quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Um olhar de esperança no futuro... É, pelo menos, o que gostaríamos de adivinhar neste olhar inocente de uma criança às costas de sua mãe... O que mudou na Guiné-Bissau, desde que o Hélder Sousa desembarcou, em Bissau, do Ambrizete, em rendição individual, em 9 de Novembro de 1970...

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > Rua onde ficava a célebre cervejaria Solmar, aqui evocada pelo Hélder Sousa.... "Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, Solmar, Solar do 10, Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano" (HS).

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Um velho Toca-Toca (transporte colectivo) que morreu no asfalto, numa das ruas da capital guineense... Em 1970, apesar de militarizada, Bissau ainda era uma pequena cidade, com ar pacato, limpa, bonitinha, colonial... Como comentou o Hélder nouro poste, afinal Bissau sempre era maior do que a nossa aldeia: (...) "Bissau era o que mais se aproximava à realidade da maioria daqueles jovens que estavam espalhados no TO do CTIG (era também assim que se dizia) e que, naqueles idos dos finais de 60, inícios de 70 - excepção feita aos habitantes da grande Lisboa, Porto, Coimbra e limítrofes - não tinham a vivência de grandes metrópoles e para eles aquilo já era um grande movimento"....

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.

Navio de carga Ambrizete > Construído em 1948 na Inglaterra, tinha cerca de 138 metros de comprimento e 5500 toneladas de arqueação bruta. Deslocava-se a uma velocidade de 13 nós, tinha 37 tripulantes e pertencia à SG, a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, com sede em Lisboa (Grupo CUF). Recorde-se que a CUF - Companhia União Fabril estava representado na Guiné pela Casa Gouveia, adquirida na década de 1920 (1)... Eram cargueiros da SG como o Ambrizete que traziam para a Metrópole a mancarra com que a CUF fazia o seu famoso Óleo Fula (em 1929 conseguiu a autorização para produzir óleo alimentar, em regime de monopólio, e em clara concorrência, desleal, com os produtores de azeite)...

Fonte: © Navios Mercantes Portugueses, página de Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...). O autor foi oficial da marinha mercante. A página, alojada do Sapo, deixou entretanto de estar disponível.


1. Texto do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72), em que ele descreve a sua chegada a Bissau, no navio da marinha mercante Ambrizete, em rendição individual, e as suas primeiras impressões da cidade, dos seus lugares mais afamados e da sua fauna humana (2).

Luís Graça e Caros Co-Editores:

Há algum tempo atrás enviei-vos a história da minha partida para a Guiné (3), a qual foi precedida pela ida ao Tivoli assistir ao filme O Último Adeus.

Pois bem, agora pretendo relatar a minha chegada à Guiné, mais propriamente a Bissau.

A partida ocorreu então cerca das 22 horas do dia 3 de Novembro de 1970, quando o velho Ambrizete rumou à foz do Tejo com destino a Bissau, navegando com uma inclinação de 7º para estibordo motivada por uma qualquer má distribução da carga que consistia, para além de géneros alimentícios, em material de guerra diverso e sobressalentes para manutenção.

A viagem correu bem, com mar sem causar problemas (vaga larga, como nos explicaram), gozando aqui e ali da companhia dos peixes voadores que faziam questão de acompanhar e, aparentemente, rivalizar com o navio.

A aproximação à costa da Guiné deu-se pela madrugada do dia 9 de Novembro, com todas as sensações que aqui no Blogue já foram descritas por outros camaradas, como a visualização da linha do que parecia ser uma mata cerrada, o bafo quente e húmido de que lá emanava, os sons e os silêncios, tudo isto ainda mais ampliado pelo facto de estar a nascer o sol em contra-luz em relação à nossa posição.

Durante a madrugada tínhamos ultrapassado o Carvalho Araújo que seguia carregado de militares mas que nos disseram ter tido um conjunto de problemas (fogo a bordo?) que o fazia navegar muito lentamente. Deste modo, todos aqueles que seguiam no Ambrizete (como tinha dito, 6 militares, todos Furriéis de Transmissões, 3 TPF (transmissões por fios) e 3 TSF (eu, o Nélson Batalha e o Manuel Martinho)) desembarcámos a meio da manhã desse dia 9, enquanto que o desembarque do pessoal do Carvalho Araújo só ocorreu no dia seguinte, dia 10 de Novembro, dia de S. Martinho, o que nos fez ficar com velhice acrescida em relação a todos os que viajaram naquele barco, nomeadamente os nossos camaradas de curso e especialidade, Furriéis Milicianos Eduardo Pinto, Luís Dutra Figueiredo, António Calmeiro e José Manuel Fanha, sendo que, como era sabido, "a velhice era um posto"!

O episódio do desembarque teve algo que me marcou e que me deixou de pé atrás, como se costuma dizer...

Devido à tal situação do posicionamento relativo dos dois barcos que estavam a chegar ao cais de Bissau, o Ambrizete ficou um tanto ancorado ao largo para dar a primazia ao Carvalho Araújo, razão pela qual a passagem dos passageiros do barco para terra foi feita por intermédio de pequenas embarcações do tipo que lá se usavam para fazer as cambanças mas que no nosso imaginário eram pirogas dirigidas por nativos, sendo aí o primeiro contacto (desconfiado) com os naturais.

Quando o barquito manobrava na aproximação à rampa, estando nós naturalmente a um nível mais baixo do que aqueles que se encontravam no cais, um militar que lá se encontrava procurou saber se "algum de vós é o Furriel Hélder Sousa ?". Após a confirmação de que eu "era eu", o militar em causa, de que eu era o substituto, desesperado pela demora da minha chegada (não esquecer que oficialmente parti a 23 de Outubro, embora só o tenha feito realmente em 3 de Novembro e, sendo das Transmissões, sabia que eu já tinha embarcado) começa aos saltos e aos gritos de É ele!, é ele!, é ele!", o que fez aumentar a minha preocupação sobre onde me vinha meter para suscitar tanta alegria pela partida...

Hoje já não me lembro do seu nome, ele que fez tanta questão em me acompanhar em todas as voltas que foi necessário dar para me apresentar no Quartel, de me levar a uns amigos de Vila Franca que me tinham guardado um lugar para ficar, de me levar a almoçar à messe de sargentos, etc., mas a imagem que tenho é de um macaquinho aos saltos (era o que me parecia, já que o via de baixo para cima e ele estava acocorado), feliz da vida por ter encontrado o seu pira e safar-se dali o mais depressa possível, provavelmente na viagem de regresso do Carvalho Araújo.

Depois das apresentações fiquei a saber que os Comandantes da Companhia de Transmissões e do STM (Serviço de Telecomunicações Militares) eram respectivamente os Capitães Cordeiro e Oliveira Pinto (excelentes pessoas), que eram cunhados e contemporâneos da minha (nossa) passagem pelo B.T., no Quartel da Graça, quando fazíamos a especialidade, o 2º Ciclo do C.S.M., e eles eram Tenentes a fazer o tirocínio para capitães, período de alguma agitação pois ocorreu no último trimestre de 1969, quando tiveram lugar as chamadas Eleições de 69.

Igualmente o 1º Sargento que supervisionava o STM em Bissau e que nos iria instruir preparando-nos para as tarefas que teríamos que desempenhar quando fossemos destacados para os postos no interior era meu velho conhecido, já que tinha sido ele a orientar o meu estágio da especialidade em Tancos, na EPE (meu e do Manuel Martinho que também foi para a Guiné, bem como do Miguel Rodrigues que foi para Angola, salvo erro, e do Fernando Marques que ficou cá em Portugal, na CHERET).

O camarada que fui substituir deixou-me depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, Furriéis Milicianos José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola Industrial e o outro das tertúlias do Café A Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar, os quais estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em criação o futuro Agrupamento de Transmissões) os quais arranjaram um espaço para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha, que tinha estado numa Companhia de Caçadores Nativos e que estava agora destacado numa repartição qualquer do Q.G..

Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas referências no Blogue mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de facto tinha naqueles finais de 1970), lugar muito frequentado, com uma zona de Bar, zona de restauração e uma enorme pista de minicarros, muito maior que as que conhecia cá na Metrópole e que era palco de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá iam gastando o seu tempo e dinheiro.

Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, Solmar, Solar do 10, Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano.

Aqui no Pelicano, quando para me integrar saboreava a minha Coca Cola com uísque (era um privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em 1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a entrar...

O primeiro foi a sensação estranha de estar ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do outro lado do grande e largo Geba, diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade, coisa que mais tarde já não era assim, os nomes tinham depois uma identidade própria, acho mesmo que havia até uma como que espécie de hierarquia, no que respeita à forma como eram identificados pelas dificuladdes de vida que lhes eram inerentes. Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha, com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas também com um pensamento de solidaridade e angústia pela impotência de quem só pode assistir e não intervir.

O segundo contacto foi mais do género de constactar a degradação moral que a permanência em situações daquelas podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no Vietnam com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus problemas mas ali no Pelicano não foi esse o caso. Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender uma fotos "de gaijas nuas". É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de que não se tratavam de "gaijas" mas sim de "uma gaija", a própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava vender.

Fiquei bastante impressionado com aquela demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade.

Cumprimentos
Hélder Sousa
Ex-Furriel Mil
Transmissões TSF
__________________

Notas dos editores:

(1) Vd. o interessante blogue do jovem Ricardo Ferreira, 26 anos, estudante de história, O Grupo CUF - Elementos para a sua História e o primeiro poste que é dedicado à memória do seu fundador Alfredo da Silva (1871-1942):

(...) Em 1918 sobe ao poder Sidónio Pais, é conhecido o seu apoio pelo industrial, que durante este período será eleito senador, e também designado para o Conselho Superior Económico. Com a guerra terminada, lança-se na criação de uma nova empresa, que será crucial para o futuro da C.U.F., de seu nome Sociedade Geral de Indústria Comércio e Transportes. Esta empresa fundada em 1919, iria ainda antes de se lançar no ramo dos transportes marítimos (1922), estava apta a adquirir ou fazer parte do capital de outras empresas que interessassem ao projecto de expansão da C.U.F., foi esse o caso da Casa Gouveia na Guiné. Assentava na exploração agrícola, centrada na palma, no mendobi (amendoim) e gergelim, que passariam a ser carregados em barcos da S.G. e passariam a ser transformadas em óleos comestíveis no Barreiro (...)

(2) Vd. postes desta série Estórias de Bissau:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

Vd. também:

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

(3) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2438: História de vida (10): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)

Guiné 63/74 - P2508: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (16): Dicas para o viajante (Vitor Junqueira)

Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Um rua, esburacada, da capital... Foto do nosso querido amigo Hugo Costa, filho do Albano Costa, de Guifões, Matosinhos. O Hugo já foi duas vezes à Guiné-Bissau, em Novembro de 2000, com o pai e outros camaradas nossos, e em Abril de 2006, com um grupo onde se incluía o A. Marques, o Xico Allen e a Inês Allen (1).

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.

1. Penso que será útil voltar a reproduzir aqui um poste em que o nosso querido amigo e camarada Vitor Junqueira nos deixou as suas dicas de viajante que conhece a África e a Guiné-Bissau onde tem ido com alguma frequência. Além da sua experiência de andarilho do mundo (o Vitor foi, em tempos, oficial da marinha mercante), o Vitor é um homem de bom senso e de grande sensibilidade humana, generosidade e camaradagem.

O Vitor, que vive em Pombal e que é médico, tem estado afastado do nosso convívio por razões técnicas: está há meses sem computador pessoal e, portanto, com mais dificuldades em visitar o nosso blogue e ver os nossos mails. Todos temos sentido a sua falta. Mas eu respeito o seu silêncio, embora esperando que seja transitório. Recorde-se que o Vitor foi o entusíastico e generoso organziador do 2º encontro da nossa Tertúlia, em Abril de 2007 (2)

Em jeito de pequena homenagem ao nosso Vitor - de cujos poestes temos saudades (3) - , aqui ficam as dicas que ele escreveu, em tempos, em resposta a um pedido de ajuda , feito à nossa tertúlia por um ex-combatente, António Osório, de Vila Nova de Gaia, que estava a pensar em ir voltar à Guiné, em viagem organizada (que eu não cheguei a saber se concretizou)...

É de ter em conta que o texto, embora datando de há um ano e picos, não perdeu actualidade, frescura e pertinência... E só podia ter sido escrito por ele, que é dos nossos tertulianos mais talentosos em matéria literária... Outros achegas, de camaradas e amigos da Guiné-Bissau que lá tenham ido recentemente, também serão bem vindas para publicação aqui no nosso blogue... Ver também o portal do nosso amigo e camarada Carlos Fortunato> Guiné-Bissau > Viagens (actualizado em 31/08/2007). (LG).


2. Poste de 7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

(...) Prezado Osório,

Eu sou o Vitor Junqueira de Pombal e estou a responder ao pedido de esclarecimento acerca da eventual programação de uma viagem que pretende fazer à Guiné Bissau, na companhia de sua esposa.

De facto já viajei por diversas vezes para a Guiné, mas não vou fazê-lo no próximo dia 17 Novembro de 2006 (e como eu gostaria!). Posso no entanto dar-lhe algumas indicações baseadas na minha experiência pessoal. Assim

1- Viagem:

Vai a qualquer agência de viagens e compra as passagens na TAP, que é actualmente o único operador. Os preços subiram muito nos últimos tempos devendo rondar os 700 euros + taxas [Actualmente andará pelos mil euros, tudo incluído].

2- Vistos:

A própria agência que vender as passagens, deverá encarregar-se desse assunto. O preço anda à volta de 40 euros por pessoa + o trabalho da agência. Deverá entregar os passaportes + duas fotografias de cada passageiro com uma semanita de antecedência, que é para não haver surpresas.

3 - Hotel:

Recomendo o Hotel 24 de Setembro (4). Fica localizado na zona de Sta. Luzia sendo as suas instalações resultantes do aproveitamento, para esse fim, do antigo clube de oficiais. A baixa fica à distância de um agradável passeio a pé. A zona é calma e segura, mas os cuidados habituais não podem ser descurados.

Note que pelos padrões europeus, os hotéis são maus e caros. Lençóis limpos, ar condicionado ainda que barulhento e água para o banho (quantas vezes despejando o caneco por cima da cabeça!), é tudo quanto podemos exigir. No hotel que referi, se optar por ele, vão pedir-lhe por um quarto duplo cerca de 50.000 CFA, equivalente a 16 contos, com pequeno almoço. Mas se negociar um pouco e disser que é amigo do Sr. Manuel Neves, um empresário meu amigo com bons contactos junto da gerência, talvez lho deixem por 35.000 (11 contos). Para fazer a reserva, contacte o sr. Moisés que é uma espécie de subdirector através do telef. 00.245.7237570.

Em Bissau, existem vários restaurantes, aceitáveis, com preços que não sendo baratos também não são exorbitantes. Quando forem para o interior, previnam-se com água, fruta e conservas. Até podem (e devem) levar umas latitas de cá.

4 - Bagagem:

A roupa deve ser apenas a estritamente necessária para a estadia, transportada em sacos que caibam nos porta-bagagens da cabine (evitar as malas de porão), e adequada ao clima: dias quentes e relativamente húmidos sem chuva durante o dia, mas frescos à noite durante o mês de Janeiro.

Não esquecer de meter no saco uma pequena quantidade de sabão rosa ou azul. Uma T shirt, umas cuecas ou um par de meias, lavam-se à noite e deixam-se a secar frente ao ar condicionado. No dia seguinte ... é só vestir. E na falta de sabonete, champô ou creme de barbear, entra o sabãozito. De resto, quanto menos tralha, melhor.

5 - Segurança:

Na Guiné não há registo de criminalidade violenta exercida contra os turistas. Eu nunca tive qualquer problema, e posso garantir que se pode viajar tranquilamente por todo o território sem qualquer receio. No entanto, água benta e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

Como é sabido, a pequena delinquência existe em todo o mundo. Vamos então tomar algumas precauções. Em primeiro lugar, é fundamental não dar nas vistas. Para tanto, comecemos pelas roupas, que devem ser tanto quanto possível idênticas às das pessoas que lá vivem e trabalham. São de excluir os calções, roupas ou calçado de marca, objectos de ouro, relógios caros (ou de estimação!), máquinas de filmar ou fotogáficas a tiracolo (sempre no bolso, excepto quando estão a ser utilizadas ...). O mesmo para o telemóvel.

Relativamente aos documentos, eu costumo levar apenas o passaporte e uma fotocópia do BI para trazer no bolso no país de destino, para além dos meios de pagamento que tenciono utilizar. Note que isto é válido para os países pouco desenvolvidos, como para os ditos civilizados. Toda aquela carteirada de documentos que habitualmente nos acompanha para todo o lado, fica de férias em Portugal. E no cofre do hotel (quando existe), ficarão guardados, o passaporte, os valores em dinheiro, o cartão de crédito e os objectos valiosos. Nunca deixe quaisquer valores à vista no quarto. As malas devem ter fecho de segurança ou um bom cadeado.

O regresso ao hotel ser feito a pé, deve ocorrer antes do anoitecer. Na rua, as conversas ou qualquer comentário entre si e a esposa devem ser feitos de modo a que outras pessoas não se apercebam do seu conteúdo ou da razão da vossa presença no país (turismo, visita a familiar, trabalho etc.), nem mesmo da nacionalidade. Para qualquer digressão nocturna, chamem não o António (!) mas o táxi.

6 - Saúde (5):

Não recomendo a profilaxia anti-palúdica. É preferível fazer a prevenção através da observação de algumas regras e comportamentos. Durante o dia pas de problème! Mas se a zona a visitar for particularmente húmida (pantanosa), pode usar-se um bom repelente, comprado em Portugal. Existem à venda de diversas marcas, com excelentes características cosméticas.

À noite, no restaurante, discoteca ou simples passeio, usar sempre roupa com mangas compridas e calças, cobrindo as partes expostas (mãos e face) com o repelente (spray ou stick).

As meias de desporto (Sportzone, por ex.) são também uma boa opção, pois oferecem algum conforto aos pés durante as caminhadas e à noite, dada a sua espessura, impedem que o ferrão dos mosquitos nos atinja a pele dos tornozelos. Até podemos meter as calças por dentro delas.

Para aquelas pessoas que se sentem mais seguras se tomarem o comprimido contra a malária (ou paludismo, é a mesma coisa), o medicamento que recomendo é o MEPHAQUIN. Toma-se um comprimido uma semana antes do embarque, outro na véspera da partida e daí para a frente, um por semana sempre no mesmo dia. Mínimo: 4 semanas de tratamento.

Do estojo de primeiros socorros deve constar também o paracetamol como analgésico e antipirético, um anti-inflamatório - por ex., Donulide, ou Voltaren para quem não sofre do estômago - , um anti-diarreico que pode ser o Imodium, um antibiótico multi-usos de que uma boa referência continua a ser o Clavamox, Augmentim, etc. Um ligadura de 7 cm (largura) e alguns pensos rápidos podem ser úteis.

Mas tão importante quanto isto tudo, é fazer um bom seguro de viagem, que garanta a evacuação aérea de urgência e/ou repatriamento em caso de doença súbita ou acidente.

7 - Meios de pagamento:

EURINHOS, muitos! Notas de 5, 10, 20 e 50. E algumas moedas para dar, muito parcimoniosamente, aos putos que constituem a comissão de boas vindas, logo à chegada ao aeroporto e que não deixarão de ser bastante persuasivos em algumas ruas de Bissau, mas não no mato.

Os câmbios fazem-se na rua em Bissau, onde aparecem os angariadores. Eu prefiro as Casas de Câmbio que se encontram praticamente todas concentradas numa rua da cidade. Cada euro vale à roda de 650 francos CFA (Communauté Francofone Africaine). [Actualmente, 1 Euro = 655,597 CFA].

Para as crianças das aldeias a visitar, é conveniente levar alguns rebuçados, que não derretam com o calor. Esferográficas e outro material escolar assim como roupas são muito apreciados mas muito difíceis de distribuir visto que é impossível levar quantidades que contemplem mais do que uma dezena ou duas de crianças, e elas caem-nos em cima como um enxame. Fica ao critério de cada um, mas se optarem por levar, então entreguem a alguém da tabanca e essa pessoa é que fará a distribuição.

[Vd. também, nas Informações Úteis, a informação sobre Bancos, em Bissau, no sítio oficial do Simpósio Internacional de Guiledje (6)].

8 - Deslocações:

Táxi ou Toca-Toca (transporte colectivo). O táxi, bem negociado, pode ser uma boa solução e vai a todo o lado. Em Bissau, numa papelaria próxima dos Correios vendem-se óptimos mapas rodoviários da Guiné de que convém adquirir um exemplar logo à chegada, a fim de planear as viagens.

Uma boa norma consiste em viajar sempre na companhia de um guineense da sua confiança que lhe poderá ser recomendado por um amigo, alguém do hotel, um comerciante ...

9 - Nota final:

Os tempos mudaram, e a nossa relação com os guineenses não pode ser a mesma que se verificava quando por lá passámos há trinta e tal anos, com uma guerra então em curso. Eles estimam-nos, mas apreciam muito o tratamento de igual para igual.

Nunca se descuide com qualquer atitude de sobranceria ou arrogância tão frequente em pessoas que visitam África pela primeira vez. Evite o tratamento por TU, mesmo tratando-se de jovens ou crianças.

Nunca desdenhe dos produtos ou das intenções dos vendedores de rua. Sorria, converse com eles sem lhes transmitir a falsa ilusão de que está interessado se não for esse o caso, mas nunca lhes vire as costas. Nem os ignore baixando a cabeça e seguindo em frente. Uma moedita, nem que seja apenas de 20 cêntimos, que se dá a um garoto por aqui, a outro por ali, pode operar milagres no campo da comunicação.

Corresponda sempre a uma saudação e tome a iniciativa de cumprimentar quando achar que a bola está do seu lado. Para isso basta levantar o braço e fazer um ligeiro aceno de cabeça. Por outro lado, são proscritos os salamaleques bem como as atitudes de subserviência. Mostre compreensão pelas manifestações de pobreza ou mesmo miséria, material e humana, que vai sem dúvida encontrar. Não escarneça delas através do riso ou do gesto.

Do mesmo modo, situações ou atitudes que para nós podem parecer caricatas ou mesmo condenáveis, como por exemplo a abordagem por uma autoridade maltrapilha e ignorante, devem ser tratadas com pézinhos de lã. E muita compreensão.

Não se esqueça que estas pessoas podem não ter recebido um único salário desde há meses encontrando-se em situação desesperada. O lado positivo da coisa é que um qualquer berbicacho se pode resolver-se com uma discreta gratificação de 500 ou 1000 CFA. A melhor forma de lidar com esta gente é nós próprios deixarmos a cabeça de europeu aqui em Portugal e no seu lugar atarrachar uma de africano à chegada.

Durante a viagem é que não sei como vai ser! Em qualquer lado, cidade ou interior, não deixe de manifestar um particular respeito pelos idosos a quem tratará por Tio ou Tia. Sendo a população maioritariamente muçulmanna (2/3), a família tem para eles um valor que entre nós já lá vai. Por isso leve fotografias dos filhos e netos que mostrará quando achar oportuno. Vai ver quanto sobe no patamar da consideração desta gente simples. Se a sua máquina fotográfica ou de filmar é digital, mostre-lhes no display algumas das fotos que tirou e recolha um endereço para mais tarde enviar as cópias. Nunca prometa nada se não tenciona cumprir. Um africano nunca esquece o bem ou mal que lhe fizerem.

Dito isto, resta-me desejar-lhe boa viagem e uma óptima estadia.

Cumprimentos

Vitor Junqueira,
ex-Alf Mil da CCAÇ 2753 - Os Barões

(Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72).

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

28 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVIII: A tertúlia do Porto (Albano Costa)

4 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXI: Do Porto a Bissau (1): o jipe está de saída (Albano Costa)

(2) Vd. poste de:

9 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1649: 2º Encontro da nossa tertúlia: Pombal, Restaurante Manjar do Marquês, 28 de Abril de 2007 (Vitor Junqueira / Luís Graça)

29 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1709: Tertúlia: Encontro em Pombal (1): Malta de cinco estrelas (José Martins)

(3) Vd. postes do Vitor Junqueira:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1084: O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753 (Vitor Junqueira)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)

30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1133: Origem da expressão 'Siga a Marinha" (Vitor Junqueira)

31 de Outubro de 2006> Guiné 63/74 - P1224: Blogue: não ao politicamente correcto (Vitor Junqueira)

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1581: O elogio dos pára-quedistas das 121ª e 122ª CCP (Nuno Mira Vaz / Vitor Junqueira)

30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1716: Tertúlia: Encontro em Pombal (7): Camaradas radicais (Paulo Santiago / Vitor Junqueira)

3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1725: Tertúlia: Encontro em Pombal (10): O nosso bom gigante J. Mexia Alves (Vitor Junqueira)

3 de Maio de 2007 > Guine 63/74 - P1728: Tertúlia: Encontro em Pombal (11): A parábola do porco e da tesoura de barbeiro (David Guimarães / Vitor Junqueira)

(4) Vd. poste de 4 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2503: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (15): Chegada a Bissau, 29 de Fevereiro, formalidades, recepção, hotéis

(5) Sítios sobre Consulta do viajante / Medicina tropical

(i) UCS - Unidade de Cuidados Integrados, SA (Grupo TAP) > Consulta do viajante

Vd. folhetos da UCS sobre:

Quando Viaja de Avião,

Doenças Tropicais - Malária

Diarreia do Viajante.


(ii) Instituto de Higiene e Medicina Tropical > Consulta do viajante / medicina tropical

Rua da Junqueira, 96,
1349-008 Lisboa
Telefones: 213652600 geral - 213627553 directo

(iii) Outros sítios (em inglês):

http://www.who.int/ith/en/

http://www.cdc.gov/travel/

http://www.istm.org/

http://www.safetravel.ch/safetravel/

http://www.astrium.com/


(6) Lista dos bancos existenets em Bissau:

Banco da África Ocidental (BAO)Rua Guerra Mendes, 18A/18C, C.P. 1360 – Bissau;
Tel: (245) 20 34 18 / 19 Fax: (245) 20 34 12

Banco Regional de Solidariedade (BRS)
Rua Justino Lopes
Tel: +245 20 71 12 /3

Banco da União (BDU)
Av. Domingos Ramos
Tel: +245 20 71 60

Ecobank Guiné-Bissau
Avenida Amílcar Cabral
Tel: +245 20 73 60 / 1

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2507: Estórias do Zé Teixeira (25): Raúl Fodé (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


O nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), que vive em Matosinhos, mandou-nos mais um testemunho da sua vivência com aquela boa gente da Guiné.

Desta feita, apresenta-nos o Raúl Fodé, uma figura marcante de Empada, com quem o Zé Teixeira mantinha longas conversas, não fossem eles camaradas na área da saúde.


O Raul Fodé

por José Teixeira (1)

Escrever sobre o Raúl Fodé é deixar vir à ribalta da memória acontecimentos, vivências e emoções que o deslizar galopante dos anos impregnou de poeira impiedosamente. Marcas que afectaram positivamente as nossas vidas, contribuindo para uma forte e sincera amizade.

Partiu uns anos depois ao encontro eterno com Alá e as suas setenta mil virgens, mas o seu espírito continua vivo na minha memória.

Homem culto, profundamente religioso, homem afável e conversador, observador atento a tudo quanto o rodeava, muito respeitado localmente pelo seu carácter, facilmente cativava amizades.

Servia Portugal como soldado da milícia na área da saúde, em Empada, como enfermeiro auxiliar no Pelotão de Milícias. Por tal facto colaborava na enfermaria do quartel no acolhimento e tratamento das maleitas da população.

Alfaiate de profissão, era um gosto vê-lo, sempre que a vida militar o libertava, à porta da sua morança a costurar. Era também o Imã na Mesquita local, onde orientava as rezas, escrevia as tábuas do Corão para os putos decorarem, como é principio básico da religião muçulmana, ou mesmo a catequizá-las, levando-as a cantarolar aquela cantilena tão característica, que nos transportava à nossa infância, quando cantarolávamos o Pai Nosso ou a Salvé Rainha, orientados pela respeitável mestra (catequista) local, ou mesmo à escola onde tentávamos encornar a tabuada, o célebre dois vezes um.. dois, dois vezes dois... quatro...

À noite, sentado na soleira da porta da sua morança, dava conselhos aos mais novos ou ouvia respeitosamente os mais velhos ou quem tinha outro tipo de conhecimentos, que porventura lhe interessassem para enriquecer a sua já vasta biblioteca cerebral.

Considero-me um felizardo em ter podido viver e conviver com o Fodé. Sempre disponível na enfermaria, quando saíamos para as operações em conjunto, era o meu braço direito no transporte do equipamento de enfermagem – bolsa e maca.

Quantas noites ficámos os dois à conversa! Tudo se discutia: religiões, cristã e muçulmana, com os seus dogmas, verdades e princípios, literatura, geografia, política, etc. A política era um tema perigoso, que se falava quando estávamos sozinhos, pois até no mais interior da Guiné a PIDE tinha ouvidos.

Como língua, usava a da sua etnia, a da sua religião, o português falado e escrito correctamente, o crioulo e mais uma ou duas línguas locais, de povos ligados pela religião na Mesquita local.

Gostava muito que lhe falasse de Portugal , de Lisboa sobretudo, onde sonhava ir um dia.

Um exemplo de exploração colonial

Uma das nossas conversas desandou para o rumo da Guiné nos tempos futuros. Sentia-se português, mas tinha muito medo do futuro, porque a tropa não sentia o pulsar da Guiné e os brancos que por lá tinham passado, no seu espírito comerciante de ganhar dinheiro, tinham feito muito mal à população.

Fui cáustico para com ele, questionando-o se não ganharia mais a trabalhar a terra, apesar do esforço e trabalho exigente, do que a servir a tropa, pois um dia a guerra teria um fim. O que seria da sua gente ?

Sua resposta cruel veio de seguida para abalar a minha consciência de branco, educado num ambiente colonizador, em que os africanos eram os pretinhos coitadinhos e nós, os portugueses, os seus salvadores, porque lhe levámos a religião cristã e a civilização.

Disse-me ele:
- A região do Tombali, tal como a de Forreá, foram outrora muito ricas em arroz, milho, madeiras, peixe, etc. As etnias tinham os seus chefes, as suas normas e conseguiam entender-se de modo a que tudo estava bem. Chegaram os brancos vindos de Bissau, a produção aumentou muito, desenvolveu-se a produção da mancarra, que deu cabo da terra. A população começou a trabalhar para os brancos, dividiu-se e lentamente empobreceu, apesar de trabalhar e produzir muito mais. Os brancos, esses, ganharam muito dinheiro. Repara, eu, Fodé, vou na bolanha, com mulheres e filhos, rasgo a terra e semeio mancarra. Arranco as ervas más, cavo a terra para amolecer e provocar o enraizamento, passo lá todo o tempo a defender de animais e do bandido. Quando está seco, corto separo e ensaco, transporto para loja do branco, que me paga um peso [moeda antiga que correspondia a um escudo] por saco. Quando chega o barco, tenho de fazer o transporte desde a loja do branco. Isto é tudo trabalho meu. Agora sabes quanto recebe o branco por cada saco de mancarra ?
- Dois pesos - disse eu convictamente.
- Dois? Era bom! Por cada saco de mancarra, cultivada, secada, ensacada e embarcada por mim, o branco recebe quinze pesos.

Era este Portugal que tínhamos na Guiné, antes da guerra colonial começar.

Zé Teixeira

Guiné-Bissau > Mampatá > 2005 > José Teixeira reencontra bajuda de outros tempos
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 7 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2087: Estórias do Zé Teixeira (24): Vítimas inocentes (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)








Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas e os cães...

Fotos: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
por Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112


Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726)

Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte VIII - (pp. 61-80) - Os demónios étnicos (2)


(i) O novo prisioneiro, Na Iala, enfermeiro, amigo de Pami, é abatido a tiro, ao tentar fugir de Cufar

Aos poucos Pami fazia já parte do próprio aquartelamento. E por vezes pensando no regresso -se isso acontecesse- tinha receio que não fosse compreendida e nela não acreditassem. Continuava conversando com as suas - agora - amigas Meta e Míriam. Os interrogatórios tinham terminado, e o alferes Telmo e o furriel Rafael, ignorando-a por completo, passavam por ela como uma desconhecida.

Princípio de Novembro [de 1965], aparecem mais prisioneiros no Aquartelamento. Com grande surpresa, Pami reconhece num deles, o seu grande amigo Go Na Iala. Durante a noite, começa a gizar um plano para chegar à fala com ele. Em vão, Na Iala ao romper da manhã tenta a fuga. O guarda dos prisioneiros faz o primeiro tiro e não acerta, o enfermeiro da guerrilha salta a primeira sebe de arame farpado, mas uma rajada, agora certeira, fá-lo ficar - como um Cristo- de braços abertos sobre a segunda barreira. Aqui paga-se caro a ousadia. Quem colaborar, não tem problemas, mas quem tentar qualquer coisa contra, paga com a própria vida. Pami chora enquanto Go Na Iala, é enterrado fora do arame farpado junto à lagoa.

(ii) A procissão das velas

Os dias, eternidade infinita, vão passando. A professora de Flaque Injã vê e começa a conhecer os Lassas no seu quotidiano. Extremamente disciplinados, mas reagem à injustiça. Assiste a uma manifestação de rejeição, que não calculava acontecer. Numa formatura, para receber o pré (remuneração dos militares), recebem conjuntamente duas velas de estearina, dois rolos de papel higiénico e uma caixa de graxa, que lhes é descontado na remuneração, material ao qual não davam utilização. Os soldados tudo receberam sem nenhum protesto.

À noite após o jantar, Pami sentiu movimentação na varanda do Comando e ouviu os comentários dos alferes sobre o que se estava a passar, e reparou então no espectáculo. Silenciosamente, mais de uma centena de militares, em duas filas subiam a estrada do antigo para o novo Aquartelamento. De velas acesas, faziam uma procissão. Passando em silêncio absoluto, em frente do comando, a manifestação de desagrado destroçou, junto à porta de armas de acesso à pista de aviação. No dia seguinte, ao romper da aurora, o Aquartelamento estava lindo. O papel higiénico que tinha sido distribuído, - desenrolado - ornamentava o arame farpado em volta de todo o quartel de Cufar. A brincadeira não foi encarada muito bem pelo comando, mas inteligentemente, o Leão de Cufar ajuizou, e por fim até riu, e mandou repor o dinheiro aos militares, com grande protesto do G3, alcunha com que os soldados tratavam o primeiro sargento da companhia. Pami não compreendia a razão de tal alcunha.


(iii) Os Lassas, a sua estratégia de sedução e os seus cães

Em Dezembro, a professora de Flaque Injã viu nascer a concorrência e sentiu ódio e ciúmes pela senhora branca de óculos que dava aulas, no Aquartelamento, às crianças das populações a Sul. A ex-guerrilheira agora apercebia-se bem de que de facto era difícil combater os Lassas, eles sabiam actuar em toda a linha da contraguerrilha. Não só davam aulas, como forneciam o pequeno-almoço, e o sargento Miguel dava aulas de ginástica, a uma centena de miúdos, oriundos das tabancas controladas pelo exército. Aos poucos Pami foi reconhecendo que o trabalho não seria mau, pois aqueles miúdos, mais cedo ou mais tarde, iriam engordar as fileiras da guerrilha, e assim seria melhor, irem com determinados conhecimentos, depois seria só uma questão de trabalho político.

Meta e Míriam continuavam a falar com a prisioneira, e esta tomava outro à vontade. Só não compreendia é que ninguém dos militares lhe ligasse qualquer atenção. Apenas um ou outro soldado se ia tentando aproximar, com o intuito de receber alguns favores de sexo, mas o medo da sua condição de prisioneira não os deixava chegar muito perto. Interessante, achava aquele furriel de barbas e muito peludo, que todos os dias passava para o seu abrigo com uma lata de comida para o seu cão que o seguia sempre pachorrentamente. Engraçado! Aquele furriel de nome Gonçalo, falando sempre com o seu cão cufar. Nas saídas para operações, era ele e mais dois - um alferes e um soldado - os únicos que usavam capacete. Já tinha ouvido uma vez comentar, um outro furriel, de nome Gama - que falava com um sotaque diferente dos outros -, rir e dizer:
- Porque é que andas com essa merda sempre nos cornos, carago? Fritas os miolos quando abre o sol!


(iv) Bombas sobre o Cantanhez

Aproxima-se o final do ano de 1965, por sobre o Cantanhez, de noite, aparecem aviões a lançarem toneladas de bombas. É um espectáculo pirotécnico extraordinário, com as balas tracejantes das antiaéreas do PAIGC a tentarem atingir os bombardeiros. A professora fica excitada, com a ilusão de que alguma antiaérea atingisse algum avião. Os militares ficam radiantes, observando o espectáculo, e deliram, dando gritos, quando ouvem os estrondos dos rebentamentos que, mesmo à distância, fazem tremer os abrigos do aquartelamento. Em qualquer lado, as bombas lançadas destruiriam tudo. Mas nas matas do Cantanhez não vai ser assim.

A seguir à passagem do ano, os Lassas saem mais uma vez, durante o dia, as viaturas transportam os militares para Catió. Outros vieram para fazer segurança ao aquartelamento. Dois dias passaram até ao regresso. Soube que tinham andado por Darsalame.

(v) O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau

Míriam apareceu-lhe chorando. O furriel Rafael tinha sido evacuado para o hospital em Bissau, mas ninguém lhe explicava o porquê.

Míriam aproxima-se mais de Pami, e esta vai fomentando mais esse convívio, de tal forma que a lavadeira chega a convidar a prisioneira a acompanhá-la até ao quarto de Rafael, de quem tratava a roupa. O quarto era limpo pelo atrevido do Amadu, que aproveitava a não estadia do Rafael, para ir com Meta para cima da cama do furriel. Míriam bem barafustava, mas não resultava nada.

Pami ficou maravilhada. Entre as camas, havia uns pequenos móveis onde se viam algumas fotografias de mulheres brancas, mas que deveriam ser muito jovens ainda. Por debaixo da cama, grandes malas, onde segundo a lavadeira, eram guardadas as cartas que recebiam da família para além da roupa não militar. A um canto estavam encostadas as armas, G3 e respectivas cartucheiras, e a célebre pistola que Rafael tinha utilizado no interrogatório de Pami. Verificando as fotografias que se encontravam sobre o móvel que devia ser pertença de Rafael, a prisioneira solicitou a Míriam se podia ver, ao que esta respondeu:
- Vê mas cá estraga, e cá suja! Furiel mata mim!

Pami pegou num monte de fotografias. A maioria eram fotos do furriel no quartel, havia de outras pessoas, mas duas fotos chamaram-lhe a atenção: Uma era o furriel, com uma farda e um lenço enrolado os pescoço e na cabeça um chapéu engraçado. Na foto rodeando o furriel, havia outros rapazes fardados da mesma maneira, e algumas crianças brancas também fardadas, mas de boina na cabeça. A outra foto era de uma jovem branca muito linda, com uns olhos negros muito grandes toda vestida de preto. Disfarçadamente, Pami virou a fotografia e leu: “Para o meu adorável maridinho, com milhões de beijinhos da sua Mimê”. Virou-se para Míriam e perguntou quem era aquela mulher.
- Chi!... Tu cá fala que viu isso! Esse aí é bajuda de furiel! Ele gosta desse. Mas tem outro que gosta mais, e dá cabo de cabeça de furiel. Mas esse bajuda não quer ele! Esse que está na torgafia chama MiMê. O outro ele tem nome de ele no boina da cabeça.
-Jube!

Tirou a boina preta que estava pendurada na parede e, virando-a, mostrou a parte de dentro, onde no forro amarelo já um pouco surrado, estava inscrito em maiúsculas: TÂNIA. Pami mostrou desconhecer, e perguntou a Miriam:
-Como é o nome dela?
- Mim não sabe bem, furiel diz Tanía ou?... Eu não sabe bem! Mas esse é mesmo bajuda qui tá no cabeça dele.

(v) A porfessora Pami fica triste ao constatar que nem os Lassas saber ler e escrever


Pami começava a ficar maravilhada ao saber estas coisas, ao ponto de esquecer que era prisioneira. Mas, agora, também não sabia bem que espécie de prisioneira era, que podia andar por todo o lado e ninguém lhe ligava. Dava a impressão de que já fazia parte daquela comunidade.

Não poderia escrever, a forma de estar e de viver dos militares, nem desenhar os abrigos, e sistemas de defesa do aquartelamento. Restava-lhe, para além da sua capacidade de observação, a excelente memória visual. Na sua cabeça ia sendo armazenada toda uma gama de informações, que seria um manancial para a guerrilha. Pami estava dona e senhora de toda a vida, e procedimentos, dentro do recinto militar. Inteligentemente, chegou até a estudar certos militares, e o seu comportamento. Chegando à conclusão que a maioria deles não sabia até porque estavam ali. Apercebendo-se que alguns consideravam a sua estadia ali como castigo.

Começou a observar a própria reacção dos homens no quotidiano, e verificou a grande diferença, em termos culturais e de instrução, que existia entre muitos deles. Ficou triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler a outro, uma carta dos pais, que concerteza também por eles não teria sido escrita. Pami regrediu um pouco aos tempos do padre Francelino, e agora sim compreendia muitas mensagens dele - anacrónica situação dos homens que se matam sem saber o porquê - a crua realidade da estupidez humana.

Pami viu! Sentiu, a verdade humana. A única diferença em muitas situações seria apenas a cor da pele. A dor, os sentimentos, o amor, a forma de olhar para a Natureza, era concerteza idêntica entre os que se matavam para não morrer. Os ideais eram cota mínima nesta montanha de lama.

(vi) Dois pobres diabos, tarados sexuais, Guita e Trinta, que estragam a fotografia ao Leão de Cufar


A professora - prisioneira livre - extasiava ao começar a conhecer os homens, através do que via, e ouvia. Míriam tudo lhe contava. Conhecia e sabia coisas que a maravilhavam na sua descoberta dos Lassas. E conheceu as histórias do soldado Guito, analfabeto, sempre de calções rotos, sem cuecas com o sexo à mostra. As incursões que fazia em companhia do soldado Trinta, emboscando as mulheres das tabancas - novas ou velhas - para delas se servirem sexualmente. Umas vezes voluntariamente, por permuta de um pão ou dez pesos, outras por violação, servindo-se um enquanto o outro segurava e amordaçava a vítima. Taras! Sim porque teve conhecimento, e ouvia outros soldados, gozarem o pobre diabo do soldado Guito, quando este pedia para lhe escreverem uma carta, para sua madrinha de guerra. Era matemática a pergunta inicial, para abertura da escrita:
- Então o que queres mandar para o Paneleiro?

A madrinha de guerra do soldado era de facto um homossexual. Mas estes acontecimentos, de violações, e negócios de sexo, traziam por vezes problemas, de uma certa gravidade, dado estragarem o trabalho psicossocial. Por essa razão, teve o Leão de Cufar um dia de mandar formar a Companhia, para uma pobre velha, identificar os soldados Guito e Trinta, porque se tinham servido dela, e não tinham pago os dez pesos (escudos) prometidos, para satisfação da sua necessidade sexual.

Histórias interessantes, outras menos, iam preenchendo o tempo da prisioneira. Ouviu um dia o Ti Manel, -alcunha do cabo do furriel Rafael - contar a sua vida, até ir para a tropa. Com apenas nove anos, falecera-lhe o pai e ele teve de começar a trabalhar para poder ajudar sua mãe na sustentação da casa e criação dos irmãos mais novos. Coisa triste!

Muitas! Muitas coisas ficou a saber sobre todos estes soldados. Desde o internamento em colégio de meninos bem do furriel Taveira, do Rafael não ter sido padre por causa da bajuda, cujo nome estava inscrito na boina como dizia Míriam. Dos alferes e seus namoros, com tiros de bala simulada, por emboscada, efectuada pelos furriéis Tambinha e Mamadu. O Gonçalo, que deixou a alimentação dos soldados, e foi lutar para o mato por desentendimento com o G3. O enfermeiro, que mandara vir para aquele ambiente de guerra a mulher e suas filhas de tenra idade.

(vii) Homens com sérios problemas de saúde

Da porta da sua prisão, nas saídas até ao poço, para lavar a roupa, nas voltas entre a casa dos milícias e a messe de sargentos com as suas companheiras fulas, Pami ia ouvindo e gravando as histórias dos militares, algumas tão tristes que dariam para um romance, outras tão tontas que dariam para uma comédia. Também não tinham a vida muito fácil aqueles homens. E recordava o Velhinha -alcunha do furriel Silvestre - e os seus problemas de saúde intestinais, poderia ter-se ficado naquelas terras se não fora mandado para Bissau. E parece que fora agora, que ouvira o furriel Gasolinas, Alberto de nome, comentar com o furriel Tomé das transmissões:
- É, pá, se o Velhinha não é evacuado, o gajo lerpa! Oh Tomé, vê lá que os soldados dizem que o gajo arranjou uma lata, e passa as noites na cama dentro do mosquiteiro, não a dormir, mas a cagar para a lata, e a desfazer-se em diarreia.
- Mas isso deve ser terrível, deve ser um fedor naquele abrigo! - tinha ripostado o Tomé.

(ix) E se a Guiné se tornasse independente ? Quem é que mandaria ? Os caboverdianos, pois claro

A sensibilidade de Pami ia sendo tocada por estes e outros casos. Mas, mais uma conversa dos frequentadores do varandim deixaram-na uma tarde estupefacta. Um grupo em que sobressaía o Leão de Cufar, abertamente e sem rodeios, discutiam acaloradamente, sobre os povos da Guiné, e não só. A conversa tinha começado por um alferes, que atirou para o Leão:
- Ó meu capitão, como é que será, se nós perdermos a guerra, ou se por hipótese Portugal der a independência a estes gajos?
- É, pá, você está louco ou quê? Primeiro, isto ainda está numa fase em que nós podemos perfeitamente ganhar a guerra, aliás temos mesmo de a ganhar, e sobre isso não há dúvidas! Ou tem?
- Não... Não!
- Ainda bem! O problema maior que se põe hoje, é a questão da ajuda dos países comunistas ao PAIGC, e as fronteiras abertas que o partido tem. Em contrapartida, do nosso lado, temos a Organização de Unidade Africana a reconhecer o PAIGC como legítimo representante do Povo da Guiné-Bissau. Os EUA estão-se nas encolhas, aliás com graves problemas no Vietname, e a ONU está em cima de nós!

O alferes interrompeu e disse:
- Sim, isso é o problema político-militar, que possivelmente pode ter influências a nível da guerrilha, como da nossa parte. Eu até gostava de ver os americanos a combater aqui com as nossas condições!?

Resposta imediata do alferes Azeredo:
- O quê? Os américas aqui a dormir nos buracos!? Carago, não estavam cá um dia sequer.

O alferes que tinha iniciado a pergunta, voltou à carga.
- Mas a questão que eu ponho é a do entendimento entre tantas raças!? Já viu! Os Cabo-verdianos, nunca se sabe de que lado estão!
- Sim ... Sim!

Retorquiu o capitão continuando:
- O problema é grave, não há dúvidas!
- Vejamos: Os quadros do PAIGC, no exterior, são quase todos Cabo-verdianos que estudaram na Metrópole, controlam o aparelho do partido e a guerrilha, formada na maioria por Balantas, Nalus e Papéis, com quadros na generalidade também seus, com raras excepções, como é o caso aqui do nosso vizinho - e amigo - Nino que é Papel.
- Sim, porque a nível de europeus, na generalidade comerciantes ou funcionários, o seu número é muito reduzido.

Pronunciou-se o alferes Soeiro, introduzindo-se na conversa.
- E existe outro problema!...

Continuou:
- O qual, me parece até bastante grave. É que os cabo-verdianos, influenciados por um nível social mais elevado, e consequente melhor nível de vida que os autóctones, fizeram criar um certo ressentimento nestes, ao criarem um certo complexo de superioridade.
- Boa! Sim, senhor, diz bem! Complexo de superioridade! - atalhou o Leão, e dando um olhar sorridente a todo o grupo continuou:
- Meus amigos! É a diferença que nós fazemos dos outros!

Fez uma pausa, e voltando a olhar para o grupo, agora com um ar mais sério disse:
- A sorte! Também ela conta, e nos tem ajudado. Mas se não fora de facto o conhecimento real da situação em que estamos, o sabermos como a tratar, seria muito complicado. Meus amigos, esta companhia vale pela sabedoria e cultura que todos vocês têm. Se não fora isso onde estaríamos? No local onde estamos, se não tivéssemos actuado, com inteligência e saber, já nos tinham enrabado. Desculpem a expressão.

(x) Uma douta incursão do Alferes Palmeiro pela História e Etnografia da Guiné


- Já que entrámos neste assunto, podemos aprofundar um pouco mais sobre estas terras da Guiné. É claro, que não vale a pena ir até às Descobertas e relembrar, a dobragem do Cabo Bojador em 1434, o Cabo Branco, o Cabo Verde a chegada das nossas caravelas em 1446 até ao rio Casamança e no mesmo ano Cadamosto e Diogo Gomes, a entrarem nos grandes rios da actual Província da Guiné. Mas isto é assunto, que todos estudaram da nossa História e não vale a pena estar a chatear. No entanto eu pedia ao alferes Palmeiro, que falasse um pouco sobre esta terra, mas em termos mais actuais.

O alferes sorriu e disse:
- É, pá! Meu capitão, pá! Quem anda, pá, com os cadernos, pá, sempre a escrevinhar e a tirar apontamentos, pá, é o Mamadu, pá! Mas está bem, pá, eu vou dizer qualquer coisa, pá!

E o alferes Palmeiro sempre com o seu , começou a desenrolar os seus conhecimentos, sobre terras e gentes da Guiné.
- Esta terra é formada, por duas zonas distintas. O litoral, com costas baixas e enorme quantidade de rios de maré, cujos braços penetram profundamente pela terra dentro, inundando um terço do território na época das chuvas. O interior é plano na região de Bafatá, com leves colinas, na região do Boé. De clima tropical, muito húmido, tem duas estações distintamente bem marcadas: a estação seca de meados de Novembro até meados de Maio, e que é a menos quente. E a mais quente estação das chuvas, que vai de meados de Maio até meados de Novembro. Esta separação é conotada com o treze de Maio, em que se diz que nesse dia chove na Guiné. Crendice do povo, presumo. Mas o certo é que no primeiro treze de Maio que aqui passámos - não sei se recordam - chuviscou! É assim, o acontecimento e a tradição, são elementos fortes, que fazem a história.

(xi) Os Balantas

E continuou:
- Caracterizada pela grande profusão de etnias. A mais representativa é a Balanta, agricultores por natureza e cuja origem se presume seja Etíope. A sua organização social é quase nula, resumindo-se praticamente à Tabanca, havendo no entanto agora, alguma evolução no reconhecimento - mas com certas restrições - dos régulos indicados pela Administração Portuguesa. Sendo a etnia menos influenciável pela Administração Portuguesa, é a mais aderente à guerrilha e independentismo. Culturalmente tem um nível um pouco baixo. Nas zonas consideradas libertadas, existe um grande esforço de alfabetização. Crente na transmigração da alma, acredita no Irã, e todas as suas possíveis desgraças são atribuídas à feitiçaria. Quando da morte faz as cerimónias do Choro para as quais guarda o melhor gado do qual é criador. Com óptima constituição física, tem grande força de vontade. Grande trabalhador, dedica-se principalmente à orizicultura, dado ser o arroz a fonte principal da sua alimentação, cuja confecção é extremamente condimentada com malagueta (piripiri). Como excitante, bebe aguardente de cana e masca tabaco. Na sua organização matrimonial, pratica a poligamia, é fácil acontecer o adultério, e o casamento (negócio) é efectuado com o pai da mulher. Admite a prova testemunhal, mas é extremamente perito no furto, que pratica quase como um desporto, sem sentir ter praticado um acto criminoso. Inimigo figadal do Mandinga e Fula, aos quais guarda rancor, é no entanto grande amigo do Papel.

(xii) Os Fulas

E prosseguiu o Alferes Palmeiro:
- Os Fulas, nómadas vindos do Oriente, aqui se fixaram bem como nos países vizinhos. Tem uma organização social um pouco desenvolvida. Mantém o régulo a autoridade absoluta, não deixa porém de ser assistido pelo seu Conselho quando assim o entende. Embora convertido ao Islamismo, tem no entanto, regressões ao feiticismo. Nas crianças, o rapaz é circuncidado (ablação da membrana do perpucio) e a rapariga é excisada (ablação do clitóris). No entanto não são sujeitas a instrução religiosa, profissional ou escolar. De estatura média, sendo a mulher de feições perfeitas, a sua origem é nómada. O homem é responsável pelo sustento da família, com a ajuda da mulher nos trabalhos agrícolas, a qual se dedica ao cultivo da mancarra, arroz, tratando também dos laranjais e bananais. É pescador com linha, por envenenamento de águas ou utilizando uma espécie de balaio grande, feito de rede. A fidelidade às autoridades é canina. Identificando-se com indivíduos da mesma raça que vivem do outro lado da fronteira, tem o convencimento de superioridade em relação às outras raças guineenses. A alimentação é feita à base de arroz, carne e fruta, não consumindo carne de porco nem álcool, por motivos religiosos. A mulher, prostitui-se muito facilmente. Ainda sobre a etnia Fula, vale a pena salientar os Futa-Fulas, que, são o supersumo das diferentes castas de Fulas. Embora tenha as características genéricas da etnia, apresenta algumas específicas: a condição social, é determinada por regras seguidas em relação a cada indivíduo, derivando do nível social, moral e de dignidade em que vive, considerando-se superior às outras castas de Fulas. O poder espiritual e temporal, é concentrado na dignidade eclesiástica (Cherno). Arguto e inteligente, pratica o comércio ambulante, dedicando-se também à criação de gado e agricultura. Pratica a poligamia, segundo as regras do Corão, sendo bom pai e marido, não dando à mulher trabalhos violentos. O adultério, é considerada falta muito grave, no entanto aceita a prostituição. De estatura elevada, pratica a luta como desporto.

(xiii) Os Mandingas

Discorrendo depois sobre os Mandingas, disse o Palmeiro:
- Os Mandingas, ocupadores desta região, durante séculos -etnia grande fornecedora dos barcos negreiros que aqui procuravam escravos- dedicados à agricultura e criação de gado, praticam também o comércio. O poder judicial é representado pelo régulo. Sendo o homem grande (idoso) muito respeitado, usa barba, que conserva com muita estima. Cultiva preceitos morais, que o elevam acima de outras raças, mantém-se no entanto ao nível dos fulas com quem tem um antagonismo ancestral. Mantém escolas para crianças, e os mais cultos falam e escrevem com caracteres árabes. Aceita o regime de castas: nobres, tecelões, ferreiros, sapateiros e outras profissões. Pratica o islamismo, por isso não consome álcool nem carne de porco. No entanto apresenta por vezes casos de regressão ao feiticismo. Grande respeitador dos velhos, considera os loucos como tendo contactos com os seres sobrenaturais, ou devedores de promessas ao Iran apesar de islamizado. Apreciador de música, inteligente e observador. De constituição média, é aguerrido. Com tendências para o sedentarismo, dedica-se ao cultivo do arroz, mancarra, feijão, milho e tubérculos, criando vacas, ovinos. e caprinos. Contrata o casamento com o pai da noiva, desde tenra idade. Pratica a poligamia e admite a prostituição, vivendo a mulher em palhotas separada dos homens. A circuncisão nos homens e a excisão do clitóris na mulher, também é praticada.

(xiv) Os Nalus e os Beafadas

E continuando:
- Os Nalus são um povo muito individualista, acreditando, unicamente na autoridade do chefe de família, evitando ao máximo manter relações com outras raças, à excepção do Sosso, com quem mantém algum contacto. É trabalhador, alimenta-se de arroz, carne e peixe, estatura média e pouca robustez. Os Beafadas, estão muito próximo dos Mandingas, de quem sofrem forte influência. Está islamizado, usando no entanto amuletos. Pratica a poligamia, é indolente por natureza, embora seja robusto.

(xv) Os Bijagós

Sobre os habitantes do arquipélago dos Bijagós, o nosso alferes sentenciou o seguinte:
- Os Bijagós, provavelmente os primeiros habitantes da Guiné, que empurrados pelos outros povos invasores, se refugiaram no arquipélago do mesmo nome, praticam a agricultura e a pesca, na qual são exímios. Embora pratiquem o matriarcado, politicamente, são os homens que comandam. Considera animais sagrados: o crocodilo a serpente e o hipopótamo. O "meurasse" é a iniciação da vida que marca o termo da irresponsabilidade, que corresponde ao "fanado" das outras raças, que por eles não é praticado. Após esta cerimónia, entra na aprendizagem dos segredos dos antídotos, contra a mordedura das serpentes, e na forma de combater os malefícios dos feiticeiros. Sendo para ele a morte um incidente insignificante, é considerada acto de bruxaria. Venera a mulher, o cão e o boi. Considera que o cão é uma ligação entre as divindades e o homem. São exímios curandeiros. A mulher, é desflorada com um objecto de madeira, e é ela quem tem o direito de escolher e repudiar o homem em qualquer altura. Socialmente, a sua vida assenta numa base comunal. Belicoso, tímido e desconfiado, é um óptimo marinheiro. É grande fumador de tabaco, e ingere sem moderação o vinho de palma. Na alimentação utiliza a carne dos animais que abate nas cerimónias religiosas, marisco, peixe, arroz e frutos silvestres.

(xvi) Os Papéis e os Manjacos

Palmeiro não poderia deixar de falar dos Papéis e dos Manjacos:
- Nos Papéis a sucessão é orientada segundo o sistema matrilinear. É arreigado ao feiticismo e crê no Irã, consagrando-lhe os poilões e bolobas da sua terra. A circuncisão é considerada uma cerimónia muito importante na vida do homem, sendo desprezados os que não a efectuam. Bastante desconfiado, e pouco franco, torna-se por isso pouco expansivo. O casamento é contratado sem ouvir a rapariga, o rapaz trabalha por conta do pai da prometida, admite porém a dissolução do casamento. Polígamo por natureza, adora ter muitos filhos, tendo tantas mulheres, consoante as suas posses lho permitam. De elevada estatura e compleição física robusta, dedica-se à agricultura, e aos trabalhos pesados nos centros urbanos. Alimenta-se de arroz, come carne dos animais abatidos nas suas cerimónias, incluindo cães. Adora beber leite azedo. Quanto aos Manjaco vivem em regime familiar de patriarcado, com elevada concepção dos princípios da justiça e morais. Considera o roubo um acto abominável. É polígamo, porém respeita o casamento. Animista, acredita no Irã, o qual representa por qualquer madeiro. Dedica-se à agricultura e à pesca, com alguma tendência para o comércio. Como agricultor, dedica-se ao cultivo do arroz, batata-doce, mancarra e mandioca, é exímio no tratamento de pomares de banana, laranja, caju e papaia. Dedicado à criação de animais, cria de tudo um pouco: vacas, porcos, cabras, galinhas, gatos e cães. Na pesca dedica-se ao peixe miúdo, bem como a toda a espécie de marisco. De estatura média mas bem constituído.

(xvii) Outros povos da Guiné, dos Brames aos Futa-fulas

A conversa já ia longa, mas Palmeiro ainda quis falar de outras etnias minoritárias:
- Os Brames ou Mancanhas, descendentes do cruzamento entre mandingas e fulas, têm grandes afinidades com estes. Considera privilégio de família a função sacerdotal, e venera o Iran. Pratica a poligamia, casando as mulheres bastante novas. De estatura regular, a sua alimentação é feita à base de produtos das suas próprias culturas: sorgo e feijão. É cultivador da mancarra, com intuitos comerciais. Dá pouco valor e importância às ofensas corporais, violação e adultério, bem como ao estupro. Para além destas etnias, ainda podemos enumerar a existência de outras várias, em minoria, tais como, os Felupes, - consta-se que em tempos teriam praticado a antropofagia - Baiotes, Cassangas, Banhuntos, Pateas, Manás etc., etc. De registar ainda, as várias castas dos Fulas, tais como Fula-Forro, Fula-Preto e Futa-Fula.

E à laia de conclusão:
-No litoral, vivem essencialmente os orizicultores, na zona de bolanhas, terrenos extremamente alagados, onde habitam em tabancas dispersas, Balantas, Nalus, Manjacos, Papéis, Bijagós e outros em menor número. Para além das linhas de maré, dominam os Fulas e Mandingas que, vivem em povoamentos mais concentrados, praticam a agricultura de rotação, e dedicam-se à criação de gado. Em tempos idos, cada povo vivia na sua própria região, não permitindo a entrada a outros grupos. Com a nossa ocupação, deu-se início a um certo intercâmbio entre as diversas etnias, umas mais abertas outras mais fechadas naturalmente, e presentemente, embora em pequena escala, já se nota, uma certa miscegenação. Isto resulta, que actualmente podemos afirmar que culturalmente existe uma certa afinidade entre os diferentes grupos. Os arabizados ou islamizados como queiramos, Fulas e Mandingas, e as restantes etnias animistas. Aparecendo umas manchas de católicos, mas não significativa, influenciada pelas Missões e cultura Cabo-verdiana. As grandes diferenças nos dois grandes grupos majoritários, reflectem-se na língua, embora a oficial seja a portuguesa. Os animistas expressam-se em idiomas de flexão vocabular prefixial, e os islamizados de características linguísticas sudanesa em idiomas de flexão vocabular sufixial. Revelando-se nestes últimos, as indumentárias aparatosas, demonstrando que quanto maior é o esmero, maior a intensidade do culto do Corão e cânones muçulmanos. Estes últimos, ocupantes como disse, das zonas mais interiores, dedicam-se essencialmente à cultura do sorgo, milho e mancarra.
- Voltando um pouco ao anterior - acrescentou o Palmeiro - , de todos os grupos étnicos em diversos aspectos, o dos Bijagós é dos mais curiosos. Vivendo num sistema matriarcal, a mulher é detentora de privilégios especiais: é a ela que pertence a iniciativa do casamento, sendo desflorada por um objecto de madeira, -como há pouco disse-, quando atinge determinada idade. Tem dois tipos de matrimónio: o primeiro quando do período da puberdade, o qual podemos classificar como uma forma de mancebia, e o definitivo que é na idade adulta. Em qualquer destas situações, é sempre a mulher que escolhe o parceiro para viver, e que também larga quando quer.
- É, pá! Boa tirada, pá! Estás licenciado em antropologia e no pá pá! Digam lá que o Palmeiro não sabe disto? - exclamou risonho e mordaz o capitão. Mas ouve logo malta que se pronunciou, mandando as suas bocas.
- Oh Taveira, olha tu Bijagó, carago? As mulheres matavam-se todas por tua causa, carago!- pronunciou o tripeiro Gama. O alferes Azeredo, avançou:
- Oh Palmeiro, como é que é essa do desfloramento? Explica lá como é.
- É, pá, por hoje já dei a lição, outro que siga! Olha! Tu, pá, da desfloração, pergunta ao Rafael, que ele tem tudo escrito nos cadernos dele, pá!
- Sim... Sim! Podemos mudar de tema, e falar um pouco da guerrilha se não se importam! Analisar o porquê dos Balantas serem os mais influenciáveis pela subversão - pronunciou o capitão, mas agora num tom mais sério.

(xvii) Pami ouviu pela pimeira vez coisas novas sobre os povos da Guiné e a sua posição face à luta de libertação

Pami, calmamente sentada num banco - pedaço de mafumeira trabalhada- ia seguindo esta conversa - conferência - com imensa preocupação, mas intrigada com a forma e os conhecimentos, que estes indivíduos tinham sobre este pequeno alagado terreno, que era a Guiné.

Pasmou! Ouvindo o debate dos militares, analisando as características de cada etnia, mas de uma forma, que demonstrava um entendimento perfeito de tudo quanto os rodeava. A prisioneira ouviu tudo o que queria, e não. E enriqueceu o seu saber, aprendendo coisas para ela, até ali, completamente desconhecidas. A varanda, parecia agora já, uma grande conferência de antropologia, e não só. Todos os oficiais e sargentos dos Lassas praticamente ali estavam, lançando à vez para o debate, os seus conhecimentos, adquiridos e vividos, sobre as raças da Guiné. Continuando, enquanto Pami ia registando mentalmente o debate.

Seguindo o desafio do Leão de Cufar, o furriel Gonçalo, um pouco polémico, lançou para a fogueira:
- E os fulas? Que seria se não estivessem do nosso lado?
- Isso é verdade! - Pronunciaram-se várias vozes em uníssono. Foi então que o Leão atalhou:
- Esse é um assunto, que merece de facto atenção. Mas que também vale a pena dissecar. Vejamos: Aquando do começo da revolução, a maioria Balanta e Nalu aqui do nosso sector fugiu para as matas, onde foram criadas zonas, consideradas libertadas. A população Fula, ao contrário, foi obrigada a abandonar as suas moranças e tabancas, e a reagruparem-se em Catió, onde foi organizada em autodefesa, nas tabancas de Catió-Fula e Priame, as quais conhecemos perfeitamente, principalmente a última. Nessa altura, o nosso amigo e comandante da Companhia de Milícia n.º 13, João Bacar Jaló, era cipaio e oficial de diligências, homem de confiança do então Administrador. Foi ele, encarregue de reunir os homens válidos e fiéis, que foram armados, e ficaram a constituir a primeira Milícia Nativa na Província, que, às ordens do Administrador defenderam Catió dos bandos inimigos armados, que actuavam na região. Mais tarde, quando Catió foi guarnecida de tropas, passaram a prestar colaboração nas operações militares. Formando-se depois, como eu disse, a Companhia de Milícia, comandada pelo João Bacar, agora alferes de segunda linha, e que vocês tão bem conhecem pela grande ajuda, que ele e os seus homens nos têm prestado.

Apresentaram-se posteriormente muitos elementos Balantas. No entanto a situação, torna-se complicada, porque, esta população tem muitos familiares na clandestinidade, com os quais mantêm estreitas ligações, pelo que não se lhes pode conceder confiança absoluta. São raras excepções as do Alfa e Tui. Posso afirmar com toda a verdade, que hoje, grande parte de nós lhe está devendo a vida. Basta recordarem-se da emboscada que nos estava preparada, no cais de Caboxanque.

E continuou, agora com o pessoal todo em silêncio:
- Do mato e das regiões mais longínquas, vão comerciar a Catió inúmeros nativos, na generalidade mulheres, que trazem arroz e levam artigos que adquirem por troca nas casas de comércio. Pagam os impostos na Administração, e regressam às suas tabancas com roupas, mosquiteiros, papel, aguardente de cana, tabaco. Enfim com tudo o que lhe faz falta. Assim é o inimigo totalmente abastecido com os artigos de que necessita. É não tenhamos dúvidas, um problema grave! Podemos confirmar, com aquilo que aconteceu com o chefe de Cantone! Não comprou ele material que nós mandámos, como sendo para o PAIGC!?

Entretanto, o tenente médico interrompe o debate e atira para o ar um desafio à assembleia:
- E se bebessemos um Whisky! Ho, sr. capitão?

O Leão sorriu e disparou:
- Por causa do mosquito, não é doutor? Como queiram, por hoje também já chega, rapaziada vamos a uma partidinha de badmington! O.K.? - E virando-se para o médico diz-lhe com gozo:
- A partir de amanhã, doutor, já não tem problemas, já vai ter o seu companheiro!
- Desculpe, capitão, mas não compreendi!
- Digo eu que amanhã já vai ter companhia para matar o mosquito, se não houver alterações, o furriel Rafael deve chegar para acabar a convalescença aqui!
- Porreiro! Porreiro! - Retorquiu o médico, enquanto a assembleia se desfazia, e esfregando as mãos.

Pami ficou a saber que Rafael regressava do hospital. Porquê?... Míriam não lhe teria dito? Ou não saberia? O melhor seria experimentar sem ela se aperceber.

(Continua)

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Notas de L.G.:

1) Vd. posts anteriores desta série:
21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)
28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)
5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)
10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)
18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)
30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)
16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

(2) Resumos dos posts anteriores:

(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhês. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malna e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. )Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da torpa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).
Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas faça de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...
Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?