1. No romance (ou melhor, livro de memórias, ficcionado) "O Paparratos", J. Pardete Ferreira (*), há um capítulo, o XXI (pp. 141-146) dedicado a "O Cubano", o capitão Pedro Rodriguez Peralta, a quem o autor chama Rui Angel:
(...) Era pequeno de estatura, não ultrapassando o metro e sessenta e cinco, magro e seco, com a pele muito branca e polvilhada de microscópicas sardas, ruivo de barba completa, rala e ausente nalguns locais" (p. 141)-
Não sabemos se a descrição fisionómica está inteiramente correta, mas é feita por um dos cirurgiões que o operou no HM 241, o autor (*), sendo o cirurgião principal o dr. Carlos Ferreira Ribeiro, já falecido (no livro, o dr. Celso Rosa, ortopedista, p. 143)
Recorde-se o que acontecera antes: capitão do Exército Cubano, Pedro Rodriguez Peralta, de 32 anos (nascido por volta de 1937), instrutor militar ao serviço do PAIGC, é gravemente ferido a 18 de Novembro de 1969, no corredor de Guileje, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, no decurso da Op Jove, conduzida por forças paraquedistas do BCP 12 e destinada a capturar o próprio 'Nino' Vieira.
2. Demos aqui a palavra ao(s) autor(es) da página do Facebook, Paraquedistas não são arremachos, 18 de novembro de 2018:
(...) A "Operação Jove" tinha sido cuidadosamente planeada. Dias antes da partida para a operação, um avião da FAP levando a bordo o cmdt do BCP , tenente coronel Fausto Marques e o cmdt da Companhia [CCP 122,] João de Bessa, observam a zona e o melhor local para a emboscada à coluna militar do PAIGC.
De forma a cumprir as ordens do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, às primeiras horas de 16 de novembro de 1969, 40 militares da Companhia 122 , reforçados com 9 voluntários da 121, embarcam em 10 Alouette para o Corredor de Guileje, com a informação que a coluna inimiga traria 'Nino' Vieira, ao tempo, o mítico Comandante da Frente-Sul.
Os 50 paraquedistas levam rações de combate para três dias. Caminham a pé um dia e uma noite, evitando os trilhos para não serem detectados, e progridem debaixo de chuva por entre mata densa. Cerca das 10 horas da manhã de 18 de novembro, os praquedistas chegam ao ponto da emboscada.
Ainda não completamente posicionados, apercebem-se de vozes ao longe. Um pequeno grupo composto pelo capitão Bessa, sargentos Neves Pereira, Mota e Valentim Gomes, 1ºs cabos Ragageles, Carvalho e Rodrigues e soldado Doce, aproximam-se da picada.
De repente foram ouvidas vozes de dois individuos, um negro e um branco que seguiam em direção à fronteira. O capitão Bessa dá sinal de fogo ao apontador da MG-42, 1º cabo Ragageles. A primeira rajada abateu o guerrilheiro negro e feriu o branco. Iniciada a perseguição, com meia dúzia de páraquedistas, e tendo por base o rasto de sangue, é consumada a captura.
Encontram-no caído numa poça de sangue. Tem um braço quase arrancado, perdeu muito sangue, está entre a vida e a morte; o sargento Vítor Francisco rapidamente trata-lhe dos ferimentos. Veio a saber-se que se chamava Pedro Rodriguez Peralta, capitão do exército cubano. (...)
Enviado para o HM 241 (Bissau) e depois para Lisboa, foi devidamente tratado pelas autoridades portuguesas. Foi julgado em Tribunal Militar e condenado em 2 anos e 2 meses de prisão.
Depois do 25 de Abril de 1974, o capitão Peralta foi libertado. Aliás, houve manifestações (do MRPP e outras organizações da chamada extrema revolucionária) a favor da sua libertação incondicional. Os americanos queriam trocá-lo por um alegado espião preso em Cuba...
Peralta, que fez amigos em Portugal, pode ser visto aqui numa reportagem da RTP, no aeroporto de Lisboa, em 15 de setembro de 1974, sempre sorridente e amável na presença entre outros do seu advogado, Manuel João da Palma Carlos (1915-2001), momentos antes de embarcar para Havana onde foi recebido como herói...
Antes do 25 de Abril, era considerado um "preso político", o governo de então recusava-se a tratá-lo ocmo "prisioneiro de guerra", negando haver uma guerra na Guiné. Depois do 25 de Abril, mudou o seu estatuto: passaria a ser "prisioneiro de guerra", não ficando abrangido pela amnistia aos presos políticos... E só foi libertado, em 15 de setembro de 1974, após a entrega, pelo PAIGC, dos "prisioneiros de guerra" portugueses, entre os quais o nosso saudoso António Batista, o "morto-vivo".
Sabe-se que, em 2008, com o posto de coronel reformado, pertencia ao Comité Central do Partido Comunista Cubano. Era seguramente o mais célebre dos 437 combatentes que, segundo o regime de Havana, terão combatido, no TO da Guiné, nas fileiras do PAIGC, entre 1966 e 1974 (Dos quais terão morrido 9 ou 17, conforme as duas fontes cubanas oficiosas, já aqui citadas no nosso blogue).
3. Na recriação desta cena da captura do cap Peralta, o autor de "O Paparratos" diz que o "Rui Angel" [leia-se Pedro Peralta] estava com uma crise de paludismo (p. 142) quando os homens da Companhia de Caçadores Paraquedistas nº 1221 [CCP 121 e 122], comandada pelo cap pára "Braga"[leia-se: Bessa].
Não foi uma rajada de G3, mas de M42, "quase à queima-roupa, ia desfazendo o cotovelo direitodo branco, provocando-lhe também uma ferida no dorso, junto à omoplata"...
Terá sido o cap Braga [Bessa] que lhe salvou o braço, em risco de ser amputado, gritando: "Se for para cortar, os médicos lá em Bissau que o façam. Liguem mas é para a Base e peçam uma Y", isto é uma helievacuação Ypsilon (p. 142).
Assim aconteceu, a enfermeira parquedista que o assistiu até Bissau não foi a Margarida ( nome fictício) mas Zulmira André. Quando chegou ao hospital, a sua situação clínica era grave: (...) "sangrara muito, a tensão arterial não conseguia ultrapassar os cinco milímetros de mercúrio, timha uma ferida no tórax e o antebraço direito estava quase amputado", segundo o relato do alf mil médico adjunto de cirurgião Domingos Lebre [leia-se, Diamantino Lopes] (p. 143).
Entrado de imediato no Bloco operatório, o alferes mil médico João Pekoff "explorou a ferida torácica, constatando que, felizmente era superficial e apenas interessava as partes moles"... Uma vez que não havia necessidade de intervenção na cavidade, a atenção da equipa voltou-se para o membro esfacelado, "tendo o dr. Celso Rosa [Carlos Ribeiro] tomado o comando das operações, na sua condição de ortopedista" (p. 143)
O Carlos Ribeiro era um cirurgião experiente, em feridas com armas de fogo, tendo feito uma anterior comissão de serviço em Angola: "ortopedista conceituado, depressa equacionou o problema [do Peralta]. Entre a amputação, que se afigurava como natural, e a artrodese do cotovelo, originando para sempre um ângulo de cerca de noventa graus, a decisão parecia não ser evidente. Sempre valia mais um braço aleijado mas efectivo funcionalmente, do que um coto que, muitas vezes, só serviria para atrapalhar. Os nervos, assim como a artéria e as veias principais sido tinham milagrosamente poupados.O capitão cubano ficaria com uma deficiência, era verdade, mas manteria o uso do membro... com a condição de a ferida não infetar, possibilidade sempre imprevisível" (p. 144).
E tudo correu bem, com um tirada humorística final do ortopedista:
"Vamos lá ver se este gajo, ao menos, vai fcar com o cotovelo... quanto mais não seja para poder fazer um manguito para o cirurgião que o operou". (p. 144).
A crer no testemunho do nosso J. Pardete Ferreira (1941-2021), "ao recobrar da anestesia, o Rui Angel [o Peralta.virou de imediato o olhar para o seu lado direito e, naquele misto de medo e de reconhecimento que certamente sentiu, uma pequena lágrima fugiu lentamente pelo canto dum dos olhos, aliviando-lhe a ansiedade e o receio" (p. 144). Para quem, como ele, que tinha optado pela carreira militar, e que estava na força da vida, era reconfortante saber que lhe tinham salvo o braço...
4. Ainda mais dois ou três apontamentos deliciosos do nosso escritor (**), sobre a estadia do cap Peralta no HM 241:
(i) Por razões de segurança, o enfermo (e prisioneiro) mudou de cama e de enfermaria, mas quem não gostou nada da troca foi um pobre de um alferes miliciano, com uma perna amputada por um mina A/P, que ficou no lugar do cubano... Lamentava-se ele, e com razão: "Se os gajos [ do PAIGC] cá vierem, quem lerpa sou eu"... (p. 145)
(ii) O hospital, por causa do prisioneiro famoso, passou a ser assediado pelo pessoal da "inteligência" militar, e simples curiosos que queriam espreitar a "avis rara"... Cabia ao dr. João Pekoff [Pardete Ferrera ]correr com os instrusos e mirones, fazendo cumprir ordens superiores...
(iii) "Um dia, na conversa usual durante o penso, o João Pekoff perguntou ao Rui Angel como era o Che [Guevara. de resto morto na Bolívia em 1967, tendo sido ambos combatentes na Sierra Maestra]. A resposta não se fez esperar: "Che, non era médico, era un hombre" (p. 145).
(iii) Entretanto, são recebidas ordens de Lisboa para transferir o Peralta para o HMP... Assim, pela manhã, num daqueles dois dias em que havia avião da TAP, "uma ambulância militar. com um envergonhado Wolkswagen preto abrindo caminho, saiu do Hospital. O Carocha transportava o director do Hospital Militar [que era o dr. Moreira de Figueiro, no livro, o tenente milciano Mário Falcão], com o alferes do Conselho Administrativo a a desempenhar as funções de condutor!...
Na ambulância, além do condutor e de dois maqueiros, o Peralta levava como "ama seca" um primeiro sargento enfermeiro [no livro, João Augusto]. Chegados ao aeroporto, "este pequeno comboio militar foi esconder-se no descampado que constituía o extremo poente do aeroporto de Bissalanca".
Esta cena é hilariante:
"Após a aterragem do avião, chegados os passageiros VIP ao hall da aerograre, de imediato disseram aos amigos e familiares aí presentes que, na Ilha do Sal, tinham recebido a indicação de que deveriam integrar a classe turística":... Justificação dada : "Em Bissau todos os lugares de primeira classe iriam ser ocupados por um capitão cubano, ferido e feito prisioneiro na Guiné"...
E, subitamente, ouve-se, através dos altifalanres, uma voz feminina, a chamar pelo passageiro VIP: "Atenção, atenção, Pede-se ao passageiro Rui Angel [Pedro Peralta] que se dirija aos Serviços de Saúde"...
O diretor do HM 241, alarmado, apercebe-se do caricato da situação: toda a gente passava a saber que o avião viajava para Lisboa com um famoso e perigoso capitão cubano...
À chegada à Lisboa, com a sua "ama seca", foi levado discreta e prontamente para o Hospital Militar da Estrela [ HMP] , sem que ninguém se tenha lembrado de "meter um batedor com girofaro e sirene, a abrir caminho, pelas avenidas e ruas de Lisnoa, da Portela até à Estrela" (p. 145.)
Na realidade, foi escoltado por um pelotão da Polícia Mlitar, comandada pelo alf mil cav Armando Cerqueira, até à Trafaria (e mais tarde, para o hospital-prisão de Caxias).
E ainda se juntaram, na Guiné-Bissau, o João Bessa, o 'Nino' Vieira e o Peralta para reconstituir, "in loco", a emboscada em que o cubano foi ferido e capturado pela tropa portuguesa e que tinha sido preparada ao milímetro para apanhar à unha o 'Nino'...
(Continua) (***)