Fotos: cortesia de Alice Cruz (2009) (*)
1. Até ao séc. XVI, há três grandes epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. Vamos abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19.
Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na minha página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas as citações e referências bibliográficas.
Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na minha página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas as citações e referências bibliográficas.
E a melhor maneira é ver como a experiência da doença e da morte ficou fixada na linguagem do dia-a-dia, ou melhor, nos provérbios populares enquanto "representações socais".
Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática:
(i) Está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");
(ii) E, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569, no reinado de Dom Sebastião: terá morto um terço da população da cidade, qualquer coisa como 60 mil);
(iii) É vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode");
(iv) Se não acaba na morte, é de prognóstico reservado ("A doença vem a cavalo e vai a pé"; "O mal vem às braçadas e sai às polegadas");
(v) É quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");
(vi) E que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam");
(vii) Por fim, a doença é repulsiva, estigmatizante e ruinosa para o indivíduo e a família ("Não tenhas medo que eu não tenho lepra"; "Em casa de doente o lugar não se aquente"; Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"; "Um doente come pouco e gasta muito").
2. Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime, ou seja, até à Revolução Francesa) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.
Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa.
Durante a Idade Média, não há sequer um clara noção do que seja a saúde, individual ou colectiva. A única excepção são a lepra e as epidemias (, nomeadamente de peste) que devastam a Europa medieval.
O conceito positivo e multidimensional de saúde que temos hoje em dia, e que remonta à criação, em 1948, da OMS - Organização Mundial de Saúde, seria então completamente ininteligível para os nossos antepassados medievos.
A brutalidades dos números da morbimortalidade, a terrível impotência humana, o triunfo da morte e a exclusão social caracterizavam, então, a experiência da doença. Com as epidemias medievais, não há doentes: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte. Inelutável, indizível e fatal, a doença só tem uma saída: a morte ou a exclusão social (, que era uma forma de morte em vida).
A resposta das nossas sociedades era a do internamento forçado e da brutal segregação, sexual, social e espacial, dos doentes. Foi assim que lidámos, por exemplo, com a lepra. E continuámos a lidar (ou somos tentados a continuar a lidar: veja-se o "lazareto", o "manicómio" ou o "sanatório" nos finais do séc. XIX/princípios do séc. XX; os "hospitais-colónias" e os "sidatórios", no séc. XX)...
Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática:
(i) Está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");
(ii) E, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569, no reinado de Dom Sebastião: terá morto um terço da população da cidade, qualquer coisa como 60 mil);
(iii) É vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode");
(iv) Se não acaba na morte, é de prognóstico reservado ("A doença vem a cavalo e vai a pé"; "O mal vem às braçadas e sai às polegadas");
(v) É quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");
(vi) E que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam");
(vii) Por fim, a doença é repulsiva, estigmatizante e ruinosa para o indivíduo e a família ("Não tenhas medo que eu não tenho lepra"; "Em casa de doente o lugar não se aquente"; Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"; "Um doente come pouco e gasta muito").
2. Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime, ou seja, até à Revolução Francesa) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.
Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa.
Durante a Idade Média, não há sequer um clara noção do que seja a saúde, individual ou colectiva. A única excepção são a lepra e as epidemias (, nomeadamente de peste) que devastam a Europa medieval.
O conceito positivo e multidimensional de saúde que temos hoje em dia, e que remonta à criação, em 1948, da OMS - Organização Mundial de Saúde, seria então completamente ininteligível para os nossos antepassados medievos.
A brutalidades dos números da morbimortalidade, a terrível impotência humana, o triunfo da morte e a exclusão social caracterizavam, então, a experiência da doença. Com as epidemias medievais, não há doentes: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte. Inelutável, indizível e fatal, a doença só tem uma saída: a morte ou a exclusão social (, que era uma forma de morte em vida).
A resposta das nossas sociedades era a do internamento forçado e da brutal segregação, sexual, social e espacial, dos doentes. Foi assim que lidámos, por exemplo, com a lepra. E continuámos a lidar (ou somos tentados a continuar a lidar: veja-se o "lazareto", o "manicómio" ou o "sanatório" nos finais do séc. XIX/princípios do séc. XX; os "hospitais-colónias" e os "sidatórios", no séc. XX)...
A lepra, a Doença por Excelência
3. No caso da lepra, e devido ao terror infundido pela doença e à crença infundada no contágio pela simples presença do leproso, os doentes (alguns sendo portadores de simples afecções cutâneas!) eram apartados da comunidade e da família, despojados dos seus bens, submetidos a um macabro simulacro de funeral em vida, além de serem obrigados a viver da caridade, a usar um vestuário distintivo e a fazer-se anunciar através do toque de matracas, junto às povoações e nas vias públicas. Eram literalmente apartados dos vivos.
Hoje sabemos que a doença só é transmitida por contacto físico íntimo e prolongado (por ex., entre mãe e filho ou nas relações sexuais). Mas na altura o conhecimento médico da doença era grosseiro, o que explica os erros de diagnóstico cometidos e o radicalismo das soluções adotadas pelo Ocidente cristão. Os suspeitos eram então examinados por júris, compostos por autoridades civis e religiosas, incluindo um médico ou um cirurgião.
4. A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes...Era uma doença "repugante", caracterizada sobretudo pela desfiguração do rosto: provoca(va) danos principalmente nos nervos periféricos (nervos localizados no exterior do cérebro e da medula espinhal), na pele, nos testículos, nos olhos e nas membranas mucosas do nariz e da garganta...
No baixo latim infirmus (doente), tal como malaud (na língua occitana), assumia por vezes o sentido específico de leproso.
Causada pelo bacilo Mycobacterium Leprae ou Mycobacterium
Lepromatosis [só identificado em 1874 pelo norueguês Gerhard E.A. Hansen (1841-192), que estará em Lisboa, em 1906, sendo um das vedetas do XV Congresso Internacional de Medicina ), era conhecida desde a Antiguidade (vd. por ex., Bíblia, Levítico, 13 e 14: Deus, através de Moisés e Aarão, divide os judeus em puros e impuros, sendo estes os portadores de lepra).
Em Portugal chegou a haver "mais de sesenta casas de São Lázaro, predominantemente no Norte e no litoral", fruto da caridade cristão, manifestada sob a forma de doações e legados. As mais importantes eram "as gafarias de Coimbra, Guimarães e Santarém, além do Hospital de São Lázaro, no termo de Lisboa. (***)
Hoje sabemos que a doença só é transmitida por contacto físico íntimo e prolongado (por ex., entre mãe e filho ou nas relações sexuais). Mas na altura o conhecimento médico da doença era grosseiro, o que explica os erros de diagnóstico cometidos e o radicalismo das soluções adotadas pelo Ocidente cristão. Os suspeitos eram então examinados por júris, compostos por autoridades civis e religiosas, incluindo um médico ou um cirurgião.
4. A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes...Era uma doença "repugante", caracterizada sobretudo pela desfiguração do rosto: provoca(va) danos principalmente nos nervos periféricos (nervos localizados no exterior do cérebro e da medula espinhal), na pele, nos testículos, nos olhos e nas membranas mucosas do nariz e da garganta...
No baixo latim infirmus (doente), tal como malaud (na língua occitana), assumia por vezes o sentido específico de leproso.
Causada pelo bacilo Mycobacterium Leprae ou Mycobacterium
Lepromatosis [só identificado em 1874 pelo norueguês Gerhard E.A. Hansen (1841-192), que estará em Lisboa, em 1906, sendo um das vedetas do XV Congresso Internacional de Medicina ), era conhecida desde a Antiguidade (vd. por ex., Bíblia, Levítico, 13 e 14: Deus, através de Moisés e Aarão, divide os judeus em puros e impuros, sendo estes os portadores de lepra).
Em Portugal chegou a haver "mais de sesenta casas de São Lázaro, predominantemente no Norte e no litoral", fruto da caridade cristão, manifestada sob a forma de doações e legados. As mais importantes eram "as gafarias de Coimbra, Guimarães e Santarém, além do Hospital de São Lázaro, no termo de Lisboa. (***)
5. Desde o Séc. VI, diversos concílios da Igreja Católica (Orleães, Arles, Lyon) recomendavam o isolamento dos doentes, se bem que na altura a lepra ainda fosse endémica, ou seja não epidémica, localizada ou circunscrita a uma dada região
Com as Cruzadas (as expedições cristãs para a "reconquista" dos lugares santos de Jesrusalém, ocupados pelos muçulmanos), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Séc. XIII.
A partir do Séc. XV, esta terrível doença que marcou o imaginário medieval, tenderá a regredir no Ocidente, Crê-se que a exclusão social na Idade Média, a par da imposição de interditos sexuais, pode em parte explicar este recuo da lepra...
A desafectação progressiva das leprosarias (em Portugal, gafarais) vai, por seu turno, fazer aumentar a rede hospitalar, nomeadamente em países como a França.
6. No nosso caso, as gafarias obedeceriam, a "três tipos de governo" (i) As criadas por iniciativa do rei, e dirigidas por representantes seus; (ii) ass municipais (por exemplo, Braga, Guimarães, Lisboa e Porto); e, finalmente, (iii) as estabelecidas pelos próprios gafos e por eles administradas, embora sob protecção régia.
Embora associada à promiscuidade e à pobreza, a lepra também vitimava gente da alta nobreza e do alto clero; D. Afonso II, por exemplo, morreu em 1223, vítima de lepra. Tal como seu pai, D. Sancho I.
Algumas destas gafarias sobreviveram até ao séc. XX, como foi o caso da Gafaria para Lázaros e Lázaras (ma prática, para "doentes de chagas incuráveis", anexada em 1721, ainda fazia parte dos "hospitais menores" da Misericórdia do Porto, no início de década de 1930.
Com as Cruzadas (as expedições cristãs para a "reconquista" dos lugares santos de Jesrusalém, ocupados pelos muçulmanos), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Séc. XIII.
A partir do Séc. XV, esta terrível doença que marcou o imaginário medieval, tenderá a regredir no Ocidente, Crê-se que a exclusão social na Idade Média, a par da imposição de interditos sexuais, pode em parte explicar este recuo da lepra...
A desafectação progressiva das leprosarias (em Portugal, gafarais) vai, por seu turno, fazer aumentar a rede hospitalar, nomeadamente em países como a França.
6. No nosso caso, as gafarias obedeceriam, a "três tipos de governo" (i) As criadas por iniciativa do rei, e dirigidas por representantes seus; (ii) ass municipais (por exemplo, Braga, Guimarães, Lisboa e Porto); e, finalmente, (iii) as estabelecidas pelos próprios gafos e por eles administradas, embora sob protecção régia.
Embora associada à promiscuidade e à pobreza, a lepra também vitimava gente da alta nobreza e do alto clero; D. Afonso II, por exemplo, morreu em 1223, vítima de lepra. Tal como seu pai, D. Sancho I.
Algumas destas gafarias sobreviveram até ao séc. XX, como foi o caso da Gafaria para Lázaros e Lázaras (ma prática, para "doentes de chagas incuráveis", anexada em 1721, ainda fazia parte dos "hospitais menores" da Misericórdia do Porto, no início de década de 1930.
De qualquer modo, quando comparado com as regiões europeias transpirinaicas (por ex., a França), o nosso país terá tido poucas gafarias. Só em França, no Século XIII, contavam-se mais de duas mil. Fora da Pensínsula Ibérica, o desenvolvimento da doença terá sido muito maior, a partir sobretudo das Cruzadas (finais do Séc. XI).
Tal facto tende a ser imputado a uma menor mobilidade das populações cristãs peninsulares: estando empenhadas na "Reconquista" até tardiamente (em Portugal até meados do séc. XIII), não teriam podido (nem precisado de) ir combater ou peregrinar à Terra Santa. Recorde-se que o último reino muçulmano, o de Granada, só cairá nas mãos dos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492.
No reinado de D.Afonso IV, há já notícias de abusos na administração dos bens destinados aos "gafos". Tal facto, aliás bastante corrente, conduzirá à intervenção do poder régio, nomeadamente no caso do Hospital de São Lázaro de Coimbra. Assim, por carta de 30 de março de 1326, ordenava-se ao maioral e ao escrivão da gafaria de Coimbra que se não dessem rações a pessoas de fora que, além de sãs, tivessem com que se sustentar.
Guiné-Bissau > Bissau > Cumura > Missão Católica e Hospital de Cumura > 14 de Dezembro de 2009 > > 18h > Mural com as seguintes inscrições: "Obrigado, Bispo Settimio"; "X Aniversário da Morte de Dom Settimio"; "A Verdade Vos Libertará".
O missionário Settimio Arturo Ferrazzetta, da ordem franciscana, foi o 1º bispo da diocese de Bissau, criada em 1977. "Homem Grande" da Igreja Católica de África, nasceu em Itália, em 8 de Dezembro de 1924, e morreu, com fama de santidade, em Bissau, em 26 de Janeiro de 1999.
O Hospital da Cumura foi construído nos anos 50 pelos Franciscanos de Veneza. Dedicava-se à Lepra. Hoje também, mas sobretudo à Sida e à Tuberculose.(**)
Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
7. Até ao final do Século XIV, não parece haver ainda uma clara distinção semântica (nem muito menos conceptual) entre gafarias, albergarias, mercearias, hospícios, hospitais e estabelecimentos assistenciais similares.
Algumas gafarias, como a de Lisboa (fundada provavelmente pelos Hospitalários, por volta de 1220) e a de Coimbra eram também conhecidas como hospitais de S. Lázaro, mas na prática não prestavam quaisquer tipos de cuidados, limitando-se pura e simplesmente a segregar os doentes em relação ao resto da população
Não temos números sob os "gafos" ou leprosos no nosso país e o resto da Europa. No séc. XVI ainda existiam: por exemplo, em 1514, dá-se por concluída a reforma geral dos legados pios e estabelecimentos assistenciais, com a publicação do Regimento de como os contadores das comarcas hão-de prover sobre as capelas, hospitais, albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e residos.
E hoje ainda está longe de ter sido erradicada. Na Guiné-Bissau, por exemplo, é ainda endémica. E, para se evitar o estigma social, já não há "leprosos", mas sim "doentes de Hansen". Mas de acordo com um inquérito de 1937, em Portugal, onde a doença começou a recrudescer a partir do séc. XVIII, haveria 1.127 casos, concentrados sobretudo na região Centro (distritos de Viseu, Aveiro, Coimbra e Leiria). No Sul, havia duas manchas, nos distritos de Santarém e Faro. (***)
8. Com o tempo, as gafarias ou leprosarias destinadas ao internamento dos "gafos" ou leprosos, passam, mais tarde a ser conhecidas por lazaretos, termo que deriva do facto de a lepra ser então igualmente conhecida como o mal de S. Lázaro.
Os lazaretos, com a reforma da saúde pública, liderada por Ricardo Jorge (1899-1901), passam a ter outras funções, nomeadamente o confinamento de passageiros, oriundos, em geral por via marítima, de países ou portos com surtos epidémicos de doenças "exótico-pestilenciais": por exempo, o lazareto da Trafaria (que já existia no séc. XVI, com essa função).
Endémica em Portugal, a lepra chega aos nossos dias: nos anos 40 do séc. XX, é criado, sob inspiração de Bissaia Barreto (Castanheira de Pera, 1886-Lisboa, 1974), o Hospital-Colónia Rovisco Pais, na Tocha, que chegou a ter um milhar de internados. (O internamento era compulsivo.)
Este estabelecimento assistencial foi criado graças à herança de José Rovisco Pais (Sousel, 1862 — Lisboa, 1932), um grande proprietário, lavrador, industral de cervejas, dono da Cervejaria Trindade, filantropo: em testamento doou aos Hospitais Civis de Lisboa as suas herdades de Pegões, qualquer coisa com sete mil hectares, que deram origem depois, nos anos 50, à Colónia Agrícola de Pegões.
O Hospital-Colónia Rovisco Pais ficou conhecido pela sua natureza repressiva, senão mesmo totalitária (*).
(Continua)
_____________
Notas do autor:
(*) Alice Cruz - O Hospital-Colónia Rovisco Pais: a última leprosaria portuguesa e os universos contingentes da experiência e da memória. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.16 nº 2, Rio de Janeiro, Apr/June 2009 [Consult em 1/4/2020. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-59702009000200008].
RESUMO
"O Hospital-Colónia Rovisco Pais foi inaugurado em Portugal na década de 1940, com vistas ao tratamento, estudo e profilaxia da lepra, de acordo com modelo de internamento compulsivo, cuja configuração remete ao conceito de instituição total proposto por Goffman. Trata-se de um importante projeto higienista do Estado Novo. O seu paradigma educativo combinava elementos inspirados na medicina social europeia e na ideologia do regime ditatorial paternalista português.
"O Hospital-Colónia será aqui ponderado como dispositivo disciplinar, desenvolvendo-se reflexão acerca do confronto entre o poder disciplinar e a experiência. A memória emerge como instrumento contingente para o acesso às práticas e aos significados intersticiais tecidos no quotidiano do Hospital-Colónia, buscando-se auscultar a experiência de seus ex-doentes como sujeitos políticos."
(**) Vd. poste de 21 de abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8146: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (8): 14/12/2009, das 16 às 18h: Visita ao hospital de Cumura: lepra, sida, tuberculose... e compaixão
Vd. também poste de 13 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)
(***) D.L. nº 36450, de 2 de Agosto de 1947: "Organiza o regime jurídico do combate à lepra. Cria o Instituto de Assistência aos Leprosos, estabelecendo a sua orgânica, competências e funcionamento. Determina que a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, passe a denominar-se Hospital-Colónia Rovisco Pais, que fica subordinado administrativamente aos Hospitais Civis de Lisboa, e dispõe sobre a sua estrutura, gestão financeira e assistência médica aos doentes."