E vai daí... Por edital, soube que me deveria apresentar em Mafra, na Escola Prática de Infantaria (EPI), a fim de frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).
Saí de Ponte de Sôr, pela matina e no comboio. Chegado a Lisboa, pedi informações para ir para o Martim Moniz, local donde sairia a camioneta para Mafra.
A confusão, nesta louca cabecinha, era mais que muita (primeira vez na grande cidade) e, habituado que estava a ver muita gente junta aquando das feiras, pensei:
— Há por aqui uma como a nossa de outubro!!!
Bom, mas lá fui ter e parti para o destino... E cheguei enquanto no entretanto comi as duas sandes que a minha querida mãe preparara para a viagem.
Mafra, surpreendeu-me, quando logo ali mirei o Mosteiro.
— Um quartel? — duvidei.
Na entrada, havia um enorme grupo de juventude de cabelinhos cortados à inglesa curta e que esperava, e a eles me juntei.
Lá chegou a minha hora e, preenchidos que foram, uns papéis, mandaram-me para o alfaiate que tirava medidas olhando-nos de alto abaixo, o que significou que recebi umas roupitas bem bonitas por acaso: um bivaque onde cabiam duas cabeçorras, duas camisas cinzentas n.º 54 (e eu até aí, usava 42), dois pares de calças que me chegavam dos pés à cabeça, duas botas 47 (e eu calçava 41)... e por aí fora.
Na caserna, assim chamavam ao quarto luxuoso, um 5.º andar e 183 degraus para subir, onde me colocaram, e onde, para me não sentir só, deixaram-me acompanhado por mais 151 recrutas que se tornaram meus amigos.
No dia seguinte reuniram-nos num espaço rectangular, que ainda hoje existe, lá atrás do convento e a que chamaram (e chamam) "a parada".
Éramos, talvez uns três mil, que sairiam dali como oficiais ou sargentos milicianos. Juntaram-nos depois, sentados no chão, e rodeando o oficial instrutor, cá fora, ali ao lado esquerdo de quem entra, e esclareceram-nos sobre as normas em vigor, para contactos eventuais, com os residentes civis, e também como distinguir os postos militares.
Ficámos a saber, que a coisa começava desta forma: o início e por aí fora: recrutas; soldado; 1.º cabo; furriel; sargento; aspirante; alferes; tenente; capitão; etc., etc., etc.; general; marechal; e, finalmente, 1.º cabo miliciano...
Contentíssimo fiquei. Então não é, que o filho do meu pai iria alcançar o mais alto posto, lá para agosto de 1964 e já especialista de infantaria?!... E 1.ª classe em metralhadora Dreyse 7,9? E 3.ª classe em espingarda mauser 7,9? E 1.ª classe em comportamento? E atirador, terminada a instrução complementar?
Aparvalhado ainda, com o facto de ontem ter visto, Lisboa, aviões dos grandes e barcos a atravessar um rio a que ouvi chamarem Tejo, e ter ainda a possibilidade de (e também, pela primeira vez) poder ir ver o mar, as praias da Ericeira e mais agora esta notícia, plena de responsabilidades... Olhem, fiquei de tal maneira entontecido que julgo não ter voltado a ser o humano normal de antes.
Continências e divisas, foram-nos sabiamente mostradas, bem como o manejo duma espingarda, o seu desmanchar em bocados e a consequente limpeza com o escovilhão.
No 3.º dia, e após o pequeno almoço, começou a preparação para que pudéssemos vir a ser militares disciplinados, bravos, heróicos e que, acima de tudo, voltássemos inteiros: corridinhas na tapada, rastejar no meio da trampa, percursos de combate, saltos para o galho, jogos de brutobol, tiro na carreira do dito, actividades desportivas com vários empecilhos no meio, audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão... Enfim, toda uma panóplia útil que só mais tarde entendemos ter sido preciosa para que aqui e agora estejamos ainda semivivos e, ah!, sempre acompanhados pela fiel Mauser e de capacete enfiado, no local próprio de enfiar capacetes.
Regressávamos depois e quase na hora do repasto. Íamos à suite tomar um banhito rápido e mudar de fato. Toca a corneta e ala que são horas de almoço.
Boas refeições, sim senhor e até vinho havia e da cor que entendêssemos, embora eu achasse que aquilo era mais água e cânfora, substância que, e ao que diziam, transformava em eunucos, embora provisoriamente, quem bebia a zurrapa.
A 4 de julho de 1964, após portanto 5 meses e 10 dias e com aproveitamento e todos os créditos alcançados, consideraram-me então, apto, ou seja, vais tirar a especialidade de "atirador" e, como ordens não se discutem, decidi-me e fui para Tavira.
Terra linda que continuo a visitar. Linda praia, onde até a água era e é, quente, comparada com a da Ericeira, de que tinha provado o sal. Boas gentes, embora e nesse período, as tenha considerado más com'ás cobras, tendo em conta que quando os pobres militares, sedentos e até com alguma fomita, colhíamos algumas amêndoas, alfarrobas ou figos, ou ainda, lhes bebíamos umas gotas nos escassos poços existentes, iam de imediato participar ao quartel e algumas vezes lá tínhamos que desembolsar os 25 tostões para compensar o prejuízo.
A miséria patrimonial deste povo algarvio era notória e justificava a queixa. O turismo mal começara e aquelas frutas e água eram o seu ouro.
No que se refere à instrução militar, foi o acrescento próprio, para quem já estava treinado.
Novidade apenas para o "deitá...á...á...r!" nas salinas. Lindo de se ver, creiam. E nós, vestidinhos, lavadinhos e engomados, calçadinhos, botas engraxadas e reluzentes, espelhando o sol quente desse mês de julho, obedecíamos, está claro, só para não nos considerarem desobedientes.
Saíamos enlameados, cheios de lodo até aos cabelos, mas mais fortes alguns, aqueles que engoliam alguma distraída enguia. Até nisso, a sorte me foi madrasta já que o único brinde que me calhou foi uma enorme serpente que resolveu aninhar-se no bolso esquerdo das calças.
À tardinha dispensavam-nos e podíamos então confraternizar mas as tascas locais, onde sempre comíamos generosas doses de grandes conquilhas, ou jaquinzinhos atados pelo rabo e em grupos de 5 ou 6, regados com aquele saboroso tintol carrascão de tal forma que até os dentes ficavam coloridos.
Alguns mais afortunados, proporcionavam, a outros, passeios e assim conheci, Quarteira, Armação de Pera, Albufeira e Faro.
E em 30 de agosto de 1964, fui promovido a 1.º cabo miliciano, pois então... Começa aí um percurso agitado, com constantes mudanças, assim estilo "faça férias cá dentro" e foi o que me valeu para ficar bem a conhecer algum deste País, que eu julgava ser só o Alto Alentejo:
1.º - Amadora (Regimento de Infantaria 1);
2.º - Lamego (Rangers);
3.º - Tancos (Minas e Armadilhas)
4.º - Lisboa (Grupo C. Trem Auto)
5.º - Abrantes (Regimento Infantaria 2)
6.º - Tomar (Regimento Infantaria 15)
7.º - Bissau e o resto (CCAÇ 1422).
À Amadora cheguei... nem ao almoço tive direito e mandam-me avançar, de forma a estar, e sem falta, no dia seguinte em Lamego.
Voei para Sta. Apolónia, fui para o Porto, daqui para a Régua e o certo mesmo é que às 8,30 entro no novo poiso.
Bambúrrio, dei logo de caras, à porta de armas, com um herói da minha terra, combatente já com uma comissão prestada em Angola, 2.º sargento e monitor agora das tropas a preparar. Trocámos abraços, continências e amigáveis palavras, e logo ali ele próprio se disponibilizou para me ajudar no que eu precisasse.
A caserna era óptima e fiquei em lugar privilegiado de cama. Fora dos últimos a chegar e não houve hipótese de arrebanhar melhor. Havia só que subir três beliches, até chegar ao 4.º, onde dormia e com uma vista fantástica para os barrotes em madeira, que até me davam para estender a roupa molhada e esta, por sua vez, passava as gélidas noites, a afagar-me a tromba, durante os raros momentos que ali estacionei, pois que os treinos eram constantes, a qualquer momento, prolongados, estafantes...
Foram tempos duros, mas uma óptima preparação para as dificuldades que vieram depois. Ficou-me gravada, a frase: "Nunca se sabe", resposta que sempre ouvíamos a qualquer pergunta que fizéssemos.
Lá de quando em quando, também nos convidavam a ir até lá abaixo à City e então era um fartote... Que belas pingas, bom presunto (coisa da qual eu já ouvira falar mas não provara qu' a crise abundava com'agora) e até as pessoas eram simpáticas prá rapaziada fardada.
No aspecto da preparação militar, gostei manning d'atravessar o rio dum lado pró outro, agarrado a uma corda e com os pés assentes noutra e a água lá em baixo, revolta com'ó caraças fez-me perguntar a mim próprio:
— Porqu'é que não trouxeste o calção de banho em vez da farda de trabalho?
Tancos desejava-me ardentemente e as Minas e Armadilhas que as amasse... e a Barquinha ali tão perto e com tão boa comida e melhor buída...
Recordo com alguma emoção, convenhamos, aquele dia em que cá em baixo, junto ao Castelo de Almourol, me pediram atenciosamente para experimentar um pedaço de massa explosiva, a que chamavam farinheira. Colocada que foi, debaixo dum pedregulho de todo o tamanho, a que juntei depois um detonador, mais um cabo eléctrico com 50 metros que trouxe até cá ao alto e liguei a uma caixinha com alavanca que pressionei...
O estardalhaço do rebentamento foi impressionante, levantei a cabeçorra e é nessa altura que vejo no ar aquele monstro redondo a dirigir-se a jacto, precisamente para o local onde me encontrava e a quem eu disse:
— Trá-la-rai, la-rai, la-rai... falhaste, pá, paciência!
Acabara, sim, por derrubar uma pobre e velha árvore centenária.
Passou-se, e eis senão quando, me vejo a caminho de Lisboa, Avenida de Berna, Grupo de Companhias Trem Auto, o que me confundiu do porquê. E não só a mim, também o senhor sargento da Secretaria se espantou e exclamou:
— Ora , porra, pedi um cabo miliciano condutor e mandam-me um atirador?! Mas... — continuou ele — aguente aí, ó patrício, você é da Ponte Sôr, eu sou de Alter, temos de resolver isto.
E, após perguntar-me se conheço a capital e eu respondido "negativo", decidiu que eu devia ficar por ali, até que fosse rectificado o lapso, o que deveria demorar um mês.
Sem função atribuída, saía, à civil, de manhã e voltava para dormir, às vezes, num quarto com mais sete militares e cinco ratazanas, das maiores que já vi.
Turismei... Vi cinema no Piolho, Condes, Éden, S Jorge... Conheci, a desoras, as boas zonas: Intendente, Cais Sodré, Bairro Alto, Alfama, Mouraria, Madragoa... Vi campos de futebol, com relva imagine-se... O aeroporto, Cabo Ruivo e os hidroaviões, comboios em Santa Apolónia e Rossio... Fui a Cacilhas... Fui ao Jardim Zoológico, Parque Mayer, Parque Eduardo VII, Feira Popular... Comi bifes na Solmar, Portugália, Império, Ribamar..., sopa de marisco na Rua de S. José, iscas na Travessa do Cotovelo, bacalhau com grão no João do Dito... Bebi na Ginginha e no Pirata e uns tintos no Quebra Bilhas...
Até que um dia me transmitem:
— Vais para Abrantes.
Bati o pé e disse:
— Não vou... Não vou... Não vou...
E fui.
Em Abrantes, estava mais perto de casa, o que me agradou. Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o oficial instrutor, ensinando novos militares. Por que alguns de nós, os recentes cabos milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.
Entretanto em abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em unidade operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato (sic)" , fui promovido a senhor furriel miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que, fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de agosto desse ano.
Quando digo "embarcaram comigo", em vez de "embarquei com eles", deixem que explique: quer o Comandante, quer os restantes oficiais e sargentos, haviam partido uma semana antes, de avião, ficando apenas connosco, um senhor sargento-ajudante, (pessoa com alguma idade e peso e que era chefe de secretaria) e nós próprios, os furriéis milicianos e toda a restante e valorosa CCAÇ 1422, claro.
A ele pertenceria comandar-nos antes do embarque, no desfile perante as autoridades e perante os nossos familiares presentes. No último momento, nomeia-me para o fazer... Ordens não se discutem, cumpri.
Correu lindamente, marchámos com garbo. Depois? Bom..., depois a vinte e tal de agosto de 1965 chegámos a Bissau, para ganhar a guerra e preparar zonas de turismo para que os vindouros ali passassem férias descansadas.
Não precisam agradecer.
Disse.
Veríssimo Ferreira (**)