domingo, 7 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21980: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte V

Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Boé >  Assistência a feridos na sequência da deflagração de uma mina A/C, durante a «Operação Mabecos Bravios», realizada em 6 de Fevereiro de 1969, a propósito da retirada de Madina do Boé. Foto do álbum do Cor Inf Hélio Esteves Felgas (1920-2008), Cmdt da Operação – P15719 e In: Camões - Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.º 5, abril-junho 1969, p 12, com a devida vénia.


Foto nº 2 > Guiné >  Região de Cacheu > Ingoré > CCAÇ 2381 (1968/70) > Antotinha > Recordando os tempos de enfermagem na tabanca em construção de Antotinha. Foto do álbum de José Teixeira – P11881, com a devida vénia.



Foto nº 3 > Guiné >  Região de Gabu > Boé > 12 de Setembro de 1969 > Evacuação de feridos provocados pelo rebentamento de uma mina anticarro ocorrida entre Canjadude e Nova Lamego. Foto do álbum de José Corceiro, 1.º Cabo Trms, CCAÇ 5, Canjadude (1969/71) – P6117, com a devida vénia.





O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. 



MEMÓRIAS CRUZADAS

NAS "MATAS" DA GUINÉ (1963-1974):

RELEMBRANDO OS QUE, POR MISSÃO, TINHAM DE CUIDAR DAS FERIDAS CORPOREAS PROVOCADAS PELA METRALHA DA GUERRA COLONIAL: «OS ENFERMEIROS» 

OS CONTEXTOS DOS "FACTOS E FEITOS" EM CAMPANHA DOS VINTE E QUATRO CONDECORADOS DO EXÉRCITO COM "CRUZ DE GUERRA", DA ESPECIALIDADE "ENFERMAGEM"

PARTE V

 

► Continuação do P21616 (IV) (06.12.20) (*)


1.   - INTRODUÇÃO


Visando contribuir para a reconstrução do puzzle da memória colectiva da «Guerra Colonial» ou «Guerra do Ultramar», em particular a do TO da Guiné, continuamos a partilhar no Fórum os resultados obtidos na investigação acima titulada. Procura-se valorizar, também, através deste estudo, o importante papel desempenhado pelos nossos camaradas da "saúde militar" (e igualmente no apoio a civis e população local) – médicos e enfermeiros/as – na nobre missão de socorrer todos os que deles necessitassem, quer em situação de combate, quer noutras ocasiões de menor risco de vida, mas sempre a merecerem atenção e cuidados especiais.


Considerando a dimensão global da presente investigação, esta teve de ser dividida em fragmentos, onde procuramos descrever cada um dos contextos da "missão", analisando "factos e feitos" (os encontrados na literatura) dos seus actores directos "especialistas de enfermagem", que viram ser-lhes atribuída uma condecoração com «Cruz de Guerra», maioritariamente de 3.ª e 4.ª Classe. Para esse efeito, a principal fonte de informação/ consulta utilizada foi a documentação oficial do Estado-Maior do Exército, elaborada pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974).


2.   - OS "CASOS" DO ESTUDO


De acordo com a coleta de dados da pesquisa, os "casos do estudo" totalizaram vinte e quatro militares condecorados, no CTIG (1963/1974), com a «Cruz de Guerra» pertencentes aos «Serviços de Saúde Militar», três dos quais a «Título Póstumo», distinção justificada por "actos em combate", conforme consta no quadro nominal elaborado por ordem cronológica e divulgado no primeiro fragmento – P21404.


No gráfico abaixo, já publicado anteriormente, está representada a população do estudo agrupada pela variável "posto" (n-24).

 




Gráfico 1 – Representação gráfica da população do estudo agrupada na variável "posto".


Neste quinto fragmento analisaremos mais dois "casos", o segundo e terceiro de 1966, onde se recuperam mais algumas memórias, sempre dramáticas quando estamos perante situações irreversíveis, como é a da morte.


3.   - OS CONTEXTOS DOS "FEITOS" EM CAMPANHA DOS MILITARES DO EXÉRCITO CONDECORADOS COM "CRUZ DE GUERRA", NO CTIG (1963-1974), DA ESPECIALIDADE DE "ENFERMAGEM" - (n=24)

 

3.9     - AMADEU IVO DA SILVA CORREIA, 1.º CABO AUXILIAR DE ENFERMEIRO, DA CCAÇ 798, CONDECORADO COM A CRUZ DE GUERRA DE 4.ª CLASSE 


A nona ocorrência a merecer a atribuição de uma condecoração a um elemento dos «Serviços de Saúde» do Exército, esta com medalha de «Cruz de Guerra» de 4.ª Classe - a segunda das distinções contabilizadas durante o ano de 1966 - teve origem no desempenho tido pelo militar em título, durante a «Operação Rebenta», realizada em 12 de Maio de 1966, 5.ª feira, ao socorrer, debaixo de fogo IN, vários feridos de outras unidades que haviam participado no ataque à base de Cambeque/Cabonepo, situada na região de Quitafine (infografia abaixo).


► Histórico

 


◙ Fundamentos relevantes para a atribuição da Condecoração


▬ O.S. n.º 02, de 12 Janeiro de 1967, do QG/CTIG:


"Agraciado com a Cruz de Guerra de 4.ª Classe, nos termos do artigo 12.º do Regulamento da Medalha Militar, promulgado pelo Decreto n.º 35667, de 28 de Maio de 1946, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 28 de Março de 1967: O 1.º Cabo auxiliar de enfermeiro, n.º 4139364, Amadeu Ivo da Silva Correia, da Companhia de Caçadores 798 [CCAÇ 798] – Batalhão de Caçadores 1861, Regimento de Infantaria 1."


● Transcrição do louvor que originou a condecoração:


"Por seu despacho de 09Jan67, considerou como sendo dado por si, o louvor constante do n.º 2 da alínea B) do artigo 2.º da OS n.º 300, de 26Dez66, do BCAÇ 1861, conferido ao 1.º Cabo auxiliar de enfermeiro, n.º 4139364, Amadeu Ivo da Silva Correia, da CCAÇ 798, porque fazendo parte dum grupo de combate em operações, ter sempre demonstrado ser cumpridor e muito esforçado no desempenho das suas funções, em especial na «Operação Rebenta», onde revelou sangue-frio e arrojo, ao ter ido buscar debaixo de fogo IN, vários feridos, dando um belo exemplo de dedicação e coragem, o que muito me apraz distinguir, como exemplo a seguir." (CECA; 5.º Vol.; p. 270).

 

CONTEXTUALIZAÇÃO DA OCORRÊNCIA


Para contextualização da ocorrência que esteve na base da condecoração do 1.º Cabo enfermeiro, Amadeu Ivo da Silva Correia, socorremo-nos das informações publicadas no P9047 – "Memórias da CCAÇ 798: uma perspectiva a partir de Gadamael Porto; Parte II; Actividade militar" – da autoria de Manuel Vaz (ex-Alf Mil da mesma unidade, Gadamael Porto, 1965/67), referindo que «Operação Rebenta» a concretizar na região de Quitafine, teve lugar em 12 de Maio de 1966, 5.ª feira. Para além da CCAÇ 798, mobilizou outras forças, cuja missão visava o ataque às povoações de Cambeque e Cabonepo. O objectivo particular da CCAÇ 798 era proteger a rectaguarda das restantes forças em acção. 

Entretanto, por engano, a FAP fez quatro mortos e uma dezena de feridos das NT. A CCAÇ 798 teve de socorrer e evacuar os feridos para uma zona de segurança, tendo-se distinguido o 1.º Cabo Amadeu Ivo da Silva Correia e o Soldado Agonia [Carlos Gomes Caieiro, CECA, 5.º Vol; Tomo IV; p 272], que foram agraciados com a Cruz de Guerra.


3.9.1    - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE CAÇADORES 798

= GANTURÉ - GADAMAEL - MEJO


Mobilizada pelo Regimento de Infantaria 1 [RI 1], da Amadora, para cumprir a sua missão ultramarina no CTIG, a Companhia de Caçadores 798 [CCAÇ 798], embarcou em Lisboa em 23 de Abril de 1965, 6.ª feira, a bordo do N/M «UÍGE», sob o comando do Capitão de Infantaria Rui Artur Vieira dos Santos, tendo desembarcado em Bissau em 28 do mesmo mês.


3.9.2    - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CCAÇ 798


Após a sua chegada, a CCAÇ 798 ficou colocada em Bissau na dependência do BCAÇ 600 [18Out63-20Ago65; do TCor Inf Manuel Maria Castel Branco Vieira], rendendo a CCAÇ 526 [08Mai63-29Abr65; do Cap Inf Hélder José François Sarmento], onde efectuou uma instrução de adaptação operacional e colaborou na realização de patrulhamentos e na segurança das instalações e das populações até 25Mai65.


Após um Gr Comb ter seguido em 08Mai65 para o destacamento de Ganturé, assumiu em 28Mai65, por troca com a CART 494 [22Jul63-24Ago65; do Cap Art Alexandre da Costa Coutinho e Lima], a responsabilidade do subsector de Gadamael, mantendo um Gr Comb destacado desde 11Mai65 e integrando-se no dispositivo e manobra do BCAÇ 600 e depois do BCAÇ 1861 [23Ago65-17Abr67; do TCor Alfredo Henriques Baeta (1917-2011)].


Destacou ainda um Gr Comb para Mejo, de 03Ago66 a 24Out66 em reforço da guarnição local, tendo tomado parte em operações realizadas na região de Salancaur, onde obteve excelentes resultados. Em 19Jan67, foi rendida no subsector de Gadamael pela CART 1659 [17Jan67-30Out68; do Cap Mil Art Manuel Francisco Fernandes de Mansilha], recolhendo a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso à metrópole, o qual ocorreu em 08 de Fevereiro de 1967, a bordo do N/M «VERA CRUZ». (CECA; 7.º Vol.; p. 340).

 

3.10    - ALBERTO DO ROSÁRIO PEREIRA, FURRIEL MILICIANO DO SERVIÇO DE SAÚDE, DA CCAÇ 1487, CONDECORADO COM A CRUZ DE GUERRA DE 4.ª CLASSE 


A décima ocorrência a merecer a atribuição de uma condecoração a um elemento dos «Serviços de Saúde» do Exército, esta com medalha de «Cruz de Guerra» de 4.ª Classe - a terceira das distinções contabilizadas durante o ano de 1966 - teve origem no desempenho tido pelo militar em título ao longo da sua comissão, com particular relevância para a «Operação Naja», em 18 de Junho de 1966 (sábado) e «Operação Nortada I», em 06 de Dezembro de 1966, 3.ª feira, ambas na zona de Jufá, situada na região de Quinara (infografia abaixo).


► Histórico

 


◙ Fundamentos relevantes para a atribuição da Condecoração

▬ O.S. n.º 15, de 30 de Maio de 1967, do QG/CTIG:


"Agraciado com a Cruz de Guerra de 4.ª Classe, nos termos do artigo 12.º do Regulamento da Medalha Militar, promulgado pelo Decreto n.º 35667, de 28 de Maio de 1946, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 07 de Julho de 1967: O Furriel Miliciano, Alberto do Rosário Pereira, da Companhia de Caçadores 1487 [CCAÇ 1487] – Batalhão de Artilharia 1904, Regimento de Infantaria 15."


● Transcrição do louvor que originou a condecoração:


"Louvo o Furriel Miliciano enfermeiro, Alberto do Rosário Pereira, da CCAÇ 1487, pela maneira abnegada, eficiente e profundamente dedicada como sempre tem desempenhado as suas funções, não só no que respeita a tratamento de pessoal militar, como também no que se refere à população civil.

Muito correcto, sempre pronto a atender quem dele necessita, revelou perfeita compreensão dos seus deveres, quaisquer que fossem as circunstâncias em que os seus serviços se tornassem necessários, designadamente debaixo de fogo em que por diversas vezes se expôs, completamente indiferente ao risco que corria, para prestar socorros a feridos em combate.

Ferido ele próprio, gravemente, em 18Jun66, durante a «Operação Naja», na região de Jufá, dirigiu o tratamento de outros feridos enquanto não foi evacuado e, em 06Dez66, durante a «Operação Nortada I», no decorrer de um violento contacto com o IN na mesma região e muito próximo do local onde havia sido ferido anteriormente, não hesitou em se dirigir para junto de pessoal atingido e, debaixo de fogo, lhe prestar a assistência necessária.

Em todas as situações, demonstrou o Furriel enfermeiro Rosário Pereira, abnegação, eficiência, dedicação, coragem, sangue-frio e total desprezo pelo perigo, quando se tornou necessário enfrentá-lo para cumprimento da sua missão." (CECA, 5.º Vol.; p. 387).


CONTEXTUALIZAÇÃO DA PRIMEIRA OCORRÊNCIA – «OPERAÇÃO NAJA»


Referente à contextualização da primeira ocorrência, que suporta a fundamentação da condecoração do Furriel enfermeiro Alberto do Rosário Pereira, da CCAÇ 1487, socorremo-nos das fontes oficiais indicadas no ponto 1, citando: 


"Em 18Jun66 – «Operação Naja» – Consistiu numa batida na península de Jabadá, com acções sobre os acampamentos de Jufá, S. José, Bissilão, Flaque Cibe e Gã Pedro. Foi executada por forças da CCAÇ 1487, CCAÇ 1549, CCAÇ 1566, PMort 1039, GCmds "Os Vampiros" e 1 GC do Destacamento de Jabadá. Destruídos os acampamentos de Jufá e S. José, causados ao lN 10 mortos, todos fardados, e capturado material diverso, munições, 4 espingardas e 1 pistola. Posteriormente, na reacção das NT a uma emboscada lN, causaram-lhe 2 mortos e outras baixas prováveis e obrigaram-no a debandar. Capturaram, além de material diverso, 1 pistola-metralhadora e destruíram um acampamento em Bissilão e outro em Flaque Cibe. As NT montaram uma emboscada, onde foi morto 1 elemento lN portador de 1 lança-granadas foguete, que foi capturado. Foi ainda destruído um acampamento em Gã Pedro." (CECA; 6.º Vol.; pp 402/403).

 

3.10.1 - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE CAÇADORES 1487

          = BISSAU - FULACUNDA - NHACRA - SAFIM - PONTE DE ENSALMÁ - JOÃO LANDIM E DUGAL


Mobilizada pelo Regimento de Infantaria 15 [RI 15], de Tomar, para cumprir a sua missão ultramarina no CTIG, a Companhia de Caçadores 1487 [CCAÇ 1487], embarcou em Lisboa em 20 de Outubro de 1965, 4.ª feira, a bordo do N/M «NIASSA», sob o comando do Capitão de Infantaria Alberto Fernão de Magalhães Osório, tendo desembarcado em Bissau em 26 do mesmo mês.

 

3.10.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CCAÇ 1487


Inicialmente, a CCAÇ 1487 ficou instalada em Bissau, na dependência do BCAÇ 1857 [06Ago55-03Mai67; do TCor Inf José Manuel Ferreira de Lemos], tendo substituído a CCAÇ 557 [03Dez63-29Out65; do Cap Inf João Luís da Costa Martins Ares] no dispositivo de segurança e protecção das instalações e das populações da área. De 10 a 18Nov65, efectuou instrução de adaptação operacional na região de Mansoa, sob orientação do BART 645 [10Mar64-09Fev66; do TCor Art António Braamcamp Sobral], tendo tomado parte numa operação realizada na zona de Sabá.


Em 08Jan66, rendendo a CCAÇ 1420 [06Ago65-03Mai67; do Cap Inf Manuel dos Santos Caria], assumiu a responsabilidade do subsector de Fulacunda, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 1860 [23Ago65-15Abr67; TCor Inf Francisco Manuel da Costa Almeida] e efectuando várias operações nas regiões de Naja (Braia), Jufá e Gã Formoso, entre outras, de que se destaca, pelos resultados obtidos, a «Operação Negaça», em 18Mai66.


Em 15Jan67, foi substituída pela CCAÇ 1624 [18Nov66-18Ago68; do Cap Mil Art Fernando Augusto dos Santos Pereira] e foi colocada no subsector de Nhacra, com destacamentos em Safim, Ponte de Ensalmá, João Landim e Dugal, a fim de render a CCAÇ 797 [28Abr65-19Jan67; Cap Inf Carlos Alberto Idães Soares Fabião (1930-2006)], ficando integrada no dispositivo e manobra do BART 1904 [18Jan67-31Out68; do TCor Art Fernando da Silva Branco], com vista à segurança e protecção das instalações e das populações. 

Em 31Jul67, foi rendida no subsector de Nhacra pela CART 1646 [18Jan67-31Out68; do Cap Mil Art Manuel José Meirinhos], a fim de efectuar o embarque de regresso, o qual ocorreu em 01 de Agosto de 1967. (CECA; 7.º Vol,; p. 351).

Continua…

► Fontes consultadas:

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 5.º Volume; Condecorações Militares Atribuídas; Tomo II; Cruz de Guerra, 1962-1965; Lisboa (1991).

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014)

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição; Lisboa (2002).

Ø Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

25FEV2021

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Nota do editor:


(*) Último poste da série > 6 DE DEZEMBRO D2020

Guiné 61/74 - P21616: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte IV


Postes anteriores:


1 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21504: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte III

6 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21421: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte II

30 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21404: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte I

Guiné 61/74 - P21979: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (21): O "velhinho, fanfarrão" que levou uma abada de 2-12, do "pira" que era bom no jogo das damas e tinha "fair play"


Guiné  Região de Quínara > Nova Sintra > CART 2711, "Os Duros de Nova Sintar, 1970/72 > Pista de aviação, heliporto e aquartelamento.


Foto (e legenda): © Carlos Barros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:


(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; (ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem mais de 2 dezenas e meia de referências


O Jogo das damas: 
campeões e fanfarrões


A 2ª Cart , “Os Mais de Nova Sintra“, após a IAO em Bolama, chegou, em 1972 numa LGD a Nova Sintra e, depois de apanharem um “baile militar”, a praxe, todos os militares se instalaram nas diversas casernas do aquartelamento.

O 3º grupo de combate ficou na sede do Batalhão, em Tite e, passados alguns meses, “navegaram” para Gampará, uma zona onde a ação dos guerrilheiros do PAIGC era persistente, com constantes emboscadas, minas e flagelações ao destacamento.

“Os Mais de Nova Sintra” substituiram “Os Duros”, em 1972, precisamente em Nova Sintra, setor do Quínra, um destacamento desterrado do” mundo civilizado” , como mostra a imagem com a sua poeirenta pista de aviação e um quadradinho irregular, que servia de campo de futebol, onde descarregávamos as nossas mágoas e sofrimentos, na bola ou nas canelas dos nossos companheiros!

Em Tite, alguns militares bebiam as suas “bazucas” ou "fantas" e conversavam sobre as suas "madrinhas de guerra”. O furriel Barros mostrava o seu orgulho já que a sua “madrinha de Guerra”, a Isabelinha de Guimarães, escrevia-lhe muito, com uma caligrafia perfeita, que fazia inveja a muita gente…

No meio de um pequeno grupo, em pleno convívio, soou uma voz a gritar

− Quem é o corajoso que quer jogar às damas comigo, é à grade de cerveja?!...Há algum periquito para me defrontar?

O furriel Barros era um daqueles jovens que jogava bem às damas, porque teve inúmeros treinos, durante anos, no salão dos Bombeiros de Esposende, jogando contra grandes mestres locais como o sr. José Praia, Carvalho, Edgar, Mário, estes os mais credenciados e outros de menor valia , como Tarrio, João Carlos, Miquelinos, isto como mera curiosidade-

Passados minutos e de uma forma insistente, veio novo desafio provocador:

− Quem quer levar no pêlo às damas, é à grade de cerveja ?!

O Barros, farto de ouvir aquele “galifão damístico”, abeirou-se dele e aceitou o desafio. Sentou-se e começou a jogar às damas com o “gabarolas”, num partida onde se juntaram muitos militares a assistir ao prélio.

Em 8 jogos, o Barros ganhou 6-2 perante o desespero do seu opositor que estava um pouco cabisbaixo, com a crista abaixada…

−  Furriel, teve sorte, amanhã vamos à desforra e vai levar poucas…

No dia seguinte, outro desafio, com maior assistência ainda , e começaram os dois a jogar. Em 6 partidas, o “galifão” perdeu 6-0 e, completamente rendido à evidência, levantou-se, foi pagar as cervejas prometidas, embora o Barros tivesse perdoado muitas…

Alguns amigos do pelotão do Barros beberam umas “bazucas”, marca” pato-galifão” e, a partir desse momento, nunca mais o Barros foi desafiado, limitava-se apenas a jogar, desportivamente, com o Santos, o "Paços Ferreira”, condutor de Nova Sintra, um bom companheiro e com elevado espírito de “fair play”…

A tradição do jogo de damas manteve-se em Tite e Nova Sintra, durante toda a Comissão com o furriel Barros, sempre no ativo, jogando, sem as “fanfarronices” do outro pavão…

Na vida , a humildade normalmente vence sempre, perante a vaidade e a arrogância que, neste caso, foram as duas copiosamente derrotadas e despromovidas para a divisão inferior…

Tite, 26 de outubro de 1972

Carlos Barros
Esposende, 18 de Fevereiro de 2021
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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21962: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (20): a entrega do nosso destacamento aos guerrilheiros do PAIGC, em 17 de julho de 1974

Guiné 61/74 - P21978: Blogues da nossa blogosfera (153): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (62): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


NÃO HÁ POETA

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ

Não há poeta para a réstia de sol
de um rosto engelhado de luz.
Não há poeta para o poema de um momento
entre a singeleza do pensamento
feito suspiro de terra seca
e um estuário de rugas
cavadas de longas madrugadas.
Não há poeta para a liberdade de criar sem algemas
a majestade de um só verso
feito sorriso de cristal.
Não há poeta para tão serena harmonia
da assilabada amargura do peso do tempo.
Não há poeta para a nudez da vida
perdida para lá de um rosto apagado de ilusões.
Não há poeta para uma flor aberta
nos olhos do silêncio entre a vida e a morte.

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Nota do editor

Poste anterior de 28 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21957: Blogues da nossa blogosfera (151): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (61): Palavras e poesia

Último poste da série de 5 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21973: Blogues da nossa blogosfera (152): "Sempre renas", de JB [, José Belo]: o melhor blogue de fotopoesia da Lapónia sueca

Guiné 61/74 - P21977: Blogpoesia (723): "Atalhos da vida"; "Miam os gatos pelas ruelas"; "Melodias do Mondego" e "Lampiões das madrugadas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


Atalhos da vida

Encurtam distâncias.
Tornam mais perto anseios e sonhos.
Acrescentam à vida o tempo que poupam.
Poder estudar. Crescer na sabedoria.
Chegar a mestre na arte ou profissão.
Desenvolver seus talentos.
Fazem subir. Ver de mais alto a riqueza da vida.
A variedade dá cor.
O progresso é a soma e combinação das capacidades de cada membro.
Sua falta torna o mundo apático e pobre.
Todos os atalhos convergem para o largo dos progressos

Como os rios para o mar.


Berlim, 11h15m de 2021
Jlmg


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Miam os gatos pelas ruelas

É fevereiro. Miam os gatos pelas ruelas.
É o cio da paixão.
Aquele rio de águas quentes.
Só descansa no mar.
Bairros negros de Lisboa,
Batidos de sol e vento.
Vagueiam neles os marujos.
Sedentos de paixão.
É a hora prenhe da madrugada,
Quando acende a paixão.


Ouvindo Camané "sei dum rio"
Berlim, 3 e Fevereiro de 2021
15h7m
Jlmg


********************

Melodias do Mondego

Passam serenas as águas límpidas do Mondego.
Fluem nelas as mágoas das saudades.
Gerações de estudantinas
Pisaram suas pedras.
Latadas desde a tarde à madruga.
A vadiagem obstinada da estudantada.
Se recusa a descansar.
Têm de viver a vida inteira num só dia.
Gerações sem fim do passado,
Vivem suas mágoas de saudade.
O tempo não voltará,
Por mais que cantem ou chorem.


Berlim, 5 de Fevereiro de 2021
9h58m
Jlmg


********************

Lampiões das madrugadas

Acesas, desde a tardinha, ao amanhecer.
Sol e lua das madrugadas.
Verões da liberdade.
Que reacendem as paixões.
Sois o guia da vadiagem.
Quando o sonho é o rei.
Sois a luz sobre o passado.
Como o sol é do futuro.
Enquanto a vida dura.
Já que a morte tudo esquece.


Berlim, 6 de Fevereiro de 2021m
16h47m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21961: Blogpoesia (722): "Como eu te vi Guiné" (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845)

sábado, 6 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21976: Em busca de... (311): Ex-Soldados Instruendos do CSM - 3.º Turno de 1971, RI 5 - Caldas da Rainha, Luís Filipe Calado José da Costa e Luís Alberto Costa Pereira do 2.º Pelotão/5.ª Companhia (Carlos Jorge Pereira, ex-Fur Mil IOI)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Jorge Pereira, ex-Fur Mil IOI do COP 3, Bigene e Guidage, 1972/74, com data de 4 de Março de 2021, solicitando a publicação de uma foto do seu tempo de Recruta nas Caldas da Rainha na expectativa de encontrar os camaradas que estão retratados com ele:

Caro Carlos
Anexo fotografia tirada nas Caldas da Rainha em 4 de Agosto de 1971.
Assentamos praça no Curso de Sargentos Milicianos do 3.º turno de 1971, no 2.º Pelotão da 5.ª Companhia.


Caldas da Rainha, 4 de Agosto de 1971 > Da esquerda para a direita: Luís Filipe Calado José da COSTA, Carlos Jorge Lopes Marques PEREIRA e Luís Alberto COSTA PEREIRA.

Seguimos para Tavira e daí para o Ultramar.
Nunca mais soube deles. Não me recordo para onde foram.


Será que podes fazer uma publicação para tentar saber deles?

Um abraço
Carlos Jorge

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21715: Em busca de... (310): Hilário Peixeiro, capitão que conheci no Forte da Graça, em Elvas, em 1973/75 (João Rico, ex-fur enfermeiro)

Guiné 61/74 - P21975: Os nossos seres, saberes e lazeres (439): Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Tinha saudades de percorrer a pé Vila Franca, sentir o vetusto, passear junto do Tejo e visitar núcleos artísticos tão interessantes, impressiona-me imenso a arquitetura da Fábrica das Palavras e do Museu do Neorrealismo, que conheço desde a primeira hora, visitei-o de alto a baixo na companhia de David Santos, um museólogo de gabarito, em qualquer parte do mundo. Perguntei pela atual diretora, Raquel Henriques da Silva, uma investigadora de truz, não estava, fica para a próxima. Sentei-me num jardim como igualmente me espequei numa varanda na Fábrica das Palavras, sempre com textos de Alves Redol e a literatura da guerra da Guiné do Álvaro Guerra a fazerem-me companhia. Deste pensei num romance posterior, Café Central, vou revê-lo antes de preparar o próximo passeio, sempre em segurança, ditame máximo da pandemia.

Um abraço do
Mário


Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa

Mário Beja Santos

Na roda da fortuna, aconteceu ter relido dois romances de Álvaro Guerra relacionados com a ambiência vilafranquense, li igualmente Avieiros, de Alves Redol, se bem que o seu livro que eu mais revisito é Barranco de Cegos, por minha conta e risco a sua obra-prima. Agora que sou portador de um cartão em que pago 20€ e posso visitar 19 concelhos da área metropolitana de Lisboa, ponderei uma visita segura a Vila Franca de Xira, estudei o que me interessava ver, almocei ao meio-dia, apanhei comboio em Roma-Areeiro, transbordo para o comboio do Carregado, entrei neste santuário de campinos ainda muita gente amesendava. A estação da CP é mais do que bonita, espelha aquela linha arquitetónica concebida pelo arquiteto Raúl Lino que acreditava na existência de uma casa portuguesa, com mansardas muito nossas, arrebiques nos telhados, varandas quase medievais. Ali fiquei especado a dimensionar o todo, e fui bisbilhotar a azulejaria de Jorge Colaço, um primor que se vai estendendo por muitas estações, havia o cuidado de azulejar tendo em consideração o local, veja-se a tipicidade do que ele forjou para esta estação, e digam lá se não é um regalo para os olhos.
Preparava-me para visitar o Núcleo de Arte Sacra que dá pelo nome de Núcleo do Mártir Santo, na Igreja de S. Sebastião, fundada em 1576 pelo dito jovem monarca, por voto à Peste Grande de 1569. Veio o Terramoto e foi reconstruída. Entre a estação e o templo religioso já passei por ruas de boa escala, vivendas familiares, outras rés-do-chão e primeiro andar, aqui e acolá a arquitetura dos anos 1950 e 1960, com todo o desengonço da escala. Não vi a Arte Sacra porque era terça-feira e só abre de quarta a domingo, postei o olhar na pedra de armas de D. João VI proveniente do antigo Palácio dos Sousas (Palácio da Vilafrancada, terá sido aqui que D. Miguel preparou o seu primeiro golpe que D. João VI ainda pôde travar).
O Museu do Neorrealismo tem farta história, evoluiu a partir de um centro de documentação, tive a dita de ir conhecendo o desenvolvimento graças a um companheiro de colégio, o António Mota Redol, a quem a cultura portuguesa muito deve. É um edifício inspirador, tem a assinatura de Alcino Soutinho, e o seu interior é todo do século XXI, percorrem-se aquelas linhas perfeitas, sobe-se ao terceiro andar e é sempre um gosto rever a exposição permanente intitulada “Batalha pelo conteúdo”, está ali o elementar de como nasceu este movimento de Artes Plásticas, influente entre as décadas 1930 e até ao final da década e 1950, abarcando todos os géneros literários, diferentes artes plásticas, ali se registam o que mais determinante se escreveu e se faz justiça a nomes como Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Virgílio Ferreira, Júlio Pomar, Manuel Ribeiro de Pavia, Vespeira, Rogério Ribeiro, Querubim Lapa ou Alice Jorge. Por ali andarilhei, estava a ser montada uma exposição, desci ao rés-do-chão para visitar uma exposição alusiva à Biblioteca Cosmos, passei de raspão pelo auditório, tomei um café e fui namorar o recheio da livraria. Abençoada visita!
Museu do Neorrealismo, pormenor da fachada
Fachada lateral com fotografias de expoentes literários neorrealistas: Alves Redol, Carlos Oliveira, Manuel da Fonseca e Mário Dionísio
As linhas puras do interior do Museu do Neorrealismo, concebidas por Alcino Soutinho
Uma homenagem a um dos maiores artistas plásticos do século XX, que andou no neorrealismo, Júlio Pomar
A beleza da organização dos interiores do Museu

Chegou a hora de ir visitar o Museu Municipal, sedeado numa casa apalaçada setecentista, que não foi concluída, marcada por algum barroquismo. Consta que já foi tribunal, cadeia, escola, coletividade e agora é um museu. A pandemia alterou a vida cultural, vinha à espera de me deliciar com as coleções de pintura e gravura, altamente interessantes e com peças de mérito, vinha para ver uma exposição sobre o Oculista Nunes, uma das mais emblemáticas lojas de ótica do concelho, os herdeiros doaram esses objetos de trabalho que podemos agora admirar desde focómetros passando por óculos de ensaio para lentes astigmáticas, esferómetros e cravadeiras de ourives e ótica. Mas a grande surpresa foi a de que quando o imóvel foi recuperado e adaptado a espaço museológico convidou-se o pintor João Ribeiro a pintar 44 telas que foram colocadas junto ao arco da antiga igreja dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo. Tirei imagem desta bela porta vista do interior do museu. Olhei para o relógio, quero regressar no sentido inverso ao tráfego, hesito se não devo ir ao Celeiro da Patriarcal ver uma exposição de desenho de humor ou se devo ir diretamente para a Fábrica das Palavras, decidi prontamente por este itinerário porque a nova biblioteca, inaugurada em 2014, está junto do Passeio Ribeirinho, beija o Tejo e sugere que se volte em breve para ir a passear pelo menos até Alhandra, sempre com a campina exuberante, terreno fértil ali não falta. E fui maravilhar-me com a obra do arquiteto Miguel Arruda. Ora vejam.
Pus-me à varanda a ver o Tejo correr para o oceano, já congemino novo passeio, ainda tenho uma exposição do desenhador de humor António para ir visitar, chama-se entrelinhas. Como escreveu Arnaldo Saraiva a propósito deste desenhador que é presença permanente do Expresso: “As produções de António mostram bem que nenhum rosto é o que julgávamos ver ou desejávamos ver; há sempre um desconhecido ou um estranho onde julgávamos encontrar o familiar e o ‘normal’. E o que surpreendemos nos outros talvez seja o que ainda não surpreendemos em nós”. Saio da Fábrica das Palavras e contemplo este Álvaro Guerra de quem não me importaria vir um dia aqui falar da sua literatura da Guerra da Guiné, de que foi mestre e esteve entre os primeiros dos primeiros a descrever a tragédia que nós vivemos e que não esquecemos.
A luz começa a empalidecer, está na hora de regressar, desta feita despego-me do lado do Tejo, e o comboio depois inflete para Roma-Areeiro, sei que vou voltar depressa, e com muito prazer.
Fernando Pessoa
Álvaro Guerra
Álvaro Guerra a contemplar o Tejo, sempre com um sorriso
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21952: Os nossos seres, saberes e lazeres (438): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (2): (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21974: Álbum fotográfico de António Marreiros, ex-alf mil, CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e CCaç 3, Bigene e Guidage, 1973/74 - Parte VI: O Ramadão (2/3)

 

Foto nº 6 > Um cego é conduzido ao local da cerimónia por um familiar ou vizinho


Foto nº 7 > O grupo dos homens



Foto nº 8 > O grupo das mulheres


Foto nº 9 > O almami conduz as orações (1)


Foto nº 10 > O almami conduz as orações (2)


Foto nº 11 > O almami conduz as orações (3)


Foto nº 12 > Fim da cerimónia ? Ao fundo, os rapazes que dispersam


Guiné > Região de Gabu > Buruntuma > CCAÇ 3544, "Os Roncos de Buruntuma" > 1972 > O Ramadão (2 e 3)

Fotos: © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum do  camarada António Marreiros [ a viver há quase meio século no Canadá (Victoria, BC, British Columbia).  ex- alferes miliciano em rendição individual na CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e, meses depois, transferido para Bigene, CCaç 3, até Agosto 1974]... 

A sequência é relativa à festa do Ramadão, em Buruntuma, em 1972, e as cimco primeiras fotos já foram legendadas e comentads pelo Cherno Baldé, o nosso assessor guineense, que vive em Bissau, para as questões etnolinguísticas.

2. Legendagem do Cherno Baldé ao poste P21971 (*)

Caros amigos,

O António Marreiros postou mais uma série de excelentes fotos falantes sobre a comunidade de Buruntuma no ano de 1972, por ocasião da celebração do fim do mês sagrado do Ramadão.

A seu pedido, aqui vão os meus comentários [às fotos nºs 1, 2, 3, 4 e 5]



Foto nº 1

Um homem grande no seu traze de festa a caminho do local da celebração que normalmente se realiza no centro da aldeia debaixo de uma árvore, a mais importante, que tradicionalmente recebe este acto de submissão a Alá,  o criador, o benevolente e misericordioso, simbolizando a união e conc+ordia entre os habitantes da aldeia.

Em segundo plano e do lado direito vê-se um abrigo (bunker) contra flagelações e bombardeamentos de artilharia. Este tipo de abrigos feitos para protecção das populações civís existiam nas (fronteiras) zonas mais expostas as flagelações inimigas. Eram relativamente frescas durante o dia e insuportáveis durante a noite. Deviam ser limpos regularmente e bem resguardados sob pena de servir de covíl de cobras e outros répteis que abundam nas regiões tropicais. 

A parte de cima do bunker foi aproveitado para servir de celeiro para stock das reservas de alimentaçao (milho miúdo e sacos de arroz com casca ?) da familia.



Foto nº 2

A árvore da Manjanja (ou Mandjandja) em Crioulo, Tabâ(i) em mandinga e fula, foi o local escolhido para a realização da cerimónia. Os homens estão sentados debaixo da árvore e relaxados, esperando a hora da chegada do Almami (Chefe religioso) e o início da cerimónia que se realiza uma vez por ano após o periodo do Ramadâo (jejum de 30 dias consecutivos, das 5h00 as 7h30). 

A organização da mesma está hierarquizada, tendo na frente os homens, depois o grupo das dos rapazes e criançasem,  seguindo-se as mulheres à uma certa distância, As crianças às vezes misturam-se com o grupo das mulheres.



Foto nº 3 

O Almami (à  frente) e o grupo dos seus auxiliares (seguindo atrás),  a caminho do local da realizaçao da cerimónia, passam pelo grupo dos rapazes que estão sentados não atrás mas à frente das mulheres na ordem hierárquica da cerimónia de reza muçulmana que requer silêncio, calma e grande concentração.




Foto nº 4 

Duas mulheres grandes da aldeia em trajes de festa, aproveitam para os habituais cumprimentos e uma breve troca de palavras antes do início da cerimónia.

Foto nº 5 [em baixo, ao centro] :

Mostra a primeira fila do grupo das mulheres sentadas debaixo do sol e algo impacientes, à espera do inicio da cerimónia, aqui o sol fustiga e não há sombra. 

Em primeiro plano, uma mulher sentada numa pele de carneiro. As esteiras de bambu e as peles de carneiro eram largamente utilizadas antes do aparecimento das esteiras feitas de material polietileno.



Foto nº 5


Melhores cumprimentos,

Cherno Baldé


PS - Fizemos uma pequena correcção à legenda das Fotos nº 2 e nº 3: O grupo dos rapazes vem a seguir ao dos homens adultos e não atrás das mulheres...


2. Legendas complementares do Cherno Baldé às fotos deste poste (Ramadão, 2/3)


As legendas estão perfeitas, gostaria de acrescentar alguns elementos sobre as fotos nºs 10/11 e 12.

Nas fotos nº 10/11 podemos ver do lado direito do Almami, no chão, uma pedra e o bastão que ele trazia na mão que têm significado histórico e que evoca a ligação e herança cultural e religiosa dos Hebreus/Judeus. 

A pedra, na sua forma, simboliza o púlpito e no seu conteúdo sacramental invoca o tabernáculo ou Arca da aliança da religião hebraica e que na religião muçulmana é substituída pela mesquita como lugar sagrado. O bastão por sua vez simboliza o mesmo que Moisés recebeu do Deus no Egipto e graças ao qual conduziu o seu povo atravessando o Mar Vermelho para o Sinai.

No fundo o Ramadão é a repetição ritual e simbólica de uma tradição judaica. Logo a seguir a esta cerimónia vão realizar uma recitação de algumas horas, lendo e traduzindo na lingua local a história resumida da história e da tradição da religião desde os primórdios com Abraão até ao legado (Sunna) do Profeta Mohamed, revisitando outros Profetas importantes como o Moisés (Annab Mússa) e Jesus (Annab Issa, na versão islâmica).

Na foto nº 12, o grupo das crianças já se dispersou, pois a eles não interessa a parte litúrgica da recitação que demora algumas horas, hoje é dia de festa e é esse o espírito que os anima. Em casa vão tomar o pequeno almoço e preparar o carneiro que será sacrificado logo que a cerimónia é finda e que vai juntar toda a família.
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sexta-feira, 5 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21973: Blogues da nossa blogosfera (152): "Sempre renas", de JB [, José Belo]: o melhor blogue de fotopoesia da Lapónia sueca


"É uma casa... portuguesa ? /  Sim, dizem uns, outros, não, / Não se tem bem a certeza, / O dono é luso-lapão"... 

"È Belo, não Ruy, José / E de renas, criador, / E agora blogador /, Mas fala pouco... da Guiné"... 

"Diz que o mar o despejou. / E não é nenhuma facécia, / Neste reino da Suécia, / E  só por amor ficou"...

Foto: J. Belo (2020) (Com devida vénia...). Legenda: LG (2021)


1. Blogue Sempre renas, editado por JB desde fevereiro de 2021. 

O seu "perfil"! no Blogger traz poucas informações sobre o blogador Género: Male [, Masculino];  Indústria: Direito / Lei. Localização: Lappland / Sweden  - Key West / Florida / USA. 

Administrou em tempos o blogue "Lappland to Key West" [ ,Da Lapónia a Key West], que já não está "on line" ou em linha (*)... O mesmo aconteceu com o blogue "Merely... Lapland" [, Simplesmente... Lapónia]... 

Afinal, o régulo da Lapónia de vez em quando "desaparece", mas nunca se perde, tal como as suas renas e os seus cães... A última vez foi no ano de 2016... Andou um ano inteiro "desenfiado".... por razões que todos respeitamos (e temos que respeitar). (**)

Como em tempos escrevi, a presença aqui, na Tabanca Grande, de antigos camaradas como o José Belo, que representam  de algum modo a figura do marginal-secante  (o que intersecta dois mundos ou dois sistemas), é extremanete valiosa  e importante para todos nós, porque tem o mérito de nos alertar para (e, logo, ajudar a prevenir) o risco da criação, no nosso blogue, de um pensamento de grupo (em inglês, groupthink)... Ou, como se diz hoje em dia, "pensamento único"... 

Este fenómeno (grupal) tem sido estudado pelos cientistas sociais, incluindo os politólogos. Basicamente, ocorre em grupos demasiado homogéneos e coesos (como são por exemplo, os "homens do Presidente", o "comité central" de certos partidos políticos,  os grupos de combate de forças especiais, e até os ex-combatentes, de um lado e do outro das guerras, como a guerra do ultramar / guerra colonial )... 

Os membros do grupo tendem a minimizar os conflitos interpessoais, a existência de diferentes perspectivas e opiniões, valorizando o consenso a todo o custo, forçando o unanimismo, passando por cima, escamoteando, branqueando, ignorando, criticando  e, em última análise, proibindo e eliminando as saudáveis divergências individuais, ou seja, a necessária e desejável pluralidade de opiniões, valores, percepções, experiências, vvências, informações,  conhecimentos...

Em situações-limite, como a frente de batalha, a coesão grupal e o "espírito de corpo" são fundamentais. Mas o pensamento de grupo pode ter (e tem) consequências disruptuvas e negativas, a nível psicossocial e cognitivo: a pressão para a conformidade e o alinhamento ideológico e comportamental levam, muitas vezes ou quase sempre, à perda de criatividade individual, ca capacidade crítica, da idiossincrasia de cada um, da autonomia, da liberdade de pensamento e de expressão, e infelizmente também à radicalização do discurso e à violência verbal contra o "outro" que não pensa como "nós"... Veja-se como as "igrejas" (religiosas ou laicas) lidam com o fenómeno da "dissidência"...

Tem-se visto isso mais recentemente, seja a propósito da morte de um bravo mas controverso combatente, seja a propósito de  símbolos (como as estátuas e outros signos) das nossas cidades, relacionados  com a colonização/descolonização.

Em suma, muitas decisões (políticas, militares, económicas...) acaba(ra)m em "desastre" devido possivelmente a este fenómeno do "pensamento de grupo". 



2. Dito isto, saudo o regresso do blogue da Tabanca da Lapónia, agora rebatizado "Sempre renas"... 

http://semprerenas.blogspot.com/

O nosso régulo da tabanca de um homem só (, tendencialmente aristocrática, mas "agora aberta ao povo" (**) , que se protege  dso efeitos letais  da solidão com o melhor da natureza da Lapónia sueca e da literatura em português e em sueco...  

Não esconde quais são alguns dos seus preferidos, poetas, escritores, pensadores: Fernando Pessoa, Ruy Belo, Augusto Strindberg, Nils Ferlin e o próprio J. Belo ... Autores por onde perpassa a alegria e o absurdo da vida, sob a "pele" do humor,  do sarcasmo  e da auto-ironia... mas também a procura das suas raízes existenciais mais fundas, sem esquecer a pátria / mátria / fátria, afinal lá tão perto e cá tão longe... e com quem mantém uma relação de amor-ódio, como qualquer bom português da diáspora, desde há séculos (de Camões a Jorge de Sena, do Padre António Veira ao Marquês de Pombal, de Sanches Ribeiro a Fernando Pessoa, de Amadeu Sousa Cardoso a Paula Rego, só para falar de alguns "estrangeirados")...

Citando Ruy Belo (, não são primos, não senhor...), o J. Belo escreve: 

"O meu país ?... O meu país é o que o mar não quer".

Daí os títulos dos postes, ou as legendas das fotografias,... São pedaços de versos, verdadeiras pérolas do pensamento sincrético,  que ele vai buscar ao seu poemário... 

Daí eu chamar-lhe um blogue de fotopoesia, em português, do melhor que há na Lapónia, editado por um luso-lapão que faz gala em dizer, sem nunca se queixar ou reclamar, que o vizinho mais próximo está a escassas 3 centenas de quilómetros:

"As casas vestem os silências das noites".......Home sweet home !


"No meu País ? No meu País não acontece nada... Todos temos uma janela para o mar voltada"  


"Amo infinitamente o finito"


Enfim, um blogue que faz muita falta à nossa blogosfera e... à nossa "higiene mental". (***).

PS - Curiosamente, o José Belo é autor de uma série a que eu dei o título, que ele provavelmente detesta desde o início, mas ficou assim grafado: "Da Suécia com saudade"... Acontece que eu nunca lhe vi, escrita, a palavra "saudade", demasiado "lamechas" para o seu gosto "assuecado"...(Afinal, 40 anos de diáspora, ou de auto-exílio,  em cima do lombo de um português é muito ano...).
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(...) A ideia inicial (e como tal funcionou até aqui) da Tabanca da Lapónia,foi a de dar notícias sobre a Guiné aos inúmeros ex-cooperantes Suecos, Noruegueses e Dinamarqueses, que continuavam interessados, e nostálgicos, quanto à sociedade guineense, como nós, ex-combatentes, ainda e sempre ( tão estranhamente, pelas condições subjacentes) ligados, e amigos sinceros da Guiné-Bissau e dos seus Povos.

A evolucao político-social no país, com um sempre crescente domínio militar, falta de liberdades reais, aliados a uma corrupção galopante, a somar-se à crescente influência dos cartéis internacionais da droga, cada vez mais infiltrados em todos os níveis do poder local, têm criado imagens muito negativas nos meios informativos escandinavos. Criou-se grande desilusão e desinteresse entre muitos, mesmo os que vinham a auxiliar a Guiné desde o início dos anos 60.

Perante tudo isto, e tendo em conta inúmeros E-mails locais por mim recebidos, foi decidido modificar o rumo "editorial" da http://www.lapplandkeywest.com/, voltando-se agora para um diálogo mais prioritário para com o nosso querido Portugal. (...)

(**) Vd. poste de 21 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16860: O nosso querido mês de Natal de 2016 e Ano Novo de 2017 (11): Joseph Josephsson, aliás J. Belo, o régulo (e único tabanqueiro) da Tabanca da Lapónia...

(****) Último poste da série > 28 de fevereiro de  2021 >Guiné 61/74 - P21957: Blogues da nossa blogosfera (151): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (61): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21972: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (42): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Sobre aqueles tempos duros de final de setembro e até novembro, a feita cronista da sua comissão na Guiné, a bem amada Annette, faz perguntas para ela obscuras, uma delas tem a ver com a alimentação, como comem, em que condições se cozinha, não há uma só referência a frutas e legumes, observa ela. Paulo dá justificações, a da fruta é mais simples, come-se em conserva ou fruta da região, não é por acaso que ele continua a ser um consumidor compulsivo de papaias. Há igualmente que explicar que a época das chuvas tudo transtorna, gente doente com malária e com líquenes, gente que se arrasta para o posto de sentinela, houve um colapso nervoso de um grande colaborador, ainda hoje Paulo se sente responsável por ter sido negligente, mau observador. E está uma mudança em curso, o Comando de Bambadinca aceitou a transferência do pelotão de caçadores, o régulo está furioso, tem sérias reticências quanto a quem vem, tudo se resolverá com diálogo. E estamos na véspera de um pequeno cataclismo, antes disso uma rudimentar armada do PAIGC vai ser destruída à bala, e bem camuflada no tarrafo ela se encontrava.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (42): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon adorée, agradeço profundamente a tua carta e a importante questão que me pões para as decisões que tomemos no futuro. Dou aulas às segundas-feiras, depois começam as férias da Páscoa, meti dias de férias no meu trabalho, quarta e quinta-feira, espero que faças férias também na semana seguinte, tenho regresso marcado para quarta-feira. Viajo terça-feira à noite, confesso-te que levo trabalho, dois diretores da Associação Europeia de Consumidores estão disponíveis, reuniremos na terça-feira depois da Páscoa. Concordo contigo, com a meteorologia tão adversa sugiro passeios à volta da capital, tive a ler no Michelin o número impressionante de pequenas vilas, sobretudo no Brabante flamengo, tens luz verde para elaborar um roteiro de pequenos passeios, sabemos de antemão que os museus estarão fechados de sexta a domingo, basta que haja uma nesga de sol daremos passeios. Comprei as lembranças que me pediste para os teus filhos e no aeroporto adquirirei as vitualhas para pôr na mesa o almoço do domingo de Páscoa.

Pedes-me mais informações sobre todo o período que antecede a nossa partida do Cuor para Bambadinca, dizes-me estar intrigada por eu nunca falar na alimentação. Annette, ela foi por vezes um suplício para nós incompreensível. É evidente que naquela atmosfera de guerra e na proliferação de tantos destacamentos, não tinha lógica nenhuma suspirarmos, pela alface, tomate, pepino, agriões, couves, enfim, fruta e legumes fresquíssimos. Não havia na época processos de transporte de ultracongelados, os nossos frigoríficos no mato funcionavam a petróleo, não havia condições de congelar na perfeição, assunto naturalmente arrumado. Mas era inaceitável toda aquela dieta de conservas, buscávamos soluções como comprar aos caçadores carne de gazela ou de porco do mato, para nossa surpresa era possível adquirir na manutenção caixas do melhor bacalhau, vinha mesmo da Noruega, havia as barricas com carnes salgadas, os chouriços e as salsichas, compravam-se galinhas, excecionalmente peixe de rio. Quando cheguei a Missirá, logo o primeiro jantar me deu náuseas, um arroz espapaçado e frango ensanguentado, pretextei problemas de estômago, desforrei-me com leite achocolatado holandês e trinquei umas bolachas. Verificando as ementas pindéricas, a rotina do esparguete com salsichas, como tínhamos dois cozinheiros, Quebá Sissé e Umaru Baldé, pedi na cozinha de Bambadinca que eles fossem ali estagiar, obviamente um de cada vez, e que os apoiassem com informações de aproveitamentos de todos os recursos locais. Aliás, fizeram-se obras na cozinha, a chamada messe foi cimentada, fez-se um armário adequado para guardar a loiça, os talheres e os copos, nunca tive coragem de perguntar a quem me antecedeu como aceitavam comer em condições tão degradantes, era para mim ininteligível aquele desleixo. A dieta melhorou, mas tínhamos outro elemento hostil: ou a época das chuvas ou as viaturas avariadas. Estarás recordada de eu ter escrito que nos deram um barco sintético que transportava mercadorias desde o porto de Bambadinca até a um local chamado Gã Gémeos, aqui uma viatura transportava bidons, sacos e caixas até Missirá. O abastecimento de Finete também me preocupava quando havia viaturas variadas, recorria-se a uma solução drástica, transporte de petróleo em jerricãs, repartia-se o arroz que era transportado à cabeça, e o mesmo tipo de transporte que utilizava para as munições.

Não te esqueças que fizemos um forno, estava já pronto antes do Natal de 1968, foi ali que se prepararam os cabritos e o arroz que se serviu no dia de Natal a toda a população, depois foi a nossa festa de militares, longas mesas onde conviveram os caçadores nativos e os milícias. Tivemos um padeiro exímio, Jobo Baldé, fazia carcaças de excelente qualidade, montou mesmo um negócio particular, autorizei-o, e confesso-te que fiz bem, a população de Missirá passou a comer pão fresco, exigi preços abordáveis, o Jobo aceitava mesmo encomendas da população de Finete, em termos de segurança para nós até era bom, vinham civis armados com uma secção de milícias e regressavam com sacos à cabeça, a rescender bons cheiros.

Aos pequenos-almoços havia café com leite condensado, eu preferia beber chá príncipe, se possível pão fresco com talhadas de marmelada, sempre me repugnou o gosto da margarina. Eu satisfarei quaisquer outras dúvidas que te suscite a nossa alimentação. Quando a bolanha de Finete estava completamente alagada, o barco sintético com o motor em baixo, a prioridade absoluta era para as munições. E daí aquela tragicomédia de termos estado mais de um mês a pé de porco em barrica com o feijão-verde em conserva e para beber as águas Perrier e Evian.

Tu próprio reconheces que o final de setembro e o mês de outubro e a partida em novembro para Bambadinca é dos períodos mais amargos da minha vida na Guiné: a perda de efetivos, o número crescente de doentes, sobretudo com paludismo, a convocação para operações que me obrigava a malabarismos, pondo gente doente na vigilância noturna ou convocando milícias de Finete para os patrulhamentos diários a Mato de Cão, onde cheguei a ir com quinze homens, aquelas estranhas flagelações de fim de tarde, até Finete não foi poupada, mas desta feita com uma flagelação a sério, pois a reivindicação, que sempre reconheci como legítima, do pelotão de caçadores apelar a uma mudança, desde 1966 que andavam no mato, começaram em Porto Gole, depois em Enxalé e desde 1967 em Missirá. Como tu deves supor, eu passo os olhos nos documentos e nos aerogramas que te mando, questiono-me como era possível aquela vida em carrossel agarrar-me ainda às questões administrativas, e dispor de tempo para escrever e ler. O colapso nervoso do furriel Casanova pesou-me muito e nunca me furtei intimamente da responsabilidade de ter negligenciado o seu definhamento. Sentindo a sangria dos efetivos, fui mandando documentos cada vez mais aflitivos para os Comandos de Bambadinca. Pedi e fui compensado, no encontro com o novo comandante de Bambadinca ele informou-me que a partir do início de outubro uma nova unidade colocada ali, a Companhia de Caçadores N.º 12, passaria a ir regularmente a Mato de Cão. E chegou outra boa notícia, iríamos ser substituídos em finais de outubro pelo Pelotão de Caçadores Nativos N.º 54, e havia igualmente a decisão de manter dois pelotões de milícia completos em Missirá e Finete. O régulo do Cuor não gostou da notícia da mudança e, entretanto, fui convocado para um reconhecimento aéreo pelo major de operações, iríamos vasculhar minuciosamente as margens do rio Geba entre Bambadinca, Ponta Varela e São Belchior, havia notícia de que grupos do PAIGC viajavam de piroga até aos Nhabijões, ora se houvesse essa armada primitiva tínhamos que saber onde se posicionava e destruí-la. É um episódio longo, já é muito tarde, parei o relato antes de partir, as saudades são imensas e quero responder inequivocamente ao que me perguntas se podemos viver em Bruxelas e em Lisboa. Iremos falar demoradamente nas nossas férias, abrir caminho para a melhor solução. Percorro a tua bela cidade a palmo, nela sinto-me em casa, não tenhas qualquer dúvida. Sei perfeitamente que tu aprecias Lisboa, mas sugiro que venhas cá mais vezes para te aperceberes se aqui te sentes bem, como eu desejaria tanto. E falaremos francamente dos assuntos financeiros, como tu também tenho que ajudar os meus filhos, como tu gosto muito da minha profissão, e como tu vivo em arrebatamento e quero a companhia de quem amo, entendo que é mérito irrecusável, justifica uma solução de que não nos possamos arrepender, a partir do momento em que adquirimos o estatuto de reformado, nada voltará a ser como dantes. Confio na nossa boa decisão, iremos tomá-la. E com carinho neste momento as minhas mãos percorrem as linhas do teu rosto e te beijo com tanto ardor. Bien à toi, Paulo.
Igreja de São Nicolau, sempre me surpreendi, ao longo das décadas, com esta reminiscência das práticas medievais de adossar espaços comerciais a um templo religioso, este tem um peso carismático, sofreu muito com os bombardeamentos decretados por um general de Luís XIV, encerra relíquias do Santo, e não desgosto das suas linhas barrocas severas no seu interior.
Relíquias de São Nicolau, uma bela peça de ourivesaria de trabalho em ouro
É para mim a imagem mais significativa da Igreja de São Nicolau, este Cristo de outras eras a quem não poucas vezes agradeci a Sua misericórdia e as benesses que me tem concedido ao longo da vida
Quantas vezes sinto a falta destas casas de livros e discos usados onde vivi não sei quantas centenas de horas de êxtase, depois fui aprendendo a moderar-me com o peso da papelada transportada de comboio e de avião, e com a consagração dos voos low cost mais moderado me tornei, embora tenha recorrido a manhas como levar gabardine no verão e encher os bolsos até me tornar no mais obeso dos passageiros
Como esquecer estes encontros súbitos com vestígios do passado, houvera igreja, nunca apurei se foram canhões franceses ou alemães que a derribaram, restou esta imponente torre, e sempre que percorre esta artéria aqui me deixou especar, está na praça de nome Santa Catarina, a igreja é do século XIX a imitar o gótico, diga-se em abono da verdade que é um tanto intragável, mas a torre e põe o seu orgulho de incompletude, é o que resta do que já foi grande
Chama-se Sala Henry Le Boeuf, inaugurada em 1929, daquele palco agradeceram as palmas Serge Prokofiev, Igor Stravinski, Louis Armstrong, Maria João Pires e os Madredeus. É o auditório mais famoso de Bruxelas, aqui escutei desde Rinaldo Alessandrini e o seu conjunto Concerto Italiano e Jordi Savall, a sua mulher a cantora Montserrat Figueras e o Hespèrion XXI
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21950: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (41): A funda que arremessa para o fundo da memória