1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2021:
Queridos amigos,
Sobre aqueles tempos duros de final de setembro e até novembro, a feita cronista da sua comissão na Guiné, a bem amada Annette, faz perguntas para ela obscuras, uma delas tem a ver com a alimentação, como comem, em que condições se cozinha, não há uma só referência a frutas e legumes, observa ela. Paulo dá justificações, a da fruta é mais simples, come-se em conserva ou fruta da região, não é por acaso que ele continua a ser um consumidor compulsivo de papaias. Há igualmente que explicar que a época das chuvas tudo transtorna, gente doente com malária e com líquenes, gente que se arrasta para o posto de sentinela, houve um colapso nervoso de um grande colaborador, ainda hoje Paulo se sente responsável por ter sido negligente, mau observador. E está uma mudança em curso, o Comando de Bambadinca aceitou a transferência do pelotão de caçadores, o régulo está furioso, tem sérias reticências quanto a quem vem, tudo se resolverá com diálogo. E estamos na véspera de um pequeno cataclismo, antes disso uma rudimentar armada do PAIGC vai ser destruída à bala, e bem camuflada no tarrafo ela se encontrava.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (42): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon adorée, agradeço profundamente a tua carta e a importante questão que me pões para as decisões que tomemos no futuro. Dou aulas às segundas-feiras, depois começam as férias da Páscoa, meti dias de férias no meu trabalho, quarta e quinta-feira, espero que faças férias também na semana seguinte, tenho regresso marcado para quarta-feira. Viajo terça-feira à noite, confesso-te que levo trabalho, dois diretores da Associação Europeia de Consumidores estão disponíveis, reuniremos na terça-feira depois da Páscoa. Concordo contigo, com a meteorologia tão adversa sugiro passeios à volta da capital, tive a ler no Michelin o número impressionante de pequenas vilas, sobretudo no Brabante flamengo, tens luz verde para elaborar um roteiro de pequenos passeios, sabemos de antemão que os museus estarão fechados de sexta a domingo, basta que haja uma nesga de sol daremos passeios. Comprei as lembranças que me pediste para os teus filhos e no aeroporto adquirirei as vitualhas para pôr na mesa o almoço do domingo de Páscoa.
Pedes-me mais informações sobre todo o período que antecede a nossa partida do Cuor para Bambadinca, dizes-me estar intrigada por eu nunca falar na alimentação. Annette, ela foi por vezes um suplício para nós incompreensível. É evidente que naquela atmosfera de guerra e na proliferação de tantos destacamentos, não tinha lógica nenhuma suspirarmos, pela alface, tomate, pepino, agriões, couves, enfim, fruta e legumes fresquíssimos. Não havia na época processos de transporte de ultracongelados, os nossos frigoríficos no mato funcionavam a petróleo, não havia condições de congelar na perfeição, assunto naturalmente arrumado. Mas era inaceitável toda aquela dieta de conservas, buscávamos soluções como comprar aos caçadores carne de gazela ou de porco do mato, para nossa surpresa era possível adquirir na manutenção caixas do melhor bacalhau, vinha mesmo da Noruega, havia as barricas com carnes salgadas, os chouriços e as salsichas, compravam-se galinhas, excecionalmente peixe de rio. Quando cheguei a Missirá, logo o primeiro jantar me deu náuseas, um arroz espapaçado e frango ensanguentado, pretextei problemas de estômago, desforrei-me com leite achocolatado holandês e trinquei umas bolachas. Verificando as ementas pindéricas, a rotina do esparguete com salsichas, como tínhamos dois cozinheiros, Quebá Sissé e Umaru Baldé, pedi na cozinha de Bambadinca que eles fossem ali estagiar, obviamente um de cada vez, e que os apoiassem com informações de aproveitamentos de todos os recursos locais. Aliás, fizeram-se obras na cozinha, a chamada messe foi cimentada, fez-se um armário adequado para guardar a loiça, os talheres e os copos, nunca tive coragem de perguntar a quem me antecedeu como aceitavam comer em condições tão degradantes, era para mim ininteligível aquele desleixo. A dieta melhorou, mas tínhamos outro elemento hostil: ou a época das chuvas ou as viaturas avariadas. Estarás recordada de eu ter escrito que nos deram um barco sintético que transportava mercadorias desde o porto de Bambadinca até a um local chamado Gã Gémeos, aqui uma viatura transportava bidons, sacos e caixas até Missirá. O abastecimento de Finete também me preocupava quando havia viaturas variadas, recorria-se a uma solução drástica, transporte de petróleo em jerricãs, repartia-se o arroz que era transportado à cabeça, e o mesmo tipo de transporte que utilizava para as munições.
Não te esqueças que fizemos um forno, estava já pronto antes do Natal de 1968, foi ali que se prepararam os cabritos e o arroz que se serviu no dia de Natal a toda a população, depois foi a nossa festa de militares, longas mesas onde conviveram os caçadores nativos e os milícias. Tivemos um padeiro exímio, Jobo Baldé, fazia carcaças de excelente qualidade, montou mesmo um negócio particular, autorizei-o, e confesso-te que fiz bem, a população de Missirá passou a comer pão fresco, exigi preços abordáveis, o Jobo aceitava mesmo encomendas da população de Finete, em termos de segurança para nós até era bom, vinham civis armados com uma secção de milícias e regressavam com sacos à cabeça, a rescender bons cheiros.
Aos pequenos-almoços havia café com leite condensado, eu preferia beber chá príncipe, se possível pão fresco com talhadas de marmelada, sempre me repugnou o gosto da margarina. Eu satisfarei quaisquer outras dúvidas que te suscite a nossa alimentação. Quando a bolanha de Finete estava completamente alagada, o barco sintético com o motor em baixo, a prioridade absoluta era para as munições. E daí aquela tragicomédia de termos estado mais de um mês a pé de porco em barrica com o feijão-verde em conserva e para beber as águas Perrier e Evian.
Tu próprio reconheces que o final de setembro e o mês de outubro e a partida em novembro para Bambadinca é dos períodos mais amargos da minha vida na Guiné: a perda de efetivos, o número crescente de doentes, sobretudo com paludismo, a convocação para operações que me obrigava a malabarismos, pondo gente doente na vigilância noturna ou convocando milícias de Finete para os patrulhamentos diários a Mato de Cão, onde cheguei a ir com quinze homens, aquelas estranhas flagelações de fim de tarde, até Finete não foi poupada, mas desta feita com uma flagelação a sério, pois a reivindicação, que sempre reconheci como legítima, do pelotão de caçadores apelar a uma mudança, desde 1966 que andavam no mato, começaram em Porto Gole, depois em Enxalé e desde 1967 em Missirá. Como tu deves supor, eu passo os olhos nos documentos e nos aerogramas que te mando, questiono-me como era possível aquela vida em carrossel agarrar-me ainda às questões administrativas, e dispor de tempo para escrever e ler. O colapso nervoso do furriel Casanova pesou-me muito e nunca me furtei intimamente da responsabilidade de ter negligenciado o seu definhamento. Sentindo a sangria dos efetivos, fui mandando documentos cada vez mais aflitivos para os Comandos de Bambadinca. Pedi e fui compensado, no encontro com o novo comandante de Bambadinca ele informou-me que a partir do início de outubro uma nova unidade colocada ali, a Companhia de Caçadores N.º 12, passaria a ir regularmente a Mato de Cão. E chegou outra boa notícia, iríamos ser substituídos em finais de outubro pelo Pelotão de Caçadores Nativos N.º 54, e havia igualmente a decisão de manter dois pelotões de milícia completos em Missirá e Finete. O régulo do Cuor não gostou da notícia da mudança e, entretanto, fui convocado para um reconhecimento aéreo pelo major de operações, iríamos vasculhar minuciosamente as margens do rio Geba entre Bambadinca, Ponta Varela e São Belchior, havia notícia de que grupos do PAIGC viajavam de piroga até aos Nhabijões, ora se houvesse essa armada primitiva tínhamos que saber onde se posicionava e destruí-la. É um episódio longo, já é muito tarde, parei o relato antes de partir, as saudades são imensas e quero responder inequivocamente ao que me perguntas se podemos viver em Bruxelas e em Lisboa. Iremos falar demoradamente nas nossas férias, abrir caminho para a melhor solução. Percorro a tua bela cidade a palmo, nela sinto-me em casa, não tenhas qualquer dúvida. Sei perfeitamente que tu aprecias Lisboa, mas sugiro que venhas cá mais vezes para te aperceberes se aqui te sentes bem, como eu desejaria tanto. E falaremos francamente dos assuntos financeiros, como tu também tenho que ajudar os meus filhos, como tu gosto muito da minha profissão, e como tu vivo em arrebatamento e quero a companhia de quem amo, entendo que é mérito irrecusável, justifica uma solução de que não nos possamos arrepender, a partir do momento em que adquirimos o estatuto de reformado, nada voltará a ser como dantes. Confio na nossa boa decisão, iremos tomá-la. E com carinho neste momento as minhas mãos percorrem as linhas do teu rosto e te beijo com tanto ardor. Bien à toi, Paulo.
Igreja de São Nicolau, sempre me surpreendi, ao longo das décadas, com esta reminiscência das práticas medievais de adossar espaços comerciais a um templo religioso, este tem um peso carismático, sofreu muito com os bombardeamentos decretados por um general de Luís XIV, encerra relíquias do Santo, e não desgosto das suas linhas barrocas severas no seu interior.
Relíquias de São Nicolau, uma bela peça de ourivesaria de trabalho em ouro
É para mim a imagem mais significativa da Igreja de São Nicolau, este Cristo de outras eras a quem não poucas vezes agradeci a Sua misericórdia e as benesses que me tem concedido ao longo da vida
Quantas vezes sinto a falta destas casas de livros e discos usados onde vivi não sei quantas centenas de horas de êxtase, depois fui aprendendo a moderar-me com o peso da papelada transportada de comboio e de avião, e com a consagração dos voos low cost mais moderado me tornei, embora tenha recorrido a manhas como levar gabardine no verão e encher os bolsos até me tornar no mais obeso dos passageiros
Como esquecer estes encontros súbitos com vestígios do passado, houvera igreja, nunca apurei se foram canhões franceses ou alemães que a derribaram, restou esta imponente torre, e sempre que percorre esta artéria aqui me deixou especar, está na praça de nome Santa Catarina, a igreja é do século XIX a imitar o gótico, diga-se em abono da verdade que é um tanto intragável, mas a torre e põe o seu orgulho de incompletude, é o que resta do que já foi grande
Chama-se Sala Henry Le Boeuf, inaugurada em 1929, daquele palco agradeceram as palmas Serge Prokofiev, Igor Stravinski, Louis Armstrong, Maria João Pires e os Madredeus. É o auditório mais famoso de Bruxelas, aqui escutei desde Rinaldo Alessandrini e o seu conjunto Concerto Italiano e Jordi Savall, a sua mulher a cantora Montserrat Figueras e o Hespèrion XXI
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de fevereiro de 2021 >
Guiné 61/74 - P21950: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (41): A funda que arremessa para o fundo da memória