Octogésimo terceiro e último episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Dia 16 de Julho de 2014
Companheiros de viagem, este é o resumo dos vigésimo
sexto e vigésimo sétimo dias, portanto o final da
“aventura”. Nestes dois últimos dias,
continuámos usando o mesmo trajecto de ida para o
Alaska, só que agora era em direcção ao sul e de oeste
para leste.
Já explicámos a história das
povoações e estados por onde passámos, mas é sempre
bom lembrar alguns pormenores.
Era perto da meia-noite, não eram “quatro da madrugada,
como quando o passarinho cantou”, 27 dias antes e, nos
acordou para iniciarmos os preparativos da nossa longa
jornada, agora seguíamos na mesma estrada, a estrada
rápida 95, no estado da Flórida, plana, larga e longas
rectas, não mais montanhas, vales, rios, riachos, lagos,
precipícios, glaciares, animais selvagens a atravessar a
estrada, terra, lama, frio, acidentes, zonas de construção,
trânsito parado, esperando o “carro piloto”, neve, nevoeiro,
chuva ou sol tórrido, aqui havia noite, não era sempre dia, como
depois do “paralelo 48”, lá no norte, no Alaska, em que
era quase sempre de dia, agora viajávamos em sentido
contrário, estávamos quase a chegar a casa, um pouco
cansados, mas felizes, por regressarmos ao nosso ponto
de origem.
Muito mais felizes do que os índios “Cherokee”, um povo
muito orgulhoso, que por volta do ano de 1838, o governo
dos EUA forçou a deslocar-se das suas terras para o
estado de Oklahoma, ainda hoje chamam a essa
jornada para o exilo, “Trail of Tears”, que quer dizer,
“caminho de lágrimas” e que em tempos viveram na área
do que hoje é a cidade de Chattanooga, que fica quase na
fronteira com o estado da Geórgia. Ainda no estado do
Tennessee, cidade que atravessámos depois de ter
passado pelos estados de Kentuchy e Illinois, onde
tínhamos dormido por algumas horas na cidade de Mt.
Vernon, onde no século passado não havia estrada, as
pessoas vinham do norte para sul passando por
“swamps”, que eram terras alagadiças, mas hoje já tem
estradas rápidas.
Dois dias antes, tínhamos deixado a cidade de Hays, no
estado do Kansas, onde por volta do ano de 1865, os US Army, construiram o Fort Fletcher, um pouco ao sul do
que hoje é a cidade de Hays, para proteger as caravanas
de imigrantes ou aventureiros prospectores de ouro que
viajavam na “Smoky Hill Trail”, que era um trilho que
seguia paralelo às colinas do rio Smoky, em direcção ao
oeste e que eram frequentemente atacadas pelos índios
“Cheyenes” e “Arapaho”, que viam as suas terras serem
invadidas. Tudo isto se passava numa região selvagem,
muito próxima do que hoje é a estrada rápida número 70,
onde podíamos também viajar a 70 milhas por hora,
ouvindo as velhas músicas favoritas, como por exemplo:
“King of the Road”,
“Hit the Road Jack”,
“On the Road
Again” ou “Adorei viajar por cada e, todas as estradas”.
Dizem que por razões económicas, o Fort Fletcher
encerrou, mas um ano depois, o Exército dos EUA
reabriu o Fort Fletcher, desta vez com o objetivo de
proteger os trabalhadores da construção do caminho de
ferro da “Divisão Leste Union Pacific”, que seguia em
direcção ao oeste, paralelo à “Smoky Hill Trail”, desta vez
o Exército deu novo nome ao Forte, chamando-lhe Fort
Hays, em honra do Brigadeiro General Alexander Hays, que foi
morto numa batalha nesta região selvagem durante a
Guerra Civil Americana, todavia em junho de 1867, uma
inundação severa quase destruiu a fortaleza, matando
alguns soldados e civis.
Nestes dois dias, seguimos o mesmo roteiro, percorrendo
áreas que já foram descritas nos primeiros dias da nossa
aventura, vimos todos aquelas paisagens, onde aqui e ali
apareciam algumas quintas com animais, outras
abandonadas, transformadas em zona de caça,
pastagens com grandes manadas de vacas, plantações
de milho, trigo, aveia, soja ou girassóis, poços de petróleo
e moinhos energia em funcionamento e pouco mais, além
de algumas áreas desertas, próximo e atravessando as
cidades de Kansas City, no estado do Kansas, St. Louis,
no estado do Missouri e Atlanta, no estado da Geórgia,
tivémos alguma dificuldade, pois o trânsito já era intenso,
não era estrada deserta, como já estávamos um pouco
acostumados.
Por vezes olhávamos para a nossa companheira e
esposa por quase cinquenta anos e sorriamos, pois
tínhamos viajado atravessando um continente, diferentes
estados e países, cidades, vilas ou aldeias, por autoestradas,
estradas secundárias e carreiros, conhecendo
novas pessoas, novos costumes, com tempo de sol, frio,
vento ciclónico, chuva, granizo, neve, planícies com
altas temperaturas, montanhas, vales, atravessando rios,
ribeiros, terras alagadiças, cozinhando as nossas
refeições, dormindo na nossa “caravana”, tomando banho
nos rios e lagos, onde se podia beber a água, respirando
ar puro e selvagem, pescando em rios selvagens, ao lado
de gaivotas, águias de colarinho branco, ursos ou coiotes,
céu cinzento ou tempestades, nuvens de mosquitos, lama
ou pedras na estrada. Em algumas regiões, logo a
seguir, céu limpo, azul, vendo paisagens de montanha, mar,
lagos, glacieres, animais selvagens atravessando a
estrada, entre outras coisas maravilhosas, com que a
natureza nos contemplou.
Quando éramos jovens, dizíamos que nunca poderíamos
fazer isto, viajando ao redor, vivendo num pequeno
espaço, não tendo residência permanente e estar longe
da família e dos amigos. Estou certo de que tanto eu
como a minha companheira e esposa, às vezes
encontramos momentos em que nos sentimos assim e pensámos que não devíamos ser tão aventureiros, mas
no geral, também estamos certos de que nos iremos
tornar em pessoas melhores quando voltarmos para junto
da família e amigos, indo provavelmente sentir
que deveriamos ter começado isto antes, conhecer o
modo de vida puro, das pessoas, não das atrações que
aparecem nos cartazes da estrada, nos anúncios de
revistas e na televisão, onde só nos mostram o que
“eles” na verdade querem.
No regresso, parámos muitas vezes para comprar gasolina, café, pão,
água e alguns vegetais. Percorremos 1560 milhas, com o
preço da gasolina a variar entre $3.51 e $3.58 o galão,
que são aproximadamente 4 litros e, com tudo sujo e
desarrumado, dentro Jeep e da Caravana, que deixámos
em frente da casa, mas felizes e sem dores, desejosos de
um refrescante banho e alguma comida e, mesmo antes
de abrir a porta de casa, ainda tivémos tempo de verificar
o contador do Jeep, que marcava mais
14.626 milhas (23.538 Km), do que quando saímos, quase um mês
antes.
Até qualquer dia, de novo em viajem, ou na guerra.
Tony Borie, Agosto de 2014
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de janeiro de 2015 >
Guiné 63/74 - P14139: Bom ou mau tempo na bolanha (83): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (23) (Tony Borié)