Queridos amigos,
Começo agora a perceber por que razão os ingleses ganharam um ódio de estimação a viajar pelas autoestradas, seis faixas permanentemente repletas, camiões gigantescos, um ruído infernal do rodado de veículos de todas as dimensões, fico com a sensação de que toda a gente está a viajar em grande velocidade para sair de um inferno e entrar noutro; daí o prazer que se sente em andar em estradas secundárias, como é o caso das Dales, em Yorkshire. Houve uma alteração de última hora, seguiu-se para perto de Wakefield, aproveitei para dar um salto a uma cidade que muito aprecio, Leeds, é dessa curta viagem que aqui registo algumas imagens, o passeio continuará para uma zona de natureza exuberante, o Peak District, já não tenho arcabouço para subidas e descidas íngremes, em caminhos pedregosos, mas vou contente pelas caminhadas em terreno plano, em Dove Dale, e tudo a partir de um local com um casarão vitoriano, mesmo neogótico, Ilam Hall, aí sim, senti-me à solta nessa Inglaterra rural, longe das medonhas autoestradas.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (183):
From Southeast to the North of England; and back to London – 3
Mário Beja Santos
Estamos a sair de Faringdon, é uma verdadeira correria por estradas até alcançar a famosa M40, em direção ao Norte. Trânsito assustador, não há pausa para automóveis e camiões, num sentido e noutro, barulheira alucinante para quem se atreva a abrir os vidros, então o rodado dos camiões TIR até provocam angústia. Na véspera à noite fico a saber que houve alteração de planos, quem nos irá receber no condado de Yorkshire pede para partirmos imediatamente, há meninos que nos querem ver e que vão para uma excursão, é só um afinar de agulhas, comunica-se para Ilam Hall que seguiremos depois, estamos todos de acordo por um belo passeio pelo Peak Park. Após a estafadeira da M40 envereda-se por estradas secundárias, chega-se aos arredores de Leeds, receção calorosa, terei o dia seguinte por minha conta, inevitavelmente vou pôr-me ao caminho de autocarro até esta cidade que me fascina, e por várias razões.
A primeira, observo que há no planeamento urbano medidas sensatas na complementaridade entre a chamada arquitetura vitoriana e eduardiana com a contemporânea. Basta conferir o que me foi dado ver à saída do terminal rodoviário, construções modernas que prosseguem até à entrada do centro de Leeds, são edifícios que não ferem pela escala, que embrincam tanto pelo volume como pela cor, como procuro pela imagem exemplificar.
Mercado multiétnico, uma estrutura asseada que poderá um dia ser removida, sem danos urbanísticos
Do lado direito de quem sobe, uma conjugação acertada entre o antigo e o moderno, o lado esquerdo a seu tempo será demolido e seguramente que irá adquirir harmonia na escala.Estrutura residencial antiga, não há destruições ao nível do espaço comercial do rés do chão
Leeds tem tradições industriais e comerciais. É, depois de Londres e Glasgow, uma praça financeira forte, que dinamiza todo o tipo de mercados, incluindo o cultural. O seu conjunto de galerias é de uma impressionante beleza, faz mesmo parte da rede europeia das galerias cobertas.Era inevitável, depois de andar embasbacado a ver fachadas de edifícios, procurar polos artísticos. O Instituto Henry Moore está em obras, fiquei triste, dou-me muitíssimo bem com o génio deste grande escultor britânico. E resolvi mergulhar na Leeds Art Gallery, eis-me na sua sala maior, abarca o romantismo, o naturalismo, o realismo, não há aqui propriamente arte contemporânea, temos uma cópia desta escultura de Rodin no Museu Nacional de Arte Contemporânea, há muito para contemplar aqui, e com prazer. Vou fixar-me em duas obras.
O título deste óleo, John Atkinson Grimshaw (1836-1893) é Reflexos no rio Aire – em greve. Grimshaw parece focar-se nos seus efeitos de luz noturna na sua pintura que contrasta com a silenciosa fundição de ferro no lado oposto do rio Aire. Grimshaw era inequivocamente um adepto da pintura realista-social, procurava temas industriais, cenas de trabalho industrial e de condições de vida. O que mais aprecio são as tonalidades do céu e a riqueza da luz que partindo da Lua se espalha pelo rio.
Este quadro de Arthur Hacker (1858-1919) intitula-se A Tentação de Sir Percival, 1894. Hacker foi um bem-sucedido retratista, consagrado pela Royal Academy, a sua pintura, como se pode ver neste quadro reflete o movimento pré-rafaelita. Espelha, aquele movimento de desencanto com a vida moderna e o desejo de que a arte pudesse expressar um sentido moral. Obviamente que esta tentação de Sir Percival coincide com o interesse pela lenda arturiana, muito comum ao tempo.
Pago de bom grado mais de 5 euros para um cafezinho aqui, naqueles tempos vitorianos os espaços públicos de museus ou bibliotecas deviam possuir toques de requinte quase palaciano, o povo devia ser acolhido em construções de elevado gosto artístico. Este movimento fez escola, quando se implantou o comunismo na Rússia, Lenine fez questão de designar as estações de metropolitano em Moscovo como espaços quase palacianos, o povo merecia o melhor. Mas esta ideia já tinha antecedentes, como aqui se pode ver.
Não é a primeira vez que me deito no chão ou acocoro para tirar efeito de certo ângulo, estou no rés do chão da Leeds Art Gallery e gosto muito desta mistura de um estilo clássico e pintura contemporânea.
Como resistir a esta estatuária pomposa (trata-se da rainha Ana) ao lado de produtos de merchandising artístico?
Vou agora passear para o rio Aire, outrora um espaço azafamado pela ocupação de armazéns comerciais. Esse comércio morreu e houve o bom senso de reaproveitar estes esplêndidos equipamentos para habitação. O sucesso está à vistaDespeço-me de Leeds, ainda vou até à biblioteca e a dois edifícios religiosos, mas tenho quase a certeza de que numa viagem anterior deles já vos fiz o registo. Volto para junto de gente amiga, está mesmo garantido que amanhã rumamos para Ilam Hall, já não tenho pernas para a clássica peregrinação no Peak District (39 milhas), mas há pormenores de Dove Dale em que poderei cirandar sem martirizar a coluna e os joelhos. Depois eu conto.
(continuar)
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Nota do editor
Último post da série de 7 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26244: Os nossos seres, saberes e lazeres (657): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (182): From Southeast to the North of England; and back to London (2) (Mário Beja Santos)