O médico Ramiro Alves de Carvalho Figueira
Boa tarde. Chamo-me Ramiro Alves de Carvalho Figueira, fui alferes de Operações Especiais na 2.ª CART do BART 6520/72 em Nova Sintra entre Julho de 72 e Julho de 74.
Sou médico já reformado, embora continue com alguma actividade, um médico reformar-se totalmente não é muito fácil…
Chegámos a Bissau em 23.06.1972, partimos para Bolama onde fizemos a IAO. Nesta altura, com duas semanas de Guiné, no batalhão aconteceu logo a morte de dois camaradas na carreira de tiro, o oficial de tiro (Alferes Carlos Figueiredo, também de Operações Especiais) e um soldado de que não me recordo o nome que pertencia a uma companhia independente que foi depois para Mampatá, ambos vitimados pelo manuseamento de um dilagrama em circunstâncias que não foram muito esclarecidas e também pouco importa agora.[1]
O comandante do batalhão “ofereceu-me” a prenda de ser eu a substituir o Figueiredo na carreira de tiro, onde estive durante toda a IAO. O Carlos Figueiredo era um companheiro desde os tempos de Lamego, fomos depois os dois colocados em Penafiel para formar batalhão e embarcámos para a Guiné, era um bom amigo e a morte dele foi duramente sentida, quer por mim quer por todos, especialmente os outros alferes que vieram de Lamego. O Carlos Barros se não me engano tem uma das histórias dele dedicadas a este triste episódio.[2]
O Alf Mil Op Esp Ramiro Figueira durante as filmagens das mensagens de Natal em 1973
Partimos depois para Nova Sintra, um aquartelamento meio perdido nos confins do sector de Tite, na ponta sul do Quínara que mais não era que um pequeno quadrado de arame farpado com cerca de 100m de lado rodeado de mato. Fomos recebidos pelos “velhinhos” com as habituais praxadelas (mas muito bem recebidos) e quinze dias depois a companhia assumiu o sector. Iniciámos a actividade operacional com patrulhamentos e logo, creio que em Setembro, num desses patrulhamentos um mina vitimou um dos alferes da companhia, o João Neves, natural de Avis, e feriu o guia Bunca Turé. Para início de comissão começávamos bem…
Vista aérea de Nova Sintra
A actividade operacional prosseguiu, com o ânimo que todos por aqui bem conhecem, e no mês de Outubro tive o meu primeiro contacto com o PAIGC. Durante um patrulhamento a uma tabanca abandonada, Aldeia Nova, o homem da bazuca, de seu nome Ribeiro pisou uma “viúva negra” e ficou de imediato sem uma perna. Seguiu-se a confusão e o medo, que todos também bem conhecem, socorremos o homem o melhor que foi possível e veio o helicóptero ali à bolanha fazer a evacuação. Logo que o heli descolou rumo a Bissau, começámos a levar pancada, trocaram-se tiros e morteirada que felizmente não maltratou ninguém do nosso lado e regressámos ao quartel sem mais percalços, já não era pouco…
A saga de Nova Sintra prosseguiu e no final de 1972 (cerca de Novembro) novo encontro com o PAIGC. Desta vez saíamos na direcção do local onde habitualmente nos bombardeavam, um local ligeiramente mais alto chamado Serra Leoa, e percorridos cerca de 100 a 200 metro do quartel demos de caras com um pequeno grupo que, aparentemente, se preparava para montar uma base de fogos para atacar o quartel. Armou-se uma enorme confusão e comunicando ao capitão o acontecido este decidiu chamar a Força Aérea e de repente vimo-nos sobrevoados por dois FIAT que lançavam foguetes e metralhavam por todo o lado a que se seguiu o helicanhão (o celebre Lobo Mau) que parecia perseguir alguma coisa capim fora aos tiros. Um espectáculo magnífico e terrivelmente assustador. O regresso ao quartel fez-se sem qualquer problema. Tínhamos ainda não seis meses e a coisa parecia compor-se…
Pouco depois vim de férias à Metrópole e voltei a Bissau penso que no dia 6 de Dezembro de 1972 e mal chego à messe a primeira coisa que me dizem foi “Então o teu aquartelamento levou porrada séria esta noite”, andei às voltas a tentar saber o que se tinha passado e fiquei a saber que três furriéis tinham ficado gravemente feridos num ataque ao quartel e tinha havido um morto. Fui logo para o HMBIS na tentativa de saber notícias, mas só consegui ver um dos furriéis e mesmo assim tinha sido operado e estava sedado pelo que só o pude ver, mas não falar. Os outros ainda estavam no bloco operatório. De regresso a Nova Sintra fiquei então a saber que tinham os três sido feridos quando fugiam da cantina, ao perceber-se do ataque, e o morto era um soldado do 4.º Grupo de que só conhecia a alcunha, o “Russo”. O moral no aquartelamento era deplorável. As descrições que me fizeram daquela noite eram simplesmente aterradoras, incluído a visita de uma alta patente do Comando-Chefe (cujo nome não recordo) logo no dia seguinte ao malfadado ataque, em que reuniu as tropas para arengar às massas com apelos ao patriotismo e grandes promessas (que nunca se cumpriram) da vinda de material de construção e arcas frigoríficas e mais não sei o quê…
O ano de 1973 trouxe-nos a ausência temporária (e depois permanente) do nosso capitão, o Armando Cirne, que acabou por ficar em Bissau. Só estávamos dois alferes na companhia, eu e o meu bom amigo Garcia, o alferes do 4.º Grupo, o Neves, tinha morrido logo no início e o 3.º Grupo estava destacado em GãPará, sendo eu o mais antigo fiquei a comandar, aguardando a chegada de um novo capitão. Foi um período relativamente calmo, continuou a actividade operacional e fomos sofrendo alguns ataques que, estranhamente, começavam a tornar-se uma rotina doentia. Ao fim de alguns meses lá chegou o novo capitão. Homem do quadro permanente de seu nome Campante de Carvalho, capitão de artilharia. Teve uma estadia curta em Nova Sintra, penso que cerca de dois ou três meses e acabou transferido para o QG em Bissau. Mesmo assim não se livrou de pelo menos um ataque violento em que caiu uma granada em cima de um poste de sustentação da caserna do 2.º Grupo de combate sem consequências. Novamente fico a comandar a companhia a aguardar novo capitão. Chegou um novo alferes para o 4.º Grupo e quase logo a seguir o Garcia é destacado para as companhias africanas e colocado em S. João, junto a Bolama, foi depois enviado para Guidaje onde passou pelas chamas do inferno que ali se viveu, voltando nós a ficar só com dois alferes. Passaram alguns meses e novo capitão chega a Nova Sintra, desta vez um capitão miliciano de seu nome Machado, homem do Porto.
Os dias iam passando de patrulha em patrulha que iam entremeando com alguns ataques e uma actividade que se repetia, penso que de dois em dois meses, que era o reabastecimento no, pomposamente chamado, porto de Lala. Ficava a cerca de 5 – 6 quilómetros de Nova Sintra e a descarga das caixas, sacos, bidons e mais sei lá o quê era feita à mão com água pelo peito. O reabastecimento implicava picagem da estrada, segurança e com o tempo contado. Se não se fizesse durante a maré cheia as LDM e as canoas iam embora ou então teríamos de ficar a fazer segurança toda a noite até que apanhassem calado para zarpar, apesar de tudo eram umas horas de descompressão e sempre dava para tomar uma banhoca.
Reabastecimento em Lala
Neste ano de 1973 chegou ao aquartelamento um novo alferes para comandar o 2.º Grupo substituindo do Garcia, o Felício, homem de Castro Daire que já tinha cumprido parte da comissão no Ingoré, bom amigo. Foi nesse ano que surgiu a necessidade de abrir novo poço para o abastecimento de água potável. Para isso foi necessário abrir a estrada Nova Sintra - S. João para transportar o material e pessoal que ia tratar do dito poço o que significou dias e noites de segurança, de ficar de emboscada de caminhadas sem fim. Ao mesmo tempo o novo comandante do batalhão em Tite, o Tenente-Coronel Almeida Mira, decidiu que se deveria abrir a estrada Tite – Nova Sintra o que duplicou os trabalhos do pessoal. Entretanto nova evolução nos alferes. O Felício terminou a comissão e vem novo alferes para o seu lugar, bem como um outro para o 3.º Grupo, o Domingues. O 3.º Grupo que tinha estado destacado em GãPará regressou a Nova Sintra, era furriel deste grupo o Carlos Barros que tem escrito algumas histórias no blog. A abertura da estrada para Tite trouxe ainda mais riscos e, como seria de esperar, começaram a acontecer mortos e feridos. No meu grupo um dos picadores, o Guedes, fez rebentar uma mina antipessoal e foi atingido na cara tendo ficado parcialmente cego. Foi um tempo terrível o que levou a abertura desta estrada onde para além do Guedes não houve mais nenhuma baixa na nossa companhia felizmente.
Muita coisa aconteceu durante esse ano de 1973 e seria fastidioso enumerar tudo, no entanto não poderia deixar de referir o período a partir de Março em que começamos a deixar de ter apoio da Força Aérea, os Strela tinham entrado na Guiné e o PAIGC fazia bom uso deles.
Depois disto passou o tempo e chegámos a Abril de 1974. As coisas acalmaram e depois pararam. A guerra tinha acabado assim de repente, até custava a acreditar. Em Julho de 74 recebemos um grupo grande de guerrilheiros, comandados pelo major (pelo menos dizia que era…) Quinto Cabi, todos armados até aos dentes. Dormimos uma noite em Nova Sintra com os guerrilheiros e partimos para Tite, depois no mesmo dia Enxudé, Bissau, Cumeré e finalmente o voo Bissalanca – Lisboa.
E fica alinhavada a minha passagem pela Guiné, com o andar das coisas escreverei mais alguma coisa.
Abraço
Ramiro Figueira
Fotos: © Ex-Alf Mil Op Esp Ramiro Figueira - Todos os direitos reservados
********************
2. Comentário do coeditorCaro Ramiro Figueira, sê bem-vindo à tertúlia do nosso Blogue.
Muito obrigado pela tua apresentação, que nos trouxe uma panorâmica muito precisa, embora resumida, da actividade da tua Companhia. Na verdade não foi fácil para a maioria de nós cumprir a sua comissão de serviço e no vosso caso foi um osso duro de roer. Referes as habituais e sempre inoportunas substituições de capitães e alferes. Na minha Companhia, um alferes, falecido em combate, teve dois substitutos; capitães, comandantes de Companhia, tivemos 6. Em todas as Unidades, enquanto isso, os alferes assumiam o Comando das Companhias e os furriéis comandavam Pelotões. No teu tempo já quase não se encontrava um capitão do QP no comando das Companhias, eram os milicianos, feitos capitães à pressa, a assumir a responsabilidade de comandar mais de 150 homens, tivessem ou não jeito para a guerra. Estou convencido que a maioria não tinha.
Voltando a ti, vens juntar-te ao grupo de Médicos existente na tertúlia, alguns mesmo antigos Alferes Médicos. Se não esquecer de nenhum, serão: o ex-Alf Mil Médico Adão Cruz, o ex-Alf Mil Médico Amaral Bernardo, o ex-Alf Mil Art C. Martins, o ex-Alf Mil Cav Ernestino Caniço, o ex-Alf Mil At Francisco Silva, o ex-Alf Mil Médico Mário Bravo e o ex-Alf Mil At Vítor Junqueira.
Lembro que estamos disponíveis para receber e publicar o que tiveres para nos contar da tua vivência na Guiné, incluindo fotos, que assim ficarão a fazer parte do nosso espólio. Será o nosso testemunho enquanto antigos combatentes.
Só por uma questão estatística, és o 863.º elemento da nossa tertúlia, que inclui 120 companheiros e amigos, que nos tendo já deixado, continuam cada dia mais presentes.
Deixo-te o habitual abraço de boas-vindas em nome do editor e fundador do Blogue, Luís Graça, dos coeditores, dos colaboradores permanentes e da tertúlia em geral.
Abraço
CV
____________
Notas do editor:
- [1] - A outra vítima mortal do acidente com o dilagrama, em 10 de Julho de 1972, foi o Soldado Atirador José António Mata da CART 6250/72
- [2] - Vd. poste de 5 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21517: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (10): Relembrando a morte, por acidente com um dilagrama, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo
- Mensagem de 20 de Junho de 2022 do nosso camarada Ramiro Figueira, enviada ao Blogue através do Formulário de Contacto do Blogger:
Boa tarde
Chamo-me Ramiro Figueira. Fui alferes miliciano de Operações Especiais na 2.ª CART do BART 6520/72 e sempre em Nova Sintra, sector do Quínara, com oa comando do batalhão em Tite.
Tenho seguido o blog há anos e lendo os testemunhos que lá vão colocando, mas até agora não aderi.
E é por isso que aqui venho contactar convosco.
Um grande abraço
Ramiro Figueira
- Mensagem de resposta com data de 21 de Junho:
Chamo-me Ramiro Figueira. Fui alferes miliciano de Operações Especiais na 2.ª CART do BART 6520/72 e sempre em Nova Sintra, sector do Quínara, com oa comando do batalhão em Tite.
Tenho seguido o blog há anos e lendo os testemunhos que lá vão colocando, mas até agora não aderi.
E é por isso que aqui venho contactar convosco.
Um grande abraço
Ramiro Figueira
- Mensagem de resposta com data de 21 de Junho:
Caro camarada de armas Ramiro Figueira
Permite-me o tratamento por tu, usual no nosso Blogue pelo facto de sermos irmãos de armas e termos pisado a mesma terra vermelha da Guiné.
Muito obrigado pelo teu contacto e pela tua vontade de aderires à nossa tertúlia.
Do teu Batalhão temos alguns camaradas, e da tua Companhia, particularmente, o ex-Fur Mil Carlos Barros, com vários textos publicados. Podes ver aqui:
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Carlos%20Barros
A fim de seres recebido formalmente na tertúlia, manda-nos uma foto actual e outra, fardado, do teu tempo de combatente. Podes, a título de apresentação, falar de ti, julgo teres sido atirador, contares-nos alguma história vivida na Guiné e enviar-nos algumas fotos alusivas, acompanhadas das respectivas legendas.
Sendo tu nosso leitor habitual, saberás que o blogue tem como fim o registo de memórias escritas e fotográficas dos antigos combatentes da Guiné, no entanto confere aqui "O ESSENCIAL SOBRE O BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA GUINÉ": (https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/p/o-essencial-sobre-o-blogue-luis-graca.html).
Fico ao teu dispor para alguma dúvida suscitada.
A tua correspondência deverá ser enviada simultaneamente para luis.graca.prof@gmail.com e para carlos.vinhal@gmail.com para teres a certeza de ser lida pelo Luís e por mim.
Recebe um abraço e os votos de boa saúde.
Carlos
- Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23249: Tabanca Grande (534): António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Bula e Pelundo, 1969/71). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 861
Vd. também poste de 18 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23275: (In)citações (206): Maria Ivone Reis (1940-2022), a primeira enfermeira paraquedista que eu conheci, em 1967, no Porto (Rosa Serra)