sábado, 12 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23777: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VII: Em Farim, com o BCAV 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro, até meados de 1964... Abatises e emboscadas no itinerário Farim-Jumbembem-Cuntima


 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c. 1969/71 >  Edifício onde funcionou o comando e o posto de socorros, no tempo da CCav 489 /BCav 490 (1964/1965). 



 Guiné > Região do Oio > 
Cuntima > c- 1969/71 > A “avenida do Senegal”.



 Guiné > Região do Oio > Jumbembem > c- 1969/71 >  Aspecto da tabanca



 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c- 1969/71 > Farim > Edifício do comando do Batalhão de Cavalaria 490

Fotos gentilmente cedidas pro Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71). Publicadas no livro a preto e branco.


Dispositivo do BCav 490: Farim (CCAV 487), Jumbembem (CCAV 488( e Cuntima (CCAV 489)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

 


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, antes de completar os 75 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição. 

Recorde-se, aqui o último poste:  o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) está em Farim, colocado na 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), no segundo semestre de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim (onde esteve cerca de um ano; em meados de 1964, pediu transferência para a CCS / QG, em Bissau).  Mantemos a ortografia original.  Chame-se  atenção para  os seguintes factos : (i) o Amadu, ainda soldado condutor autorrodas,  sofre as primeiras emboscadas e vê com humanidade o primeiro morto do PAIGC: (ii) ainda está  equipado com a velha Mauser...
  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



Com a 1ª CCAÇ, em  Farim,  em 1963/64

(pp. 71-80)

por Amadu Bailo Djaló


(i) Com o BCav 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro,  em Farim


    Ieró Codi, Régulo da tabanca de Lambam, na fronteira com o Senegal, ao verificar que o PAIGC se estava a implantar em toda aquela zona fez uma petição ao administrador solicitando a sua intervenção no sentido de abandonar a tabanca com as suas gentes e haveres. 

O administrador dirigiu-se ao comandante do BCav 490  [1], o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, a quem colocou o pedido do Régulo Ieró Codé. O tenente-coronel determinou o cumprimento da missão ao capitão [2], comandante da CCav 487 [3], e à 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Preparámos as viaturas. Como não tínhamos carros suficientes, solicitou-se aos comerciantes de Farim a cedência de alguns carros, pedido que foi aceite, solicitando eles, apenas, que os seus condutores fossem dispensados, já que alguns eram idosos e outros muito jovens e sem qualquer preparação militar. Foram substituídos por condutores militares.

No meu caso, recebi a indicação de ir à Ultramarina buscar uma viatura.

–  Olha, o carro está bom. Mas tem um problema. Quando o sol está muito forte, o diafragma cola e o motor vai-se abaixo. Assim, eu costumo levar água para molhar a bomba manual e, pouco tempo depois, o motor pega. Vai parando, de vez em quando e molhando a bomba, chegas ao destino –  disse-me o condutor da Ultramarina.

Verifiquei o óleo e levei o carro para o quartel, para o atestar e fui aguardando a chegada dos outros colegas. Preparada a coluna, arrancámos. Tinha-se sentado ao meu lado um jovem, de baixa estatura, que eu nunca tinha visto, nem tão pouco sabia quem era. Imaginava que fosse algum colega da caserna.

Iniciada a marcha, com o sol a pique e o calor a queimar, a certa altura parei, lembrando-me da recomendação do motorista do comerciante. Saí do carro, molhei a bomba e reparei que o meu companheiro sorria. Novamente pus o motor em funcionamento, retomei a marcha até nova paragem para proceder a novo refrescamento da bomba. Com todas estas interrupções, a viagem até estava a ser pouco aborrecida.

À quarta paragem já me encontrava um bocado irritado e gritei para mim:

–   Porra para isto! Nem parece um carro, isto é um caco!

 –  Vamos voltar a molhar a bomba –  disse-me o tal companheiro.

Novamente molhada a bomba, minutos depois o motor voltou a pegar e retomámos a marcha. O que valia é que o caco, depois de arrefecer uns minutos acabava mesmo por voltar a pegar. E o jovem ao meu lado, sempre calado. A partir daqui, sempre que o motor ia abaixo, era o meu colega de viagem que dizia para molharmos a bomba e ocasiões houve que era ele que saía primeiro. Esta odisseia autêntica só parou, quando finalmente chegámos à tabanca de Lambam.

Começámos a carregar a viatura com caixotes, malas, alimentos, animais e, no fim, mandámos as pessoas subir. Tudo pronto, preparámo-nos para o regresso a Farim.

Voltaram as paragens, só que agora eram mais frequentes. A linguagem que eu usava, já sem paciência nenhuma, era linguagem de tropa, enquanto o meu companheiro mantinha a mesma postura, nada dizia, a não ser "vamos molhar a bomba", quando o motor parava. À última paragem, já com Farim quase à vista, eu já não podia mais, estava desesperado. E já não tinha água.

 –  Porra para esta merda! E agora? 

E o companheiro, ao lado:

 –   Vamos molhar a bomba.

 –   Como, pá? Não temos água, porra!

  –   Olha, se alguém ainda tiver um cantil com água que traga.

Apareceu um furriel europeu que passou um cantil para as mãos do meu companheiro. Naquela altura, disse para os meus botões:

  –   Quem será este gajo que vem ao meu lado? Às tantas é para aí um furriel, colega do outro do cantil!

Molhámos a bomba e logo o carro começou outra vez a funcionar.

 –   Se calhar, é melhor deixar aqui o cantil.

Chegámos finalmente à vila e começámos logo a descarregar os materiais que trazíamos. Eu estava exausto, deixei-me ficar sentado um pouco.

Entretanto, Paté, irmão do Régulo Iero, que era cipaio da administração civil, aproximou-se e começou a conversar com o meu companheiro.

 –  Amadu  –   ouvi chamar. Era o Régulo Ieró.

 –   Que é?  – perguntei.

  –  O capitão não está por aí?

Procurei com a vista e não vi nenhum capitão.

  –  Não, não está aqui capitão nenhum   –  respondi.

Paté, ao ouvir a minha resposta, perguntou:

 –   O que é que ele quer?

 – Anda à procura do capitão!

Paté, espantado com a minha resposta:

 –  Então, o capitão não está ao teu lado?

 –  Mas este é que é o capitão? Mas este é que é o capitão?

  –  Sim, esse é o capitão.

Esta conversa estava a ser trocada em fula. Até tremi, de repente assustei-me. Senti vontade de desaparecer com a vergonha. Paté, vendo-me meio desorientado, gritou para o irmão:

 –   Olha, o capitão está aqui.

O capitão não se apercebia da conversa, porque a linguagem era fula.

 –   Como sabe, nosso capitão, ficou gente e haveres ainda na tabanca. Se dormirem lá, é certo que o PAIGC vai lá buscá-las ou até destrói a tabanca.

  –   Não, não fica lá ninguém, nós vamos lá buscar tudo o que falta  – respondeu o capitão.

Formámos novamente a coluna, tendo o capitão tomado novamente o meu carro, sentando-se ao meu lado.

Durante esta segunda viagem, como o sol já não estava tão forte, o carro só parou três vezes pelo caminho. A certa altura, o capitão começou a fazer-me perguntas:

 –   Qual é a tua tribo?

 –   Futa-Fula, meu capitão.

 –  Ah, vejo pelo sinal ao canto dos olhos!...  E de onde és?

 –  De Bafatá, meu capitão.

 –  Qual era a tua ocupação na vida civil?

 –  Comerciante, meu capitão.

 –  E quando assentaste praça?

 –   1962, meu capitão.

 –   Aprendeste a conduzir na tropa, foi?

 –  Sim, senhor, meu capitão.

  –  Estás a ver como a tropa é boa?

 –  Estou, sim, meu capitão.

Chegados à tabanca, carregámos o que faltava e as pessoas que tinham ficado e iniciámos a viagem de regresso que decorreu sem problemas. Chegados a Farim, o Capitão Cidrais, assim se chamava o meu companheiro de viagem, dispensou os condutores que estivessem livres, menos a mim. Logo pensei que ia haver uma conversa sobre a linguagem que tinha usado na primeira viagem. Terminado a descarga, o capitão voltou a sentar-se a meu lado e mandou seguir para a 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Parámos frente à porta do gabinete do capitão, comandante da 1.ª Companhia de Caçadores. Apeou-se e dirigiu-se para o gabinete, enquanto eu preenchi o boletim da viatura.

Pedi licença e entreguei o boletim ao meu comandante, que logo me perguntou:

 –   O que vais fazer agora?

 – Vou aproveitar para me deitar cedo, porque amanhã tenho que ir acarretar água muito cedo, meu capitão.

Ouvi o Capitão Cidrais dizer:

 –   Olha, gostei de andar com este condutor. Quando voltar a precisar de um, vou pedir-te que mo dispenses.

O tempo foi assim decorrendo até que iria surgir a oportunidade para pedir transferência para Bissau.

Mas antes, aconteceu novo ataque do IN, que foi mais forte e durou mais tempo que o primeiro. Nesse dia estava marcada uma sessão de cinema ambulante, era um filme de música e dança, que não era muito do meu género, eu apreciava mais filmes de acção e policiais. Vi os cartazes e não comprei bilhete. Regressei ao quartel. 

Estava já a dormir bem, quando acordei com estrondos de rebentamentos e barulho de tiros. Parecia que a vila de Farim se encontrava toda debaixo de um fogo cerrado e, quem sabe, já sob o controlo dos assaltantes. Em correria muito rápida dirigi-me para os abrigos, onde me mantive enquanto durou o ataque, que demorou cerca de duas horas.

Durante o tempo em que estive em Farim, o PAIGC efectuou três ataques à povoação, sem consequências pessoais, causando apenas alguns danos em casas da tabanca.

Terminadas as saídas para Bricama, em virtude do desaparecimento da ponte pela sabotagem pelo fogo, nunca mais patrulhámos aquela zona, só lá passávamos quando nos deslocávamos em coluna para Cuntima ou Jumbembem.

A cadeia começou a receber prisioneiros para averiguações, alguns que viemos a ter provas de serem colaboradores da guerrilha. À noite, quando saíamos, às vezes víamos pessoas a entregarem maços de cigarros para os familiares detidos. Normalmente eram raparigas, filhas, irmãs ou sobrinhas dos prisioneiros, algumas das quais andavam com alguns colegas nossos. E certamente não se iriam esquecer, quando fossem libertados de que os tratámos humanamente.

Numa ocasião dessas ocorreu uma situação que me fez sofrer. Uma manhã, no quartel, quando eu estava a encher o depósito de água, aproximou-se de mim um prisioneiro cabo-verdiano [4], jovem ainda.

– Podia levar uma carta para o meu tio?

 –  Para quem?

 –  Para meu tio.

 –  Quem é o teu tio?

 –  É Pedro Sitató.

 –  E onde está a carta?

 –  Não a tenho comigo.

 – Conforme, vamos a ver.

À hora do almoço, do mesmo dia, o rapaz cabo-verdiano entrou no refeitório, passou pelas mesas todas até chegar junto à minha.

– Está aqui a carta. 

E retirou-se, sem mais nada. O que ficou foi uma impressão nos meus colegas e no sargento de dia, que estava perto de mim, que havia qualquer coisa combinada entre mim e o prisioneiro. E ouvi colegas segredarem:

 – Para quem é a carta?

Não fiquei muito satisfeito com a ideia que ficou no ar e dirigi-me à caserna e fui ler a carta, que estava dentro de um envelope aberto. Era uma carta simples, a pedir ao tio que o tirasse da prisão, porque ia ser incorporado em janeiro próximo. Mais nada. E então dirigi-me à messe de oficiais, para a entregar ao meu capitão.

 – Meu capitão, tenho aqui uma carta que um prisioneiro me pediu para entregar ao tio.

  –  Isso é com o oficial de informações   –  respondeu-me.

O oficial de informações era o tal alferes, que me tinham dito,  meses antes, ser sobrinho do actual Governador, brigadeiro Arnaldo Schulz, e que anteriormente, não tinha revelado grande simpatia por mim.

Um pouco receoso da reacção dele, fui procurá-lo ao gabinete e, pedindo-lhe licença, disse-lhe:

– Meu alferes, é um prisioneiro que quer mandar esta carta a um tio dele.

– E quem te mandou receber a carta?

– Meu alferes, recebi a carta para alguém não a levar e poder vir aqui entregá-la.

– Põe-na aí!

No dia seguinte chamaram-me e fui ter com um furriel, que estava na parada com uma secção de soldados.

 – O teu carro ainda tem água?  – perguntou.

 – Ainda tem para aí metade.

Deu ordens à secção para retirar a água toda da minha viatura e, depois de retirados todos o bidões, mandou-nos colocar sacos de serapilheira, vazios, e ir enchê-los de areia a Morocunda, onde havia muita.

Regressámos a Farim, com a minha viatura recoberta com sacos de areia e que iriam afinal servir para abrir as colunas, como "rebenta minas".

(ii) Emboscadas entre Farim e Cuntima

Saímos do quartel da 1ª CCaç em coluna formada por quatro viaturas. A minha, cheia de sacos de areia, e as outras três para serem carregadas de géneros e militares para a necessária segurança, com destino a Jumbembem e Cuntima, mesmo na fronteira com o Senegal.

Antes de partirmos apresentámo-nos na CCav 487, que era comandada pelo capitão Cidrais, e que era o responsável pela missão de trazer o pessoal da CCav 488, do BCav 490, que estava em Cuntima e deixá-los em Jumbembem que, até à data, não tinha tropa.

Em finais de maio de 1964, em dia que já não recordo [5], arrancámos pelas 7h00 da manhã, com a minha viatura à frente. Oito ou nove quilómetros percorridos, deparei-me com uma árvore abatida para o lado oposto à estrada. Alguém a terá acarretado para ali e decidi não parar, mantendo a marcha, uma vez que podia passar. Ocorreu que podia estar ali montada uma emboscada, mas continuei em frente. Cem metros adiante, outra árvore atravessava a estrada de um lado a outro. Desta vez, tive mesmo que parar. Atrás da minha viatura seguia a viatura das transmissões, comandada por um furriel europeu, que logo me gritou:

–  Que é que se passa?

 – Árvore na estrada, meu furriel!

O capitão, depois de observar o local, mandou-me arrancar com o guincho uma árvore seca que se encontrava ali, do lado direito, para abrir uma passagem. Continuámos e cerca de uma centena de metros à frente, antes de descermos uma pequena rampa, avistámos várias árvores, quinze, contámo-las, abatidas, cortadas propositadamente para impedir a passagem.

Agora é que eu não via meio de passar. O capitão decidiu enviar as últimas viaturas a Farim, para trazerem serras mecânicas.

Esta paragem durou muito tempo. Enquanto ficámos na mata a aguardar que as viaturas chegassem com o material, fomos sobrevoados por uma Dornier, que perguntou ao capitão se havia tropa ao fim da rampa. Que não, nós estávamos ainda na parte de cima, não tínhamos ainda começado a descê-la. E avisaram:

– Então cuidado, estamos a ver movimento de pessoal perto do local onde vocês estão.

Chegadas as viaturas, procedemos ao corte das árvores. Eram enormes, as serras não davam conta do trabalho. O capitão pediu-me que tentasse abrir uma passagem através da mata, o que consegui fazer. Aberta a picada, retomámos a marcha até que chegámos a Jumbembem sem mais atrasos. Deixámos ali viaturas com géneros e um pelotão de segurança e sem perder tempo abalámos para Cuntima.

Jumbembem e Cuntima eram duas povoações ligadas entre si por uma estrada de cerca de quinze quilómetros e a paisagem era mais aberta, com poucas árvores.

Chegados a Cuntima, outra vez sem grande demora, descarregámos o que havia para descarregar. A noite era boa para as emboscadas, por isso não era conveniente demorar muito para podermos fazer o percurso de regresso, ainda durante o dia.

Embarcado o pessoal da CCav 488, que estava destacado em Cuntima, iniciámos o regresso a Jumbembem, onde deixámos os militares, que ficaram a ocupar a antiga serração, enquanto nós prosseguimos a marcha de regresso a Farim.

Entre Jumbembem e Farim, na zona da rampa, onde começava a mata cerrada, vi grande quantidade de fumo a sair de um ajuntamento de lenha.

Parei e gritei para trás:

– Fumaça!

Um pelotão saiu e foi espalhar a lenha para desfazer a fogueira. Quando entrámos na picada, começámos uma ligeira subida e, de um momento para o outro, as viaturas que me seguiam ficaram debaixo de fogo. A minha viatura, talvez por ter apenas o condutor, passou. Peguei na minha Mauser, saltei da viatura e abriguei-me. A nossa resposta foi pronta e livrámo-nos sem problemas.

Tivemos ainda mais uma flagelação até à última emboscada, esta sim, bem mais séria. Apesar de estarmos prevenidos e da nossa resposta, sofremos um ferido muito grave [6] e vários feridos. O fogo acabou da mesma forma como começou, de um momento para o outro.

Dias depois, nova saída para Cuntima, comigo e a minha viatura à frente, como “rebenta minas”. Viajámos de noite, contra o que era costume, a coberto da escuridão e com ordem para não acender as luzes. Eu ia sozinho no meu carro, tentando respeitar a ordem, o que me tornava a condução muito difícil. Ia um pouco apreensivo e a condução estava a pôr-me cansado. Nunca até então tinha conduzido em tais condições, uma situação de arrasar os nervos. Por vezes, não sabia se devia voltar para a direita se para a esquerda, conduzia à sorte, quase só com a luz dos meus olhos, ou seja, quase às cegas.

Uma vez ou outra não resisti, acendi as luzes, por breves instantes. Andámos muito devagar e chegámos a Cuntima só ao amanhecer.

Na ida, não tivemos contacto com o inimigo, mas não aconteceu o mesmo no regresso. Fomos flagelados várias vezes, ao longo do trajecto, e lá nos fomos desenrascando com mais ou menos perícia. Isto é, eu acho que foi com perícia, porque não sofremos nem mortos nem feridos, o que não aconteceu ao PAIGC que teve, pelo menos, um morto, que foi o primeiro guerrilheiro que eu vi a morrer em combate.

Era um jovem, talvez com menos de 20 anos, sem camisa, de calções e descalço, com um barrete amarrado à cabeça por uma fita de pele de carneiro. Vi-o a ser arrastado pelo soldado Paulista Solda [7], da CCAV 487. Estava morto.

Durante a minha permanência em Farim, a povoação sofreu três ataques. A abrir colunas, como “rebenta minas”, em colunas de reabastecimentos, em patrulhamento ou em simples observação, sofri várias emboscadas, algumas em que fomos apanhados em terreno aberto e sem grande possibilidade de defesa. Posso dizer que a sorte andou comigo.

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Notas do autor Amadu Djaló /ou do editor Virgínio Briote:

[1] O BCav 490, comandado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, tinha estado no Sul, na Op Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 70 e tal dias seguidos, abarracados na ilha do Como, a comer enlatados. Regressara de lá arrasado, cheio de hepatites, com os pelotões reduzidos a metade. Depois, o Batalhão foi colocado em Farim e dispôs-se em quadrícula com uma companhia, a CCav489, em Cuntima, na fronteira com o Senegal, a CCav488 em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim e a CCav 487 em Farim.

[2] Capitão de Cavalaria Rui Gonçalves Soeiro Cidrais

[3] Chegada a Farim em 11 Março de 1964

[4] Depois de solto, foi incorporado no Exército e cumpriu comissão em Bafatá, no esquadrão de Cavalaria. É DFA e vive em Lisboa.

[5] Em 31 Maio de 1964, conforme História do BCav 490.

[6] João Félix Pereira dos Santos, Soldado Apontador de Morteiro, da CCav 487, evacuado para o HM 241 onde morreu 7 horas depois, ou seja, em 1 junho 1964. Condecorado com a Cruz de Guerra de 2ª Classe.

[7] Participou na Op Tridente, integrado no Grupo de Comandos, tendo sido agraciado em 5 junho de 1964 com a Cruz de Guerra de 4ª Classe.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23776: Notas de leitura (1515): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Depois dos autores nos darem a contextualização do movimento da descolonização, entramos nos problemas portugueses, fica-nos um relato das missões que percorreram os territórios ultramarinos ainda nos anos 1950, desencadeia-se a insurgência, o regime do Estado Novo apercebe-se que não pode contar com a NATO, tomam-se decisões orçamentais de grande significado, em breve vamos saber o que vai acontecer à Força Aérea, e como é que ela vai poder atuar na Guiné, logo no aceso do conflito.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (3)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné. Os acontecimentos do Pidjiquiti foram determinantes para a estratégia do PAI (mais tarde PAIGC), Amílcar Cabral reuniu com elementos subversivos em Bissau e propôs uma estratégia assente numa direção sediada em Conacri, como veio a acontecer, ficando um grupo operante a trabalhar na subversão interna, fazia-se o reconhecimento de que não havia condições para agir nos centros urbanos, as perdas seriam sempre enormes, era a partir do interior da Guiné e com gente bem preparada que se devia montar a luta armada. A proposta foi aceite, era lançado um programa a longo prazo de infiltração rural, doutrinação política e uma exigente preparação militar. Pretendia-se explorar as vulnerabilidades portuguesas, a luta armada iria completamente surpreender os efetivos militares na Guiné pela intensidade e diversidade dos ataques e dos apoios populacionais. Amílcar Cabral iniciava assim um percurso em que viria a ser tratado na cena internacional como o mais original político revolucionário africano, igualmente considerado um inovador e importante pensador militar do terceiro mundo. Cabral previu cinco fases potenciais do desenvolvimento do conflito, com base no pensamento clássico da guerrilha: preparação, agitação, guerra de guerrilhas, subversão e guerra convencional. Estabeleceu-se uma “estratégia centrifuga” dependente de áreas de base relativamente seguras, tanto na Guiné rural como nos estados vizinhos, na fase de arranque na Guiné Conacri. A previsão era ir exercendo uma pressão que fizesse erodir gradualmente a presença e autoridade portuguesas, isolando centros urbanos e as guarnições, a que mais tarde Cabral designará por destacamentos fortificados.

Numa primeira fase subversiva, atendendo à escassez de quadros e às limitações do armamento, Cabral ordenou aos insurgentes que evitassem confrontos diretos ou assaltos aos seus oponentes portugueses possuidores de melhor armamento, assim começou a subversão em vários pontos do Sul no segundo semestre de 1962, com destruições de infraestruturas, tornando tudo muito difícil à atuação militar portuguesa.

No mesmo ano em que Cabral viajou para a China, país onde foram formados os primeiros contingentes de quadros revolucionários, Harold MacMillan proferiu em plena África, no parlamento sul-africano na Cidade do Cabo, o seu histórico “vento de mudança”: “O vento de mudança sopra nesse continente e, quer gostemos ou não, o crescimento da consciência nacional é uma questão política iniludível”. O discurso de MacMillan ia estabelecer a matriz da política britânica em relação à descolonização em África, a própria França preparava-se para sair da Argélia e de todo o seu império. Salazar estabeleceu uma linha ultramarina inflexível, estava lançado o mote de que Portugal ia do Minho a Timor.

A insurgência contra o império português inicia-se em Angola, logo em fevereiro de 1961, há os ataques de militantes da UPA que provocaram massacres, eventos que horrorizaram a comunidade internacional e Portugal em particular, motivando a resposta oficial, “para Angola, rapidamente e em força!”. Inicialmente, no topo da hierarquia militar, houve uma tentativa para derrubar Salazar, o golpe palaciano foi abortado e os oficiais demitidos dos seus postos de comando, tendo mesmo Salazar assumido as funções de Ministro da Defesa. Em agosto desse ano, tropas do Daomé, país recentemente independente (hoje Benim), entraram no forte de São João Baptista de Ajudá e os residentes portugueses foram levados para a Nigéria, desaparecia assim a primeira presença portuguesa em África. O golpe mais grave ocorreu no final desse ano, as forças indianas invadiram os enclaves de Goa, Damão e Diu, o “Estado da Índia”, caiu em 40 horas.

Caiu um manto de silêncio sob a capitulação da guarnição, a propaganda do regime fazia constar casos de resistência heroica, o assalto indiano saldou-se em 30 mortes, 57 feridos e mais de 3 mil prisioneiros. Houve processo quanto à decisão da rendição, vários oficiais foram demitidos, alguns expulsos. O regime endureceu, a defesa dos territórios africanos tornou-se primeira prioridade. O regime procurou alianças, sendo membro fundador da NATO fez questão de apregoar que a defesa dos seus territórios ultramarinos fazia parte da defesa do Ocidente contra o comunismo internacional. A NATO tinha outra estratégia, queria divisões do estilo norte-americano e esquadrões de caças prontos para uma hipotética guerra europeia. Portugal viu-se sozinho, mesmo reclamando que estava a defender o Ocidente.

Vindo um pouco atrás, há que referir algumas missões que se realizaram na década de 1950 por todo o império, mais tarde o Marechal Costa Gomes irá sublinhar o que constava desses relatórios. Por exemplo, aludia-se à calma que se desfrutava em África mas que iludia uma tempestade próxima; em maio de 1957, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, emitiu diretivas para a preparação da Força Aérea Portuguesa. O Conselho Superior de Defesa Nacional emitiu três recomendações que evitavam quaisquer novos compromissos com a NATO, por razões de financiamento, lançava-se o planeamento para recolocação do pessoal. Em 1960, o mesmo Conselho deu ênfase às prioridades de planeamento para os territórios ultramarino, reduzia os compromissos com a NATO e até com a Espanha na defesa ibero-atlântica. O orçamento com a defesa duplicou, passou de 859,1 milhões para 1.670,6 milhões de escudos, criava-se a rúbrica dedicada a “forças militares extraordinárias no Ultramar”. Na verdade, o financiamento para as Forças Armadas mais do que triplicou de 280 para 950 milhões de escudos. Portugal foi forçado a procurar créditos estrangeiros, pela primeira vez em décadas. E com o alargamento das frentes de combate, as despesas foram subindo em espiral.

Vamos seguidamente falar da Força Aérea.
Vista do porto de Bissau, um pouco mais à esquerda ocorreram os incidentes que levaram a massacre de trabalhadores, 3 de agosto de 1959
Amílcar Cabral intervindo no Congresso Nacional do Partido Democrático da Guiné Conacri em dezembro de 1962, ao fundo está Sékou Touré
Salazar com o Presidente da República e membros do Governo, em 1958. Ao seu lado esquerdo está Botelho Moniz, Ministro da Defesa, figura de proa da Abrilada, exautorado por Salazar

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23769: Notas de leitura (1514): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23775: Fauna e flora (21): "Ó Falcão, o Jagudi não vai ao fanado, mas olha que não é parvo de todo!"... Uma "fabulosa fábula" guineense sobre o último dos últimos, o que ri melhor...


Portal dos animais > Abutres 
(com a devida vénia...)

1.  A propósito dos pobres dos  jagudis, aqui lembrados pelo nosso JBelo (*), sacrificados no altar da estupidez e da cupidez de algns dos piores exemplares desse bicho que se chama "Homo sapiens sapiens", não resistimos à tentação de reproduzir um dos primeiros postes do nosso blogue, o nº 52, de 8 de junho de 2005 (**).

É uma fabulosa fábula (passe o pleonasmo) guineense que merece ser objecto de leitura, de reflexão e de divulgação. É uma joia da sabedoria humana, com uma mensagem universal, que cala fundo. Podia ser o décimo quinto conto dos "Bichos" (1940), do português e transmontano Miguel Torga, se em Trás-os-Montes houvesse jagudis.  

Não havia o jagudi mas havia o primo, o abutre-preto (Aegypius monachus), agora em recuperação na Pennsula Ibérica. O abutre-preto é a maior ave de rapina da Europa, mas também do grupo dos abutres do velho mundo e da família Accipitridae, atingindo os 98–120 cm de comprimento e uma impressionante envergadura de asas de 268–310 cm. Os maiores indivíduos podem atingir os 13,5 kg de peso.

Como todas as estórias de animais, encerra uma lição, neste caso uma grande lição (filosófica, política e ética) em relação ao exercício do poder, aos detentores do poder, aos que são arrogantes e aos que não têm pejo em oprimir, desprezar ou marginalizar os mais fracos, os mais pequenos, os socialmente menos qualificados... A História, passada e recente, está cheia deles, das suas histórias pérfidas, malvadas, cruéis...

O jagudi (abutre-de-capuz, nome científico Necrosyrtes monachus) nã
o é ágil, elegante, superior, altivo, nobre, aristocrático e guerreiro como o falcão, mas nem por isso deixa de ter o seu lugar na criação e de desempenhar o seu papel na natureza. É certo que ele é pouco considerado tanto pelos humanos como pelos outros animais. É feio, é repelente, é necrófago...

Que o diga, aliás, o provérbio crioulo-guineense

(i) Kal dia ku sancu fala jugude manteña si ka pa rispitu di kacur;

 ou, noutra variante:

(ii) Kal dia ku sancu fala sakala manteña si i ka na disgustu di kacur 

Entenda-se: o macaco só conhece ou cumprimenta o jagudi no velório do cão.

Mas também há um outro provérbio que, de certo modo, vem em defesa do jagudi: 

(iii) Jugude ka bai fanadu, ma i kunsi uju... Leia-se: o jagudi não foi à circuncisão, não passou pelo ritual do fanado, mas consegue ver as coisas, ou seja, não é parvo de todo, não o tomem como tolo...

Em suma, uma estória que vem a propósito da História (com H grande) dos nossos dois países, Portugal e a sua ex-colónia da Guiné que,  quase meio século depois da independência (política), ainda está longe de ter encontrado os caminhos seguros da paz, da construção da unidade nacional, da liberdade, da democracia, da tolerância, da justiça, da equidade e do desenvolvimento sustentado. Coisas, de resto, que nunca estão asseguradas de uma vez por todas, mesmo no melhor dos mundos (dos EUA à Suécia)...

Que a elite dirigente da Guiné-Bissau (mas também as elites dos outros países como a Rússia ou  Ucrânia, dois "irmãos" eslavos hoje em guerra fratricida....) saiba, com humildade e inteligência, ouvir, aprender e aplicar a grande sabedoria do  povo guineense ... 

O falcão desta história é muito provavelmente o alfaneque (nome científico, Falco biarmicus). Mas também podia ser  o falcão-peregrino ou falcão-real (Falco peregrinus), que existe em todos os continentes, exceto na Antártida. Não nidifica na América do Sul.  De qualquer modo, não consta do Guia das aves comuns da Guiné Bissau (2017). 

O falcão-peregrino é uma ave de médio porte, corpo compacto, pescoço curto e cabeça arredondada com grandes olhos negros. Na Península Ibérica, o seu comprimento varia entre os 40 e os 50 cm, com um peso médio de 600 gramas (para o macho adulto) e de  900 gramas, aproximadamente, para a fêmea. Laragura das asas (ou envergadura): 74 - 120 cm. 

Sobre os falcões, em geral,  diz a Wikipédia:

(...) Falcão é o nome genérico dado a várias aves da família Falconidae, mais estritamente aos animais classificados dentro do género Falco. Os falcões são as menores aves de rapina medindo cerca de 15 a 60 cm de comprimento. São também muito leves pesando entre 35 g a 1,7 kg. 

O que diferencia os falcões das demais aves de rapina é o fato de terem evoluído no sentido de uma especialização no voo em velocidade (em oposição ao voo planado das águias e abutres e ao voo acrobático dos gaviões), facilitado pelas asas pontiagudas e finas, favorecendo a caça em espaços abertos — daí o fato dos falcões não serem aves de ambientes florestais, preferindo montanhas e penhascos, pradarias, estepes e desertos.

Os falcões podem ser identificados pelo fato de não planarem em correntes termais, como outras aves de rapina. O falcão-peregrino, especializado na caça de aves médias e grandes em voo, pode atingir 430 km/h em voo picado e é o animal mais rápido da terra. Diferentemente das águias e gaviões, que matam suas presas com os pés, os falcões utilizam as garras apenas para apreenderem a presa, matando-a depois com o bico por desconjuntamento das vértebras, para o que possuem um rebordo em forma de dente na mandíbula superior.

Na Idade Média, os falcões eram apreciados como animais de caça acessíveis apenas à elite (reis e nobreza). (...)

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 43. Ilustração de PF - Pedro Fernandes) (Com a devida vénia...)

Acrescente-se que este é um notável trabalho, financiada pela União Europeia e pelo Camões, Instituto da Cooperação e da Língua através do projecto Gestão Sustentável dos Recursos Florestais no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu.
 

2. A fábula do Jagudi e do Falcão

por Álvaro Nóbrega


À sombra duma árvore, um alto poilão secular, descansa tranquilo um jagudi (abutre-de-capuz). No mesmo ramo em que ele se empoleira, caiado de branco devido aos dejectos de tantos outros jagudis que por ali passaram, veio pousar um altivo falcão.

Depois de trocarem um breve e seco cumprimento, o falcão, sempre palrador, fanfarrão e irrequieto, começou a insultar o jagudi, chamando-o de desprezível, de cobarde, de preguiçoso, de oportunista e de muitos outros termos insultuosos e pejorativos que lhe vieram à cabeça, à sua cabeça, tonta e leviana. Acusou-o, repetidamente, de ser a mais miserável e feia das criaturas de Deus.

O jagudi ouviu tudo, sem nunca ter tido o mais pequenino gesto de impaciência, protesto ou de indignacão. Nisto, passa entre os dois, a grande velocidade, uma linda ave, de penas multicores.

Logo o falcão se lançou em perseguição da pobre vítima. Mas fê-lo de maneira tão desenfreada que por azar foi bater, em cheio, com o peito, de encontro a um tronco robusto de uma árvore da floresta que se lhe atravessara no caminho. Louco, cheio de dor, lançando pios lancinantes, caiu ao chão, mortalmente ferido, sobre o tapete de folhas secas que cobria o trilho da mata.

Nesse preciso momento, o jagudi levanta voo, com o seu ar pesado e pachorrento, e toma o seu lugar, imperturbável, à cabeceira do moribundo. O falcão, no estertor da agonia, ainda teve tempo de descortinar, horrorizado, a silhueta tenebrosa e agoirenta do jagudi, o seu bico afiado como aço e o seu pescoço descarnado.. E, trémulo, perguntou-lhe:

— Que vens aqui fazer, jagudi?

Ao que este respondeu, impávido e sereno:

— Aguardo o teu fim, meu amigo.

Fonte: Adapt. de Nóbrega, Álvaro (2003) - A luta pelo poder na Guiné-Bissau. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS). Universidade Técnica de Lisboa (UTL). 2003.23.


[ Revisão / fixação de textos  / negritos, para efeitos de publicação deste poste:

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23773: Historiografia da presença portuguesa em África (342): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
A despeito de todos os encómios à Revolução Nacional, que aqui aparece como motor de progresso e vozes se levantam a dizer que até 1926 estava tudo uma pasmaceira (mentira rotunda), ficam aqui dados ilustrativos de que Ricardo Vaz Monteiro preparou muitíssimo bem o terreno para o safanão e o grande impulso organizativo que será o timbre da governação de Sarmento Rodrigues, será este o fecho de abóbada de um quadro de identidade que fará da colónia a base da Nação em que hoje se fundamenta a República da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2)

Mário Beja Santos

Trata-se de uma descoberta de algum modo surpreendente, edição de 1943, bem ilustrado logo à entrada com as figuras proeminentes do Estado Novo, com o Governador Ricardo Vaz Monteiro todo medalhado, um prefácio de aplauso pelas coisas boas que a era de Salazar trouxe à Guiné e agradecimentos do Governador a Gaspar de Oliveira, o Vice-presidente em exercício da União Nacional da Guiné. A obra estrutura-se sob a forma de textos explicativos que procuram ressaltar o então recente desenvolvimento da colónia, vimos no texto anterior as intervenções de: Dr. António Francisco Borja Santos, Chefe dos Serviços da Administração Civil a pronunciar-se sobre a organização administrativa da Guiné; o Padre António Joaquim Dias Dinis, já nosso conhecido da história das missões católicas na Guiné, Pré-Perfeito Apostólico da Guiné, que aborda as missões católicas, uma vez mais; o Serviço Médico-Sanitário apresentado pelo Dr. Fernando de Montalvão e Silva, Chefe dos Serviços de Saúde; Armando de Morais e Castro, Inspetor dos Serviços da Fazenda, deixa um relance sobre a Guiné moderna; Ricardo Costa, Diretor dos Serviços de Alfândega, tece comentários sobre o Estado Novo na administração financeira; Caetano de Sá, Chefe de Repartição dos Serviços Aduaneiros, dá-nos o quadro da nacionalização do comércio na Guiné; e o Eng.º. José Pereira Zagallo, Diretor dos Serviços de Obras Públicas, deixa-nos uma sinopse do Serviço das Obras Pública. Abordam-se agora as outras intervenções, a saber: o Serviço dos Correios e Telégrafos, pelo seu Chefe de Serviços, Joaquim Alfama Godinho; os Serviços da Marinha, pelo Primeiro Tenente Francisco Marques dos Santos; as atividades industriais e transportes, pelo 2.º Tenente Viriato Augusto Tadeu; o aeroporto terrestre, pelo Capitão Pedro Pinto Cardoso.

Alfama Godinho faz o elogio da modernização dos Serviços Telégrafo-Postais, houvera notáveis progresso nas telecomunicações, estava tudo antiquado, fez-se uma substituição praticamente integral. Firmou-se com a Companhia Telefunken um contrato que assentava nas seguintes caraterísticas: estação de onda média e onda curta em Bissau, estação de onda média em Bolama, estação de onda curta em Bubaque. As estações de onda curta, as de Bissau e de Bubaque executavam o serviço costeiro e a de Bolama fazia o mesmo serviço e ainda os de navegação aérea e radiogoniométrico. Por via terrestre, estabelecera-se as comunicações telegráficas entre a Guiné e a colónia francesa do Senegal, montou-se a linha S. Domingos – Ziguinchor. Igualmente fora estabelecido o serviço telefónico urbano em Bissau e em Bolama. E registaram-se melhorias nas centrais telefónicas. Observa que uma das consequências imediatas das montagens das novas estações da TSF da Guiné fora a inauguração de carreiras aéreas para o transporte de correspondências postais, a que se seguiu a chegada da Pan-American Airways Company com transporte de passageiros e de malas de correio.

O Primeiro Tenente Marques dos Santos refere-se aos Serviços de Marinha informando que antes da Revolução Nacional a Capitania dos Portos vivia num abandono criminoso, era patente a organização deficiente dos serviços de pilotagem, confiados a indígenas analfabetos. A partir de 1929, os seis faróis a petróleo foram substituídos por faróis automáticos. Construíra-se recentemente uma rede de faróis, eram agora 20, alguns de três boias luminosas, duas boias de prismas e de um grande número de boias cegas. Fora importado da Holanda o rebocador Bissau e estavam definidas as competências da Capitania dos Portos: administração das pontes e cais acostáveis; fiscalização marítima, hidrografia e oceanografia; carreiras dos vapores do Estado; instrução profissional do pessoal indígena. Havia igualmente uma superintendência no porto de Bissau, nas delegações marítimas de Bolama, Cacheu e Bubaque e nas subdelegações de Farim e Bafatá.

Coube ao Segundo Tenente Viriato Tadeu apresentar as atividades industriais e os transportes. Referiu as oficinas navais, situadas em Bolama, datavam de 1905, toda a sua atividade estava ligada à história da Guiné durante o período da ocupação - assistência e reparação dos navios de guerra e outros. Desde de 1926 que estas oficinas também serviam a marinha privada da colónia. Agora as oficinas navais eram uma base de recursos para o aeroporto de Bolama e respetivas empresas aéreas. Em 1941 havia 462 viaturas ligeiras e pesadas em circulação. Estando-se no auge da guerra, o oficial exprime a opinião sobre o aproveitamento de todos os recursos, dizendo: “As possibilidades mecânicas de gasogénio, com produtos florestais, são já evidentes e os seus resultados práticos absolutamente confirmados, pelo que a possibilidade de aliviar a economia da Guiné e dos encargos de importação de combustível líquido será forçosamente de ser encarada”. Falando da preparação indígena, dirá: “De modo a resultarem frutos produtivos para o indígena e para a colónia prevê-se a organização de uma Escola de Artes e Ofícios, em Bolama, que terá por centros de aplicação prática as oficinas navais e a Imprensa Nacional”.

Competiu ao Capitão Pedro Pinto Cardoso exprimir-se sobre o aeroporto terrestre. Esclareceu que o aeroporto tem uma pista de 4 quilómetros, poderá ser utilizado para aviões comerciais, mesmo em voo noturno. Havia na Guiné um avião DH Leopard, tinha diferentes obrigações: correio, transporte urgente, incluindo socorros médicos; e treino de pessoal navegante. O aeroporto tem sido utilizado pelos hidroaviões da Pan American Airways, quadrimotores Boeing. Havia campos de aviação para avionetas em Bolama, Bissau, Bafatá, Gabu, Mansoa, Cacheu, Canchungo e ilha das Galinhas.

A última comunicação, dedicada à assistência agrícola e zootécnica, coube ao Regente Agrícola Joaquim Graça do Espírito Santo. Esta assistência surgiu em 1927, com a criação das Repartições Técnicas da Agricultura e da Veterinária, nesse mesmo ano surgiu a Estação Zootécnica João Belo, em Bissau. A sede da Repartição dos Serviços Agrícolas e Florestais estava no Campo Experimental de Bor. E mostrava-se muito confiante, como escreveu: “A criação de campos experimentais de culturas e a distribuição de plantas e alfaias agrícolas, conjugada com a ação dos técnicos como agentes difusores das moções racionais do amanho do solo e aliados à cooperação franca das autoridades administrativas têm contribuído de modo sensível para o progresso das produções indígenas”.

É este o quadro que nos fica da evolução da Guiné no início da década de 1940, a surpresa está em que o antecessor de Sarmento Rodrigues lançou vias de progresso que em muito contribuíram para a evolução fenomenal que ocorreu posteriormente, e aqui vemos como Sarmento Rodrigues inaugurou muita obra de Vaz Monteiro tal como Raimundo Serrão irá inaugurar muitíssima obra encetada por Sarmento Rodrigues. É uma das ironias da política.
Major Ricardo Vaz Monteiro (Governador da Guiné, 1941-1945)
Bissau em 1950, imagem da Agência-Geral das Colónias
Edifício dos Correios 1950, imagem de um trabalho sobre a Arquitetura da Guiné no período colonial
Estação meteorológica de Bissau em 1952, imagem retirada do trabalho anterior
O rebocador Bissau, anos 1940
Um Clipper da Pan American, igual aos que amaravam e partiam de Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23757: Historiografia da presença portuguesa em África (341): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23772: Fauna e flora (20): crime contra a natureza: mortos, por envenenamento, em 2020, segundo a revista "Science", mais de dois milhares de jagudis (Necrosyrtes monachus) na Guiné-Bissau (José Belo, Suécia)



Jugudé (cr) | Necrosyrtes monachus | Jagudi (pt) | Abutre-de-capuz (pt)  | Hooded vulture (en) | Comprimento  70 cm | Envergadura  176 cm.


Bem conhecido da maior parte das pessoas, é fácil observá-lo em cidades e tabancas, frequentemente em pequenas lixeiras, matadouros e portos onde se alimenta de desperdícios
deixados pelo Homem e de animais mortos. 

O seu papel ecológico na natureza e nas cidades é essencial, ajudando a eliminar doenças e parasitas. Escasso no sudeste e no sul do país. Embora ainda seja abundante na Guiné-Bissau, está muito ameaçado de extinção em toda a África.

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 36. Ilustração de PF - Pedro Fernandes) (Com a devida vénia...)


Segundo o portal Bird Life International, "suspeita-se que esta espécie esteja atualmente a sofrer uma redução populacional extremamente rápida devido ao envenenamento indiscriminado, tráfico para efeitos de medicina tradicional, caça para alimentação, perseguição e eletrocussão, bem como a perda e degradação do habitat".  Estima.se que 
as taxas globais recentes de redução excedam 80% durante o período atual e futuro de três gerações. O o é, portanto, avaliado como "Criticamente Ameaçado"  população estimada: 131 mil. Área de criação e residência: 22,5 milhões de km2.


1. Mensagem de José Belo, o mais "internacional" dos membros da Tabanca Grande (vive entre a Lapónia sueca, a Suécia e os EUA, Florida, Key West);

Data - sábado, 29/10, 19:45 

Assunto - Os Jagudis de uma saudosa….Guiné

Em Outubro de 2020 foram mortos na Guiné-Bissau mais de 2000 “jagudis”, abutres da espécie Necrosyrtes Monachus (abutres de capuz).

Foi, segundo a revista Science, o envenenamento mais letal de abutres em todo o mundo.

Os abutres terão sido envenenados propositadamente para remover as suas cabeças, asas, unhas e patas para uso em práticas de feitiçaria em diversos países da África Ocidental.

Este envenenamento foi comprovado pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa.

Ainda, e segundo a revista Science,  desapareceram na África Ocidental entre 60 a 70% destas aves.

A Guiné-Bissau alberga mais de 1/5 da população mundial destas aves, sendo um dos mais importantes países para a conservação desta espécie a nível mundial.

Como muitos recordarão, os “jagudis” com os seus voos circulares eram imagem quotidiana no céu da Guiné aquando do feliz (!) tempo colonial.

Na sua função essencial para os humanos e ecossistemas eliminavam grande parte do lixo orgânico nas cidades e vilas do país evitando a proliferação de doenças.

As multas aplicadas pela Administração Colonial quanto ao abatimento destas aves eram elevadas no contexto económico da época.



Um par de jagudis, "pormíscuos e exibicionistas, naturalizados americanos". Imagem fornecida pelo autor, cortesia de "The Guardian" e "CNN" (on line).

Em 2022 a espécie está longe de uma recuperação significativa.

Será que alguns exemplares artificialmente (!) introduzidos na exótica fauna da tão hospitaleira Flórida irão conseguir restabelecer um equilíbrio populacional destas aves?

Tendo vindo a demonstrar uma acentuada capacidade de adaptação a um certo tipo de decadência local (bem característico de, por exemplo, Key West) estão a tornar-se em inesperados e promíscuos... exibicionistas!

As maravilhas da natureza na sua luta pela sobrevivência nunca deixam de surpreender.

Um abraço do JBelo
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22987: Fauna e flora (19): O grou-coroado ou "ganga" (em crioulo), uma ave que "matou a malvada" a alguns de nós, em tempo da guerra... Está agora ameaçada de extinção.

Guiné 61/74 - P23771: Parabéns a você (2112): António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 4942/72 (Mansoa, Barro e Bigene, 1973/74) e José João Alves Martins, ex-Alf Mil Art do BAC 1 (Guiné, 1967/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23758: Parabéns a você (2111): TGeneral PilAv Ref António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Bissau, 1972/74)

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Farim (e dos seus bairos  Nema e Morocunda), além de K3 e Bricama. Recorde-se que cada centímetro da carta corresponde a 500 metros no terreno.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022).


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, aos 74 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2a. edição. 

Recorde-se, aqui sumariamente, os primerios vinte e poucos anos do Amadú Djaló (1940-2015), a partir dos excertos que já publicámos (**):

(i) o Amadu Djaló era, em 2010, quando o seu livro foi lançado (no Museu Militar en Lisboa) um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, como muito bem lembrou o Virgínio Briote;

(ii) Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, juntando-se a milhares de guineenses; mas o seu pai  que era empregado de balcão de um comerciante libanês, em Bafatá, o Assad,  tivera antes o sonho de o levar até ao Senegal, onde dois sobrinhos-netos eram militares do exército francês, ambos 2º sargentos e antigos combatentes da guerra da Indochina; após consulta a um vidente, passou a sonhar com uma carreira militar brilhante para o filho, coisa que ele na Guiné portuguesa, em sua opinião,  nunca poderia ambicionar:

(iii) recenseado pelo concelho de Bafatá, o Amadu acaba por ser  alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(iv) depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, ponde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas:

(v) é colocado depois em  Bedanda, na 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), em finais de 1962:

(vi) é tranferido, a seu pedido para a 1ª CCaç (mais tarde CCAÇ 3) em Farim, em meados de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim   (segundo semestre de 1963, pelas nossas contas). Mantemos a ortografia original.
  



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O início da guerra em Farim, no segundo semestre de 1963

(pp. 64-70)

por Amadu Bailo Djaló



Uma coluna de Farim a Susana em cerca de 20 horas

Cerca de um mês depois houve ordem para recolher os pelotões que se encontravam nos destacamentos. A nossa companhia 
[a 1ª CCAÇ]  tinha dois pelotões, um em Porto Gole e outro em Susana.

A minha viatura, depois de descarregada, ficou preparada para fazer parte da coluna com destino a Susana 
[na região de Cacheu]  . Partimos por volta das 08h30, andámos todo esse dia e toda a noite, debaixo de chuva torrencial, numa estrada difícil e lodosa, que exigia muita perícia e um andamento muito cauteloso.

De Farim até Bigene e Barro a estrada não estava muito mal, o pior foi depois, os carros patinavam e atascavam-se a toda a hora.

Quando chegámos a Susana, às 4h00 da madrugada, o pessoal já estava cansado de tanto esperar. Tivemos que carregar tudo rapidamente e por volta das 6h00 iniciámos o regresso a Farim.

Quando passámos pelo Ingoré, vi o alferes Almeida algo preocupado. Andava a ver se arranjava qualquer coisa para dar de comer ao pessoal que estava faminto, já que não comíamos nada desde que tínhamos saído de Farim. Vi-o regressar de mãos vazias. Compreendemos e resignámo-nos, não havia outro remédio.

Para acrescentar, a jangada estava avariada e tivemos que aguardar até às 19h00, que foi quando ficou pronta. Atravessámos o rio 
[Cacheu , seguimos para Bula, onde chegámos à noite, por volta das 21h00.

Aqui, o alferes ganhou esperança em encontrar comida. Mas, tal como no Ingoré,  veio com as mãos a abanar. Não havia nada a fazer e pusemo-nos a caminho de Binar e Bissorã. Em Binar, nem parámos, só quando chegámos a Bissorã descansámos, já passava das 3h00 da madrugada

Refeitos, prosseguimos, primeiro para o Olossato e depois para o K3 e aqui o alferes recebeu uma mensagem para rumar para Mansabá, onde nem parámos e depois para Mansoa.

Desde Susana, trazia de reboque um Unimog “gripado”. Em Mansoa ficámos a aguardar o pelotão que vinha de Porto Gole [1].

Quando chegaram de Porto Gole as duas viaturas, um jipe e um Unimog, a coluna pôs-se finalmente em marcha de regresso a Farim.


Bricama, uma tabanca de pouca confiança


Na tabanca de Bricama, viviam homens válidos para pegar em armas. O comandante da 1ª CCaç, um capitão cujo nome não recordo, era uma pessoa já com certa idade, tratava-me por cunhado, entendeu entregar ao chefe da tabanca dez armas Mauser, para a autodefesa da tabanca. E se tudo corresse bem estava na intenção de entregar, mais tarde, espingardas G-3.

Um mandinga, chamado Malan Injai, também conhecido por Manjai, andava, de tabanca em tabanca, a vender cola e aproveitava para colher informações, que depois passava à tropa. Um dia disse que a tabanca de Bricama não era de confiar e a tropa decidiu recolher as armas.

Um certo dia, Malan Injai entrou no quartel exausto e com ar de sofrimento. Apresentou-se ao oficial de dia e mostrou-lhe as costas em chagas provocadas por chicotadas que lhe tinham dado na mata de Bricama, onde fora preso por uma patrulha do PAIGC, que o acusou de prestar informações à tropa.

Depois de aprisionado e apresentado ao chefe e à população da tabanca, como informador da tropa e traidor, foi levado para um acampamento, onde foi julgado e condenado à morte, por fuzilamento, quando amanhecesse.

Felizmente para o Malan, no grupo que o prendeu, havia um patrício dele que se condoeu e o soltou por volta da meia-noite. Malan pôs-se em fuga e caminhou na mata até Farim, onde chegou mais morto que vivo. Muito emocionado, relatou tudo o que tinha acontecido.

Quando Malan se apresentou ao capitão da 1ª CCaç, em Farim, este, prudentemente, optou por recolher as Mausers que estavam em poder do chefe da tabanca de Bricama.

Para o efeito encarregou o alferes Almeida, do esquadrão de Bafatá 
 [2], para executar a diligência no dia seguinte, na qual eu também participei.

Chegados à tabanca de Bricama fomos acolhidos por pouca gente, ao contrário das outras vezes. O alferes perguntou pelo chefe da tabanca. Veio um filho que informou que o pai se tinha deslocado a Farim, chamado pelo administrador.

– E onde estão as armas?

–  Não posso mostrar. Quando o meu pai sai, fecha a casa e leva as chaves com ele.

–  Por onde passou o teu pai? Não o vimos no caminho!

–   Nós costumamos seguir a corta-mato, que é mais rápido.

Perante esta resposta e como não convinha demorar, o alferes resolveu regressar. Chegados a Farim, fomos directamente à casa do administrador, que informou o alferes Almeida de que o chefe da tabanca tinha ido a casa de Braima Baio, chefe da tabanca de Farim, e que desconhecia se ele ainda regressava naquele dia a Bricama ou se dormia em Farim. O administrador prontificou-se a enviar o motorista a casa de Braima, no bairro de Morocunda, incumbindo-o de trazer o chefe da tabanca, caso ele lá se encontrasse, o que não sucedeu. O motorista, quando regressou, disse que o chefe já tinha regressado à tabanca. E o alferes Almeida prontamente deu a informação ao nosso comandante.

No dia seguinte, de manhã, voltámos a Bricama e encontrámos o chefe da tabanca. Após os cumprimentos, o alferes quis saber dos motivos que o tinham levado a Farim, a casa do administrador, ao que ele respondeu que era devido ao atraso nos pagamentos do imposto. E o alferes continuou:

– Viemos cá, para falarmos sobre esta questão: o chefe tem entre 60 a 80 homens aptos a usarem armas. E, dentro de algum tempo, nós vamos receber mais armas. Assim temos que recolher todas as Mausers, que estão à sua guarda, a fim de serem substituídas por G-3, que são muito superiores. E, logo que seja possível, entregaremos mais algumas.

De imediato, o chefe da tabanca dirigiu-se a casa e, pouco depois, surgiu com nove armas.

– Não são nove. Pela relação que tenho, são dez Mausers!

A arma que faltava tinha já sido recolhida pelo cabo da arrecadação, uma vez que se tinha verificado anteriormente que a arma não estava em condições. Resolvida a questão, regressámos a Farim.


Os dois primeiros  ataques do PAIGC a Farim, no 2ºseemstre de 1963

Quatro ou cinco meses depois de ter sido transferido para Farim, a 1ª CCaç deslocou-se numa coluna de quatro viaturas, à serração de Carés, que ficava perto de Fajonquito, na linha da fronteira com o Senegal. 
[Carés, topónimo que não existe, mais provavelmente trata-se de Caresse]

Quando chegámos arrumei o meu carro junto de outras viaturas. Na minha viatura vinham soldados africanos, nas outras que me seguiam vinham soldados africanos e europeus, que pertenciam ao esquadrão de Bafatá e que estavam destacados na 1ª CCaç, em Farim.

Quando acabámos de estacionar, fui surpreendido por uma voz conhecida. Era o 1º cabo Eurico.

 Eh, pá, não há como na tropa! Um dia separámo-nos em Cacine, junto à fronteira com a Guiné-Conakry, nunca pensei voltar a encontrar-te na Guiné quanto mais neste local, junto à fronteira com o Senegal!

Chamou os colegas [3], fizemos uma grande festa e perguntei onde estavam agora colocados.

 Em Canhamina    responderam.   [Canhamina ,a seguir a Fajonquito, a nordeste, já na carta de Tendinto, que nos falta].

Pouco tempo depois,
 Carès passou a ser terra de ninguém. Num dia, o proprietário da serração, temendo ser atacado, comprou armas e munições para a defender. Mas não resistiram ao ataque do PAIGC. O dono da serração morreu no local e a serração fechou e foi transferida para Bafatá, para um local perto da minha casa [4].

Estava uma noite de luar. Eu tinha-me deslocado ao bairro de Sinchã e estive a divertir-me com alguns colegas. Com a noite já adiantada, resolvi regressar ao quartel. No caminho, quando estava a chegar ao bairro de Nema, vi o pelotão de milícias formado à porta do régulo Made Sissé. Estavam a preparar-se para se dirigirem para os locais de vigilância à segurança do bairro. Passei por eles, sem me dirigir a ninguém, pois estava com pressa de chegar ao quartel, que não ficava a mais de meio quilómetro.

Uns metros andados fui surpreendido por barulho de tiros e de rebentamentos, que me pareceram atingir toda a vila.

– Mas que é isto?  interroguei-me, espantado, sem saber bem o que fazer.

Se tentasse deslocar-me para o quartel, algum militar que me visse a aproximar, baleava-me logo. Por outro lado não me parecia que regressar ao local de onde tinha partido, fosse uma boa solução. As milícias armadas tinham-se espalhado pelo bairro e o perigo para mim era o mesmo. Agachei-me, colei-me ao chão, a pensar no que havia de fazer. O fogo abrandou e a correr alcancei o bairro de Mancanha, já muito próximo do quartel. Vi uma casa e abriguei-me na varanda. O tiroteio recrudesceu e eu bati à porta.

– Quem é?

– Abra a porta!

– Não!

– Se não abrir, vou ter que arrombar!

– Tenho medo!

– Não tem que ter medo, sou militar!

Vendo a porta aberta, entrei precipitadamente, fechei-a e fiquei com a chave na mão. Era um velho que vivia sozinho.

Desconfiados, mantivemo-nos algum tempo a olhar um para o outro. Não me sentia confiante no meu companheiro e, por isso, resolvi não dormir, embora os olhos se me quisessem fechar. Não o deixei sair, nem para urinar, permaneci toda a noite sentado e só resolvi sair, quando as armas se calaram, o que aconteceu por volta das 5 da manhã. Entreguei-lhe a chave, mostrando-lhe que, em mim, não havia qualquer má intenção, apenas queria abrigar-me do tiroteio.

Dirigi-me a um posto de vigilância, próximo dos Correios, e aguardei a viatura que estava a recolher os vários militares dispersos pelos postos de vigilância.

Quando cheguei ao quartel, viviam-se os momentos habituais depois de um ataque. Cada um falava e contava como tinha sido. Emoções e lembranças surgiam a cada passo. As recordações do acontecido duraram poucos dias. Mas estávamos certos que o 1º ataque, de que houve memória, do PAIGC a Farim se iria repetir.

Uma semana depois da recolha das armas em Bricama, o nosso comandante entendeu estar na altura de ver como a população da tabanca estava a reagir. A minha GMC, carregada de soldados,  abria uma pequena coluna de quatro viaturas. Íamos com destino a Bricama, uma localidade atravessada por um ribeiro com muita água e sobre o qual havia uma ponte de troncos de palmeiras.

A tabanca estava na outra margem, a pouco mais de 50 metros. Quando nos aproximámos da ponte, foi com surpresa que verifiquei que tinha sido queimada.

– Siga, continua    gritou-me o alferes Almeida.

– Então e a ponte, meu alferes?

Vendo-me parado a olhar para os restos calcinados da ponte, avançou com o jipe.

– Toca a saltar cá para baixo, menos os condutores    ordenou.

Verificando que a travessia não se podia fazer, mandou o pessoal embarcar novamente e regressámos a Farim.

Esta foi a última saída a Bricama e também o adeus à população da tabanca, que julgávamos nós estava libertada da influência do PAIGC. A partir deste acontecimento, redobrámos a vigilância, as vias de acesso a Farim passaram a ser mais controladas e tivemos consciência que a zona de Farim estava a entrar numa nova fase da guerra.

Não ficámos muito admirados, quando dias depois, Farim voltou a ficar debaixo de fogo. Não foi tão violento, nem tão prolongado como o primeiro. Não houve vítimas do nosso lado, do outro não sei. Também desta vez, me encontrava fora do quartel, estava de serviço aos Correios.

 (Continua)

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Notas do autor:

[1] Da CCaç 413, comandado por um alferes que me disseram mais tarde ser sobrinho do Brigadeiro Arnaldo Schulz, nomeado Governador-Geral em 29 março de 1964, quando eu me encontrava ainda em Farim.

[2] ERec 385

[3] Do Pel Caç 870

[4] Depois de 25 de Abril de 1974 a serração acabou por ser abandonada.


[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos /  negritos / parênteses rectos, com ntas adicionais, para efeitos de edição deste poste: LG. ]

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(**) Vd. os outros postes anteriores:

22 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência

16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

14 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

22 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)