foi tão longe no aprofundamento do estudo da ideologia de Cabral, na análise da gestão da orgânica política e militar do PAIGC, nas tensões internas que se esboçaram entre políticos e militares, sobre qual tipo de socialismo o líder histórico procuraria praticar após a independência.
Julião Soares Sousa é um investigador altamente documentado, usa a propósito testemunhos de participantes e maneja a observação e a dedução em torno do líder histórico com inegável mestria e independência. O que, insiste-se, torna esta obra uma referência incontornável para estudar os fundamentos históricos da Guiné-Bissau a partir da vida e obra de um dos maiores revolucionários africanos de sempre.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (3)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Convém relembrar, telegraficamente, os elementos já biografados, a infância, a formação e os estudos em ambientes cabo-verdianos, a preparação universitária em Lisboa e a conscientização anticolonial; o nacionalismo guineense e como Amílcar Cabral congeminou os fundamentos ideológico-estratégicos da unidade Guiné e Cabo Verde; a passagem à clandestinidade e o exílio, as tensões em Conacri e em Dakar com os outros movimentos de libertação, a acreditação do PAIGC em África e no mundo socialista; a preparação para a luta armada com o auxílio da China e da URSS e de alguns países africanos.

Estamos agora num ponto importante do trabalho de Julião Soares Sousa: o pensamento e a ação de Cabral, a sua originalidade a partir da análise da sociedade guineense, mas também no confronto com o colonialismo português e o modelo montado pelo Estatuto do Indigenato; a sua produção teórica foi manifestamente inovadora sobre o papel da cultura no processo de libertação nacional. A par desta teoria e prática revolucionária, Cabral foi montando dentro dos movimentos de libertação das colónias portuguesas uma ofensiva diplomática em África, nas Nações Unidas, junto dos países comunistas e nos fóruns revolucionários. A luta armada conheceu logo em 1963 o grande sucesso que foi a desarticulação da região Sul e a abertura da frente Norte de tal modo que se chega a 1964 com a presença portuguesa muito reduzida na região Sul, o rio Corubal fica praticamente sem controlo das forças armadas portuguesas e a frente Norte corta o acesso a Bafatá, este eixo vital para o abastecimento do Leste processar-se-á através de Bambadinca até finais de 1969, a partir daí o porto do Xime ganha preponderância. Cabral contava com muito auxílio africano, praticamente não chegou. Este fenómeno teve diferentes causas: a grande rivalidade e proliferação dos movimentos nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde, no início da década de 1960; a vaga de instabilidade política com golpes de Estado e a profunda divisão entre países moderados e os radicais de tendência revolucionária. Cabral não desiste, pede armamento, a URSS torna-se no principal fornecedor, mais tarde serão aceites apoios cubanos e chegar-se-á mesmo, dos anos 1960 para os anos 1970 a receber apoio escandinavo não militar.

Cabral teve que agir com firmeza logo no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, cortou cerce os abusos contra a população, viu aprovado um plano de reformas e de reorganização que os diferentes estudiosos do PAIGC dão como cruciais para a implantação do PAIGC e que se traduziram por: organização do partido; criação das FARP; reforço das guerrilhas em todo o território; criação do exército popular e das milícias populares. Era também a guerra pela conquista da população numa fase em que as forças armadas portuguesa agiam com grande beligerância, o General Arnaldo Schulz pretendia fazer uma ofensiva militar à custa de bombardeamentos, Lisboa assegurou-lhe um aumento significativo de efetivos e deu-lhe luz verde para começar o processo da africanização da guerra, com a formação de milícias, depois de caçadores nativos e até de forças especiais; além disso, Schulz não descurou a aliança histórica com os chefes islamizados enquanto desenvolvia um plano de ocupação do território, de ofensivas sobre o Morés e outros santuários. Nas Palavras de Ordem, de 1965, Cabral escrevia: “Temos de destruir tudo quanto pode servir ao inimigo para continuar a sua dominação sobre o nosso povo, mas temos ao mesmo tempo que ser capazes de construir tudo o que é necessário para criar uma vida nova na nossa terra”. Note-se que Cabral foi cuidadoso com as destruições, tinha noção que havia infraestruturas indispensáveis para depois da independência, mas não se coibiu de mandar dinamitar pontes que eram estratégicas para o seu inimigo, caso da ponte sobre o rio Gambiel, que ligava o centro localizado em Mansoa até Bafatá. Cabral encorajou as populações das “áreas libertadas” a aumentarem a produção, a prover a alimentação dos combatentes, a venderem produtos no mercado exterior (fundamentalmente na Guiné Conacri) para se adquirirem bicicletas, sal, sandálias, sabão e tecidos. Em finais de 1966, abastecimento agravou-se, os raides da aviação portuguesa atingiam seriamente a produção e as colheitas, foi por esse tempo que se acelerou a criação de armazéns do povo, criados em 1964.

A questão ideológica ia ganhando premência, Cabral tinha a noção que o trabalho político para elevar o nível dos trabalhadores dava amostras de insuficiência, era preciso mobilizar, divulgar palavras de ordem, estar atento aos problemas e aspirações das populações, era esse o trabalho dos comissários políticos e dos quadros competentes. Ele dirá mais tarde e sem ambiguidades: “Podemos derrotar os tugas em Buba ou em Bula, podemos entrar e tomar Bissau, mas se a nossa população não estiver politicamente bem formada, agarrada à luta como deve ser, perdemos a guerra, não a ganhamos”. Será sempre profundamente crítico pelo trabalho desenvolvido pelos agentes responsáveis pela difusão ideológica, pelas confusões e contradições que estes agentes revelavam na hora de aplicar as diretivas do partido.

O historiador mostra claramente que houve lutar internas e crise de liderança em todo o tempo de luta armada: tentativas de formação de outros partidos, tentativas de assassinato de Cabral, as populações e os combatentes davam sinais de desânimo pois os bombardeamentos afetavam os principais celeiros do PAIGC situados no Sul, no Quitáfine. Davam-se deserções, que chegaram a tomar proporções graves, Chico Té chegou a sugerir a prisão dos familiares dos desertores.

Cabral ia sendo sujeito às críticas feitas à sua liderança. A melhor resposta que encontrou foi o seminário que teve lugar em Conacri, de 19 a 24 de Novembro de 1969, ao qual assistiram quadros políticos e militares, velhos e jovens, Cabral não se escusou a abordar as questões quentes e de denunciar racistas, tribalistas, oportunistas no meio dirigente do PAIGC. Foi autoritário e mesmo dogmático com a questão da unidade Guiné e Cabo Verde, quem não concordava devia abandonar as fileiras do partido. Ciente de que o partido estava infiltrado e que o número de informadores crescia, procurou aumentar a segurança e o controlo internos. A partir de 1970 a estrutura do partido conheceu modificações de monta, o líder do PAIGC acabou com a antiga estrutura composta pelo comité central, o Bureau Político, o comité das inter-regiões com a nova estrutura, na cúspide do poder ficavam três membros fundadores do PAIGC: Amílcar Cabral, Luís Cabral e Aristides Pereira.

Suspende-se aqui os dados biográficos de Cabral, veremos proximamente as tentativas de abertura de uma frente de guerra em Cabo Verde, a questão do socialismo e a construção do Estado no pensamento de Cabral e todo o processo diplomático e discussão interna para se chegar à proclamação do Estado da Guiné. Cabral prosseguia o sonho de se chegar à independência e com o reconhecimento do Estado na Guiné-Bissau obter apoios militares que levassem a presença portuguesa ao seu termo. Será nesse contexto que se urdiu um enormíssimo complô que levará ao seu assassinato, cujos autores morais ainda estão por esclarecer.

(Continua)
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21029: Notas de leitura (1287): “Guerra e política, em nome da verdade, os anos decisivos”, por Kaúlza de Arriaga; Edições Referendo, 1987 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21053: Parabéns a você (1818): Antero Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 e CCAÇ 18 (Guiné, 1972/74) e João Gabriel Sacôto, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 617 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21050: Parabéns a você (1817): Ernesto Marques, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73)

domingo, 7 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21052: Em busca de... (306): 1º Cabo Apontador de Metralhadora, nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (Mário Gaspar)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > 1967 > Aquartelamento e tabanca em meados de 1967, no início da comissão da CART 1659.

Foto (e legenda): © Mário Gaspar (2013). Todos os direitos reservados. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Mensagem, de 5 do corrente, do Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68: 


Camarada Luís e Camarada Carlos

Vão aparecendo Camaradas da Companhia de Artilharia – CART 1659 (Zorba – “Os Homens não Morrem”. Um deles é o nosso 1º Cabo nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, Apontador de Metralhadora.

Curiosamente recordo o nome, mas não estou a ver a pessoa.

 Peço ao Picanço que me envie o seu E-mail, Morada e Telemóvel.

Por não recordar a pessoa, embora tenha verificado no meu livro “O Corredor da Morte” e na “História da Unidade” e é verdade o Picanço é Zorba.

A CART 1659 estava recheada de bons Militares – Extraordinários Mecânicos Auto, capazes de porem a funcionar algumas das dezenas de viaturas; Carpinteiros e até Pedreiros. A foto [acima] é bem demonstrativa das condições que tínhamos, no início da comissão.

Tudo era improvisado, não existia uma Loja de Esquina. De uma garrafa de cerveja fazíamos um copo; de uma outra garrafa de cerveja nascia um candeeiro; do barril de vinho inventava-se um banco, uma cadeira e até uma mesa. De um bidão fabricávamos tabuleiros para assar.

O nome do Aquartelamento era Gadamael Porto, mas nem sinais existiam de um Porto. Não foi a Engenharia que construiu o nosso Porto, fomos nós que nem sequer éramos engenheiros. Fabricámos o Forno para o fabrico do pão do Aquartelamento de Gandembel, obra do Soldado nº 00747866, António Manuel Magalhães Mendes Cerejo.

Capinou-se; tratámos de melhorar os abrigos; o arame farpado foi colocado mais à frente para termos melhor visibilidade.

Não falo de Guerra, sim do local onde nos mantivemos, e o que fizemos durante a Comissão. Tudo feito sem Horário de Trabalho. Bebíamos cerveja numa barraca e dormíamos, quando era possível, sempre atacados pelos mosquitos.

O camarada 1º Cabo José Picanço, Apontador de Metralhadora, é testemunha. A Zorba podia orgulhar-se não somente dos Apontadores de Metralhadora, Morteiro e Bazuca como de todos os Atiradores e Especialistas. A CART 1659 cumpriu.

Tenho imenso orgulho no Soldado Português, desde aquele que combateu em Angola, Guiné ou Moçambique. No período da Guerra Colonial mantivemos sempre o mesmo armamento e assistíamos ao avanço da tecnologia de armamento do PAIGC.

O Soldado Português possuía a força transmitida pela enxada de trabalho do nascer ao pôr do sol; força de pernas de se deslocar quilómetros sem conta a pé desde a sua Aldeia a povoações mais perto e estava habituado a sofrer.

Lembrar que fui Monitor no RI 14, em Viseu; dei Instrução de Minas e Armadilhas a uma Companhia e a Especialidade à CART 1659. Neste período tentava enganar a Tropa.

Cumpri na Guerra, até na APOIAR, o meu papel.

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar

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Nota do editor:

Último poste da série >  7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20825: Em busca de... (305): Fur Mil Fotocine Júlio César Fragoso Pereira (Guiné, 1966/67) (Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861)

Guiné 61/74 - P21051: Blogpoesia (680): "Nem sol a mais", "Minha alma é uma viola" e "Terror do sexo...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Nem sol a mais. 
Nem sal a menos.

Tudo deve ser moderado. 
O elástico rebenta 
Se for demais esticado.

Mais vale esperar um minuto, 
Que a chuva passe 
Que apanhar uma molhadela 
De ir para a cova.

Sossega-se mais 
Com uma vida cheia 
Que andar ao alto 
E morrer à seca.

Quantas vezes se ganha mais 
Em não ir à feira. 
Porque a boa sorte, 
Bate sempre à porta 
Quando passa. 

Berlim, 6 de Junho de 2014 
8h57m 
Joaquim Luís Mendes Gomes

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Minha alma é uma viola

É uma viola a alma que eu dedilho com estes dedos mortais.

Suas cordas tocam as melodias que só minha mente ouve.

Adormeço com meu cansar dos dedos... 
e sonho tocando versos 
que apenas são sonho.

Quero tocá-los 
e cantá-los nestas cordas tensas. 
Até que rebentem.

Escrevo-os na pauta de cada dia 
e os solto ao vento, 
como quem abre a porta duma gaiola.

Fico a vê-los desaparecer 
no ar. 
Não sei para onde eles vão. 
Tenho a esperança 
de que poisem nos quintais e hortas 
onde há pão e vinho 
para colher.

De casinhas brancas, 
com portas e janelas rubras, 
brilhando ao sol...

Lá dentro, só Deus sabe o que se passa.

Sejam a bênção... 
a palavra certa na hora certa... 

ouvindo a diva Maria Betânia... 
Berlin, 6 de Junho de 2015 
14h24m 
Joaquim Luís Mendes Gomes

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Terror do sexo...

O sexo domina o mundo. 
Tudo gira à força dele. 
Se brota do coração, 
É o amor que reina.

Se não, é o terror do mal. 
Egoísta. 
Dominador. 
Tudo devora.

Gera só ódio. 
É o pai da guerra. 
Tudo avassala. 
Erva daninha. 
Se sobe ao poder, 
Espalha o terror 
Sem qualquer escala.

O mundo é pequeno. 
Para tamanha avidez. 
Nada respeita. 
Tudo conquista 
Para sua mesa.

Desfaz a presa. 
Goza com ela. 
E joga fora. 
Pior que a selva.

Joga a dinheiro. 
Vai para o casino. 
Desbarata tudo. 
Fica feroz.

E volta de novo. 
Se veste de santo. 
Como um senhor. 
Assalta inocentes. 
Despe-os ao frio.

Joga-os fora 
Volta ao governo. 
Como um malvado. 
Tudo lhe serve 
Para seu reinado.

Como seria o mundo, 
Se o amor brotasse 
Do coração do rei!... 

Berlim, 5 de Junho de 2014 
14h29m 
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21040: Blogpoesia (679): 1.º Dia de praia Covid (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

Guiné 61/74 - P21050: Parabéns a você (1817): Ernesto Marques, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21046: Parabéns a você (1816): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM/CTIG (Guiné, 1972/74)

sábado, 6 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21049: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (13): Pequenos caprichos - I : Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Ponta do Padrão S. Jorge na Foz do Rio Zaire


1. Em mensagem do dia 18 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, a segunda relembrando os seus bons tempos vividos em Angola


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 12

PEQUENOS CAPRICHOS - I

Todos os caprichos são pagos. Uns mais que outros.
Uns valem bem o que custam e outros nem por isso.
No entanto, é através deles que nos ultrapassamos, nos satisfazemos ou nos vangloriamos. Por outro lado, os caprichos são valorados conforme as suas circunstâncias e as suas possibilidades.
Adiante, que também não tenho a pretensão de filosofar.

Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Desde que cheguei a Cabinda, foquei logo a pesca como tempo de lazer. Sozinho ou acompanhado pela minha Mulher, acabei por me relacionar com outros que comungavam do mesmo prazer. O grupo foi-se alargando com a mobilização para convívios. Não levou muito tempo para organizarmos concursos.
O entusiasmo dos concursos de pesca acentuou-se e tornou-se notório, chegando a merecer transmissões em directo pela rádio. (Não havia televisão…)
De sucesso em sucesso e com a colaboração da Delegação da Direcção Geral dos Desportos, fomos experimentando as praias ao longo da costa Cabindense e, até, as lagoas no interior.

Um dia, querendo ir mais além:
- Porque não irmos a Santo António do Zaire, atravessar o rio e participar lá num concurso?

Partimos de madrugada, num rebocador da firma Montez & Newman, para fazermos aqueles 60 quilómetros de costa congolesa.

Os pescadores de Cabinda foram de rebocador a Santo António do Zaire, participar/colaborar num concurso

Tudo normal, até que nos apareceu aquela corrente monstruosa vinda da foz do Rio Zaire, com o maior caudal do Mundo. Indescritível, sentirmo-nos tão pequeninos naquela diminuta “casca de noz” de 35 metros, a subir e a descer aquelas montanhas de água em movimento. Quase toda a gente vomitava, mas eu não me distraía a olhar as águas. Sentadinho na borda e bem agarrado, olhava bem para longe, seguindo a experiência de anteriores navegações. Porém, o meu amigo Carlos Guerra veio ao meu encontro, cambaleando, mas bem agarrado, sentou-se na minha frente e, já esgotado de tanto sofrimento e a afagar a barriga, diz-me:
- Estou “fodidinho” de todo. Nunca me senti tão enjoado em toda a minha vida.
Aí “explodi e sulfatei” tudo o que havia à volta. Foi uma pena, porque já não faltava muito para chegarmos.

Havia uma equipa de repórteres da Rádio Clube de Cabinda que, perante a dúvida de conseguirem entrar em directo a partir de bordo, mas com a certeza do que iria acontecer, deixaram na sede uma gravação simulando o tal “directo”. E “em cima do acontecimento”, transmitiu: “ …neste momento, a viagem está a ser difícil para as mulheres, que estão todas enjoadas e em sofrimento. Por acaso nós, os homens, estamos a saborear bem este doce embalar…”.

Padrão de S. Jorge na Ponta Padrão da Foz do Rio Zaire, assinalando a chegada de Diogo Cão, no ano de 1482. A largura do Rio Zaire, na sua foz é tão grande que não se vislumbra a outra margem. Diogo Cão flectiu para o interior, convencido de ter atingido o ponto mais a sul de África (Cabo da Boa Esperança).

Os pescadores de Cabinda não faziam ideia do tamanho dos peixes que passam pela foz do Rio Zaire.
Colocadas as canas na praia, aguardámos a subida da maré e a consequente entrada dos peixes. E, quando isso aconteceu, foram vários os pescadores que ficaram sem fio e outros sem a cana. Nem dava para lutar com os peixes. Eles levavam tudo.
Valeu-me o facto de ter um fio grosso (especial 90), com tenso de aço. Eu estava bem seguro e com o alicate cortante à mão para não ficar sem cana. Sobravam poucos metros para além das ondas e da praia. E, por isso, não podia atirar para muito longe.
Os pescadores locais, foram tirando alguns peixes: corvinas, sapudos e raias. Tudo isso dava pouca pontuação. Todos se queixaram que fora um dia de pesca para esquecer.
Diziam: - Hoje não deu nada.
Fisguei um pargo e não o larguei mais. Era relativamente pequeno (14,2Kgs) mas tinha uma pontuação elevada. E foi por isso que venci o concurso.

No final, quando vínhamos pesar o peixe, já se sabia quem ia ganhar.
Oiço o repórter, no seu directo:
- Ganhou o do costume (eu já tinha ganho 2 concursos, na altura como atleta da Rádio Clube de Cabinda). Foi aquele atleta que nos trocou pelo Clube da Câmara Municipal. Mas isto não vai ficar assim, porque a RCC ainda não recebeu o dinheiro da transferência.

Primeiro triunfo na Pesca


Quando Campeão de Cabinda, fui felicitado pelo Governador Brigadeiro Themudo Barata.

Equipa da Câmara Municipal de Cabinda com o pargo de 14,2Kg que nos deu o 1.º lugar em Santo António do Zaire

No banquete organizado/oferecido pelo Governo Civil de Santo António do Zaire, recebemos os prémios e lindos discursos assinalando o evento inédito.
Já no regresso, noto algumas ausências. Entre elas, a dos repórteres da RCC.
Perguntei por eles e informaram-me: - Ficaram tão acagaçados que preferiram ficar cá até que haja avião para Cabinda.

(Continua)

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21024: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (12): Feliz em África - II (e sem filmes)

Guiné 61/74 - P21048: Os nossos seres, saberes e lazeres (396): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
É verdade que as palavras se gastam e que, tantas vezes, as imagens se sobrepõem e as substituem com mais clarividência. Aqui estamos a despedir-nos de Vila Rufolo, e com pesar. Quando se percorre a torre-museu percebe-se rapidamente como o milionário escocês que adquiriu um sítio completamente degradado o reconfigurou para o romantismo oitocentista, e com pleno sucesso.
Tornou-se visita obrigatória para gente de todas as posses, foi exaltada por artistas plásticos e escritores, e não é por acaso que se sobe a torre-museu com os acordes da ópera Parsifal de Wagner.
Daqui se vai partir para Villa Cimbrone, onde outro britânico recriou beleza sempre tendo como referências Villa Rufolo e a igreja de San Francesco, de origem gótica mas reconstruída no século XVIII. Às panorâmicas que estas duas vilas oferecem, o guia Michelin não hesitou: três estrelas, o máximo da grande beleza, do grande espetáculo, selo de que é sublime.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (7)

Beja Santos

O Guia Michelin concede três estrelas a Ravello, esse local maravilhoso a escassos quilómetros de Amalfi, outrora a República Marítima de Amalfi, fundada no século IX, chegou a ter Doge. O guia dá três estrelas a esta vista espetacular, dizendo que todo este vastíssimo balcão está suspenso entre o céu e o mar e pelo que oferece é inesquecível. Tão aprazível para a contemplação, foi escolhido por artistas como D. H. Lawrence, Graham Greene, Gore Vidal, Hans Escher e Joan Miró. Notará o leitor que há uma espécie de manchas na imagem, o balcão está envidraçado, a queda será mortal.


Continuamos em Vila Rufolo, a vila erigida no século XIII pela família Rufolo de Ravello, chegou a ser a residência de verão de Papas e de Carlos d’Anjou. Já falámos do panorama de que se desfruta sob o Cabo Orso, a Baía de Maiori e o golfo de Salerno. O industrial escocês Francis Nevile Reid transformou um lugar arruinado num portentoso espaço romântico, aproveitou-se do edifício original, uma perfeita síntese da arquitetura árabe, siciliana e românica, fez conservar as ruínas, veja-se nesta imagem a Sala dos Cavaleiros dentro do jardim que é uma verdadeira exaltação do romantismo oitocentista.


Esta torre-museu foi muito bem adaptada para conservar a memória histórica de Vila Rufolo até à sua readaptação como casa romântica. É um prazer para os olhos e não menos para a vista e para o ouvido, acompanham-nos em permanência as sonoridades da ópera Parsifal, de Wagner, que se inspirou neste jardim, e no balcão mais alto o que se avista não é traduzível em palavras.



Era timbre do romantismo, basta que o leitor se lembre das transformações introduzidas pelo rei D. Fernando, marido da rainha D. Maria II, no Castelo dos Mouros, em Sintra. A região sofreu brutalmente com o terramoto de 1755, D. Fernando mandou aproveitar todas as ruínas e embelezou-as. Mas não foi só ele, se o leitor já visitou o Palácio de Monserrate, encontrou ruínas e excertos que faziam parte do mesmíssimo ideal romântico. O milionário escocês mandou conservar as ruínas dos balneários onde havia o banho turco e todo o complexo do andar inferior da casa, ao nível do jardim, tudo com ar misterioso, um tanto gótico, dá para ver o nível inferior do claustro e imaginar a construção medieval da família Rufolo.



Era também timbre do romantismo não deitar fora vestígios do passado remoto, por aqui se escreveram lápides em latim, era o inglês do mundo medieval e moderno, inserida entre ruínas esta lápide acentua esse mesmo passado remoto.



O viandante detém-se nesse ponto alto que é o jardim superior, atravessou o Belvedere onde no verão se realizam eventos do festival de música de Ravello, imagine-se o que é um palco nesta altura, ouvir bela música, olhar as montanhas e o mar sereno. Estão mais do que justificadas as três estrelas legadas pelo Guia Michelin a esta sumptuosidade visual.



E vai começar o passeio pela Villa Cimbrone, as outras três estrelas do Guia Michelin em Ravello. A Villa foi construída no início do século XIX por Lord William Bechett num estilo eclético que remete para Villa Rufolo. Ficamos hoje por aqui, percorreu-se uma álea encantadora que liga a Piazza Vescovado à Villa até se chegar ao balcão. É o mesmo esplendoroso panorama sobre Maiori, o Cabo Orzo e o Golfo de Salerno, um tanto a pique também se podem ver os terraços cultivados, mas é a extensão do Mar Tirreno e a mesma serenidade que já se sente em Villa Rufolo que nos lava a alma. E não apetece sair daqui.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21022: Os nossos seres, saberes e lazeres (395): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (6) (Mário Beja Santos)