sexta-feira, 22 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

A granada defensiva M26A1
m/63 (
Luís Dias, 2010) (**)
 

1. Quantos milhares de toneladas de munições,  granadas, minas, bombas e outros engenhos mortíferos consumiu a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial (1961/74) ? (*)

Ninguém saberá responder a essa pergunta, nem do nosso lado nem muito menos do lado do IN de outrora...  

Quando muito,  há dados  parciais das NT, para alguns anos e teatros de operações (nomeadamente, Moçambique, 1970, 1971 e 1972), no que respeita ao número e tipo de munições e granadas consumidas por (e/ou fornecidas a) o exército.

Lá teremos que recorrer, mais uma vez, a um estudioso como o ten cor na reserva, Pedro Marquês de Sousa, doutorado em história pela FCSH / Universidade NOVA de Lisboa (2014), autor do livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.).  Escreve o Pedro Marquês de Sousa (op. cit., pág. 300): 

" O fornecimento de munições às tropas era um dos grandes desafios para a logística militar, pelo elevado peso e volume deste tipo de cargas, cujo transporte exigia ainda medidas especiais de segurança." 

Sabe-se, por outro lado, que "os depósitos de armazenamento em cada uma das frentes tinham de manter os níveis adequados em face do consumo elevado (sic) pelas unidades de combate".  Só em Moçambique, por exemplo, existiam oito complexos logísticos (Lourenço Marques, Beira, Tete.Vila Cabral, Mocuba, Nampula, Porto Amélia e Mueda), cada um deles devendo ter um "stock" crítico de material de guerra (munições, granadas e minas) (Op cit., pág. 302).

Ignora-se, por exemplo, quantos complexos logísticos deste tipo (ou depósitos de munições) existiam no TO da Guiné e onde estavam localizados... Pelo menos, deveria haver um ou mais em Bissau...

2. Ficamos com uma ideia aproximada dos consumos médios de munições e granadas, também por via dos  fornecimentos. 

Veja-se, por exemplo, para o caso de Moçambique, e para o ano de 1972, um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (Adaptado por nós, op cit, pág.301):
  • Munições 7,62 mm > 2152,3
  • Granadas de mão defensivas > 4,2 
  • Granadas de mão ofensivas > 41,8
  • Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
  • Granada de morteiro 81 mm > 5,7
  • Minas A/P (antipessoais) > 43,2 
No entanto, o consumo em operações era muito superior a estas quantidades (Vd. Quadro 1)_




Com base nestes números (Moçambique, em 1970 e 1971), o autor faz (indevidamente, quanto a nós, já que a média estatística pode ser altamente enganadora) uma estimativa do consumo médio anual de munições e granadas de uma "companhia operacional do Exército" (tipo "companhia de caçadores") (Op cit., pág. 302):

  • Munições 7,62 mm > 34000
  • Granadas de mão > 260
  • Granadas de morteiro > 200
  • Granadas foguete bazuca 8,9 > 30
Embora o autor ressalve que estes "valores médios" (sic)  "variavam naturalmente conforme a zona e a (...)  condição"  da unidade ou subunidade operacional  (companhia de intervenção, companhia de quadrícula, etc.), achamos que são valores que tanto podem pecar  por excesso como por defeito...  Não nos parece, todavia,  que se possam extrapolar, facilmente  para um teatro de operações na Guiné, com as suas especificidades... 


3. O consumo de munições podia variar conforme o tipo de acção  do IN e a sua duração, o treino, a disciplina de fogo das NT,  o armamento, a missão, etc.

Por exemplo, numa emboscada de vinte minutos, no mato, numa picada ou numa estrada, uma companhia ou destacamento (em geral, três grupos de combate), 60/70 (e nunca 90) G3 podiam despejar no máximo 4 carregadores de 20 cartuchos cada uma, o que daria uma média de 4800/5600 cartuchos...  

Depois havia, por cada grupo de combate (estou a pensar numa companhia de intervenção como a minha, a "africana" CCAÇ 12),  mais as seguintes armas com os respetivos apontadores e municiadores (estes também equipados, em geral, com a G3, enquanto o apontador levava uma pistola Walther 9mm):

  • 3 apontadores de dilagrama (um por secção de 9 ou 10 elementos);
  • 1 apontador + 1 municiadores de metr lig HK 21 (de fita);
  • 1 apontador + 1  municiador de LGFog 8,9;
  • 1 apontador + 1 municiador de LGFog 3,7;
  • 1 apontador + 1 municiador de morteiro 60...

Em resumo, três Grupos de Combate (mesmo completos) nunca queriam dizer 80 ou 90 espingardas automáticas G3, uma arma poderosa e fiável, melhor que a AK47, na opinião do antigo sargento 'comando', com 4 comissões, na Guiné e em Angola, o nosso querido amigo e camarada, Mário Dias (***), e que tinha com uma cadência  (teórica) de 600/650 tiros por minuto (****).

Por sua vesz, e desde que não encravasse, a HK 21 (melhor só a MG42, mas muito mais pesada, c. 12 kg.) podia despejar  centenas de munições 7,62 mm na resposta a uma emboscada... Mas em geral a malta tinha que saber  gerir as munições, para poder chegar ao quartel com segurança...

Já na resposta aos ataques ao quartel, destacamento ou tabanca em autodefesa, de uma hora, cada G3 podia facilmente consumir 8 ou mais carregadores, de 20 munições cada... Milícias e civis em autodefesa tinham muito menos disciplina de fogo do que os miliatres... 

Por outro lado, nas flagelações à distância (com morteiro 82 e 120, canhão s/r,  foguetões 122 mm), era disparatado fazer tiro com a G3 (cujo alcance prático era de 300 metros)... Mas a verdade é que não havia cão nem gato (sem ofensa para nenhum camarada...)  que não aproveitasse para fazer o gosto ao dedo, entrincheirado nos abrigos ou valas...

No mato, nos golpes de mão ou ataques das NT a objetivos IN (acampamentos, bases, etc.), a história era outra, e a disciplina de fogo era fundamental.

E depois havia a instrução e o treino na carreira de tiro... Não me lembro de alguma vez ter sido feito tiro na carreira de tiro de Bambadinca, depois de nós termos vindo do Centro de Instrução Militar de Contuboel em 18 de julho de 1969... Nem me lembro, no meu tempo,  de haver restrições ao consumo de munições 7,62 mm... Tal como não me lembro quantas munições 7.62 mm levava (e quanto pesava) o respetivo cunhete de madeira... Pode ser que algum dos nossos quarteleiros se lembre... (e tenha fotos que nos possa facultar).

Pedro Marquês de Sousa cita, nas páginas 302/303 do seu livro, a Op Nó Górdio, que decorreu no Norte de Moçambique,  de 1 de julho e 6 de agosto de 1970, que terá envolvido mais de 8 mil militares, e uma complexa logística. Aponta para os seguintes consumos nessa operação:
  • Géneros alimentícios >  590 toneladas;
  • Rações de combate > 260 toneladas / 130 mil rações;
  • Gasolina > 340 mil litros;
  • Gasóleo > 460 mil litros;
  • Munições > 158 toneladas.

4. Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 880 toneladas de abastecimentos ao fim de uma comissão de 22 meses (40 em média por mês), incluindo 15,4 toneladas de munições (0,7 t por mês), o que em termos relativos representava apenas 1,75% do total (*****).


 Enfim, ainda falando de consumos de munições, granadas, minas, etc., não temos números relativamente à artilharia no CTIG (no final da guerra, havia mais de uma centena de obuses 10,5e 14  e peças de artilharia 11,4, espelhados pelo território), nem relativamente à FAP e à Marinha...  

Pode ser que alguma camarada destas armas satisfaça a nossa curiosidade (que é meramente intelectual, ao fim destes anos todos)...

Falaremos, entretanto,  de alguns consumos parcelares  da FAP (bombas, cartuchos, foguetes, napalm...) num próximo poste desta série.

__________



(...) É muito vulgar e frequente tecerem-se comentários depreciativos à espingarda G3, quando comparada à AK47. Em minha opinião, nada mais errado. Analisemos, à luz das características de cada uma e da sua utilização prática, os prós e contras verificados durante a guerra em que estivemos empenhados em África:

Comprimento: G3 - 1020mm |  AK47 - 870mm;

Peso com o carregador municiado: G3 - 5,010Kg |  AK 47 – 4,8Kg;

Capacidade dos carregadores: G3 – 20 cartuchos | AK47 – 30 cartuchos;

Alcance máximo: G3 – 4.000m |  AK47 – 1.000m;

Alcance eficaz (distância em que pode pôr um homem fora de combate se for atingido):
G3 – 1.700m |  AK47 – 600m;

Alcance prático: G3 – 400m |  AK 47 – 400m

(...) Se, por um lado, temos mais tiros para dar sem mudar o carregador, por outro lado esse mesmo facto leva-nos facilmente, por uma questão psicológica, a desperdiçar munições. E todos sabemos como o desperdício de munições era vulgar da nossa parte apesar de os carregadores da G3 serem de 20 cartuchos.

O usual era, infelizmente, “despejar à balda” sem saber para onde nem contra que alvo. Sem pretender criticar a maneira de actuar de cada um perante situações concretas, eu, durante todas as acções de combate em que participei ao longo de 4 comissões, o máximo que gastei foi um carregador e meio (cerca de 30 cartuchos). Por tal facto, em minha opinião, a dotação e capacidade dos carregadores da G3 é mais que suficiente, além de que os próprios carregadores são mais maneirinhos e fáceis de transportar que os compridos e curvos carregadores da AK47. (...)

(****) Vd. poste de 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

(*****) Vd. poste de 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23449: Os nossos seres, saberes e lazeres (513): Retomadas as festividades à Senhora de Antime, em Fafe (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414, Catió (1963/64) e Cabo Verde (1964/65), com data de 18 de Julho de 2022, com a notícia das festividades à Sanhora de Antime, retomadas após o intervalo de dois anos por causa do Covid-19:

Bom dia caro camarada,
Para o nosso blogue aqui vai acontecimento de há longos anos importante em Fafe.

Um grande abraço,
Manuel Castro
(Tabanqueiro n.º 793)


A SENHORA DE ANTIME

A cada segundo domingo de Julho, em Fafe celebra-se o culto a Nossa Senhora de Antime, festa secular que, desconhecendo-se embora o seu início, sabe-se que já existia em 1736, isto é, há cerca de 300 anos.

Já por volta de 1860 Camilo Castelo Branco em “Memórias do Cárcere” descrevia: “A Senhora de Antime é de pedra e pesa com a charola vinte e quatro arrobas. Os mais possantes moços pegam ao banzo do andor…”

A tradição mantém-se tendo-se transformado na maior manifestação de fé deste concelho e uma das maiores do Minho. Dado a pandemia nos dois anos anteriores esteve suspensa sendo retomada este ano.

Assim, às dez horas saiu em procissão da Igreja Matriz de Fafe a charola da Senhora das Dores, aos ombros dos Bombeiros Voluntários de Fafe, acompanhados pelos grupos de escuteiros do concelho, em direcção à ponte de S. José, fronteira das freguesias de Fafe e Antime, onde se encontrará com a procissão que acompanha a charola da Senhora da Misericórdia, levada por dez valentões e uma multidão de fiéis.

Seguem daí rumo à Igreja Matriz, num percurso de mais de três quilómetros, ladeado de fiéis e de curiosos que à passagem aplaudem as Senhoras e após paragem em frente à Câmara Municipal para a recepção das autoridades municipais e largada de pombos, seguem para o seu termo na Igreja Nova de São José.

À tarde, pelas dezoito horas, dar~se-á o regresso da Senhora da Misericórdia à sua residência, Igreja de Antime.

Esta é uma festa religiosa que, como quase todas, tem a sua parte profana cujo início antecede a religiosa. Também ela de grande fama e muito concorrida.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23434: Os nossos seres, saberes e lazeres (512): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (59): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 4 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23448: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXVI: Brasil, Rio de Janeiro, 1989, 2015, 2020



Brasil, Rio de Janeiro > 2020 > No alto do Pão de Açúcar, com a Praia Vermelha, na Urca, e a praia de Copacabana, ao fundo.


Brasil, Rio de Janeiro> 2020 > Uma favela, tirada do alto do navio de cruzeiros, à distância, no cais de Mauá.
 
Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Vinicius de Moraes e Helo Pinheiro... A Garota de Ipanema é a canção brasileira mais conhecida em todo o mundo, de tal icónica que tornou Ipanema, a belíssima praia carioca,  um dos maiores cartões   do Rio de Janeiro e de todo o Brasil. A música composta, em 1962, por Tom Jobim, génio da bossa nova, em parceria com o poeta Vinícius de Moraes, faz também parte do nosso imaginário lusófono. Foi o próprio Vinícius de Moraes quem,  três anos mais tarde, revelou o segredo bem guardado: a musa de inspiração, a "garota de Ipanema", era Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto Pinheiro, ou simplesmente Helô Pinheiro, uma adolescente de 17 anos em 1962.

Foto´(Vinícius de Moraes e Helo Pinheiro): Créditos: Divulgação. Fonte: Letras > Quem é a Garota de Ipanema (com a devida vénia...)



António Graça de Abreu, foto à esquerda: (i) docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 310 referências no blogue; (vi) texto e fotos (sem legendas) enviados em 15/7/2022 ]


Rio de Janeiro, Brasil, 1989, 2015, 2020


por António Graça de Abreu (*)


O Rio de Janeiro é a natureza feita cidade (Stefan Zweig)


Gosto do Rio de Janeiro. Três vezes cirandando pela grande cidade, como diria Zweig, recortada pelo esplendor da natureza.

Em 1989, meio à aventura, um mês no Brasil, de lugar em lugar num velho Wokswagen Golf, e a minha tia Hermínia, irmã do meu pai, com muitos anos de terra brasileira, a amedrontar-me “ai, o menino, ai o menino.” E não houve ladrão para assustar e atacar, por Niterói, Cabo Frio, Búzios, Petrópolis, Nova Friburgo. Depois Paraty e Angra dos Reis. Desbravar o grande Brasil e ser feliz em lugares de encantamentos breves, em hotéizinhos de passagem na berma da estrada.

De volta ao Rio de Janeiro, em 2015, ao encontro reconfortante da família, primos do meu sangue, com uma conferência pelo meio na Universidade de São Paulo. Outra vez, mergulhar sozinho na cidade e nas ondas límpidas de Copacabana. Sem ladrão, nem assalto, o meu pobre aspecto de meio ventrudo septuagenário, careca e feio, quase assustando o homem da favela sobranceira que desce para o mar procurando angariar sustento na praia, e que devia pensar que o ladrão era eu.

2020, outra vez o Rio de Janeiro. Desta vez, cheguei majestosamente de barco, entrando ao alvorecer pela baía de Guanabara, pintada pela brisa da manhã a azul escuro e prateado. Foram dois dias para me aconchegar na cidade, subida ao Pão do Açúcar, compras em Copacabana, ida ao Maracanã onde joga o Flamengo e o Fluminense, mais uma caminhada curta pelo centro do Rio com breve visita à estranha Catedral e a descoberta, junto ao navio, no cais de Mauá, do original Museu do Amanhã, do arquitecto espanhol Santiago Calatrava, o mesmo da nossa Gare do Oriente.

Tempo de praia, molhar o corpo no sal de Copacabana. Porque o mar estava agitado, com ondas altas, procurei um recanto mais sossegado, a praia Vermelha, na Urca. Meus olhos deram de chofre em umas tantas moças pouquíssimo ataviadas de roupa, usando fio dental da cabeça aos pés, beldades perfeitas, descendentes dessas índias tamoio de antanho à mistura com sangue quente português, ninfetas do mar e da terra, companheiras e amigas, superiores aos homens, todas netinhas da "leda e formosa" garota de Ipanema, das travessuras de Vinicius de Moraes e Tom Jobim.

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela, menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
A caminho do mar.

Moça do corpo dourado
Do Sol de Ipanema
O seu balançado
É mais que um poema
É a coisa mais linda
Que eu já vi passar.

__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 28 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23390: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXV: Teruel, Aragão, Espanha, 2017

Guiné 61/74 - P23447: Historiografia da presença portuguesa em África (326): Aviação na Guiné (1925-1946) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de uma despretensiosa resenha de elementos encontrados sobre o primeiro período da aviação na Guiné, incluiu-se a intervenção da aviação comercial, a presença da Pan American Airways e os seus Clippers que amaravam em Bolama, ainda me falta encontrar imagens da Pan Am em Bolama, já as vi, não sei aonde. Estes hidroaviões amaravam onde é hoje o Oceanário, os viajantes vinham da Portela de Sacavém até ao Tejo e daqui partiam para a América mas passando por África. São meras recordações sobre um transporte aéreo que só se tornou regular na Guiné muito mais tarde. Mesmo na década de 1950, quando os voos se tornaram mais regulares, os viajantes saíam de Lisboa em direção a Dacar, havia transbordo para Ziguinchor, o resto era feito de automóvel.

Um abraço do
Mário



Aviação na Guiné (1925-1946)

Mário Beja Santos

Ia a caminho da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, e meditando sobre matérias ainda não pesquisadas relacionadas com os meios de transporte na antiga colónia, deu-me para pesquisar os passos pioneiros da aviação. Encontrei uma comunicação alusiva às comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné que me ajudou à cronologia dos acontecimentos, e de seguida uma carta das ilustrações referentes às viagens que ocorreram neste período.

Tudo começa em 1925, Pinheiro Corrêa, Sérgio da Silva e Manuel António ligam Lisboa a Bolama com um avião Breguet XIV, motor Renault 300 CV, viagem de 31 horas e 31 minutos. Foi o evento do ano. Houve festa rija, discussões e discórdias quanto banquete dedicado a estes pioneiros da aviação. Quando estava a preparar o livro Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné, encontrei aspetos trágico-cómicos. A viagem ficou ilustrada, como se pode ver.

Tenente Sérgio da Silva, Capitão Pinheiro Corrêa e 1.º Sargento Manuel António, antes da segunda partida, na Amadora
Recorte de "O século", com a notícia que O Presidente da República recebeu os aviadores, antes da partida
Chegada dos aviadores a Bolama, no dia 2 de abril onde aterraram no Campo de Aviação Sacadura Cabral
O Governador da Guiné, Tenente-Coronel Velez Caroço, na receção
Monumento em Farim dedicado aos pilotos portugueses
Em 1927, três italianos ligaram Bolama a Pernambuco. Nesse mesmo ano, Sarmento de Beires e outros realizaram a primeira travessia aérea noturna do Atlântico Sul em hidroavião Dornier, motores Lorraine 450 CV, fazem Lisboa-Bolama, confirmam os métodos portugueses de navegação aérea. Na etapa Bubaque-Ilha de Fernando de Noronha foram percorridos 2595 quilómetros em 18 horas e 11 minutos.

E assim se chegou a 1928, teria lugar a primeira viagem Lisboa-Guiné-S. Tomé-Angola-Moçambique num percurso total de mais de 15 mil quilómetros. Escreveu-se no DN que “o jovem capitão Celestino Pais Ramos partir da Amadora no seu Vicker, cumpria a primeira etapa da sua viagem, a primeira por avião feita às colónias portuguesas da Guiné, São Tomé, Angola e Moçambique” E mais se escrevia no DN: "Os valorosos aviadores iniciam hoje às primeiras horas da manhã a segunda parte do raid", e passava a relatar as aventuras de Pais Ramos (piloto e comandante), Oliveira Viegas (piloto), João Esteves (tenente navegador) e Manuel António (sargento mecânico). O mesmo matutino dava conta de dissabores, como se escreveu: "Resolvido o pequeno incidente originado pela falta do óleo necessário aos aviões que devido ao mau tempo não foi desembarcado em Bolama, os valorosos aviadores vão recomeçar hoje às primeiras horas do dia o raid a Moçambique, iniciando a segunda parte da sua viagem."

O grupo levaria 51 dias a cumprir esta expedição, fazendo escala em mais de 30 localidades e acumulando 101 horas de voo. Na etapa que começariam a 14 de setembro, fariam a viagem de Bolama a Kayess, "num percurso de 570 quilómetros, que devem ser cobertos em 3 horas e 49 minutos de voo", especificava o DN.

1931 é o ano marcado pela chegada a Bolama da Esquadra Balbo, italianos, vêm em aviões H. S. 55, dois motores Fiat 500 CV. O percurso percorrido compreendia Orbetello-Cartagena-Kenitra-Villa Cisneros-Bolama-Natal-Baía-Rio de Janeiro, num total de 10 400 quilómetros. Bolama tinha sido escolhida para dar o salto sobre o Atlântico Sul. Eram 14 aviões. É na descolagem de Bolama, no início de janeiro, que se dá um acidente aéreo e morreram 6 aviadores, o governo italiano mandou erigir um monumento em sua memória, exatamente em Bolama, era para mostrar aos vindouros que tinham sido os italianos quem tinha atravessado o Atlântico Sul em formação de aviões.

Vão seguir-se outras viagens até 1941, caso da viagem Lisboa-Guiné-Angola-Lisboa, feita por portugueses. A enigmática Elly Beinhorn fez vários voos sobre a Guiné em avião Klem, motor Argus, deu como pretexto comissões científicas… Nunca se apurou se vinha pela ciência ou em missão de espionagem. Nesse mesmo ano de 1931, o alemão Christiansen, levando a bordo o almirante Gago Coutinho e mais 11 homens de tripulação fez ligação Lisboa-Bolama-Natal com o hidroavião gigante Dornier X, equipado com 12 motores Curtiss de 600 CV, foi uma viagem cheia de acidentes.

No período de 1935/36, tenho como comandante Cifka Duarte realizou-se o cruzeiro aéreo às colónias: Lisboa-Guiné-Angola-Moçambique, em aviões Vickers-Jupiter 420 CV.

Em 1939, Sérgio Silva, quando nomeado Diretor dos Serviços Aeronáuticos da Guiné, utilizou a via aérea para ir tomar posse do seu cargo. Partiu de Lisboa a 9 de abril, chegou a Bolama a 12 do mesmo mês.

A história da aviação comercial na Guiné conta-se em duas penadas. Houve várias companhias francesas e inglesas que pensaram aproveitar Bolama como ponto de escala em futuras linhas aéreas para ligação de Dacar e Bathurst com as possessões inglesas e francesas de África, nada se concretizou. Só a Pan American Airways utilizou Bolama quando, no inverno, os seus hidroaviões Clipper eram forçados a abandonar a rota dos Açores para as suas regulares ligações aéreas América-Europa, com escala terminal em Lisboa. O primeiro Clipper amarou em Bolama em 6 de fevereiro de 1941 e o último em 24 de novembro de 1945. No ano seguinte, a Pan American passou a utilizar aviões de rodas e as paragens da Guiné Portuguesa foram esquecidas.

Pouco depois da meia-noite do 17 de dezembro de 1930, doze hidroaviões Savoia-Marchetti "S-55-A" descolaram da Baía de Orbetello, na Toscana, a norte de Roma e frente à ilha de Elba
Memorial aos italianos vítimas do desastre aéreo em Bolama
Clipper da Pan American junto da Torre de Belém
Selos comemorativos da primeira viagem da Pan American Airways a Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23428: Historiografia da presença portuguesa em África (325): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23446: Memórias da minha tropa: localidades por onde passei, que amei e onde sofri: de Ponte de Sor a Mafra, Amadora, Lamego, Tancos, Lisboa, Abrantes, Tomar... até chegar a Bissau (Veríssimo Ferreira, Ponte Sôr, 1942 - Loures, 2022)


Veríssimo Ferreira, soldado instruendo: BI militar, 
emitido pela EPI (Escola Prática de Infantaria), 
Mafra, em 25 de abril de 1964.


Verísismo Ferreira, furriel miliciano: BI militar, 
emitido pela CCS / Quartel General, 
 CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), 
Bissau, 14 de julho de 1966.



Guião da CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, "Bravos e Serenos"


1. Há três dias, em 17 do corrente, às 22h19, a sua filha Cristina F. Titau já temia e nos fazia temer o pior:

O meu pai está neste momento a lutar pela vida nos cuidados intensivos, ligado a um ventilador.

Para o meu pai "os melhores anos da sua vida" foram os que passou na tropa, na Guiné. Não pela guerra, mas por ser jovem, forte e pela camaradagem.
 
As probabilidades estão contra ele mas rezo para que ganhe mais esta batalha. Peço aos seus camaradas na honra de ter servido o país que rezem também comigo.

O meu pai é Veríssimo Ferreira.

A ontem, às 12h54, sabíamos qual era o doloroso e irrevogável desfecho (*):

O meu pai faleceu esta manhã. Quando souber do funeral, aviso. Obrigada a todos que foram amigos dele. ELA 
Esclerose Lateral Amiotrófica ]+ COVID, dificilmente podia ser diferente...

Recordem-no e guardem-no no coracão, que ele tinha medo da solidão... Nunca estarás só,  paizinho. Andas sempre em nós. 

Segundo informação da filha, Cristina Paula, a cerimómia funerária será realizada amanhã, quinta feira, dia 21. O corpo do nosso camarada Veríssimo Ferreira ficará em câmara ardente na capela da casa mortuária de Loures, a partir das 10h00. Às 15h15 será celebrada missa de corpo presente, seguindo o funeral para o cemitério de Loures.   

Como recorda a Cristina, "o pai nasceu a 21, casou a 21, partiu para a Guiné a 21 e voltou a 21, e fecha-se assim o ciclo deste modo no dia 21".

Vamos nós, seus camaradas, recordá-lo com saudade e honrar a sua memória. (LG)

2. Ainda antes do seu corpo descer à terra, vamos aqui lembrar o nosso querido amigo e camarada Veríssimo Ferreira, através da republicação, revista, de dois postes em que ele, com o seu típico bom humor de alentejano, recordava os seus primeiros vinte meses de tropa (a que se seguiram outros tantos de guerra, na Guiné, entre agosto de 1965 e abril de 1967). 

O Veríssimo Ferreira:

(i) nasceu em Ponte Sôr, distrito de Portalegre, Alto Alentejo,  em 21 de fevereiro de 1942;

(ii) fez o Curso de Sargentos Milicianos (CSM), com a recruta em Mafra e a especialidade de atirador de infantaria em Tavira, em 1964;

(iii) foi furriel miliciano, CCAÇ 1422, subunidade do BCAÇ 1858: mobilizada pelo RI 15 (Abrantes), partiu para o TO da Guiné em 18/8/65 e regressou a 15/4/67, tendo passado por Bissau, Bula, Farim, Mansabá, Saliquinhedim / K3;

(iv) foi o primeiro (e único) representante da CCAÇ 1422, no blogue, onde tem mais de 7 dezenas de referências;

(v) era (e é) o membro n.º 581 da  Tabanca Grande, onde ingressou em 3 de outubro de 2012;

(vi) passa a figurar na já longa lista (alfabética, ver coluna estática, no lado esquerdo do blogue) dos 121 amigos e camaradas da Guiné que "da lei da morte já se libertaram".


3. Memórias da minha tropa: localidades por onde passei, que amei e onde sofri: de Ponte de Sor a Mafra, Amadora, Lamego, Tancos, Lisboa, Abrantes, Tomar... até chegar a Bissau

por Veríssimo Ferreira (1942-2022)


E vai daí... Por edital, soube que me deveria apresentar em Mafra, na Escola Prática de Infantaria (EPI), a fim de frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).

Saí de Ponte de Sôr, pela matina e no comboio. Chegado a Lisboa, pedi informações para ir para o Martim Moniz, local donde sairia a camioneta para Mafra.

A confusão, nesta louca cabecinha, era mais que muita (primeira vez na grande cidade) e, habituado que estava a ver muita gente junta aquando das feiras, pensei:
— Há por aqui uma como a nossa de outubro!!!

Bom, mas lá fui ter e parti para o destino... E cheguei enquanto no entretanto comi as duas sandes que a minha querida mãe preparara para a viagem.

Mafra, surpreendeu-me, quando logo ali mirei o Mosteiro.
— Um quartel? — duvidei.

Na entrada, havia um enorme grupo de juventude de cabelinhos cortados à inglesa curta e que esperava,  e a eles me juntei.

Lá chegou a minha hora e,  preenchidos que foram, uns papéis, mandaram-me para o alfaiate que tirava medidas olhando-nos de alto abaixo, o que significou que recebi umas roupitas bem bonitas por acaso: um  bivaque onde cabiam duas cabeçorras, duas camisas cinzentas n.º 54 (e eu até aí, usava 42), dois pares de calças que me chegavam dos pés à cabeça, duas botas 47 (e eu calçava 41)... e por aí fora.

Na caserna, assim chamavam ao quarto luxuoso, um 5.º andar e 183 degraus para subir, onde me colocaram, e onde, para me não sentir só, deixaram-me acompanhado por mais 151 recrutas que se tornaram meus amigos.

No dia seguinte reuniram-nos num espaço rectangular, que ainda hoje existe, lá atrás do convento e a que chamaram (e chamam) "a parada".

Éramos, talvez uns três mil, que sairiam dali como oficiais ou sargentos milicianos. Juntaram-nos depois, sentados no chão,  e rodeando o oficial instrutor, cá fora,  ali ao lado esquerdo de quem entra, e esclareceram-nos sobre as normas em vigor, para contactos eventuais, com os residentes civis,  e também como distinguir os postos militares.

Ficámos a saber, que a coisa começava desta forma: o início e por aí fora: recrutas; soldado; 1.º cabo; furriel; sargento; aspirante; alferes; tenente; capitão; etc., etc., etc.; general; marechal; e, finalmente, 1.º cabo miliciano...

Contentíssimo fiquei. Então não é, que o filho do meu pai iria alcançar o mais alto posto, lá para agosto de 1964 e já especialista de infantaria?!... E 1.ª classe em metralhadora Dreyse 7,9? E 3.ª classe em espingarda mauser 7,9? E 1.ª classe em comportamento? E atirador, terminada a instrução complementar?

Aparvalhado ainda, com o facto de ontem ter visto, Lisboa, aviões dos grandes  e barcos a atravessar um rio a que ouvi chamarem Tejo, e ter ainda a possibilidade de (e também, pela primeira vez) poder ir ver o mar, as praias da Ericeira e mais agora esta notícia, plena de responsabilidades... Olhem, fiquei de tal maneira entontecido  que julgo não ter voltado a ser o humano normal de antes.

Continências e divisas, foram-nos sabiamente mostradas, bem como o manejo duma espingarda, o seu desmanchar em bocados  e a consequente limpeza com o escovilhão.

No 3.º dia, e após o pequeno almoço, começou a preparação para que pudéssemos vir a ser militares disciplinados, bravos, heróicos e que, acima de tudo, voltássemos inteiros: corridinhas na tapada, rastejar no meio da trampa, percursos de combate, saltos para o galho, jogos de brutobol, tiro na carreira do dito, actividades desportivas com vários empecilhos no meio, audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão... Enfim, toda uma panóplia útil que só mais tarde entendemos ter sido preciosa para que aqui e agora estejamos ainda semivivos e, ah!,  sempre acompanhados pela fiel Mauser e de capacete enfiado, no local próprio de enfiar capacetes.

Regressávamos depois e quase na hora do repasto. Íamos à suite tomar um banhito rápido e mudar de fato. Toca a corneta e ala que são horas de almoço.

Boas refeições, sim senhor e até vinho havia e da cor que entendêssemos, embora eu achasse que aquilo era mais água e cânfora, substância que, e ao que diziam, transformava em eunucos, embora provisoriamente, quem bebia a zurrapa.

A 4 de julho de 1964, após portanto 5 meses e 10 dias e com aproveitamento e todos os créditos alcançados, consideraram-me então, apto, ou seja, vais tirar a especialidade de "atirador" e, como ordens não se discutem, decidi-me e fui para Tavira

Terra linda que continuo a visitar. Linda praia, onde até a água era e é, quente, comparada com a da Ericeira, de que tinha provado o sal. Boas gentes, embora e nesse período, as tenha considerado más com'ás cobras, tendo em conta que quando os pobres militares, sedentos e até com alguma fomita, colhíamos algumas amêndoas, alfarrobas ou figos, ou ainda, lhes bebíamos umas gotas nos escassos poços existentes, iam de imediato participar ao quartel e algumas vezes lá tínhamos que desembolsar os 25 tostões para compensar o prejuízo.

A miséria patrimonial deste povo algarvio era notória e justificava a queixa. O turismo mal começara e aquelas frutas e água eram o seu ouro.

No que se refere à instrução militar, foi o acrescento próprio, para quem já estava treinado.
Novidade apenas para o "deitá...á...á...r!" nas salinas. Lindo de se ver, creiam. E nós, vestidinhos, lavadinhos e engomados, calçadinhos, botas engraxadas e reluzentes, espelhando o sol quente desse mês de julho, obedecíamos, está claro, só para não nos considerarem desobedientes.

Saíamos enlameados, cheios de lodo até aos cabelos, mas mais fortes alguns, aqueles que engoliam alguma distraída enguia. Até nisso, a sorte me foi madrasta já que o único brinde que me calhou foi uma enorme serpente que resolveu aninhar-se no bolso esquerdo das calças.

À tardinha dispensavam-nos e podíamos então confraternizar mas as tascas locais, onde sempre comíamos generosas doses de grandes conquilhas, ou jaquinzinhos atados pelo rabo e em grupos de 5 ou 6, regados com aquele saboroso tintol carrascão de tal forma que até os dentes ficavam coloridos.

Alguns mais afortunados, proporcionavam, a outros, passeios e assim conheci, Quarteira, Armação de Pera, Albufeira e Faro.

E em 30 de agosto de 1964, fui promovido a 1.º cabo miliciano, pois então... Começa aí um percurso agitado, com constantes mudanças, assim estilo "faça férias cá dentro" e foi o que me valeu para ficar bem a conhecer algum deste País, que eu julgava ser só o Alto Alentejo:

1.º - Amadora (Regimento de Infantaria 1);
2.º - Lamego (Rangers);
3.º - Tancos (Minas e Armadilhas)
4.º - Lisboa (Grupo C. Trem Auto)
5.º - Abrantes (Regimento Infantaria 2)
6.º - Tomar (Regimento Infantaria 15)
7.º - Bissau e o resto (CCAÇ 1422).

À Amadora cheguei... nem ao almoço tive direito e mandam-me avançar, de forma a estar, e sem falta, no dia seguinte em Lamego.

Voei para Sta. Apolónia, fui para o Porto, daqui para a Régua e o certo mesmo é que às 8,30 entro no novo poiso.

Bambúrrio,  dei logo de caras,  à porta de armas, com um herói da minha terra, combatente já com uma comissão prestada em Angola, 2.º sargento e monitor agora das tropas a preparar. Trocámos abraços, continências e amigáveis palavras, e logo ali ele próprio se disponibilizou para me ajudar no que eu precisasse.

A caserna era óptima e fiquei em lugar privilegiado de cama. Fora dos últimos a chegar e não houve hipótese de arrebanhar melhor. Havia só que subir três beliches, até chegar ao 4.º,  onde dormia e com uma vista fantástica para os barrotes em madeira, que até me davam para estender a roupa molhada e esta, por sua vez, passava as gélidas noites, a afagar-me a tromba, durante os raros momentos que ali estacionei, pois que os treinos eram constantes, a qualquer momento,  prolongados, estafantes...

Foram tempos duros, mas uma óptima preparação para as dificuldades que vieram depois. Ficou-me gravada, a frase: "Nunca se sabe", resposta que sempre ouvíamos a qualquer pergunta que fizéssemos.

Lá de quando em quando, também nos convidavam a ir até lá abaixo à City e então era um fartote... Que belas pingas, bom presunto (coisa da qual eu já ouvira falar mas não provara qu' a crise abundava com'agora) e até as pessoas eram simpáticas prá rapaziada fardada.

No aspecto da preparação militar, gostei manning d'atravessar o rio dum lado pró outro, agarrado a uma corda e com os pés assentes noutra e a água lá em baixo, revolta com'ó caraças fez-me perguntar a mim próprio: 
 —  Porqu'é que não trouxeste o calção de banho em vez da farda de trabalho?

Tancos desejava-me ardentemente e as Minas e Armadilhas que as amasse... e a Barquinha ali tão perto e com tão boa comida e melhor buída...

Recordo com alguma emoção, convenhamos, aquele dia em que cá em baixo, junto ao Castelo de Almourol, me pediram atenciosamente para experimentar um pedaço de massa explosiva, a que chamavam farinheira. Colocada que foi, debaixo dum pedregulho de todo o tamanho, a que juntei depois um detonador, mais um cabo eléctrico com 50 metros que trouxe até cá ao alto e liguei a uma caixinha com alavanca que pressionei...

O estardalhaço do rebentamento foi impressionante, levantei a cabeçorra e é nessa altura que vejo no ar aquele monstro redondo a dirigir-se a jacto, precisamente para o local onde me encontrava e a quem eu disse:
— Trá-la-rai, la-rai, la-rai... falhaste, pá, paciência!

Acabara, sim, por derrubar uma pobre e velha árvore centenária.

Passou-se, e eis senão quando, me vejo a caminho de Lisboa, Avenida de Berna, Grupo de Companhias Trem Auto, o que me confundiu do porquê. E não só a mim, também o senhor sargento da Secretaria se espantou e exclamou:

—  Ora , porra, pedi um cabo miliciano condutor e mandam-me um atirador?! Mas... — continuou ele — aguente aí, ó patrício, você é da Ponte Sôr,  eu sou de Alter, temos de resolver isto.

E, após perguntar-me se conheço a capital e eu respondido "negativo", decidiu que eu devia ficar por ali, até que fosse rectificado o lapso, o que deveria demorar um mês.

Sem função atribuída, saía, à civil, de manhã e voltava para dormir, às vezes, num quarto com mais sete militares e cinco ratazanas, das maiores que já vi.

Turismei... Vi cinema no Piolho, Condes, Éden, S Jorge... Conheci, a desoras, as boas zonas: Intendente, Cais Sodré, Bairro Alto, Alfama, Mouraria, Madragoa... Vi campos de futebol, com relva imagine-se... O aeroporto, Cabo Ruivo e os hidroaviões, comboios em Santa Apolónia e Rossio... Fui a Cacilhas...  Fui ao Jardim Zoológico, Parque Mayer, Parque Eduardo VII, Feira Popular... Comi bifes na Solmar, Portugália, Império, Ribamar..., sopa de marisco na Rua de S. José, iscas na Travessa do Cotovelo,  bacalhau com grão no João do Dito... Bebi na Ginginha e no Pirata e uns tintos no Quebra Bilhas...

Até que um dia me transmitem:
— Vais para Abrantes.
Bati o pé e disse:
— Não vou... Não vou... Não vou... 
E fui.

Em Abrantes, estava mais perto de casa, o que me agradou. Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o oficial instrutor, ensinando novos militares. Por que alguns de nós, os recentes cabos milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.

Entretanto em abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em unidade operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato (sic)" , fui promovido a senhor furriel miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que, fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de agosto desse ano.

Quando digo "embarcaram comigo", em vez de "embarquei com eles", deixem que explique: quer o Comandante, quer os restantes oficiais e sargentos, haviam partido uma semana antes, de avião, ficando apenas connosco, um senhor sargento-ajudante, (pessoa com alguma idade e peso e que era chefe de secretaria) e nós próprios, os furriéis milicianos e toda a restante e valorosa CCAÇ 1422, claro.

A ele pertenceria comandar-nos antes do embarque, no desfile perante as autoridades e perante os nossos familiares presentes. No último momento, nomeia-me para o fazer... Ordens não se discutem, cumpri.

Correu lindamente, marchámos com garbo. Depois? Bom...,  depois a vinte e tal de agosto de 1965 chegámos a Bissau, para ganhar a guerra e preparar zonas de turismo para que os vindouros ali passassem férias descansadas.

Não precisam agradecer.
Disse.
Veríssimo Ferreira (**)

[ Seleção a partir dos postes P12617, de 21/1/2012, e P12649, de 28/1/2012 / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
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Notas do editor:


(**)  Vd, também os primeiros postes da série "Os melhores 40 meses da minha vida";

terça-feira, 19 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23445: In Memoriam (440): Veríssimo Luz Ferreira (1942-2022), ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1422/BCAÇ 1858 (Farim, Mansabá, K3 e Bissau, 1965/67)

IN MEMORIAM

Veríssimo Manuel da Luz Ferreira (1942-2022) 
Era natural de Ponte de Sôr, e bancário reformado. Vivia em Loures
Veríssimo Ferreira foi Fur Mil Inf na CCAÇ 1422
Farim, Mansabá, K3 e Bissau, 1965/67

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A notícia do falecimento do nosso camarada Veríssimo Ferreira foi uma surpresa embora soubéssemos que ele estava a passar menos bem. Continuava activo no seu facebook, interagindo com a malta da pesada.

Aproveitamos para enviar à sua esposa, filha Cristina e demais família, as nossas mais sentidas condolências. Quem o conheceu, pessoalmente ou através das redes sociais, não pode ficar indiferente à sua passagem para a outra dimensão desconhecida que a todos nós está destinada. Terminou a sua comissão de serviço na Terra, ficando algures à nossa espera porque deixámos muitas conversas por acabar.

O Veríssimo foi apresentado à tertúlia em 3 de Outubro de 2012 (Vd. Poste 10473) e teve uma colaboração muito activa no nosso Blogue com a publicação de fotos e textos bem humorados, onde a brincar nos deixa estórias muito sérias. No Oio passou pelos locais mais complicados e com as mais deficientes condições de vida.


Lembro as suas séries "Os melhores 40 meses da minha vida", "Pós-Guiné", "Fragmentos de memórias" e "Crónicas higiénicas", no total de 70 publicações a não perder.

Segue-se uma sequência de fotos suas tiradas aquando da sua estadia no K3 que bem demonstram as condições proporcionadas aos militares ali estacionados.

Como conta o Veríssimo, quando faltavam 8 meses para terminar a sua comissão, foi colocado em Bissau. Foi uma bela oportunidade para "fugir" da guerra e até ter a visita da sua esposa e filhota.

Seguem-se mais algumas fotos:
Veríssimo Ferreira e a sua família em Bissau no ido ano de 1966
Veríssimo Ferreira e a sua família mais recentemente

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Falta informar que o Corpo do nosso malogrado camarada estará em Câmara Ardente na Capela Mortuária de Loures no próximo dia 21, quinta-feira, a partir das 10 horas da manhã. Às 15h15 será celebrada Missa de Corpo Presente a que se seguirá o funeral para o cemitério local.

Num dos postes publicados, o Veríssimo Ferreira dizia que tinha nascido num dia 21, casou num dia 21, chegou à Guiné num dia 21 e regressou também num dia 21. Como diz a sua filha Paula, vai fechar o ciclo da sua vida no próximo dia 21 quando descer à terra.
 

Guiné 61/74 - P23444: Parabéns a você (2084): Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 e CART 2732 (Buba e Mansabá, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23436: Parabéns a você (2083): Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista da 1.ª CCP/BCP 21 (Angola, 1970/72)

Guiné 61/74 - P23443: Estórias do Zé Teixeira (54): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 17 de Julho de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos, como tinha prometido, a segunda parte da sua estória Correspondência desviada.


Amores em tempo de guerra II

Correspondência desviada (continuação)

Resumo da primeira parte(*)

O alferes José Barbosa foi acordado alta noite. Alguns soldados do seu grupo de combate discutiam. Levantou e foi verificar o que se passava. A discussão centrava-se no Joaquim Santos que ultimamente ao regressar do seu serviço de sentinela acordava os camaradas em altos berros e palavrões.

O alferes, perante as queixas dos camaradas,   dispôs-se a ouvir o Joaquim em privado. Descobriu um homem transtornado. Todas as semanas escrevia à esposa e vice-versa. Ultimamente a correspondência que ele enviava à esposa extraviava-se, o que estava a degradar a relação entre o casal.

O alferes orientou-o quanto à forma segura de fazer chegar a sua correspondência à esposa. Aconselhou-o a ir de férias à metrópole e em conversa com a esposa aclarar a situação e resolver o problema.



Férias bem merecidas

No dia seguinte o Joaquim escreveu à esposa, seguindo o estratagema aconselhado pelo alferes, informando-a que contava regressar de férias dentro de algum tempo para estar com ela. Certo, porém, que o pobre rapaz acalmou depois da conversa com o comandante.

O alferes recolheu os elementos necessários sobre a morte do irmão do Joaquim em Angola, e fez uma exposição ao Comando Chefe de Bissau. Havia de facto uma lei militar que isentava de servir a Pátria, em missão no Ultramar, todo o militar a quem tivesse falecido algum irmão em combate. Tal lei estava escondida num Decreto-Lei e só era usada a requerimento do próprio interessado. Ora como ninguém conhecia a lei, esta não era cumprida.

Passado cerca de quinze dias, embarcou no avião da TAP em Bissau. Ainda a tempo de receber uma carta da esposa que o deixou imensamente feliz. Ela esperava-o ansiosamente, falava-lhe da menina com um entusiasmo de enlouquecer. Para aumentar a sua felicidade, vinha na carta uma fotografia da Anita, a sua menina que mal conhecera.

Tudo aconteceu rapidamente. A confirmação da viagem, a ida para Bissau no lugar do copiloto de um bombardeiro T6 e o embarque dois dias depois, de manhã, para Lisboa, que nem teve tempo de informar a esposa da data de chegada. O único telefone que havia na sua terra era propriedade do merceeiro. Possivelmente o Joaquim não sabia o número do telefone, mas nem pensou em tal. O importante era chegar junto da sua esposa, da sua menina, e abraçá-las.

- Cheguei!... E agora, vou ter com a Ana Maria ao trabalho? Vou a casa dos meus sogros ver a Anita? Vou a minha casa ver a minha mãe e talvez o meu pai esteja por casa!?… - pensou o Joaquim, logo que se viu fora do aeroporto de Lisboa.

Aspirou profundamente o ar de Lisboa, o ar da liberdade, da segurança… Sentia-se seguro, mas estava inquieto, nervoso. Dentro da sua cabeça bailavam fantasmas que tentava expulsar. Seguiu para a central de camionagem à procura de transporte que o levasse até à vila a cerca de cinquenta quilómetros de Lisboa. O restante percurso, de cinco quilómetros, teriam de ser feitos a pé. Não era dia de feira, não havia outro tipo de transporte, a não ser de táxi, muito caro para o seu bolso. O seu meio de transporte era a bicicleta que estava parada em casa da mãe, desde que partira para a vida militar. Talvez depois fosse ter com a Ana Maria, cujo transporte da empresa de confeções até casa, também era a bicicleta.

A mãe do Joaquim, nem queria acreditar. O seu menino regressou. Mal sabia que era apenas por trinta dias, mas estava ali e isso era o mais importante. A Ana Maria tinha-a informado da feliz notícia, mas ela não contava que fosse tão rápido. Tremia. Tremia de alegria incontida. Pendurou-se no seu pescoço. (Tinha um físico de mulher baixa e abonada. Ele era parecido com o pai; alto e forte.) Chorou de alegria. Choraram ambos, mas pouco conversaram. O Joaquim foi buscar a bicicleta e preparou-se para abalar ao encontro da esposa. Azar o seu. A bicicleta por falta de uso tinha os pneus vazios. Felizmente a do pai estava ao lado e o Joaquim nem pediu licença. Partiu a todo o gás para apanhar a Ana Maria à saída.

Ela não contava com o Joaquim ali. A surpresa paralisou-a, para de seguida atirar a bicicleta ao chão e correr para ele. Só os verdadeiros amantes saberão compreender o que se passou naqueles dois corações. Os seus corpos uniram-se em abraços sem fim. Aqueceram-se em ternos beijos e poucas palavras. A felicidade apoderou-se deles. Longos minutos depois, seguiram para cada dos pais da Ana Maria ao encontro da Anita a filha, fruto do seu amor.

O tempo voou. O mês de férias esgotou-se sem que antes pusessem as conversas em dia e alimentassem profundamente o amor que os unia. Tentaram descobrir porque não chegavam os aerogramas que o Joaquim escrevia, sem resposta plausível.

O tio, que lhes cedera o pequeno espaço para Ana Maria e a Anita viverem na ausência forçada do sobrinho, acolheu-os, estranhamente, com alguma frieza. Desconhecia, segundo lhes disse, que a correspondência do sobrinho se extraviava, aliás, queixou-se que a Ana Maria quase não lhe ligava. Apenas o “bom dia” e “boa noite”.

Para não correrem o risco de novo corte da corrente afetiva via correspondência, decidiram continuar com o esquema proposto pelo alferes Joaquim Barbosa. Os aerogramas escritos por ele, para a Ana Maria, seguiam dentro de carta fechada para casa da mãe e esta, os faria chegar ao destino.

Na hora de regresso à Guiné, o Joaquim sentia-se feliz e confiante. Levava com ele a imagem de uma criança que o adorou, tanto quanto ele a ela. A esperança de voltar em breve e sobretudo a certeza de que era amado pela Ana Maria. Isto bastava-lhe.

A felicidade que irradiava ao apresentar-se ao alferes, quando regressou, foi a melhor forma de pagamento que este sentiu, e a vida na Guiné continuou…

Causas e efeitos da correspondência desviada

Naquele fim de tarde, uns tempos depois do regresso do Joaquim, estava o alferes José Barbosa sentado à porta da sua cabana, em amena cavaqueira com dois furriéis, quando vê chegar o Joaquim, um tanto alvoraçado.
- Meu alferes.  dá-me licença? Preciso de falar consigo!
- Não me venha outra vez com outra história da sua mulher! Porte-se como um homem! Já sabe que a todo o momento deve chegar a guia de marcha para o seu regresso a casa. Tenha calma!
- Meu alferes, eu sei que não tenho perdão, disse Joaquim, mas preciso de regressar a casa já. Vou matar o meu tio! - Atirou de topete.
- Está doido homem!
- Não. Não estou. Sabe quem desviava as minhas cartas? Era ele, o grande filho da puta do meu tio. Leia este aerograma da Ana Maria.
- Tenho mais que fazer. Conte-me você!
- Diz ela aqui. O tio, na segunda-feira, convidou-me para ir com ele a Lisboa resolver problemas pessoais. Perante a minha resistência, porque ia perder um dia de trabalho, prontificou-se a pagar-me a féria e tanto porfiou que fui com ele. O sacana não foi tratar de qualquer assunto. Passeamos por Lisboa, de café em café, até que ao aproximar-se a noite, alegando que era tarde para regressar, convidou-me para ir com ele para uma pensão. Usou palavrinhas doces sobre a minha pessoa. Eu era jovem merecia saborear a vida... tu estavas longe e nem precisavas de saber… enfim. Um cabrão de merda.

Meu querido, só tive tempo de correr a apanhar o barco para o Barreiro. A camioneta de carreira preparava-se para fazer a última viagem, mas cheguei a tempo. Tranquei-me em casa com a menina e no dia seguinte fugi para casa da tua mãe.

Ele escrevia a dizer-te que eu era uma doidivana e tu acreditavas. Aí tens. O bandido estragou a fechadura da caixa do correio para me roubar as cartas que me escrevias. Nem penses que vou regressar àquela casa. Aguardo o teu regresso aqui...

- Basta! - disse o alferes - Amanhã vou enviar o seu processo diretamente ao Governador. Tem de partir urgentemente, mas só o faço se me prometer que não vai cometer represálias sobre o seu tio. Esqueça o que se passou! A sua mulher soube resolver o problema da melhor maneira. Não vai, agora, criar conflitos. Promete?
- Como posso prometer,  meu alferes !!... Ele é meu tio, bem o sei, mais que levantar falsos testemunhos sobre a minha mulher, queria abusar dela, aproveitando-se da minha ausência. Como posso prometer ? Eu não lhe perdoo.
- Vá dormir e amanhã falamos. Boa noite.

Uns dias depois o Joaquim recebe ‘Guia de Marcha’ para regressar a Portugal continental. Era o fim da sua guerra, passados vinte meses de sofrimentos e torturas de coração. Era tempo de voltar para junto da sua filhinha e da esposa. Enevoava-lhe a mente o sentimento de vingança sobre o seu tio. Não lhe podia perdoar o que este fizera à sua família, escondendo as suas cartas para a esposa, e muito menos a tentativa de abusar sexualmente da sua amada, apesar do alferes lho ter exigido. Era tempo de agir logo que chegasse à terra. Fervia de emoção só ao pensar, que dentro de alguns dias, voltava para junto das suas mulheres, como costumava dizer para si, nos silenciosos momentos de encontro espiritual.

Foi acompanhado pelo alferes até à avioneta que transportava a correspondência para a Sede da Companhia. Despediram-se num longo abraço entrecortado por palavras de estímulo do comandante e agradecimentos por parte do Joaquim, que em pranto lembrou a noite em que o Barbosa lhe tirou a G3 da mão, e o ouviu pacientemente.
- Sabe, meu alferes, na câmara da arma estava a bala que eu tinha destinado meter na minha cabeça. Não aguentava mais a pressão e os tormentos que vivia. Você salvou-me. Obrigado, estou eternamente grato. Quando regressarem vou esperá-lo no desembarque e levo as minhas mulheres para que conheçam o homem que eu mais estimo.
- E você promete-me que não fazer mal ao seu tio. É uma ordem, ouviu!
- Prometo que vou tentar…

...E subiu para a carlinga...

O alferes José Barbosa ainda tinha esperanças de ver o Joaquim, dois meses depois ao regressar a Lisboa, como ele lhe prometera.

Esqueceu-se com toda a certeza. Nem respondeu às cartas que o José Barbosa lhe escrevera nos primeiros tempos após o regresso. Nunca mais deu sinal de vida.

Passaram-se anos e anos, até que no convívio anual comemorativo do regresso da Companhia, onde o Joaquim nunca compareceu, alguém disse que o “perna marota” tinha falecido.

José Teixeira

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Nota do editor

(*) - Vd. poste de 14 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)