sexta-feira, 23 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22398: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte IX: Afonso Fino Bento de Sousa, ten inf (Leiria, 1892 - França, CEP, 1918)


Afonso Fino Bento de Sousa (1892 - 1918)

Nome: Afonso Fino Bento de Sousa

Posto: Tenente de Infantaria

Naturalidade:  Leiria

Data de nascimento: 17 de Julho de 1892

Incorporação:  1911, na Escola de Guerra (nº 331 do Corpo de Alunos)

Unidade: Comboio Automóvel, Regimento de Infantaria n.º 22

Condecorações: Promoção a Capitão por Distinção (a título póstumo em Maio de 1920)

Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada (a título póstumo em Setembro de 1927)

TO da morte em combate:  França (CEP)

Data de Embarque: 27 de Maio de 1917

Data da morte: 9 de Abril de 1918

Sepultura:  França, Cemitério de Richebourg l'Avoué

Circunstâncias da morte: Ferido mortalmente no combate de 9 de Abril de 1918 foi inicialmente dado como desaparecido e posteriormente identificado e sepultado no cemitério militar de Laventie.

______________________________



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 13 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22369: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte VIII: Henrique de Melo Geraldes, ten inf (Covilhã, 1889 - França, CEP, 1918)

Guiné 61/74 - P22397: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
É no meio daquela vadiagem entorpecedora , e num quadro de um certo desalento da malta do Xime, que o Comando de Bambadinca resolve apontar os faróis para operações que lhes pudessem levantar o moral. Pela primeira e única vez, mandam-me esboçar uma operação para avaliar o que se passa na Ponta do Inglês, nada de andanças por outros lados, pretendia-se saber no local se efetivamente havia população e grupo militar vigilante, este revelava-se ativo, chegara à desfaçatez de bazucar uma embarcação civil que se incendiou no Geba, fora o número de flagelações sobre o Xime, isto enquanto começavam a ver os resultados do alcatroamento da estrada que vinha do Xime e prometia chegar a Bambadinca, as máquinas da Tecnil já trabalhavam entre Bambadinca, Undunduma e Amedalai. Não posso esconder o orgulho que me deu a conceção de uma operação por itinerários ditos impensáveis, e para um cabal esclarecimento do leitor aqui se reproduz um detalhe da carta para se ver por onde fomos e como retirámos deixando aquela força do PAIGC numa completa desorientação. Levar morteiros 81 no negrume da noite dentro de arrozais, entrando frontalmente num grande acampamento de quem trabalhava os arrozais do Poidom foi obra, ainda fomos recebidos pelos valentes tiros, mas os morteiros 81 impuseram-se e o nosso regresso foi um belo passeio.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma femme adorée, mon inoubliable Annette, mil agradecimentos pela dedicação que estás a pôr nas férias por que tanto anseio. E ouvi-te longamente ao telefone, redigiste num certo estado de dúvida os preparativos e a execução da Operação Rinoceronte Temível. Pensando demoradamente no que vivi neste curto período em que participei num conjunto de operações, sem deixar de vadiar do Bambadincazinho para os Nhabijões, de Amedalai para Bricama, estadeando naquele poiso infecto da ponte do rio de Undunduma, sou levado a julgar que a fadiga me estava a consumir, o que vai levar o médico a propor em abril o meu regresso a Bissau para tratamento hospitalar. Eu procurava manter a normalidade preocupando-me com a logística, com as aulas de ginástica, com os problemas da comida a tempo e horas para os soldados desarranchados, eram todos africanos os que estavam nestas condições, proibi que os soldados andassem com o seu saco de arroz às costas ou a fazer fogueiras quando um dia, na Ponte de Undunduma, vi um cunhete de granadas de bazuca a menos de um metro de uma fogueira. É um período em que escrevo desalmadamente, recebi correio muito edificante, Ruy Cinatti enviou-me por esse tempo uma brochura com o seu conto Ossobó, que já publicara em 1936. Encontrei uma citação num aerograma que enviei à minha irmã, e que mais tarde me ofereceu com toda a correspondência que agora está em teu poder, escuta esta pequena passagem:
“Pousado num ramo de acácia, Ossobó canta e alisa as penas do peito com o bico humedecido… Por momentos, qualquer coisa o atrai lá abaixo, no chão, e rápido desce, pousando sobre a macia cama de folhas secas, ali acomodadas há tanto tempo… Um raio de sol conseguiu atravessar, antes dos outros, a ramaria alta das amoreiras, e espelha a água depositada no limbo das folhas. Com os pés mergulhados, Ossobó alonga o pescoço e sorve com o bico uma das pequenas gotas transparentes… Amanhece dentro da floresta. Um denso nevoeiro a subir do chão e da torrente ainda envolve o espaço. Tudo reanima do torpor da noite. As sensitivas intumescem, abrem devagar as suas folhas, e as flores do pau-lírio lançam baforadas de perfume… Os bicos-de-lacre pararam de brincar e olham inquietos qualquer coisa que se move e que em filas tortuosas vem a subir pelas pedras roliças das margens. Eles lembram-se das cobras traiçoeiras que, em noites escuras, os vêm surpreender no sono, mas o periquito depressa os pacifica… Ossobó olha os vapores que se escondem cada vez mais nos cipós entrelaçados. Por causa deles é que o sol manda daquela maneira os seus raios, e a toalha de água que se despenha das rochas parece uma placa dourada de metal… Ossobó desdenha dos avisos dos celestes. Não é ele quem canta melhor no obó? O próprio periquito lhe dissera que os homens lhe chamavam o rouxinol da ilha. Despreocupada, perscruta por entre as folhas e depois saltita atraído pelo vermelho do inseto que zumbe mais em baixo”. Paro aqui, minha adorada Annette, é uma cobra negra com as estrias vermelhas na cabeça e com dois dentes curvos saindo da bocarra que avança para Ossobó e o irá engolir, é esta a tragédia dos incautos.

Fui chamado ao major de operações, os ventos não sopram de feição na região do Xime, houve para ali flagelações, ardera a tabanca do Enxalé e em Ponta Varela um grupo do PAIGC destruíra uma embarcação civil, o comandante da companhia estava sinistrado, tínhamos que contribuir para lamber as feridas e levantar o ânimo ao pessoal. E deixou-me estupefacto quando recebi ordens para planear uma operação para muito breve, envolvendo gente do Xime, milícias de Finete e de Amedalai e do meu contingente. Perguntei-lhe qual o objetivo, qual a natureza da missão, veio pronta a resposta, percorrer a região até à Ponta do Inglês e procurar esclarecer de uma vez por todas que ali havia gente. Na maior das discrições, meti-me na sala de operações onde um furriel foi questionado sobre tudo quanto dispúnhamos de informações. Dois dias depois, apresentei um esboço, major e comandante aprovaram, apareceu um DO e percorremos a região do Xime e não havia dúvidas sobre a grande quantidade de trilhos à volta do Poidom, via-se perfeitamente que aqueles arrozais eram cultivados. A última reunião com o Comando é na manhã do dia 7, sou informado das condições atmosféricas, a noite do dia seguinte não terá lua, beneficiarei do negrume total, a deslocação será feita dentro dos arrozais, olham-me inquieto quando informo que vou levar morteiros 81 e deixo para o que acontecer o caminho da retirada, na certeza certa de que não passarei pelos caminhos convencionais que já registaram emboscadas sanguinolentas.

Como pudeste observar, inopinadamente informo os meus homens que sairemos ao princípio da tarde, defino o armamento que vai, indispensável transportar em dois cantis, nem uma palavra sobre o destino. Alguém já se pôs a caminho para informar o comandante das milícias de Amedalai de que preciso de todos os seus homens, dará um grupo de combate que sairá de Bambadinca e até ali me acompanhará. E chega um grupo de combate de Mansambo que ficará no Xime no tempo das nossas andanças até à Ponta do Inglês. Respondendo a uma pergunta que tu me puseste, esqueci-me de te dizer a tempo e horas que veio o sargento Cascalheira e o furriel Ocante substituir o Casanova e o Pina. Contratam-se carregadores em Amedalai e no Xime, aqui falo com os oficiais da unidade e defino o que vamos fazer. Como há um obus, preparo em papel manteiga, em duas folhas iguais, uma que fica em meu poder, sabendo o Cascalheira em caso de um sinistro que me atinja deve passar a ser ele a utilizar, introduzimos locais assinalados com letras, através do rádio, se acaso fôssemos flagelados e estivéssemos no ponto C eu pediria fogo para o ponto D, os guerrilheiros ficariam naturalmente intimidados e confusos quanto à nossa localização. Tudo decorreu exatamente como tu podes ler no relatório de operação. Quando, no dia seguinte, ao fim da tarde, na sala de operações informei o comando do dispositivo do PAIGC na Ponta do Inglês, percebi perfeitamente que eles não ficaram felizes. Houve um mau presságio, um pequeno desastre que afetou um 1.º cabo que à saída do quartel disparou um tiro que lhe despedaçou um dedo. Houve de facto uma reação daquele grupo do PAIGC, dispararam umas morteiradas à toa, a apalpar terreno, a ver se reagíamos, isto enquanto flanqueávamos o Corubal já na retirada. Pedimos ao obus do Xime ajuda, lançaram fogo para o local onde previsivelmente eles estariam. E tudo se silenciou. No dia seguinte fiz o relatório que tu tens em teu poder, pedi louvores para o 1º cabo Queirós e para um destemido soldado da Companhia do Xime, Isaías Remoaldo Tendeiro. Entrego o relatório ao comandante, todo pimpão, olhou-me com circunspeção e ditou-me a sentença: “Estamos satisfeitos, mas muito preocupados com as informações que nos trouxe. Fica proibido de dizer seja a quem for que vamos agora continuar com duas operações na região, a Jaqueta Lisa e o Colete Encarnado. E está na altura de V. pensar que vamos voltar à região do Cuor, o nosso major já escolheu um título, em sua homenagem, Tigre Vadio. Depois falamos, vá à sua vida, tem muito que fazer”
.

É assim, minha adorada Annette, que vais ouvir falar de operações em março e abril, e depois dou baixa ao Hospital de Bissau, não era sem tempo.

(continua)

Para se entender melhor a Operação Rinoceronte Temível atenda-se ao que está escrito neste extrato da carta. Saiu-se de madrugada do Xime, contornou-se Ponta Varela e seguiu-se o itinerário considerado impensável: entrou-se na bolanha do Poidom, seguiram-se as informações disponíveis das imagens aéreas, procurou-se entrar diretamente num acampamento do PAIGC, onde se previa haver depósitos de arroz. O que veio a acontecer, no lusco-fusco a coluna de cerca de 200 homens foi detetada, pôs-se a funcionar dois morteiros 81, foi um alarido completamente inesperado, entrou-se numa rede de estradas, depósitos de arroz e camaratas de quem ali trabalhava. Arrasou-se o que foi possível, e para ludibriar quem nos podia emboscar, viemos sempre junto ao Corubal, voltámos a contornar Ponta Varela, infletiu-se para o rio Geba, o PAIGC gostava de emboscar em Madina Colhido, nesse dia tiverem deceção, passámos ao largo, entrámos manhã alta no Xime, cansados e eu particularmente feliz, sem uma beliscadura, deixando aquele grupo do PAIGC na dúvida da nossa progressão, confusos pelo estrondear daqueles morteiros, de uso improvável em lamaçal. Pois assim aconteceu.
Peço a Deus que, quando estiver a fechar os olhos na vez derradeira, volte o meu espírito para todos aqueles que eu amei do fundo da minha alma, pedirei sentidamente perdão pelos meus pecados e possa ter acesso a esta imagem que tantas vezes tive a sorte de contemplar em Mato de Cão, que ela aflua a quem parte deste mundo para me recordar o privilégio da força combativa dos meus soldados, a fidelidade daquela gente que me votou um respeito incondicional e de quem guardo uma irmandade até ao fim dos tempos.
Há muito mais de dez anos fotografei este escombro, bem me arranhei nos arbustos afiados do tarrafo para aqui chegar, enlameado até aos tornozelos, mas era impossível daqui sair sem esta recordação do exato local quase diariamente percorrido, exigindo manhas no percurso para não haver minas nem emboscadas. O que felizmente aconteceu. Este é o ponto de Mato de Cão de vigilância obrigatória para que a navegabilidade do Geba não pudesse ser posta em causa, como nunca foi.
Da minha viagem em 2010, para me despedir dos meus bravos soldados, era indispensável fazer um dos itinerários mais belos do mundo, a estrada do Xime até à Ponta do Inglês, fi-lo em estado de êxtase na motoreta de Lânsana Sori, que ziguezagueou entre poças de lama esverdeada, sempre a ouvir o fluxo trepidante do Corubal, e pouco antes de chegarmos ao povoado digo-lhe para contemplar a foz do rio no exato ponto onde as embarcações traziam os abastecimentos para o destacamento da Ponta do Inglês, quando se deixou de usar a estrada, tal o caudal de minas. E daqui se vê longe Tombali, aqui fiquei especado a pensar em tanto sofrimento que aqui houve, com tal natureza pródiga à volta.
Desse povoado e desse destacamento, que era um embaraço para as culturas do arroz do PAIGC na Ponta Luís Dias, no alegado chão libertado de Tabacutá, Mina, Fiofioli e Galo Corubal, de onde pacificamente o PAIGC fazia trânsito pelas pirogas entre as duas margens, restam escassos vestígios, esta era a casa de comércio, logo abandonada no início da guerra e que os contingentes militares nunca usaram por ser um alvo plenamente a descoberto. Será que o tempo inclemente tudo derruiu?
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22376: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22396: As (des)venturas da CART 6552/72, desviada para o sul da Guiné, em maio de 1973 - Parte II: a história do Lemos, jogador do FC Porto, e nosso soldado de transmissões... Nunca teve tratamento VIP até ser transferido para a UDIB (Manuel Domingos Ribeiro, ex-fur mil, grã-tabanqueiro nº 844)


O Manuel Domingos Ribeiro, um "andrade" (, portista de alma e coração), 
da Areosa, Rio Tinto.

Foto (e legenda): © Manuel Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Lemos, do FC Porto,  que foi camarada do Manuel Domingos Ribeiro,
 CART 6552/72 (Cameconde e Cabedú, 1972/74). 
Vive hoje em Fânzeres, Gondomar. Em fevereiro de 2019 o Manuel Ribeiro 
visitou-o pela última vez, estava com graves problemas de saúde. 

Foto: Cortesia do blogue Estrelas do FCP, do Paulo Moreira (Gondomar)


1. Mensagem do Manuel Domingos Ribeiro (ex-fur mil at art, MA, CART 6552/72, Cameconde e Cabedú, 1973/74):


Date: quarta, 21/07/2021 à(s) 16:58
Subject: História do Lemos

Boa tarde, Luís

Vou tentar contar um pouco da história do Lemos na Cart 6552  (*).

O Lemos foi colocado na Cart 6552 no fim de 1972 ou princípio de 1973 com a especialidade de transmissões, quando foi colocado na Cart 6552, encontrava-se detido no RI 6 no Porto, sendo eu encarregue de comandar uma força para o vir buscar sob detenção e transportá-lo para o RAL 5 em Penafiel.

Quando o sargento da guarda me fez a entrega do Lemos, a grande preocupação dele, Lemos, era o carro (Ford Capri de cor amarela), que se encontrava estacionado à porta do quartel e se era possível ser ele a conduzi-lo para Penafiel. Claro que de imediato lhe comuniquei que não, pois se acontecesse alguma coisa quem sofria as consequências era eu, mas em conversa com o Lemos logo ali se encontrou uma solução para o problema.

Quando cheguei a Penafiel com o Lemos, já o carro se encontrava estacionado no Largo da Feira e o Lemos tinha à espera dele o António Oliveira, também jogador do F. C. Porto (nascido em 1952, em Penafiel). Enquanto esteve detido, ele sempre teve refeições servidas pelo restaurante Roseirinha, em Penafiel, que era propriedade da família Oliveira.

Durante o tempo que permanecemos em Penafiel e depois de cumprido o tempo de detenção, o Lemos foi um militar como os outros, tendo de executar os serviços para os quais estava escalado.

Em Março de de 1973 fomos deslocados para a carreira de tiro em Silvalde, Espinho, para aí fazermos o IAO pois o nosso destino era S. Tomé e Príncipe e não Cabo Verde e muito menos a Guiné, mas quis o destino que fôssemos mesmo para a Guiné, hoje sabemos quais as razões.

O Lemos sempre nos acompanhou até ser transferido para o UDIB em Bissau, não tenho ideia quanto tempo esteve no mato (Cameconde), mas foi mais de três meses, alinhou como todos  nós no mato.

Tenho uma história caricata com ele no regresso de uma operação: quando estávamos a acabar de atravessar uma bolanha, o Lemos de repente diz-me, "Furriel acabei de perder uma bota, ficou presa na lama"... Eu só lhe disse: "Vê se a encontras pois terás que ir descalço e ainda faltam uns quilómetros"... Foi ver o Lemos com o Racal às costas, enterrado na lama até encontrar a bota e não foi nada fácil.

Como podes verificar, o Lemos enquanto esteve na Cart 6552 foi um militar com um tratamento igual a todos os colegas e não tinha que ser diferente e ele também não agia como tal, sendo sempre um excelente camarada, nunca exibindo a imagem de figura pública, antes pelo contrário.

Quando foi para Bissau teve os seus problemas, mas era a sua maneira de ser. No dia em que o Pavão morreu (, em 16 de dezembro de 1973), encontrava-me eu em Bissau com o Lemos e aí me confessou que,  ao sair da companhia,  se tinha sentido órfão, pois mais uma vez a família tinha ficado para trás.

A última vez que estive e falei com o Lemos foi em Fevereiro de 2019, em casa dele, em Fânzeres, Gondomar. Na altura encontrava-se muito debilitado e com graves problemas de saúde, 
não voltei a contactá-lo por não me ser possível.

Esta é a minha história sobre o Lemos na Cart 6552 e, como podes verificar, o Lemos não teve qualquer tratamento VIP (**)  e de certeza que alguém que tenha pertencido à Cart 6552 terá algo mais para contar. 

Mas só quero mais uma vez dizer que fomos mobilizados para S. Tomé e Príncipe, que não fomos desviados a meio da viagem, que quando saímos da carreira de tiro em Silvalde, Espinho já praticamente todos sabíamos que o nosso destino era a Guiné.

Aproveito para dizer que sou da Areosa, Rio Tinto, para quem não sabe fica localizada mesmo no fim da Av Fernão de Magalhães, junto às Antas e, como tal, sou Andrade desde que nasci, doença de família.

Um forte abraço
Manuel Ribeiro
___________

Notas do editor:

(*) Últmo poste da série > 21 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22393: As (des)venturas da CART 6552/72, desviada para o sul da Guiné, em maio de 1973 - Parte I: Entrei no avião, em Figo Maduro, a chorar de revolta (Manuel Domingos Ribeiro, ex-fur mil, grã-tabanqueiro nº 844)

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22395: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (16): A caminho de Mansambo com o pensamento na Nazaré

Crianças de Mansambo, ao tempo da CART 2339 (1968/69)
Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 21 de Julho de 2021:


A caminho de Mansambo com o pensamento na Nazaré

L
á longe, ouvia-se algo estranho... e eu sem saber que era normal… cada vez estava mais confuso, com o olhar fixado nas mulheres e nas crianças que estavam próximo de mim. Mas a minha mente estava muito longe dali, situação que eu tentava, mas não conseguia disfarçar.

Na véspera da minha partida para a Guiné também eu tinha deixado a minha esposa com o meu filho na metrópole, não a brincar, mas na maternidade do hospital no Sítio da Nazaré onde ele tinha nascido dois dias antes da minha ida para a guerra. A ânsia em que eu estava a ficar mergulhado começou a tomar conta de mim e a tornar-se por demais evidente, foi então que uma das mulheres que ali estava me dirigiu umas palavras que eu não entendi, por isso nada lhe disse. Ela tinha uma oleaginosa na mão que partiu com os dentes, deu-me metade e comeu a outra metade. Mesmo sem saber o que era aceitei e comi.
Foi aquele tempo que ali estive junto daquelas mulheres e crianças, enquanto esperava transporte para Mansambo, um dos mais conturbados do meu tempo na Guiné. Ainda hoje não sei o nome daquilo que a senhora me ofereceu e que eu aceitei. Mas não mais esqueci a intenção e o apoio que aquela mulher, sem me conhecer, entendeu dar-me naquele momento tão confuso e triste que eu estava a viver.
Faço votos para que aquela Senhora e a família tenham tido e continuem a ter a felicidade possível, por companhia!...

António Eduardo Ferreira

____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22361: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (15): A religião, a fé e o medo

Guiné 61/74 - P22394: Tabanca Grande (522): Ildeberto Medeiros ex-1º cabo condutor auto, CCAÇ 2753, "Os Barões" (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim/K3 e Mansabá, 1970/72): açoriano de Ginetes, Ponta Delgada, a viver em New Bedford, senta-se no lugar nº 845, à sombra do nosso fraterno e sagrado poilão

 



Ildeberto Medeiros senta-se à sombra do poilão da Tabanca Grande, 
no lugar n.º 845


1. Finalmente fica apresentado à Tabanca Grande o Ildeberto Medeirios, que foi 1.º cabo condutor auto, CCAÇ 2753, "Os Barões" (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim/K3 e Mansabá, 1970/72) (*), vindo assim juntar-se no nosso blogue, aos outros três "barões" que já cá estavam: os ex-alf mil Vítor Junqueira e José Carvalho, e o ex-fur mil Francisco Godinho, mas nenhum deles açoriano.  



O Ildeberto Medeiros e a esposa

Fotos (e legendas): © Ildeberto Medeiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. O Ildeberto Medeiros, açoriano, vive nos Estados Unidos da América. Pelo que sabemos, da sua página do Facebook;

(i) é natural de Ginetes, concelho de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores;

 (ii) nasceu em 23 de maio de 1949; 

(iii) andou na escola Escola Secundária Antero de Quental, Ponta Delgada; 

(iv) vive em New Bedford, estado de Massachusetts, EUA; 

(v) é casado; 

(vi) está reformado...

3. Comentário do editor LG:

Meu caro Berto (como te chamam os amigos do peito): és bem vindo, quer como "barão do K3", quer como nosso patrício dos Açores, a viver agora na diáspora lusitana... 

Louvo o teu esforço por chegares até nós e, finalmente, poderes cumprir as devidas formalidades e sentar-te à sombra do nosso sagrado e fraterno poilão. 

O teu lugar é o n.º 845. Sei que és sportinguista e que vais ficar ao lado de um portista, o Manuel Domingos Ribeiro, o n.º 844 (**). Mas aqui cabemos todos, independemente das nossas opções políticas, religiosas, futebolísticas, etc., ou das nossas diferenças de origem social, geográfica, étnica, etc. O que nos une é a camaradagem, fortalecida pelas memórias, boas e más,  da Guiné (1961/74).

O teu nome passa a figurar na coluna (estática), do lado esquerdo, do nosso blogue, na Lista Alfabética dos Amigos e Camaradas da Guiné.

Vês se nos mandas mais fotos do teu tempo de Guiné, com boa resolução e as respetivas legendas. Vou-te mandar os contactos do João Crisóstomo, que vive em Queens, Nova Iorque, e que é o régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona. Ele vai-te escrever e mandar s seus contactos, nomeadamente telefónicos. Ele vai gostar de poder falar contigo, se nos mandares, a  ele e a nós, o teu nº de telefone / telemóvel (, que naturamente não será divulgado no blogue).

Há muitos camaradas nossos, açorianos, madeirenses e continentais, que vivem nos EUA (e no Canadá) e que ainda não nos conhecem. Conto contigo para divulgares o nosso blogue, e para continuares a comentar os nossos postes. É também uma boa forma de afirmar a nossa língua materna na Internete. Vê se consegues sobretudo trazer mais açorianos até ao nosso blogue e à Tabanca Grande, que é a mãe de todas as tabancas... 

Boa saúde e longa vida, na companhia da tua esposa. Mantenhas (saudações em crioulo da Guiné). 
_______________

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22393: As (des)venturas da CART 6552/72, desviada para o sul da Guiné, em maio de 1973 - Parte I: Entrei no avião, em Figo Maduro, a chorar de revolta (Manuel Domingos Ribeiro, ex-fur mil, grã-tabanqueiro nº 844)


Guiné > Região de Tombali > Cameconde > CART 6552/72 (1973/74) > O Manuel Ribeiro com um pequeno "jacaré", apanhado na bolanha de Cassomo (, em rigor, trata-se de um crocodilo juvenil, já que não há jacarés na Guiné, nem em toda a África, apenas no Novo Mundo e na China).


Guiné > Região de Tombali > Cameconde > CART 6552/72 (1973/74) >  O quartel de Cameconde, em 1973


Guiné > Região de Tombali > Cameconde > CART 6552/72 (1973/74) > O Manuel Ribeiro, junto ao bar, num momento de descontração.


Fotos (e legendas): © Manuel Domingos Ribeiro  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Manuel Domingos Ribeiro (ex-fur mil at art, MA, CART 6552/72, Cameconde e Cabedú, 1973/74):

Date: terça, 20/07/2021 à(s) 17:00
Subject:  As (des)venturas da CART 6552/72

Boa tarde Luís,

Falando um pouco sobre o desvio da CART 6552/72,  de S. Tomé para a Guiné, quando se encontrava a aguardar embarque na carreira na de tiro de Espinho, embarque que já tinha sido adiado duas vezes, eu que me encontrava em casa de licença fui convocado por telegrama para me apresentar na unidade para seguir de imediato para o ultramar, mas não mencionava o destino final-

Apresentei-me a uma sexta feira ao fim da tarde e tive de imediato fazer o espólio de algum fardamento para de seguida o pagar pois,  como te deves de lembrar,  recebíamos um valor monetário para compra de todo o fardamento e demais artigos necessários ao serviço militar, artigos esses que foram comprados no casão militar em Bissau.

Como me apresentei à última da hora só levei a farda que tinha vestida,  algum fardamento que tinha no quartel e uma muda de roupa que transportava numa pequena mala de mão, foi nessa altura que nos foi comunicado que tínhamos sido desviados para a Guiné pelo nosso Comandante de companhia e encarregues de comunicar aos nossos militares e por pelotão o nosso destino.

Nós, os graduados,  ainda ponderámos não embarcar, alguns ainda se deslocaram ao Porto já ao princípio da noite para falar com familiares e pedir algum conselho. Fomos aconselhados a embarcar pois as consequências seriam de certeza graves-

Depois de todos regressarem,  reunimo-nos já ao principio da madrugada, explicámos a nossa situação e informámos que partiríamos ao início da madrugada em autocarros, com destino à Base Aérea de Figo Maduro, em Lisboa,  onde embarcaríamos ao princípio da manhã de sábado. 

Na altura de embarque surgiu alguma resistência por parte alguns soldados e graduados em embarcar por não nos terem alterado a nossa mobilização e não nos terem explicado por que razão estávamos a ser deslocados para a Guiné. Alguns elementos foram isolados da restante companhia e postos à guarda da policia aérea responsável pela segurança do aeroporto, foram confrontados por elementos civis e militares se não iam  embarcar e as consequências de uma resposta negativa... Responderam, por fim,  que embarcavam e seguiram para a pista, saindo o avião com cerca de uma hora de atraso.

Lembro-me de ver alguns familiares no aeroporto militar mas da parte de fora da rede, de ter entrado no avião a chorar de revolta por não nos terem dito a razão da nossa ida para a Guiné, da nossa chegada que foi cerca do meio dia,  hora de muito calor, da saída do avião, o cheiro característico a que depois me habituei, o embarque quase de imediato em viaturas militares com destino ao Cumeré.

Entretanto fomos colhendo alguma informação e ficámos a saber que as coisa não estavam fáceis tanto a Norte como a Sul, ficámos a saber que um aquartelamento no Sul, Guileje,  tinha sido abandonado dias antes, fomos para o Cumeré e logo nos dois dias seguintes chegaram mais duas companhias de cavalaria,  também desviadas de Angola para a Guiné. 

Fizemos uma IAO de forma acelarada e logo na primeira semana de Junho partimos de LDG junto com uma companhia de paraquedista com destino a Cacine. Eu não segui nessa LDG pois fui encarregue de comandar uma secção para fazer segurança de um batelão que transportava combustiveis para a nossa companhia, não foi uma viagem fácil pois, quando cheguei no outro dia a Cacine, ao tirar a camisa a pele saía junto:  toda a viagem fora feita ao sol por não existir proteção para todos, 

Junto connosco também viajava uma secção de fuzileiros que tambem tinham a missão de fazer segurança ao batelão.

Dois dias depois chega a Cacine uma das companhias de cavalaria que tinha sido desviada de Angola junto com mais uma companhia de paraquedistas, sabendo depois que a outra companhia também desviada de Angola tinha sido enviada para o Norte, pois Guidaje continuava ferro e fogo.

Em Cacine era o caos com tantos militares concentrados no mesmo local, houve uma reunião de comandos em Cacine e foi dado a escolher ao nosso capitão, por ser o mais velho, o local para sermos colocados:  Gadamael Porto ou Cameconde. O nosso capitão escolheu  Cameconde para aí rendermos um grupo de combate da  CCAÇ 3520 mais um grupo de combate da companhia de milícia da tabanca Nova que ficava entre Cacine e Cameconde.

Como Cameconde não tinha capacidade para alojar uma companhia inteira,  um grupo de combate ficou em Cacine para apoio e segurança às colunas de reabastecimento ao pessoal de Cameconde, e a partir daí começou a nossa aventura por terras do Sul da Guiné.

Cameconde era o aquartelamento mais a sul na Guiné, mesmo junto à fronteira e ao Quitafine que era considerado pelo PAIGC como área libertada.

Junto algumas fotos, uma com vista parcial de Cameconde, outra tirada junto de um abrigo com um pequeno jacaré capturado na bolanha de Cassomo e outra tirada junto do bar num momento de descontração.   

Guiné 61/74 - P22392: Historiografia da presença portuguesa em África (272): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (9) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Pormenor da Sala Portugal no decurso de uma exposição


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Não foi ao acaso que aqui se traz à colação um relato apresentado pela geógrafa Suzanne Daveau referente à expedição científica à Serra da Estrela organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa em agosto de 1981, ela não deixa de referir que a Sociedade, fundada em 10 de novembro de 1875, tinha por finalidade "promover e auxiliar o estudo e progresso das ciências geográficas e afins em território português". Acontece que a finalidade acabou por ser praticamente direcionada para as explorações africanas e a geógrafa deplora que a Sociedade continuava a maltratar os propósitos iniciais, quanto ao território português. E daí passamos para 1900, dentro em breve este período que envolve epopeias de ocupação e pacificação deixará de ser tratado em atas de sessões, elas vão desaparecer com a morte de Luciano Cordeiro e vamos nos próximos textos apresentar o relato dos últimos acontecimentos de 1900, fazendo a súmula de alguma da bibliografia existente sobre este período.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (9)

Mário Beja Santos

Não se pode perder de vista que na génese fundacional da Sociedade de Geografia se cruzam o entusiasmo emergente pelos conhecimentos geográficos dentro do país e na abordagem recente do III Império, a África que se está a descobrir, a ocupar, a pôr administração e a constituir negócios. Volta-se atrás exatamente porque se encontrou um texto de Suzanne Daveau, eminente geógrafa, casada com aquele que é considerada a figura proeminente da Geografia em Portugal no século XX, Orlando Ribeiro. Ela revelou num artigo o que foi a expedição científica à Serra da Estrela organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em agosto de 1881. Saem de Lisboa 42 membros, vão de comboio, foram aclamados por numerosa assistência, está lá o Presidente do Conselho de Ministros. Passam por Coimbra e a Mealhada e no dia seguinte tomam o comboio da linha da Beira Alta, vão até Celorico da Beira. Almoçaram em Santa Comba e quando chegaram a Carregal do Sal foram saudados por alguns dos cavalheiros e os artistas da Filarmónica da terra. Celorico a expedição toma a estrada para a Guarda. Vão fazer o resto do trajeto a cavalo, no dia 4, com almoço em Manteigas e chegam pelas dez da noite ao lugar do acampamento, no planalto superior da Serra da Estrela, a 1850 metros de altitude. De que trata a expedição?

Vão-se dedicar a observações científicas variadas, estão sempre a ser visitados por um arraial de pessoas. Os expedicionários são geralmente lentes de diversas escolas, oficiais superiores do Exército, há até mesmo clínicos distintíssimos. E fica-se a saber que a expedição foi muito dispendiosa, talvez a razão principal por que não se voltou a repetir.

Recorda a geógrafa a tal finalidade da Sociedade de Geografia, “promover e auxiliar o estudo e progresso das ciências geográficas e afins em território português”. A Direção da Sociedade, numa representação ao rei D. Luís, declarou: “Entre os graves problemas que as Ciências Geográficas e a economia comercial têm modernamente posto a caminho da civilizadora e humanitária solução […] avulta, Senhor, a exploração científica, o estudo geográfico na sua mais lata aplicação do grande sertão africano”. A representação da Sociedade junto do monarca destinava-se a apoiar o projeto da Expedição Portuguesa ao Interior da África Austral, expedição que será efetivamente levada a cabo de 1877 a 1879, por Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens.

Voltemos à Serra da Estrela. Tudo começara com a iniciativa de Marrecas Ferreira, Capitão de Engenharia e professor da Escola do Exército, proposta que foi apresentada em 5 de julho de 1880 por Luciano Cordeiro. Mas como explicar que a Sociedade de Geografia tenha excecionalmente tomado interesse e gasto um ror de dinheiro numa expedição de índole caseira?

Pretendia-se com esta expedição científica conhecer a geologia, a fauna e a flora da região, o seu relevo orográfico, formação das torrentes e sua influência nos vales adjacentes, particularmente sobre os do Mondego e Zêzere; possibilidade e vantagens do estabelecimento de um posto meteorológico; sondagens das lagoas, temperatura e densidade das suas águas; riqueza mineralógica e potencialidades da sua exploração; por fim, encontrar vestígios arqueológicos e conhecer as tradições locais. Saber-se-á mais tarde que um dos promotores da expedição foi Sousa Martins, tinha concebido o projeto de montar na Serra da Estrela sanatórios para os tísicos portugueses. Nos preparativos da expedição organizaram-se doze secções científicas, cada uma com o seu programa de trabalho. A expedição foi inconclusiva, Suzanne Daveau refere apreciações críticas duras de que a Sociedade de Geografia ignorara praticamente os temas da Geografia Portuguesa, e diz-se mesmo que o Boletim da Sociedade de Geografia se ocupava primordialmente da História e descrição das colónias portuguesas. Os geógrafos queixavam-se da longa demora em serem aceites como sócios da Sociedade de Geografia. E voltemos ao virar do século XIX. Curiosamente logo em 8 de janeiro de 1900, é pedida a revisão das matérias e conteúdos de Geografia Colonial. Em fevereiro, a Comissão Americana propõe a celebração do Centenário do Descobrimento da América do Sul, prestando-se assim homenagem a Pedro Álvares Cabral. E um sócio propõe uma visita à Igreja da Graça, em Santarém, seria assim uma respeitosa homenagem aos restos de Pedro Álvares Cabral.

O Conselheiro Ferreira do Amaral é reeleito na presidência, o Banco Nacional Ultramarino apoia a participação portuguesa à Grande Exposição de Antuérpia, tida como a mais brilhante e notável representação colonial portuguesa que se tem apresentado em exposições internacionais. Aliás, como vem em várias atas das sessões, passa a ser intensa a participação da Sociedade em encontros internacionais. Retira-se da ata de 5 de março as razões do louvor ao Major Sousa Machado, através do requerimento do Sr. Domingos de Oliveira, que tem o seguinte teor:
“Senhores e Consócios. A vossa Direção considerando os relevantes serviços prestados ao país e à civilização pela intrépida exposição militar organizada em Moçambique, e cometida à inteligente e patriótica direção do ilustre oficial do nosso Exército, o Major Manuel de Sousa Machado, seu comandante;
Considerando quanto representa de esforço e decidida coragem, conduzir uma coluna de soldados europeus, auxiliares e carregadores, muitas léguas pelos adustos sertões africanos que circundam Quelimane, e se prolongam pelo alto Ruo, margens de Chirua até à lagoa Chiuta, e depois pelo vale de Lujenda em direção ao Muembe, quartel principal do destemido e poderoso Mataca, rebelde e revoltado;
Considerando quanto era importante o prestígio do nome português, abatido naquelas paragens pelo desastre que vitimou ali o tenente Valadim, que infligíssemos severo castigo àquele tão audacioso régulo, contra o qual o governo inglês nos fazia sucessivas reclamações em virtude das suas incessantes razias;
Considerando que um tal facto, realizado por forma tão brilhante, deve ser-nos de legítimo orgulho e incentivo, quando notamos outros mais poderosos deterem-se ante dificuldades iguais às que a expedição venceu; o que é para nós prova, aliás desnecessário, de que ainda não se apagou nos portugueses, nem o fogo, nem o génio, nem o valor daqueles que foram dilatando a fé e o Império por terras de além-mar;
Considerando ainda que foi devido à habilidade verdadeiramente tenaz do Major Sousa Machado, auxiliado por todos os seus companheiros de armas, que o País, o Exército e o seu bravo Regimento 5 de Infantaria, puderam inscrever no seu livro de ouro, mais este assinalado feito das armas portuguesas, digno do galardão de todos nós;
E tendo em atenção que os altos poderes do Estado concederam ao nosso prezado consórcio e brioso Major Machado o mais ambicioso prémio que pode ornar a farda do soldado português, o fulvo cordão da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; a Sociedade de Geografia, sempre pronta a devidamente considerar os patrióticos e relevantes serviços dos seus consócios, prestados na causa colonial, concede ao seu sócio o Major Manuel de Sousa Machado a mais elevada distinção que a sua lei orgânica lhe permite usar”
.

E o Major Sousa Machado passou a ser sócio honorário sem que o Sr. Renato Batista tivesse referido a nota de serviços do Major Sousa Machado, falando da região dos lagos da África Central, é uma narrativa histórica muitíssimo curiosa para culminar no desempenho brilhante de Sousa Machado.

Nesta mesma sessão é apresentada uma proposta para a ereção dos Jerónimos como Panteão Nacional. E como veremos adiante, em 5 de maio realiza-se uma sessão solene comemorativa do Centenário do Brasil, preside o rei D. Carlos.

(continua)

Imagem da Serra da Estrela
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22371: Historiografia da presença portuguesa em África (271): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22391: Agenda cultural (776): RTP Play, "A Herança de Aristides", documentário francês de 52 mm, que passou na RTP1, em 19 de julho, no aniversário do nascimento do "Consul de Bordéus", Aristides de Sousa Mendes (1885 -1954) + exposição na Fortaleza de Peniche, a decorrer até ao fim de outubro: "Candelabro ASM. Aristides de Sousa Mendes: o exílio pela vida".




Peniche > Fortaleza de Peniche > Museu Nacional da Resistência e Liberdade > 13 de julho de 2021  > Cartaz anunciando a exposição "CANDELABRO ASM. Aristides de Sousa Mendes: o exílio pela vida". De 27 de abril a 31 de outubro de 2021. Aberto, de quarta feira a domingo. Entrada livre. 

(...) O Museu Nacional Resistência e Liberdade, na Fortaleza de Peniche, celebra o dia 25 de Abril com homenagem de arte contemporânea a Aristides de Sousa Mendes.

Esta homenagem, no âmbito da programação cultural da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, tem a particularidade de unir pessoas e vontades de cinco países – Portugal, França, Alemanha, EUA e Canadá – em torno do justo reconhecimento de um resistente e de um herói.

A Vídeo-Escultura de Werner Klotz é a peça central da primeira exposição internacional do Museu. (...) 
 [Abrir aqui o guia educativo]


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem enviada pelo Luís Graça ao João Crisóstomo, no passado dia 16:

João: Passámos pro Peniche, mas estava fechado, nesse dia, terça-feira, o Museu Nacional da Resistência e Liberdade... Mando-te duas fotos com o cartaz da exposição sobre o Aristides de Sousa Mendes. Lembrámo-nos de ti. E também rezámos por ti e pela Vilma na Ermida da Sra dos Remédios, que tu conheces. Vai lá o círio de A-dos-Cunhados, tua terra natal... Faltaste tu e a Vilma (ela iria gostar)...

Abraços da malta toda, Até para ano!... Luís

http://www.museunacionalresistencialiberdade-peniche.gov.pt/pt

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2021/07/guine-6174-p22374-tabanca-do-atira-te.html

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2021/07/guine-6174-p22373-tabanca-do-atira-te.html


2. Parte de uma extensa mensagem do João Crisóstomo, recebida ontem, dia 20,  às 3h58:

(...) Quando chegou o teu E mail a dizer que tinhamos sido lembrados na Ermida e depois ao passares pelo "Museu da Resistência e Liberdade" onde esperavas ver a Exposição sobre o nosso Aristides, disse para os meus botões que já que não podia estar com vocês, pelo menos tinha de vos enviar a todos um abraço e uma palavra de agradecimento. É sempre bom sabermos que mesmo longe não estamos sós. E isso aplica-se a todas as situações, incluido aqueles que por qualquer motivo não têm possibilidade de partilhar pessoalmente momentos assim.

(...) Esta manhã enviei um e mail a familiares e amigos de Aristides de Sousa Mendes mundo fora, juntando-me a eles na memória do aniversário do seu nascimento (19 de Julho de 1885). E de tarde, cerca das 8.30 PM de Lisboa, recebi uma chamada do Rui Chamusco, meu irmão em tudo o que estou envolvido recentemente, que me alertou para um programa que ia passar na televisão às 5.15 PM ( 10.15 PM em Portugal) .

Logo liguei a televisão para a RTP , único canal português que recebo em minha casa e fiquei contente que estivesse a dar o mesmo programa em Portugal e aqui nos US. Mas logo o desapontamento foi grande: na dita hora enquanto esse programa sobre Aristides começou a ser passado em Portugal, a emissão para os US continuou no programa de petiscos e cozinhados que estava a dar havia mais de meia hora…Por mim não consigo perceber !

Uma vez que se falava em Portugal sobre este nosso grande humanista, ele devia ser lembrado pela nossa RTP mundo fora também. Ao fim e ao cabo Aristides viveu e prestou serviço diplomático em muitos países onde chegam hoje os programas da nossa RTP : embora o nosso Aristides seja agora mundialmente conhecido pelo seu acto de coragem humanitário em França, antes disso ele tinha estado na Guiana Britânica; em Zanzibar, capital da então África Oriental Britânica , no Brasil (Curitiba, Maranhão e Porto Alegre); nos Estados Unidos, na Espanha e na Bélgica.

Era especialmente pertinente que esse programa fosse visto aqui nos Estados Unidos: importa não esquecer que,  depois do reconhecimento de Aristides de Sousa Mendes por Israel em 1966, logo seguido por uma cerimónia de entrega da medalha à família no Consulado israelita de Nova Iorque em outubro de 1967, Aristides voltou ao quase completo esquecimento, especialmente em Portugal. 

 Embora houvesse algumas isolada vozes de vez em quando a pedir alguma atenção, a posição era de ignorar e esquecer. Foi aqui e também no Canadá que a partir de 1986 Aristides de Sousa Mendes recomeçou a ser a reconhecido e homenageado. Foi-o, oficialmente, mesmo pelo Congresso Americano. E foi só depois de uma delegação de 69 Representantes do Congresso Americano, chefiada pelo luso-americano Tony Coelho, durante uma visita a Portugal ter pressionado o governo português a seguir o exemplo dos Estados Unidos, é que o nosso governo, não podendo mais resistir à pressão dos Estados Unidos, decidiu reconhecer, reabilitar e homenagear Aristides de Sousa Mendes.

Quando depois houve um "interregno longo" em que Aristides parecia voltar ao esquecimento, foi a partir de 1996 que o nome de Aristides começou de novo a ser badalado: foi nesta altura que tive conhecimento do grande trabalho de reconhecimento de Aristides a partir de França, dirigidos por Jacques Riviére e Manuel Dias com quem passei a estar em contacto frequente. E que o reconhecimento de Aristides nos Estados Unidos e mundo fora “recomeçou a sério”, facto de que, sem intenções nem presunções de autopromoção, sei que o meu papel também não foi insignificante.

Logo em Abril de 2000 a grande exposição “Visas for Life” abria nas Nações Unidas e Aristides era o “homenageado" especial : a abertura, feita a coincidir com o dia do aniversário da sua morte teve lugar na sala da Assembleia Geral da ONU em que o Nobel da Paz Elie Viesel foi o orador principal; e logo os acontecimentos de memória e reconhecimento não pararam mais, lembrado todos os anos, várias vezes por ano ; e em 2004, no 50º aniversario da sua morte, nascia o projecto “Dia da consciência” , celebrado nesse ano com acontecimentos simultâneos em 21 países.

Em 2010 nascia a “Sousa Mendes Foundation US” sob a direção da prof. Lissy Jarvik e de Olivia Mattis, e o trabalho magnificente que esta organização logo começou a desenvolver.

Paralelamente esforços para um reconhecimento maior e generalizado continuaram: no ano 2010, entre outros acontecimentos mundo fora, houve uma concelebração de quatro cardeais em Roma, evento largamente noticiado; e no mesmo ano era introduzida no Parlamento Canadiano uma moção de reconhecimento e apoio a uma proposta para designar 17 de junho como o “Dia da Consciência”. 

Estes esforços persistentes continuaram nos anos seguintes e culminaram com a declaração do Papa Francisco no dia 17 de junho de 2020 lembrando Aristides de Sousa Mendes e o Dia 17 de junho como “Dia da Consciência”.

Bom: desculpem este meu longo “discurso”; quando me ponho a falar por vezes não sou capaz de parar… mas , "o saber não ocupa lugar”!… e talvez alguns destes “pormenores”não sejam do conhecimento de todos ainda.
 
Quem sabe, de repente aparece uma situação em que alguém pode contribuir para que haja melhores prioridades na nossa RTP na emissão de programas para fora de Portugal; francamente é frustrante ver dar prioridade a comentários ou ensinos de cozinha sobre lembrar o nosso grande humanista Aristides de Sousa Mendes no dia do aniversário do seu nascimento.

Um grande abraço a todos,

João Crisóstomo, Nova Iorque

3. Resposta do editor LG, ontem, às 12h49;

João, bom dia...Tens aqui o programa que deu ontem na RTP, "A Herança de Aristides"... Está já disponível da RTP Play... Tens mais de 150 mil filmes, vídeos, etc. na RTP Play!!!!... 

Ainda não vi, a Alice viu e gostou muito...Carrega aqui no link:

https://www.rtp.pt/play/p9092/a-heranca-de-aristides

Depois falamos, tenho que ir para Lisboa, para fazer exames...Ab, Luis

PS - Sobre o programa: documentário da televisão francesa, de 2020, com a duração de 52 m,  "A Herança de Aristides", RTP1, 19 de julho de 2021.

Sinopse: O legado deixado por Aristides de Sousa Mendes... Todos conhecemos a história da lista de Schindler, mas será que conhecemos a ação excepcional do português Aristides de Sousa Mendes que, em junho de 1940, em Bordéus, salvou dezenas de milhares de judeus e não judeus com a emissão de vistos para Portugal?

____________

Nota do editor;

Último poste da série > 10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22356: Agenda cultural (775): "No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português" (Livros Horizonte, Lisboa, 2021, 192 pp.): livro de Jorge Monteiro Alves, jornalista e repórter de guerra... Uma biografia não autorizada de Marcelino da Mata, o último herói do império.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22390: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte III: Lendas bijagós





Lendas bijagós - ilustrações do pintor guineense Ady Pires Baldé, p´p. 17 e 19

In: Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



1. Transcrição das págs. 15 a 22 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato  > Lendas e contos 
da Guiné-Bissau

[Foto à esquerda: o autor, Carlos Fortunato, foi fur mil arm pes inf, MA, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga]



Lendas bijagós (pp. 15-22)


Segundo uma das mais populares lendas bijagós, Deus ao criar o Mundo criou primeiro a ilha de Orango, e depois colocou ali uma mulher,  Acapacama, e o seu marido.

Eles tiveram quatro filhas. A primeira foi Orácuma, a seguir nasceu Ominca, e depois Ogubané e Orága.

Cada uma delas teve vários filhos, dando origem a quatro grandes famílias, às quais foram transmitidos os privilégios da avó. Orácuma recebeu a terra e a religião. Foi ela quem fabricou o primeiro Irã, e permitiu que as suas irmãs o reproduzissem.

Ominca recebeu o mar e a sua família dedicou-se à pesca. Contudo os hipopótamos eram muito ferozes, pelo que tiveram que fazer várias cerimónias, para conseguirem ir para o mar. Ogubané recebeu o poder de controlar o vento e a chuva, o que lhe permitiu gerar boas colheitas. rága recebeu as plantas, as árvores e os animais, o que lhe trouxe muita riqueza.

Cada família passou a viver à sua maneira.

Esta é a lenda (5) das gerações, e à semelhança de outras, explica a origens das quatro famílias a que pertencem todos os bijagós, mas mostra também o importante papel que a mulher desempenha no mundo bijagó.

As origens dos bijagós não são claras e existem muitas versões. Algumas são fantasiosas e sensacionalistas, chegando a colocá-los como tendo origem na Atlântida (6), mas provavelmente estes seriam escravos de beafadas que para ali fugiram (7).

O navegador, André Alvares d´Almeida, foi o primeiro a dar uma descrição das Ilhas Bijagós em 1594, e com base nos relatos dos seus habitantes, refere que antigamente não eram ilhas, pois faziam parte do continente, “parece que antigamente eram terra firme” (8), escreve Alvares d´Almeida, o que foi depois confirmada por investigações científicas (9).

Entre as mulheres bijagós que fizeram história, destaca-se a famosa “Rainha” Oquinca Pampa, ou Oquinca Pampa Kanjimpa (reinou de 1910-1930). Embora seja referida como Rainha, na verdade não existem rainhas entre os bijagós, Oquinca Pampa era uma sacerdotisa que ascendeu ao poder.

***

Oquinca não é um nome, mas uma palavra da língua bijagó, que significa sacerdotisa, é um título, do mesmo modo que Oronhom significa rei, mas na voz do povo, ela é a “Rainha” Oquinca Pampa.

Oquinca Pampa faz parte da linhagem Orága, e está ligada ao Reino de Orango.

Segundo os costumes bijagós, apenas os homens podem ser reis, mas quando morre o rei e enquanto não se realiza a sua sucessão para um homem, o reino pode ter uma mulher no seu lugar como regente, a Oquinca, sendo aconselhada pelo Conselho dos Grandes (10).

Na tradição dos Orága, esta regência pode ser prolongada, e pode ir até à morte da regente. Foi isto que aconteceu com Oquinca Pampa. Quando o Rei Issor, que era seu pai, faleceu, ela ficou como Regente do Reino.

A regência de Oquinca Pampa destaca-se pela sábia forma como soube governar, nomeadamente por ter conseguido manter intacto o seu Reino, por manter a paz, pelo seu espírito humanitário, e por ter conseguido manter a “independência” (11).

Num tempo, em que o poder colonial tudo queria submeter ao seu domínio, conseguir negociar uma governação independente desse poder, apenas contra o pagamento de um imposto, é também um reconhecimento do Governo da Colónia, à inteligente governação que Oquinca Pampa fazia.

A luta de Oquinca Pampa pela paz não foi fácil. Por um lado tinha a ameaça do poder colonial e a sua vontade de dominar totalmente o seuReino, e por outro lado muitos bijagós queriam revoltar-se, e desencadear uma guerra, pois não aceitavam pagar impostos.

Uma das situações de maior tensão que Oquinca Pampa enfrentou, foi quando um grupo (no qual se incluíam membros da sua família) se revoltou, decididos a enfrentar o exército colonial.

Os revoltosos fizeram uma vala de um quilómetro, ao longo da estrada do porto de Orango, para que ali escondidos e protegidos, pudessem emboscar as forças coloniais, quando estas desembarcassem. Mas Oquinca Pampa, com a sua influência, conseguiu acabar com a revolta.

A ilha de Canogo encontra-se separada de Orango apenas por um rio, equando os seus habitantes decidiram não pagar qualquer imposto, preparando-se para a guerra, Oquinca Pampa interveio mais uma vez, pagando o imposto de Canogo com o seu gado, evitando assim a guerra.

Interessante e original, foi o sistema de comunicações que Oquinca Pampa criou para comunicar com os comandantes dos barcos, que chegavam ao porto de Orango para negociar, colocando um homem de cinco em cinco metros, para através deles falar com o comandante do barco, de modo a assegurar que tudo decorria sem incidentes.

Ao contrário de seu pai, que era um rei cruel, Oquinca Pampa revelou-se uma rainha com um elevado espírito humanitário, acabando com práticas desumanas e com algumas situações de escravatura, que ainda existiam no seu Reino, restos de um passado em que os prisioneiros de guerra eram vendidos como escravos.

Oquinca Pampa, apesar de ser de pequena estatura, é considerada a grande “Rainha”, e é sem dúvida a mais popular, pois a memória da sua regência contínua viva entre os bijagós, que contam a sua história à volta da fogueira, e os artesãos bijagós continuam a fazer estátuas suas.
Os restos mortais de Oquinca Pampa estão no mausoléu real em Eticoga, na ilha de Orango, onde repousam outros reis e rainhas. Com ela foi enterrado o seu valioso tesouro, do qual fazem parte muitas peças em ouro, e que desde então ali repousam guardados pelos espíritos.
Quem tocar na porta do mausoléu terá que pagar uma vaca, se não o fizer, os espíritos irão persegui-lo, esteja onde estiver.

***

Outra “Rainha” famosa é a “Rainha” Juliana Canhabaque, do Reino de Canhabaque (ilha Roxa), devido à guerra ali havida em 1925.

Canhabaque  só pagava impostos quando lhe apetecia e pagava pouco, e isso levou ao desencadeamento de uma campanha militar pelo exército colonial. Após alguns preparativos, a 20 de Abril de 1925 uma força militar desembarcou em Inorei e Bine, para colocar definitivamente a ilha sob o seu domínio

Tratava-se de uma força militar numerosa com cinco oficiais, 240 sargentos e polícias nativos, e 1496 auxiliares na sua maioria fulas e mandingas (12), o seu armamento incluía 800 espingardas, três metralhadoras e três canhões hotchkiss.



Guiné-Bissau > 2002 > selo comemorativo do voo Lisboa - Bolama, realizado em 1925, por um avião Bréguet XIV A2, do 1º Grupo de Esquadrilhas de Aviação da República,  o GEAR, antecessor da FAP. A tripulação do "Santa Filomena" (, nome da aeronave,) era constituída pelo tenente Sérgio da Silva, pelo capitão Pinheiro Correia e pelo 1.º sargento António Manuel. Partindo do campo de aviação da Amadora, em 27 de março de 1925,  "Santa Filomena" chegou a Bolama em 2 de abril de 1925, depois de percorrer a distância de 4.070 km em 31 horas e 31 minutos de voo, em 7 etapas:  m 7 etapas: Amadora – Casablanca; Casablanca – Agadir; Agadir – Cabo Juby; Cabo Juby – Vila Cisneros; Vila Cisneros – S. Luís do Senegal; S. Luís do Senegal – Dakar e, finalmente, Dakar – Bolama. (**)

Imagem: Cortesia de Colnect.com


Aproveitando a presença de um avião militar, que tinha realizado pela primeira a viagem aérea Lisboa-Bolama, o governador Velez Caroço pediu 
que este bombardeasse os revoltosos.
Foi assim usado pela primeira vez um avião militar na Guiné. Tratou-se do Breguet XIV A2 do 1º Grupo de Esquadrilhas de Aviação da Republica (GEAR).

Apesar de o avião estar com problemas mecânicos, durante dois dias, foi desencadeado um bombardeamento, tendo sido lançadas manualmente granadas de artilharia, depois de adaptadas para o efeito.

Os guerreiros de Canhabaque ficaram surpreendidos com aquele ataque, pois nunca tinham visto um avião, nem conheciam o seu poder destruidor, mas a sua resposta à incursão militar não vacilou, e foi com determinação, que decidiram continuar a combater o invasor do seu Reino.

A “Rainha” Juliana possuía 2.000 guerreiros, que estavam armados com arcos, catanas, lanças e algumas espingardas longas. Alguns possuíam uma longa história de combates, o que fazia deles guerreiros experientes e ferozes.

A ilha de Canhabaque  [também conhecida por ilha Roxa] é pequena, tem nove por 15 quilómetros, o que era uma desvantagem, mas por outro lado tem uma vegetação cerrada e caminhos que apenas os guerreiros de Juliana conheciam bem; alguns eram caminhos estreitos e difíceis, e pouco adequados ao exército colonial, com as suas metralhadoras e canhões.

A “Rainha” Juliana organizou a sua defesa, colocando vigias no alto das árvores, criando zonas de emboscadas, com atiradores com longas nas árvores e construindo covas com tampas cobertas com ervas, para os guerreiros se esconderem e poderem atacar os invasores, quando estes menos esperassem.

Foi travada uma luta feroz com muitas baixas, nomeadamente da parte dos guerreiros da “Rainha” Juliana, mas as tabancas dos revoltosos foram sendo vencidas uma a uma.

A pequena ilha estava isolada nesta luta, não podia contar com reforços ou reabastecimentos.
A 3 de Maio de 1925, os últimos resistentes concentraram-se em Indema, no centro da ilha, e entre eles está a “Rainha” Juliana. Eram poucos para fazerem frente aos invasores e também eram poucas as munições que lhes restavam.
 
Os guerreiros de Canhabaque defenderam Indema enquanto puderam, mas acabaram por se render, pois não tinham meios para conseguirem fazer frente, a uma força militar tão poderosa.

Indema foi incendiada, e a “Rainha” Juliana presa e enviada para Bolama (13) mas não foi o fim da luta dos bijagós, pois em 1935 haveria uma nova revolta e seria necessária uma nova incursão militar.

No século XX o poder colonial deixou de ser algo fraco e vago, tornando- se numa força poderosa e determinada que impunha a sua vontade, foi um novo ciclo que se iniciou.


[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]
___________

Notas do autor:

(5) Lendas bijagós - pag. 34, Danielle Gallois Duquette, no seu livro Dynamique de L´art Bidjago, faz uma descrição desta e de outras lendas.

(6) Bijagós - pag. 145, “A babel negra”, de Landerset Simões.

(7) Bijagós - pag. 15, “Organização Económica e Social dos Bijagós”, de Augusto J. Santos Lima.
 
(8) Bijagós - pag. 81, “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde”, do capitão André Álvares d´Almeida.

(9) Bijagós - pag. 14, “Organização Económica e Social dos Bijagós”, de Augusto J. Santos Lima.

(10) Bijagós - pag. 77, “Organização Económica e Social dos Bijagós”, de Augusto J. Santos Lima.

(11) Oquinca Pampa - pag. 186, “História da Guiné II”, de René Pélissier.

(12) Juliana - pag. 212, “História da Guiné II”, de René Pélissier.

(13) Juliana - pag. 212, “História da Guiné II”, de René Pélissier.

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com

__________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 10 de julho de  2021 > Guiné 61/74 - P22359: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II A: Comentário adicional sobre os balantas: "Nhiri matmatuc Fortunato. Nhiri cá ubabe. Nhiri god mara santa cá cum boim. Udi assime?"...Traduzindo: "O meu nome é Fortunato. Eu sou branco, não sei falar bem balanta. Percebes o que estou a falar?"... Uma conversa com Kumba Yalá, em Bissorã, a dois dias da sua morte, aos 61 anos

Vd. postes anteriores:

9 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22354: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II: Ficha técnica, prefácio de Leopoldo Amado, lendas balantas (pp. 1-14)

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22349: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte I: Vamos dar início a uma nova série, um mimo para os nossos leitores

(**)  Vd. postes de:

26 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18780: Historiografia da presença portuguesa em África (119): O primeiro voo, ligando Lisboa a Bolama, em 1925, e a primeira tentativa de usar a aviação com fins militares naquele território (Armando Tavares da Silva) (Parte I)