1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2019:
Queridos amigos,
É a despedida de mais uma ronda micaelense, centrada no Vale das Furnas e na Caldeira das Sete Cidades, a despedida, obrigatória, do Vale das Furnas começou com um banho ao amanhecer na piscina de água férrea, após limpo e amesendado o viandante peregrinou pelos jardins Terra Nostra, tomou o autocarro da carreira e lançou-se em alguns jardins de visita incontornável, desta vez a preferência foi pelo jardim António Borges.
São visitas que o deixam insaciado, quer voltar em breve, em qualquer estação do ano, esta é a sua ilha-morada, ainda lhe falta bater à porta da Graciosa, um dia acontecerá, rende-se incondicionalmente a toda esta bruma arquipelágica, a gentes tão hospitaleiras.
Um abraço do
Mário
A minha ilha é um cofre de Atlântidas (8)
Beja Santos
É fatal como o destino, não há despedida do Vale das Furnas sem a última peregrinação aos jardins do Parque Terra Nostra, o dia está perfeito, desceu a humidade, a luz incidente aveluda todo este mundo verde, passa-se o tanque de água termal onde o viandante esbracejou horas a fio, fizesse calor ou frio, durante alguns dias, esta água fervente é um consolo, o propósito da despedida é passar pela Alameda Ginkgo Biloba, contemplar o Jardim da Flora Endémica, ir à Coleção das Camélias e das Plantas Aquáticas, tornear a Coleção de Fetos e sentar-se num banco em frente do Jardim de Vireyas. É o que vai acontecer, e com bons resultados para a saúde emocional do viandante.
Já se cantaram todas as laudes sobre este Parque Terra Nostra, que tem mais de dois séculos de vida, parece estar tudo dito sobre estas árvores que vieram das Américas, das Austrálias, da China e da África do Sul. Ao longo de gerações, houve enlevo, apetência cultural e bom gosto para trabalhos de conservação dos caminhos e dos lagos, o embelezamento deles não para, constroem-se e renovam-se os jardins, as camélias têm fama nacional, quem gosta de botânica tem aqui um recanto sagrado para contemplar espécies comuns da região da Macaronésia (isto é, para além dos Açores, a Madeira, as Canárias e Cabo Verde). É impossível não ficar deslumbrado com a coleção de fetos, à beira do canal em que corre água férrea, são duas centenas de exemplares, desenvolvem-se em ambientes húmidos. E há depois os rododendros da Malásia, plantas de coloração intensa, de diferentes tons de branco, laranja, rosa, salmão ou vermelho. E obrigatoriamente, até porque estamos na estação propícia, os canteiros de azáleas, em toda a sua diversidade de tons, as cores mais tradicionais são o vermelho e o lilás – são as plantas emblemáticas de São Miguel.
Pouco há mais a dizer quando estas imagens superam as mil palavras, estas alamedas românticas, os caramanchões multicolores, a adaptação do antigo laranjal do Parque para receber as Cycadales, plantas em vias de extinção e que existem há milhões de anos. O viandante tudo vai registando no seu caderninho, está melancólico mas lampeiro, sai do hotel com armas e bagagens e vai para o terminal rodoviário.
Então, não é que no terminal rodoviário temos esta simulação de casa virada do avesso, não é que a imagem nos dá uma sugestão de ficção científica, há para ali uma pitada de sensação aterrorizante, como se encapelassem os céus e um vento desabrido revolvesse a Natureza em roldão. Pura imaginação, vertigem da despedida, este é o mundo cósmico açoriano, um polo magnético que atrai o viandante, por isso com tanta regularidade o visita. E parte-se para Ponta Delgada.
O viandante pousou armas e bagagens na sede da associação dos consumidores açorianos, busca jardins, Ponta Delgada tem três de nomeada: os jardins do antigo Palácio dos Marqueses de Jácome Correia, hoje residência oficial do Presidente do Governo Regional, primorosamente tratados, bem perto, os jardins de José do Canto, aquela figura notável que deixou obra na Lagoa das Furnas, está sepultado na Ermida de Nossa Senhora das Vitórias, ao lado da sua mulher a quem escreveu cartas de um erotismo desinsofrido, coisa rara ou impraticável em tempos vitorianos, jamais em tempo algum um cavalheiro diria a sua dama o que iriam fazer logo que ele chegasse da sua longa viagem… O viandante passa por ambos como gato pelas brasas, mete-se ao caminho para ir ao jardim de um rival de José do Canto, António Borges. Pelo caminho, deu-lhe para entrar num centro comercial de nome Parque Atlântico. Impossível não captar a imagem deste cetáceo que nos convida, entre muita água a escorripichar.
Este jardim era o jardim privado de António Borges da Câmara Medeiros, foi construído entre 1858 e 1861, este abastado senhor abriu os cordões à bolsa para nos deixar esta obra prodigiosa. Hoje faz parte do património autárquico, já no século XXI foi alvo de uma grande intervenção, rivaliza com o Palácio de Santana (a sede da Presidência do Governo dos Açores), mas convém que se saiba que há mais jardins em Ponta Delgada, se o leitor vier a esta cidade peça mais informações. O que aqui se vê não foge ao esplendor açoriano, de que o viandante não se cansa de fazer referência. Há uma explicação para esta imagem particular. O que o leitor vê no caminho chama-se bagacina, a palavra não vem nos dicionários. Estava o viandante a preparar um livro em que se dedicava um capítulo à sua estadia em São Miguel, entre 1967 e 1968, e intitulou-o “Na Terra da Bagacina”, termo inexistente nos dicionários mas existente e corrente na cultura açoriana, é este farelo de pedra vulcânica, parece um rosa velho ou vermelho tijolo, não se sabe qual é a palavra melhor adequada, há muitos caminhos assim, feitos com esta prestimosa bagacina, marca de água de um território genuinamente vulcânico.
E despedimo-nos, a viagem interrompe-se por uns momentos, enquanto o viandante tiver vida e saúde aqui voltará esfusiante, esta natureza colou-se-lhe à pele, e despede-se com duas imagens de árvores antigas, uma lembrança para os vindouros, aqui chegaram povoadores do século XV, encontraram esta ilha totalmente arborizada, foram séculos de trabalho titânico para criar condições para os bons pastos, mas há um dado cultural insular e intransmissível, o gosto pelos jardins, o diálogo sem tréguas com escarpas, pélagos, córregos, canadas, ventos que sopram furiosos, uivando sob os telhados, o marulhar oceânico, tantas vezes furioso e devorador da obra do homem, este mesmo homem que planta e ajardina a envolvência da sua vida.
Adeus, até ao regresso do viandante.
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Nota do editor
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