1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2018:
Queridos amigos,
Trata-se de um documento rigoroso, o professor Silva Cunha recebera a incumbência de detetar focos tendencialmente subversivos no contexto dos dois países vizinhos caminharem indeclinavelmente para a independência. Não havendo associações políticas confirmadas, entendia o professor que se devia rastrear as missões católicas e protestantes, as associações de diferente índole, era premente saber onde as ideias subversivas se poderiam anichar. O curioso é que tudo se irá passar praticamente à revelia do que aqui se escreve, com exceção do que o autor desvela sobre a região Sul, ali já se estava permeável aos ideais do fim do jugo colonial. Silva Cunha alertava para a importância do ensino e dizia em bom português que os guineenses sabiam muito bem o que se passava à sua volta. Em 1959, o que ele chamava atmosfera de paz encheu-se de tensões, com os acontecimentos do Pidjiquiti. E nesse ano, em sigilo, Amílcar Cabral combina com Rafael Barbosa e outros como se irá processar a luta pela libertação.
O resto, toda a gente sabe como aconteceu.
Um abraço do
Mário
A Guiné em 1958, por Joaquim da Silva Cunha
Beja Santos
O documento intitula-se Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África, Relatório da Campanha de 1958, Guiné, assina o chefe de missão Joaquim da Silva Cunha, professor e posteriormente ministro do Ultramar e da Defesa. A edição é do Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, a data é do mesmo ano.
O investigador não esconde a urgência daquela missão:
“A situação política dos territórios da África Ocidental francesa aconselhou a que se fizesse, o mais rapidamente possível, uma prospecção nesse campo, com vista à referenciação de eventuais movimentos de reacção que pudessem servir de canal à penetração no nosso território de ideais semelhantes aos que agitam as populações da África Ocidental francesa”.
Procurou ser meticuloso e abrangente, foram examinados arquivos (Administração Civil, PIDE, PSP, Tribunal da Comarca), houve entrevistas com autoridades eclesiásticas e missionários católicos, mas também com missionários protestantes, foram inquiridos indígenas. Logo se esclarece que a missão teve obstáculos graúdos na comunicação, dificuldades com as línguas nativas, e o professor escreve:
“No caso da Guiné, esta dificuldade agrava-se porque são raros os indígenas fora de núcleos urbanos que falam o português". Propõe-se a detalhar o que apurou sobre movimentos associativos de reação e daí expor a estrutura do seu trabalho: prospeção geral dos movimentos associativos de reação, espécies encontradas na Província; associações religiosas e confrarias; associações mutualistas ou cooperativistas e clubes; apresentar uma panorâmica sobre a situação social da Província; registar o essencial dos problemas sociais e políticos dos territórios franceses vizinhos; e fazer as conclusões.
Recorda que na Guiné não se encontravam organizações semelhantes às igrejas separatistas e aos movimentos profético-messiânicos, largamente referenciados em Angola e Moçambique. As associações políticas eram inexistentes. E quanto à existência de sociedades secretas ou ocultistas, dispunha-se de pouquíssima informação. Expunha-se no relatório esse pouquíssimo que se sabia. Primeiro, o caso de Cacine, com data de 1922, houvera um homicídio com antropofagia, todos os adeptos dessa sociedade de homens-leopardo pertenciam à etnia Nalu, foram desterrados para outra colónia. O caso de Teixeira Pinto (Calequisse) datava de 1944, havia referências a homens-hiena ou homens-leopardo. O inquérito não dera em nada. Mas havia provas de crenças de, por artes mágicas, alguns homens julgarem que se iam transformar em feras. O relatório fala também nos baloubeiros, mas nada mais se indiciava a não ser a pura prática do animismo. Havia sinais da existência de seitas, até de desvios ao Adventismo, e depois o relatório orienta-se para as confrarias islâmicas e fala da sua organização. Aí, diz o autor, podia haver motivos de preocupação, e explica porquê:
“O gosto dos pretos pelas associações, as estruturas sociais que compreendem grupos de iniciação, associações de auxílio mútuo, associações religiosas, etc., tudo faz para que o preto muçulmano facilmente compreenda a confraria e nela se integre”. E falando dos territórios circunvizinhos, lembra o comportamento de Sékou Touré quanto às chefias tradicionais e à influência dos chefes muçulmanos, convém não esquecer que ele era proveniente de uma linhagem Mandinga:
“Sékou Touré procura limitar a influência dos chefes tradicionais, apoiou-se na influência dos chefes muçulmanos de mais prestígio no território. Foi assim que no congresso dos partidos políticos africanos que reuniu em Bamako, em 1957, se fez acompanhar do maior chefe religioso do Futa-Djalon para mostrar que, se combatia os chefes políticos tradicionais, respeitava os grandes chefes religiosos”. E tenha-se em conta que as etnias Mandinga e Fula apareciam muito ligadas às confrarias.
Descreve as associações de auxílio mútuo, e então vem um sinal de inquietação onde ele destaca o caso do clube de trabalho de Cacine, em 1956, as autoridades verificaram que os indígenas de algumas povoações se reuniam frequentemente e suspeitaram que tais reuniões tinham por objeto a criação de organizações ligadas à secção da Guiné Francesa do Rassemblement Démocratique Africain (RDA), liderado por Sékou Touré.
Feitas as averiguações, apurara-se que tais reuniões eram mesmo reuniões do clube de trabalho que tinham por objetivos reunir associados que se auxiliavam mutuamente, quer em trabalhos agrícolas, quer na construção de casas, quer em contribuições pecuniárias para a realização de casamentos.
Mais tarde, alterou-se esta posição, tinham sido descobertos indícios de propaganda do RDA. A PIDE deteve 32 indígenas por manterem ligações ao RDA.
Agora direcionado para as organizações mutualistas, apresenta-as: Club Vélia e Club Banana, em Bissau; Club Palmeiro, em Farim; Club dos Beafadas em Fulacunda; Club dos Manjacos, em Bolama. As principais finalidades destas organizações de caráter clubístico eram religiosas, recreativas, mutualistas, culturais e de administração de justiça.
Findo este percurso sobre o movimento associativo, dirige o seu olhar para a situação social da Província. Considera que a Guiné vive em sociedade plural, constituída por colonos, mestiços e nativos. Diz abertamente que o setor da economia capitalista é muito restrito, limita-se quase exclusivamente à atividade comercial.
“É raro o europeu que se dedique à agricultura por conta própria e os que o têm ensaiado quase sempre têm fracassado, com excepção de duas ou três empresas no Sul, na área de Catió”. E descreve sumariamente o setor capitalista.
O trabalho volta-se agora para as missões católicas, revela-se profundamente crítico quanto às atividades do ensino:
“O ensino ministrado aos indígenas é mais em qualidade e insuficiente em quantidade”. E profere uma catilinária quanto à existência de professores mal preparados. Diz que a Missão Evangélica da Guiné Portuguesa não está autorizada a exercer o ensino. Denuncia abertamente os abusos dos castigos corporais.
De forma muito cuidada, expõe os acontecimentos na África Ocidental francesa, refere-se à evolução política do ultramar francês entre 1945 e 1958. Vê-se que sabe do que está a falar, aborda com detalhe a lei-quadro de 1956, altura em que a União Francesa foi substituída por uma Comunidade formada pela França e povos ultramarinos
“por um acto de livre determinação”. Silva Cunha alude a uma obra de Jean-Paul Sartre, o ensaio
“Orfeu Negro”, onde o filósofo definiu as bases da doutrina da Negritude, um tanto dissemelhante da apresentada por Senghor. Faz igualmente referência ao congresso dos escritores e artistas negros, que decorreu em Paris, em setembro de 1956. Descreve os principais partidos políticos da África Ocidental francesa e, encaminhando-se para as conclusões, diz claramente:
“Afigura-se-me de excepcional interesse o que se passa na nova República da Guiné”. Havia que rever cuidadosamente a política do ensino, pois, como escrevera anteriormente, era profunda a crítica à qualidade do ensino das missões católicas, com professores mal preparados, e a Missão Evangélica da Guiné Portuguesa não estava autorizada a exercer o ensino. Era inquietante que os islamizados, um terço da população, estavam à margem da influência da escola portuguesa.
E termina do seguinte modo:
“A situação política vigente nos territórios vizinhos, a velocidade com que se processam hoje em África os fenómenos sociais, impõem que se actue com rapidez. No nosso território reina a paz. As condições objectivas não são de molde a gerar perigos imediatos. Não devemos, no entanto, ter ilusões. Os nossos indígenas sabem tudo o que se passa à roda da Guiné. Sabem que no chão francês os brancos estão a ir embora e que os pretos agora é que mandam. Nos seus espíritos começaram a surgir inquietações. Urge estar atento”.
Tudo leva a crer que este relatório tenha sido recebido sem qualquer sentido da urgência que o seu autor não escondia. Como se viu.
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Nota do editor
Último poste da série 20 de março de 2019 >
Guiné 61/74 - P19605: Historiografia da presença portuguesa em África (154): A Guiné na “Gazeta das Colonias” (1924-1926) (Mário Beja Santos)