domingo, 1 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3955: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (3): O local estava minado e o PAIGC sabia-o (Jorge Félix)


Guiné > Algures > Maio de 1973 > A 25, Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, visita o CTIG: ei-lo aqui à direita de Spínola, falando com milícias guineenses. Foto do francês Pierre Fargeas, que fazia a manutenção dos helis AL III, na BA 12, Bissalanca.

Foto: © Pierre Fargeas / Jorge Félix (2009). Direitos reservados.

1. Comentário, enviado em 25 de Fevereiro de 2009, pelo nosso camarada Jorge Félix (ex-Alf Mil Pil Al III, BA 12, Bissalanca, Guiné, 1968/70), a quem já saudámos pelo seu regresso ao nosso convívio (*):

Assunto - P3909: Perguntas, por que é que a FAP não bombardeou Madina de Boé em 24/9/73 ?

Não tenho qualquer dado para responder a isso, mas posso contar o que aconteceu em 69.

A data, 6 de Fevereiro de 169 , que tu indicas como sendo a do abandono de Madina do Boé, não condiz com a minha caderneta de Voo.

Tenho na memória que fiz parte dessa enorme operação mas nessa data tenho registado TEVS e TMAN em Teixeira Pinto. Não terá sido em 20 de Fevereiro 69 ?

Recordo-me que fiz algumas operações de evacuação por "ataque de abelhas" no dia do abandono de Madina.

Como sabes, Madina foi abandonada mas ficou "minada". Passados uns dias (?) desta retirada, Spínola foi com um fotógrafo, o Maj Bruno e cinco páras, fazer umas fotos pois o Paris Match tinha publicado imagens de Amílcar Cabral como sendo em Madina, com a legenda "A tomada de Madina".

Eram dois Helis, eu seguia num, com os Páras (picadores na especialidade). As ordens eram as seguintes: Eu largava um Pára que picaria o terreno para os Helis aterrarem. Assim foi executado.

Para que o IN pensasse que havia muita tropa, foi feita uma manobra de diversão. Enquanto o Gen Spínola estava em terra, os dois helis aterravam e levantavam fazendo voltas de pista, para sugerirem muitos efectivos.

As movimentações em terra eram feitas com muito cuidado. No único local onde há montes na Guiné [, as famosas Colinas do Boé,], os Helis apareciam e desapareciam para dar a ideia de muito aparato.

Recuperado o Chefe, Maj Durão, fotógrafo, e julgo mais um graduado, e os quatro Páras, que seguiram comigo, nunca mais voltei a aterrar em Madina do Boé.

Com estas fotos, Spínola queria mostrar que Madina ainda era controlada por nós, mesmo abandonada.

Porquê toda esta tosca explicação?

Acho que seria inapropriado o PAIGC ir com o seu Povo fazer uma cerimónia de independência num local que eles sabiam estar minado. Não saberia a FAP que eles nunca iriam a Madina ?

A cerimónia terá sido mesmo em Madina do Boé, dentro da Guiné?

A Guiné-Conacri fica ali a dois passos.

Gostaria de saber se, em 1973, o Gen Bettencourt Rodrigues aterrou em Madina ou só fez umas passagens para ver se havia alguém.

Afinal não estou a esclarecer nada, estou a aumentar as dúvidas!!!

Junto uma foto que me foi enviada por Ms [Pierre] Fargeas, técnico francês que fazia a manutenção dos Helis (aqui, à esquerda, cortesia de Especialistas da BA 12, Guiné 1965/74) . Podes publicar.

Já vou muito longo, desculpa. Lá fora está um solito a convidar. Vou me aventurar e esticar o pernil. Os voos cada vez são mais pequenos.

Um abraço, Jorge Félix

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 1 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3953: O Spínola que eu conheci (3): Um homem de carácter (Jorge Félix)

(**) Vd. poste de 18 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3909: (Ex)citações (16): Por que é que a FAP não bombardeou Madina do Boé em 24/9/1973 ? (Luís Graça / A. Graça de Abreu)

Vd. também:

18 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3911: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (1): Em 1995, confirmaram-me que o local da cerimónia foi mais a sul (Miguel Pessoa)

20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3920: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (2): Opção inicial, uma tabanca algures no sul, segundo Luís Cabral (Nelson Herbert)

(***) (*) Sobre a retirada de Madina do Boé (Op Mabecos Bravios, ) e o desastre do Cheche, no Rio Corubal, vd. os postes publicados no nosso blogue (1ª e 2ª sérieS):

17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

25 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

(...) 1. O Paulo Raposo, ex-Alf Mil da CCAÇ 2405, organizador do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo, em 2006, mandou-me em devido tempo, uma fotocópia de um depoimento do então Brigadeiro Hélio Felgas, sobre a trágica retirada de Madina do Boé.

Se bem me lembro (uma vez que não tenho aqui à mão o documento em suporte de papel), esse depoimento terá sido escrito em 1995, a pedido dos baixinhos de Dulombi, os ex-Alf Mil Felício, Raposo, Rijo, David e , e demais pessoal da CCAÇ 2405, que perderam 17 homens na travessia do Rio Corubal, em Cheche, 6 de Fevereiro de 1969. Só o Rui Felício perdeu 11 homens do seu Grupo de Combate [, nessa trágica manhã do dia 6 de Fevereiro de 1969]. (...)

Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

1. Mensagem, enviada em 25 de Fevereiro de 2009, pelo João Seabra, membro da nossa Tabanca Grande, advogado com escritório em Lisboa, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Piratas de Guileje (Guileje, 1972/73) (aqui na foto, à esquerda, no Cumbijã));

Assunto - O Coronel Comando na reserva Ferreira da Silva (*)

Luís,

Conforme indicações tuas (**), contactei, há duas semanas, com o Sr. Coronel Comando Ferreira da Silva, que, ademais, é (ou foi) meu Colega de profissão.

Não se mostrou agastado comigo pelo escrito em que eu o refiro – de uma maneira não tão respeitosa como devia – e propôs-me que escrevêssemos um texto conjunto sobre Gadamael.

O Coronel Ferreira da Silva foi inicialmente colocado no Batalhão de Comandos da Guiné, numa operação no Morés, a sua viatura (um Unimogue) rebentou uma mina que matou os demais ocupantes, tendo ele sofrido fracturas nos dois braços e mais ferimentos, e sido obrigado a pedir a sua própria evacuação.

Evacuado para Portugal, pediu para terminar a sua comissão na Guiné, sendo colocado no CIM [Centro de Instrução Militar] de Bolama.

No dia 31 de Maio de 1973, foi recolhido de helicóptero e depositado em Cacine, seguindo-se uma viagem de sintex para Gadamael onde foi despejado ao fim da manhã, para substituir o Sr. Coronel (hoje Major General) Durão, com quem teve uma brevíssima conversa, onde lhe foi sugerido que o Sector estava calmo e controlado.

Este último oficial, seguiu imediatamente para Cufar, via Cacine, no mesmo sintex.

O Coronel (então Capitão) Ferreira da Silva nem teve tempo para reconhecer o aquartelamento, e mal conheceu os capitães das duas Companhias [ ali estacionadas ].

Ao princípio da tarde desse mesmo dia começaram as flagelações a Gadamael, e no dia seguinte de manhã os dois capitães foram evacuados.

O Capitão (hoje Coronel) Ferreira da Silva não conhecia os demais oficiais e, naquela confusão, não sabia onde os encontrar.

Dito isto, o proverbial “tratamento jornalístico” encontra logo um grande motivo de interesse: “ficou sem oficiais”.

Aflige-me a ideia de ser injusto ou excessivo com qualquer pessoa, especialmente um ex-camarada de armas.

Relendo cuidadosamente o meu texto de há cinco anos (**) – e vendo as coisas com mais lucidez – posso ter dado a entender que a debandada teria sido induzida por uma ordem dele, quando, na realidade, tudo estava predisposto para que tal acontecesse, em vista da confusão e falta de condições de comando que reinavam no aquartelamento, como descrevi no meu texto em causa.

É, nomeadamente, a isso que me refiro quando digo que “só por comodidade de expressão se pode falar em tropa comandada pelo Capitão Ferreira da Silva”.

Quanto à ordem em si, diria que, efectivamente, a melhor maneira de proceder numa flagelação daquela amplitude seria a de, observando as tendências e a orientação do fogo IN, procurar os pontos menos batidos logo que, para isso, se proporcionasse a oportunidade. E se a indicação for, por hipótese, para seguirem para a Tabanca, e a população estiver a fugir, a tendência do pessoal, entregue a si próprio, é para entrar na procissão.

Com a minha vasta experiência nesta matéria, o melhor conselho que posso dar, a quem se vir envolvido numa situação semelhante, é que nunca tente mudar de posição quando sentir os impactos insuportavelmente perto: o próprio uso das armas que nos flagelam, acabará por desviar o fogo de nós.

Aliás, eu próprio, tendo observado as diversas tendências do fogo IN durante a tarde de 31 MAI e a manhã de 1 JUN, acabei por escolher – para me posicionar a mim e ao meu pelotão, à medida em que iam chegando do tarrafo e de Cacine – o topo superior da pista, junto ao início da estrada Gadamael-Ganturé-Guileje, ao lado do pelotão de canhões sem recuo comandado pelo meu amigo, e condiscípulo de vários anos nos Salesianos do Estoril, Alferes Rocha.

O então Capitão Comando Ferreira da Silva ficou em Gadamael até 1974, e pode contar-nos coisas muito interessantes sobre aquele sector, no pós JUL 73.

Tem algumas dificuldades com a Net, mas eu vou pôr-lhe o meu “dispositivo” à disposição.

Quanto ao seu processo de averiguações para atribuição de condecoração militar, eu não poderia ser uma testemunha menos indicada: tenho a tendência para banalizar as situações, e se me perguntarem se me recordo de algum acto que revele heroísmo, só me ocorrem termos como “decência”, “sensatez”, “bom-senso” … quando muito o termo anglo-saxónico “gallantry”.

Uma coisa é certa: no dia 1 JUN73 a posição dele era muito mais difícil do que a minha.

Abraço
João Seabra

2. Comentário de L.G.:

Como eu já tive oportundiade de dizer, ao telefone, ao nosso camarada Ferreira da Silva, o seu lugar é aqui, junto a nós, no seio da Tabanca Grande. Ele não precisa de convite formal. Vamos recebê-lo de braços abertos. Sê bem vindo, camarada. Um Alfa Bravo para ti e para o João.
__________


Notas de L.G.:

(*) Vd. postes desta série:

24 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3789: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (2): Esclarecimento adicional de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

25 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3790: Dossiê Guileje / Gadamael (3): "Um precedente grave" (Diário, Mansoa, 28 de Maio de 1973) ... (António Graça de Abreu)

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

29 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3816: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (5): Strellado nos céus de Guileje, em 25 de Março de 1973 (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav)


(**) Em 6 de Fevereiro de 2006, mandei o seguinte mail ao João Seabra:

João: Estou no Norte... Só volto no domingo... O Ferreira da Silva, dos comandos, que esteve contigo em Gadamael, queria falar contigo e explicar-se... Pede o teu número de telemóvel.. Ainda é periquito nas coisas da Net... O mail dele é: ferreiradasilva43@gmail.com

Vive em Coimbra, onde é advogado e alfarrabista... Diz que tem muitos livros sobre a guerra, que vai coleccionando... Quer entrar para o blogue e contar as suas histórias, embora não tenha muito jeito para estas coisas... Mas antes precisa de falar contigo, explicar-se, repor a verdade de algumas situações... Diz que o Eduardo Dâmaso, do Público (****), deturpou as suas palavras... Posso dar o teu mail e/ou telefone ? Ou podes tu entrar em contacto com ele ?... Telemóvel dele é (...).
Um abraço. Luís

(***) Vd. poste de 27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

(****) Vd. trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso, onde há vários erros factuais (Público, 26 de Junho de 2005):

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

(....) Ninguém entregou a condecoração ao coronel

Uma investigação de Eduardo Dâmaso

O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições. Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.

Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto. Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.

Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade. Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.

A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido. (...)


Vd. também poste de 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P3953: O Spínola que eu conheci (3): Um homem de carácter (Jorge Félix)

1. Mensagem, de 25 de Fevereiro de 2009, do Jorge Félix, residente em Vila Nova de Gaia e frequentador da Tabanca de Matosinhos (na outra vida, foi Alf Pil Al III, BA 12, Bissalanca, Guiné, 1968/70), a quem saudamos, pelo seu regresso ao nosso convívio, e a quem desejamos as melhoras (de saúde):


Caro Luís:

Por motivos menos agradáveis tenho esquecido o PC. A 'cabeça' ainda não vai respondendo como quero, e o corpo teima em envelhecer.

Li alguns postes e dois merecem que fale, mesmo com a precariedade da minha gramática actual.

Agradeço que os emendes e, caso não mereçam algum interesse os comentários, 'delete' com eles.

Jorge



Comentário ao poste P3929 - O Spinola que eu conheci.


Escrevi um comentário neste Poste (*) para atestar a admiração que tinha (e tenho) pelo Gen Spínola, mas não coloquei datas e nomes de pessoas referenciadas. Envio-as e, caso não vejas mal, pois acho que o Gen Vasques ainda está no activo (**), Blogue com elas.

Então vamos aos factos:

(i) A Operação foi no dia 7 de Março de 1969.

(ii) De Catió saíram dez Helis com Páras para o Quitafine, local onde o IN tinha varias antiaéreas.

(iii) Os Fiats fizeram o habitual bombardeamento e os Helis descarregam os Páras.

(iv) Uma PEQUENA descoordenação, tempo do bombardeamento e descarga do pessoal, fez com que os atiradores das quádruplas antiaéreas não conseguissem sair das suas posições, o que resultou numa aguerrida defesa das mesmas. Com os Helis à vista e os Fiats no ar, o IN não parou de disparar. Os Páras não conseguiram avançar contra o fogo das antiaéreas. Foram atingidos dois Fiats e uma DO 27.

Os Páras foram retirados na Zops.

(v) À noite, na residência do Comandante Spinola, num reunião com alguns dos Oficiais intervenientes, disse ele a determinada altura:
- Hoje era o dia para distribuir medalhas!

O Cap Vasques atalhou:
- Só se fosse a titulo póstumo.

Spinola ouviu e nada disse.

(vi) É destes momentos que se moldam certos homens. Por estas e por outras eu gostava do Comandante.
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3929: O Spínola que eu conheci (1): Antes que me chamem spinolista... (Vasco da Gama)

(Não consta nenhum comentário anterior neste poste, da autoria do Jorge Félix)

Vd. também o último poste desta série > 24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3935: O Spínola que eu conheci (2): O artigo da Visão e o meu direito à indignação (Vasco da Gama)

(**) Será o Ten Gen Vasques Osório, da FAP, que passou à reserva em 2003 ?

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3952: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (3): No fim do mundo (Giselda Pessoa)

1. Texto da Giselda Antunes, ex-Sgrt Enf Pára-quedista (BA12, Bissalanca, Janeiro de 1972/Abril de 1974), novo membro da nossa Tabanca Grande (1): As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (3) > NO FIM DO MUNDO por Giselda Pessoa (2) Quando me sugeriram que escrevesse um texto para o blogue, onde relatasse algumas das histórias que vivi durante o meu tempo como enfermeira paraquedista, lembrei-me de folhear um dos volumes de "A Guerra de África", de José Freire Antunes, em que há um capítulo dedicado às enfermeiras paraquedistas. Nesse capítulo aparecem depoimentos de várias enfermeiras, sendo eu uma delas. Revendo o que ali está escrito, percebo que posso perfeitamente usar algumas das histórias que ali relatei; primeiro, porque muita gente desconhece aquela obra; segundo, porque posso falar do mesmo, dando-lhe agora uma melhor arrumação do que aquela que teve à época. Na verdade aquela obra é mais uma manta de retalhos, pois baseou-se na passagem ao papel de uma série de entrevistas gravadas por diversos assistentes do escritor/historiador, não tendo havido mais tarde qualquer tentativa de se melhorar os textos que daí resultaram. Ora sabemos todos que não se escreve da mesma maneira que se fala e o que dizemos num repente pode ser melhorado se tivermos possibilidade de reler o que está escrito e dar-lhe uma melhor apresentação. Posto isto, gostaria talvez de começar por temas que me marcaram na minha vida de militar, a camaradagem e a solidariedade, que sendo algo característico da vida militar, parecem ter tido ainda mais relevo no território da Guiné. Se é habitual haver um grande companheirismo entre os paraquedistas, tive a oportunidade de ver exemplos desse companheirismo junto de outros grupos na Força Aérea, fossem pilotos ou mecânicos da BA12. Também nas minhas deambulações pela Guiné - em 28 meses de comissão(*), tive a possibilidade de chegar aos sítios mais invulgares, em que afinal muitos tiveram que viver - pude testemunhar as manifestações de camaradagem e solidariedade que sempre mostraram ter para com os tripulantes dos DO-27 e AL-III que por ali passavam e particularmente para com a enfermeira que os acompanhava. Este episódio não faz afinal parte daquele livro, mas sendo algo que me tocou profundamente, deixo-o aqui. No decorrer de uma evacuação que tinha como objectivo um aquartelamento no nordeste da Guiné, o helicóptero aterrou na placa, onde embarcou o evacuado. No decorrer dessa operação, aproximou-se do AL-III um Furriel daquela unidade, o qual se me dirigiu com um pedido fora do vulgar. Explicou-me que com ele estava naquele quartel a sua mulher, sendo ela a única branca que ali vivia; e que, não vendo nenhuma branca há já muitos meses, certamente apreciaria falar comigo por uns momentos. Expliquei-lhe que o facto de transportarmos um ferido e o pouco combustível de que dispunhamos não permitia prolongar a nossa estadia ali. Mesmo assim, ele montou a sua motoreta e foi buscar a mulher, para a levar junto de nós. A espera prolongou-se por mais tempo do que aquele de que dispúnhamos, o que levou o piloto a decidir-se por descolar, com grande pena minha. Já no ar, tive a possibilidade de ver aproximar-se da placa a motoreta com o Furriel, trazendo a mulher à boleia. Ali chegados, apenas teve ela tempo para nos acenar enquanto o AL-III rodava em direcção a Bissau. Senti naquele momento um desgosto enorme por não ter podido proporcionar àquela mulher um momento de carinho e de solidariedade, de que ela tanto necessitaria; e imagino a sua frustação quando não lhe foi possível partilhar de uns momentos de proximidade com alguém que lhe recordaria outras companhias e outros ambientes deixados há muito para trás. Giselda Pessoa (*) As comissões das enfermeiras paraquedistas variavam entre seis meses e um ano, o que provocava uma constante rotação do nosso pessoal. Vá-se lá saber porquê, fui optando por prolongar a minha estadia na Guiné, muito provavelmente devido ao óptimo ambiente que ali se vivia e também por me sentir realizada no trabalho que ali desenvolvia, numa atmosfera que não deixava esconder a guerra que nos rodeava. 2. Comentário de L.G.: Giselda: O meu querido camarada, amigo e co-editor Carlos Vinhal já te deu as boas vindas em nome da nossa Tabanca Grande. Ele é, como eu costuno dizer, o nosso public relations, muito mais do que o porteiro da Tabanca. É um cavalheiro do Norte, que te tratou como devia ser, como Senhora Dona.... Mas tu sabes como são as regras: aqui, nesta caserna virtual, somos todos generais de muitas estrelas, somos todos VIP, fomos todos importantes, isto é, somos todos camaradas (um termo castrense ou militar, por excelência)... Não fazemos distinção de idade, género, posto, especialidade, arma, condição social, estatuto, estado de saúde, risco de morrer... A tua entrada não tem nada a ver com feminismo ou, muito menos, com o politicamente correcto: conquistaste por direito próprio, nos céus da Guiné, o direito de estar aqui em pleníssima igualdade com os outros camaradas, da Força Aérea, da Marinha ou do Exército... Claro que tens o privilégio de ser saudada com tiros de salva de artilharia (simbolicamente, que a pólvoar está cara e faz mal ao ambiente): és a primeira mulher militar, e ainda por cima pára-quedista, a entrar para o nosso blogue... Depois é uma mulher do Norte, corajosa, determinada e... bem disposta. Em terceiro lugar, és uma profissional de saúde, uma enfermeira (uma profissão que foi durante muito tempo estigmatizada, a ponto de o Estado Novo proibir as enfermeiras de se casarem, proibição essa, fundamentalista, que só acabou em... 1963!). Enfim, eu poderia invocar mais predicados, mas tu não precisas e eu vou-te poupar... Já percebi (até por que estive a reler o teu depoimento no livro do José Antunes Freire) que és uma excelente contadora de histórias. Esta que agora publicámos tem o mérito de revelar uma outra faceta da tua personalidade: além de enfermeira pára-quedista valente, destemida e competente, eras uma grande camarada, sensível e solidária, e uma grande portuguesa... Sei que vais surpreender-nos com outras histórias passadas no TO da Guiné, terra de paixão e de solidariedade, terra vermelha, inferno verde, labirinto de bolanhas, mangal, rios e braços de mar, céus de chumbo, que nunca mais poderás esquecer... Não podias estar impunemente 28 meses na Guiné, nos anos de brasa de 1972/74, naquela terra e naquela guerra, e chegares agora ao quilómetro 62 da tua vida e dizer: Não, por favor, não mais Guiné!... Nem já sei onde fica !). Morcões, abram alas, vai entrar uma camarada, uma grande senhora!

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(2) Vd. postes anteriores desta série: 



 (3) Vd. Enfermeiras Pára-Quedistas: Boina Verde e dedicação. In: José Freire Antunes: A Guerra de África, 1961-1974, Vol II. Lisboa: Círculo de Leitores. 1995. 663-684. 

 Sobre Giselda Antunes Pessoa, nascida em 1947, diz-se o seguinte: "... chegou evacuar na Guiné um ferido do PAIGC que falava francês e evacuou o piloto Miguel Pessoa, abatido por um míssil Strela. Depois casou com ele. Fez o curso de enfermagem na Escola de São João, no Porto. Tinha uma irmã que já era enfermeira pára-quedista e seguiu as suas pisadas. A Guiné era o território preferido de muitas enfermeiras" (pp. 681-682). Fez o curso de enfermeira pára-quedista entre Agosto e Outubro de 1970. Esteve uns meses em Lisboa, sendo depois colocada no Direção do Serviço de Saúde em Lourenço Marques. Fazia evacuações daqui e da Beira. Considera este tempo como tendo sido de férias... A guerra a sério foi na Guiné, uma escola também de "grande solidariedade" (p. 682).

Guiné 63/74 - P3951: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (8): Diana Andringa, jornalista e cineasta

1. Mensagem, com data de 25 do corrente, da Diana Andringa, que é uma das ainda relativamente poucas mulheres que é membro da nossa Tabanca Grande, jornalista, cineasta, realizadora (com o guineense Flora Gomes) do filme documentário As Duas Faces da Guerra (Portugal, 2007), disponível de resto em duas partes no sitío da Guerra Colonial, da A25A, em versão da RTP:

1970-01-20 • As Duas Faces da Guerra - Parte 1
1970-02-20 • As Duas Faces da Guerra - Parte 2


Luís,

Não irá sendo altura de deitares um pouco de água na fervura que vai pelo vosso blogue em relação aos jornalistas? Sabendo como é doloroso o tema em causa, parece-me que estão a ferver em pouca água.

Como bem sabes, a imagem que passarão aos vossos filhos e netos será a que quiserem que seja. A Comunicação Social não altera o conhecimento directo que cada um tem da realidade. O mais natural é que a imagem que passem seja “O meu pai (o meu avô), na juventude, teve de participar (ou participou) na guerra travada nas antigas colónia portuguesas. Foi para a guerra por que acreditava que ia defender a Pátria (ou por que foi obrigado, ou por que não teve outra hipótese). Aquilo foi muito duro! Com vinte anos corriam o risco de morrer, viam morrer camaradas, às vezes matavam outras pessoas... Quero crer que não cometeu nenhum crime de guerra, mas, às vezes, confrontada com o perigo, ou com a dor da morte de um amigo, uma pessoa faz coisas de que mais tarde se arrepende... E, afinal, o país veio depois a concluir que a guerra não tinha razão de ser, que Portugal devia ter dado a independência às colónias quando os outros deram. E se calhar, eles, os soldados, foram os que mais se alegraram com o 25 de Abril. Aliás, agora, ele até tem amigos entre os que combateu. Temos sorte, nós, em não termos um governo a mandar-nos para a guerra.”

Esta é, aliás, creio, a imagem que fazem dos combatentes a maioria dos jornalistas. Mas isso não os pode impedir de, ao falarem da guerra, referir os crimes de guerra que foram cometidos (e foram) e condenar a política seguida por Salazar e Caetano. Não o fazem, no entanto, com o intuito de ofender os combatentes. Quando criticas o facto de a caravana humanitária ter sido pouco referida nos jornais também não estás a querer atacar os jornalistas, pois não?

Quanto ao vosso sofrimento – tão referido sempre em contraponto aos trabalhos jornalísticos – é óbvio que nenhum jornalista o conta como cada um de vós gostaria de contá-lo. Seja qual for o tema sobre que se escreva, haverá sempre alguém a dizer que “não foi exactamente assim”. É por isso que o vosso blogue é tão importante.

Não tendo nenhuma procuração para falar por outros jornalistas, não posso também deixar de lembrar que já houve reportagens sobre algumas dessas viagens de antigos combatentes à Guiné. (Pessoalmente, como sabem alguns bloguistas, só por problemas de produção não acompanhei a ida de um desses grupos.) E que perguntar ao Joaquim Furtado se fez a guerra, num debate sobre a série A Guerra, é um pouco como pretender que, para escrever sobre o cancro, tem de se ter tido um, ou que não se pode escrever sobre o abandono escolar se se completou um curso universitário.

Abraço, Diana

PS - O Almeida Martins é um bom jornalista, um profissional sério – e foi, parece-me, mal interpretado.Também senti como injustas algumas das críticas quando As 2 Faces da Guerra passou na RTP. Entendi que não devia alimentar discussões. Mas agora não sei se fiz bem. (...) .

2. Comentário de L.G.:

Cara amiga: Agradeço as tuas palavras e o teu apelo à serenidade. Já recebi também o comentário do jornalista em questão, Luís Almeida Martins, um homem de resto da nossa geração e da geração do Afonso Praça (um antigo combatente, em Angola, que eu conheci e estimei, como jornalista de O Jornal). Irei publicar a resposta do Luís Almeida Martins no fim de semana, com um comentário (final) meu.

Não seria saudável prolongarmos este clima de tensão no blogue. Não creio, aliás, que o nosso blogue tenha vocação para provocar e alimentar polémicas. O nosso blogue é uma estrada, aonde afluem viajantes de diferentes tempos e lugares. É um caminho, plural, feito de muitas picadas, trilhos de floresta, rios e braços de mar. Somos um grupo de pertença, mas o nosso único denominador é a Guiné e os verdes anos que lá passámos (ou deixámos). Como tu muito bem dizes, o nosso blogue é importante por que o essencial da sua matéria-prima não são as notícias nem sequer os docuemntos, mas o vivido, as memórias, a experiência pessoal, única e intransmissível.

Somos todos pessoas civilizadas. E responsáveis. Todos reconhecemos que a emoção nem sempre é boa conselheira. E que as memórias da guerra, desta guerra, são um caixa de Pandora. Muitos dos meus camaradas que aqui escrevem não são, contudo, profissionais da palavra. Quero com isso dizer que não têm necessariamente o domínio da arte de comunicar. Tu sabes, melhor do que ninguém, que se pode ferir e até matar com as palavras (por exemplo, o assassínio de carácter). A propaganda é uma forma de comunicação. O communicare (do latim, pôr em comum) não é fácil. Nem é natural. Nem é neutro. Rio-me quando eu próprio falo, em sessões de formação, na comunicação assertiva. É a maior treta que impingimos às pessoas nas organizações. As nossas comunicações tresandam a emoção e às vezes a manipulação.

Como já tenho aqui dito e redito, nós não fazemos, no nosso blogue, nem jornalismo nem historiografia. Não competimos nem com os jornalistas nem com os historiadores. Queremos apenas contar as nossas histórias uns aos outros. E arrumá-las, por séries temáticas. O que também não é fácil...

Por isso também fazemos blogoterapia. Temos posto camaradas da Guiné a falar, em voz alta, do passado, coisa que eles não faziam há muitos, muitos anos... Não somos um comunidade terapêutica, não somos um grupo de autoajuda, nenhum de nós está doente ou em reabilitação. Mas a verdadade é que somos veteranos de guerra, quer se goste ou não do termo. Ex-combatentes, dizem outros. E esse é um traço de união. O passado que partilhámos, no teatro de operaçõeas (TO) da Guiné, é o nosso traço de união. Talvez o único, para além da circunstância da sermos concidadãos, portugueses, falantes da língua portuguesa...

Não te sei, dizer, Diana, se eu próprio e os meus camaradas fervemos em pouca água... Não é habitual. Costumamos cultivar a contenção verbal. E ainda temos o velho hábito, dado pela disciplina militar, de pôr a G3 em posição de segurança. Não puxamos facilmente pela G3. Mas não quero, ainda para mais na pele de editor deste blogue (que também sou, com o Carlos Vinhal e o Virgínio Briote), fazer um juízo de valor acerca das nossas reacções ao texto (ou melhor, ao parágrafo) do Luís Almeida Martins que, ele próprio, achou repentinas e até despropositadas. Eu aliás, alertei para o risco de se tomar a árvore pela floresta, pelo que aconselhei a leitura na íntegra do artigo. É sempre possível sermos mal interpretados. Temos, nós próprios, essa experiência no blogue.

Sou editor, mas não sou juiz. Deixei fluir a palavra, as nossas palavras, evitando apemas o anonimato, o insulto e o excesso verbal. Há comentários que estão no downstairs do blogue que eu não trarei à superfície, mas que também não vou eliminar. Excessivos ou não, foram ditados pelo calor da batalha (que, desta vez, é ou foi felizmente apenas verbal).

Deixa-me, por fim, dizer-te que não nego, bem pelo contrário, valorizo e defendo o papel do jornalismo (seja de opinião, de notícia ou de investigação). E por isso é que é tão preciosa, para mim, pelo menos (e seguramemte para todos nós), a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão.

Tu sabes a força que têm as palavras, as imagens e outros signos. A força da comunicação (social). Os jornalistas não podem, por seu turno, ficar surpreendidos, muito menos melindrados, com as reacções, às vezes aparentemente intempestivas e até injustas, dos seus leitores. São os ossos do ofício de quem escreve e publica, de quem se expõe e dá a cara...

Quando há conflito entre duas partes, o problema nunca está no A ou no B, mas na sua relação A/B. Aqui houve tão apenas um problema de comunicação. Não está em causa um jornalista, que até deve ser uma pessoa estimável e estimada. (Embora eu não o conheça pessoalmente, leio-o há anos; não nenhum novato em bicos de pé, à procura da glória e da fama). Não estão sequer em causa os jornalistas. Não vamos diabolizar ninguém, muito menos os jornalistas. Estão em causa, às vezes, os nossos processos de percepção e de comunicação. Obrigado, Diana, pela tua tentativa de ajuda na melhoraria do processo de comunicação entre todos nós, os amigos e camaradas da Guiné.
_______

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 28 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3950: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assasinos (7): Manuel Maia, o bardo do Cantanhez

Guiné 63/74 - P3950: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assasinos (7): Manuel Maia, o bardo do Cantanhez

1. Mensagem, algo original, do Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine (1972/74)

Caro Luis tive oportunidade de ler comentários de camaradas relativamente ao artigo supracitado (*), de que espreitei a parte evidenciada na caserna, e decidi também, à guiza do que tantos já fizeram, dizer de minha justiça pela forma de sextilhas...

Presumo que se trata de jornalista jovem a querer "ganhar espaço" e influenciado por gentalha que teima a apelidar-nos de maus da fita.


Se porventura achares por bem dar a conhecer ao resto do pessoal da caserna, fá-lo. Um abraço do Manuel Maia. (**).


Assente em deturpada narrativa
de escória desertora, fugitiva,
escriba da Visão, agride, insulta.
Do vilipêndio, a geração sofrida,
em nome dos que lá deram a vida
exige-lhe o pedido de desculpa.

Não fomos assassinos, mercenários,
mas antes combatentes, solidários
com povos que aprendemos a gostar.
A prova está no enorme abraço dado
entre afros e as gentes deste lado
de cada vez que encontro tem lugar...

Depois da desastrosa entrada em cena,
terá de retractar-se a estulta pena,
p´ra além do que é dever, está o direito.
Da exigência não abramos mão
pois mancha a veterana condição
e mortos mereciam mais respeito...


___________

Notas de L.G.:

(*) 27 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3947: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (6): Luís Graça, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

(**) 20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3915: Cancioneiro do Cantanhez (1): De Cafal Balanta a Cafine, Cobumba, Chugué, Dugal, Fatim... (Manuel Maia)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3949: Ser solidário (28): Dar Vida Sem Morrer, com a Catarina Furtado no Gabu (Torcato Mendonça)


III Congresso da Comunidade Médica de Língua Portuguesa, V Congresso Nacional do Médico Interno, XIV Congresso Macional de Medicina: Os Médicos e o Desenvolvimento Humano. O Direito à Saúde, que futuro ? > Lisboa, Centro de Congressos de Lisboa, 19-21 de Fevereiro de 2009 > Algumas imagens dos slides da Conferência “Medicina e Desenvolvimento dos povos - Objectivos do Milénio”, por Luís Gomes Sambo, médico angolano (Director Regional para África - OMS) > A Saúde é um elemento central da estratégia das Nações Unidas, End Poverty 2015 (Acabar com a Pobreza até 2015) e nos Objectivos do Desenvolvimento do Milénio > Segundo a Organização Mundial de Saúde (2006), mil e cem mulheres da Guiné-Bissau morrem, de parto, por cada 100 mil nados-vivos; 203 crianças morrem antes dos 5 anos, por cada 1000 nados-vivos (era de 280, em 1980)... (LG)

Imagens: Luís Graça (2009)



1. Mensagem de ontem, do Torcato Mendonça, Fundão (e que foi Alf Mil, CART 2339, Fá e Mansambo, 1968/69):


Espero que tenham visto as imagens dramáticas [de situações por ] que o Povo da Guiné está a passar.

Foi na RTP 1, logo a seguir ao Telejornal (*). Não há palavras, neste momento, ou, eu não tenho palavras para descrever o que vi, o que senti, o que continuo a sentir.

Aquela Gente, no meio do nada, no meio do drama ainda sorri. A mulher vai parir sem um ai, sem um lamento. Á pergunta do porquê, o médico responde:
- As mulheres são preparadas psicologicamente, é uma questão cultural.

As estradas desapareceram...Eu conheci Bafatá a Nova Lamego (Gabu), eu conheci as ruas de Bissau, o Palácio do Governador, eu conheci...paro, esfrego a cara e, agora sim, sinto uma revolta tremenda. Estou a escrever e porventura vocês viram e sentiram como eu. Vocês, tal como eu, sentem aquele Povo como nosso, no sentido de irmão, de parte de nós, do nosso passado.

Porra, porquê? Porque acontece aquilo? Ou nós sabemos...???

Por isso um contentor de toneladas, o pessoal que em solidariedade para lá foi são, para todo aquele sofrimento gota de água. Mas são heróis na solidariedade, na amizade, na dádiva.

Enquanto via o documentário, passaram-me imagens do passado, estabeleci comparações...não digo nada mais. Doi-me demasiado a cabeça e sei a causa.

Mas, apesar do que se passa no nosso País, aqueles nossos irmãos da Guiné têm que ser ajudados. Para eles, para vós, para todos os que ainda acreditam na solidariedade vai um abraço fraterno do,

Torcato
______________

Notas de L.G.:

(*) Programa "Dar Vida sem Morrer"

Origem: Portugal - 2008
Duração: 50m
Produção: Até ao Fim do Mundo
Realização: Catarina Furtado
Com: Catarina Furtado

Próximas exibições: RTP África, 2009-03-05, 21:00h

Sinopse: Catarina Furtado, embaixadora da Boa Vontade, acompanha a reconstrução de unidades hospitalares na Guiné-Bissau.

O Ministério da Saúde da Guiné-Bissau, em parceria com FNUAP - um dos principais parceiros do Ministério na área da saúde reprodutiva - implementaram um projecto que visa reforçar os Cuidados Obstétricos de Urgência nas regiões de Oio e Gabu, na Guiné-Bissau.

Uma série de 4 documentários que se centram nas regiões de Oio (196 mil habitantes) e Gabu (172 mil habitantes). Em cada programa Catarina Furtado dá a conhecer o avanço das obras, de que forma este projecto vai beneficiar as populações locais, as suas expectativas e modo de vida e os profissionais de saúde relacionados com o projecto.

Mortalidade materna, mortalidade infantil, falta de profissionais de saúde na área da obstetrícia, infra-estruturas degradadas, falta de equipamentos, de medicamentos são alguns dos temas a abordar. (**)

Fonte: RTP > Vd. vídeo de apresentação (1' 20'')

Documentários ilustram taxa de mortalidade infantil na Guiné-Bissau. Em cada mil crianças que nascem são 138 as que morrem. Um projecto conjunto da ONU e do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento está a tentar alterar esta situação, contando com a RTP.

(**) End Poverty 2015 / Erradicar a pobreza 2015

Objectivo 1: Erradicar a pobreza extrema e a fome

Meta 1. Reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a proporção de população cujo rendimento é inferior a um dólar por dia

Meta 2. Reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a proporção de população afectada pela fome

Objectivo 2: Atingir o ensino primário universal

Meta 3. Garantir que, até 2015, todas as crianças, de ambos os sexos, terminem um ciclo completo de ensino primário.

Objectivo 3: Promover a igualdade de género e a capacitação das mulheres

Meta 4. Eliminar a disparidade de género no ensino primário e secundário, se possível até 2005, e em todos os níveis de ensino, o mais tardar até 2015
Objectivo 4: Reduzir a mortalidade infantil.

Meta 5. Reduzir em dois terços, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade de crianças com menos de 5 anos.

Objectivo 5: Melhorar a saúde materna

Meta 6. Reduzir em três quartos, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade materna.

Objectivo 6: Combater o HIV/SIDA, a malária e outras doenças

Meta 7. Até 2015, parar e começar a inverter a propagação do HIV/SIDA

Meta 8. Até 2015, parar e começar a inverter a tendência actual da incidência da malária e de outras doenças graves

Objectivo 7: Garantir a sustentabilidade ambiental

Meta 9. Integrar os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e inverter a actual tendência para a perda de recursos ambientais.

Meta 10. Reduzir para metade, até 2015, a percentagem de população sem acesso permanente a água potável.

Meta 11. Até 2020, melhorar significativamente a vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de bairros degradados.

Objectivo 8: Criar uma parceria global para o desenvolvimento

Meta 12. Continuar a desenvolver um sistema comercial e financeiro multilateral aberto, baseado em regras, previsível e não discriminatório.

Meta 13. Satisfazer as necessidades especiais dos Países Menos Avançados.

Meta 14. Satisfazer as necessidades especiais dos países sem litoral e dos pequenos Estados insulares em desenvolvimento.

Meta 15. Tratar de forma integrada o problema da dívida dos países em desenvolvimento, através de medidas nacionais e internacionais, por forma a tornar a sua dívida sustentável a longo prazo.

Meta 16. Em cooperação com os países em desenvolvimento, formular e aplicar estratégias que proporcionem aos jovens trabalho condigno e produtivo.

Meta 17. Em cooperação com as empresas farmacêuticas, proporcionar o acesso a medicamentos essenciais a preços acessíveis, aos países em desenvolvimento.

Meta 18. Em cooperação com o sector privado, tornar acessíveis os benefícios das novas tecnologias, em especial das tecnologias de informação e comunicação.

Fonte: CPLP Comunidade dos Países de Lingua Portuguesa > Objectivos de Desenvolvimento do Milénio

Guiné 63/74 - P3948: FAP (14): Um dia rotineiro na Base Aérea nº 12, em Bissalanca (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, 1972/74)

Guiné > Bissalanca > BA12 > O Ten Pilav Miguel Pessoa (1972/74). O Miguel foi o primeiro piloto de Fiat G-91 a ser abatido por um Strela (em 25 de Março de 1973, sob os céus de Guileje) (1). Efectuou mais de 400 missões no TO da Guiné. Esteve 4 meses em Lisboa, hospitalizado, a seguir à queda do seu Fiat.

Foto: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados


1. Mensagem de Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanaca, 1972/74):

Luís: Aqui vai um texto para o blogue, se quiseres publicá-lo. Podes pensar que soa a romance barato, mas foi a maneira que arranjei de exorcisar os meus fantasmas, sem falar deles directamente...
Abraço, Miguel


2. FAP (14) > UM DIA ROTINEIRO NA BA12
por Miguel Pessoa

O mecânico acompanha-me enquanto faço a inspecção de 360º ao Fiat G-91 estacionado na placa, na BA12. Sinto a ansiedade habitual nos últimos voos. Também não admira - quando sabemos que vamos encontrar fogo de anti-aérea e possíveis Strela, é natural que fiquemos preocupados.

Como tem vindo a ser habitual, a tensão dá-me voltas ao estômago enquanto continuo a inspecção exterior ao avião. Parece que tenho vontade de vomitar mas nada sai. Tento disfarçar, que o mecânico continua ao meu lado e ninguém gosta de dar parte de fraco ao pé dos outros.

Mas os antecedentes não ajudam muito... Já fui ao charco uma vez e não gostei. E o problema é que matematicamente tenho as mesmas hipóteses que os outros de ser abatido - não me parece lá muito justo! Só voltei à Guiné há poucas semanas e a readaptação tem sido difícil; é muito penoso para mim recordar o tempo que estive sozinho no mato, depois da minha ejecção, sempre na iminência de ser apanhado à mão, por isso é natural que esteja preocupado.

Aliás, também os mecânicos andam preocupados. É grande a sua responsabilidade - o avião tem que funcionar que nem um relógio, o armamento não pode falhar, a Martin-Baker (*) tem que funcionar se tudo o resto correr mal - nenhum quer ser responsável pela perda de um piloto.

Logo hoje, que era o meu dia de folga! Bom, nesta bagunçada nada é garantido e temos que ser adaptáveis às mudanças... Mas a Esquadra foi solicitada para uma série de missões importantes que podem contribuir para diminuir o fluxo de pessoal e material que se interna na Guiné, vindos do exterior. Se resultar, poder-se-á reduzir a intensidade das flagelações aos nossos aquartelamentos; este esforço já se prolonga há dois dias e todos juntos não somos demais.

Neste momento sou o oficial mais antigo (um tenente!) a seguir ao Comandante de Esquadra, por isso, como oficial de operações (nome pomposo!) cabe-me a mim indicar os pilotos para as missões. Naturalmente, o meu nome tem que aparecer lá (o exemplo tem que começar por nós) e a folga, paciência!, fica para outro dia.

O avião está OK, o armamento pronto, como normalmente - o pessoal da linha não falha, como de costume - e eu dirijo-me para a escada para ocupar o meu lugar no cockpit - controlo um último espasmo e, enquanto subo a escada verifico, penduradas nela, as diferentes cavilhas de segurança que o mecânico retirou.

Coloco o capacete, o mecânico ajuda-me a colocar os cintos. Percorro com os olhos o check-list para confirmar que fiz todos os procedimentos correctamente antes de pôr em marcha. O chefe da formação, no avião ao meu lado, faz sinal com a mão para pormos em marcha. Primo o botão do cartucho de arranque do motor, este começa a rodar e estabiliza nas rotações normais. Executo os restantes procedimentos, acciono a descida da canopy (**) e faço sinal ao mecânico para tirar os calços das rodas.

Tudo OK! Aumento as rotações do motor para sair do estacionamento e inicio a rolagem do meu avião atrás do outro, fazendo antes um aceno de despedida ao mecânico que me deu a saída.

Toda a excitação acumulada anteriormente parece abandonar-me. Estou ali só, dentro do avião, controlando os meus medos de modo a que não interfiram com o cumprimento da missão. Temos de esquecer tudo e concentrarmo-nos totalmente no voo que temos pela frente, vigiando o espaço à nossa volta, tentando detectar alguma ameaça para o nosso ou para os outros aviões.

Finalmente estamos no ar e dirigimo-nos para o alvo definido no briefing antes do voo. Tudo corre normalmente e sinto uma estranha sensação de calma que contrasta com o nervosismo anterior. Os Tigres da Esquadra 121 estão no ar para mais uma missão de rotina nos céus da Guiné...


Miguel Pessoa
(Cor Pilav Ref)
_______

Notas do autor

(*) Cadeira de ejecção do Fiat G-91 R4

(**) Cobertura da cabina

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

19 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1675: 28 de Março e 5 de Abril de 1973: cinco aeronaves da FAP abatidas pelos toscos mísseis terra-ar SAM-7 Strella (Victor Barata)

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G91

29 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3816: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (5): Strelado nos céus de Guileje, em 25 de Março de 1973 (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav)

31 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3825: FAP (2): Em cerca de 60 Strelas disparados houve 5 baixas (António Martins de Matos)

1 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3826: FAP (3): A entrada em acção dos Strella, vista do CAOP1, Mansoa, Março-Maio de 1973 (António Graça de Abreu)

4 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3839: FAP (4): Drama, humor e... propaganda sob os céus de Tombali (Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref)

9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3859: FAP (6): A introdução do míssil russo SAM-7 Strela no CTIG ( J. Pinto Ferreira / Miguel Pessoa)

(2) Vd. último poste da série FAP > 16 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3904: FAP (13): Nha Bolanha, o Ramos, o Jorge Caiano, o Manso, o corta-fogo do AL III, Bissalanca... (Jorge Félix)

Guiné 63/74 - P3947: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (6): Luís Graça, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

Comentários e mensagens do Luís Graça, ex-Fur Mil Henriques, ex-jornalista, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de de 1969/Março de 1971); foi instrutor e comandante de secção num companhia de soldados fulas; colaborou com o saudoso jornalista de O Jornal, Afonso de Praça (ex-Alf Mil, em Angola) na organização das Memórias da Guerra Colonial, no início da década de 1980; o Afonso dei-me a entender que O Jornal foi pressionado, na época, por gente do Conselho da Revolução, a fechar esta secção incómoda... De qualquer modo, foi uma louvável e pioneira inciativa daquele já extinto e saudoso semanário.

Aproveito para recordar que ficaram lá com montes de cartazes, fotografias e documentos que eu tinha cedido temporariamente para a organização de uma exposição sobre a Guerra Colonial que nunca chegou a ver a luz do dia... O Afonso morreu em 2001. A Visão é herdeira de O Jornal.

Legendas das fotos (acima):

(À esquerda) Guiné > Zona Leste > Contuboel> CCAÇ 12 > Junho de 1969 > Furriéis Levezinho e Henriques, no oásis de paz que era então Contuboel, no bem-bom da instrução de especialidade dada aos nossos queridos nharros da futura CCAÇ 12 (na altura CCAÇ 2590)... No fim da instrução, passado um meio e meio, a companhia, em farda nº 3 (!), estava a levar porrada da grossa, em Madina Xaquili... Em Contuboel, havia tempo para tudo, até para brincadeiras estúpidas ou tão inocentes como esta simulação de um catana a exercer o seu mister no delicado pescoço de um tuga... (LG)

Foto: © António Levezinho (2006). Direitos reservados

(À direita) Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Finete, regulado do Cuor > 1969: Destacamento de milícias e aldeia em autodefesa de Finete, junto ao Rio Geba. Na foto, o furriel miliciano Henriques e dois dos soldados africanos da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, do 4º Grupo de Combate, o Soldado Arvorado (mais tarde promovido a 1º cabo) José Carlos Suleimane Baldé e o Soldado Umarú Baldé, apontador de morteiro 60. Umaru, o Puto, na foto, de pé, de cachimbo: na época teria 16 ou 17 anos

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados


1. Pois é, à força de aparecerem em letra de forma, à força de serem repetidas até à exaustão, há ideias feitas, preconceitos, estereótipos, que se tornam ‘verdades’... Oficiais, oficiosas...

Além disso, é sempre abusivo fazer generalizações: terror, desespero, massacres, napalm... Só conheci o TO da Guiné, em 1969/71. E para mais, durante o consulado spinolista. Reconheço que tenho o meu bocadinho de inferno, na terra, em vida... De qualquer modo, seria abusivo, da minha parte, falar de Angola e de Moçambique, e dos seus teatros de guerra, das especifidades do terreno, da organização e da estratégia do IN... Enfim, seria abusivo pôr tudo no mesmo saco: 1961, 1971... No caso da Guiné, por exemplo, Schulz e Spínola...

É preciso contextualizar a guerra, e dar-lhe a dimensão sócio-antropológica, do quotidiano, que não vem nos relatórios, nas estatísticas, nem sequer nos arquivos, nem nos livros de história... É pena que o jornalista da Visão não tenha tido tempo, ao menos, de visitar o nosso blogue...

Sabemos do que falamos, não sei se o jornalista Luis Almeida Martins sabe do que fala... Refiro-mo à experiência de guerra, vivida, no TO da Guiné... Se calhar nem tem que saber, para falar do Spínola, que é uma figura que já faz parte da nossa história...

Tudo isto para te dizer, meu querido Vasco da Gama (o de Cumbijã, não o da Índia), que entendo e partilho a tua indignação. Mais uma razão para, parafraseando o slogan do nosso blogue, "não deixarmos que sejam os outros a contar a nossa história por nós"...

É que quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto... Neste caso, parece que nos querem tirar, não um, mas muitos pontos...

2. Reforço o que disse algures, como editor (porra, também sou gente!):

"Que imagem vamos passar aos nossos filhos e netos ? Nós fomos combatentes, não fomos assassinos!" - parece ser a reacção natural de qualquer um dos nossos camaradas que são veteranos da guerra da Guiné, e que partilham os valores consagrados no nosso blogue...

Por sinal, por ironia, por coincidência ou não, o artigo da Visão, evocativo dos 35 anos do livro do Spínola, Portugal e o Futuro, surge na mesma semana em que camaradas generosos e solidários como o António Camilo (Lagoa), o José Moreira (Coimbra) ou o Xico Allen (Matosinhos / Porto), e mais umas dezenas de outros, ex-combatentes na sua maioria da guerra colonial, seguem, por terra, em caravana, a levar ajuda humanitária a (e a matar saudades de) um povo que nós consideramos irmão...

Que me perdoem os jornalistas portugueses, mas eu não vi a grande imprensa (rádio, televisão, jornais) - com excepção de alguns jornais regionalistas, como o Diário As Beiras, de Coimbra - dedicar um bocadinho da sua preciosa atenção a esta expedição humanitária nem aos seus preparativos, aos meses e meses de trabalho, anónimo e voluntário, e que exemplifica bem o que é o melhor do povo português, o seu sentido de nobreza, compaixão, generosidade, ecumenismo e solidariedade. Andamos todos distraídos com a crise... (que é sobretudo de valores!).

PS 1 - Não posso esquecer aqui o Carlos Fortunato, o Carlos Silva e o resto da malta da Ajuda Amiga (da região de Lisboa), que seguem de avião este fim de semana, a caminho de Bissau, também em missão humanitária e turismo de saudade. Para todos eles, que são os melhores de todos nós, aqui vai um Alfa Bravo do tamanho deste pequeno grande Portugal.

Amigos e camaradas, "partam mantenhas" com aquele povo gentil que não guarda ressentimentos nem ódios do tempo em que nos combatemos uns aos outros, portugueses e guineenses contra outros guineenses (mas também contra alguns portugueses, alguns cubanos, alguns caboverdianos)...

PS 2 - Escreve-me telegraficamente o Zé Teixeira, da Tabanca de Matosinhos, ontem, às 14h59, alvoraçado:

"Mensagem do Zé Manel. 'Estamos a almoçar em Gabú. Estas pessoas são maravilhosas. Estou muito feliz'.

"Falei com ele de seguida. Está emocionado com o acolhimento de pessoas que nunca viu na vida, pois nunca esteve em Gabú. Abraço. José Teixeira"


3. Mail enviado ao Director da Visão:

Caro director da Visão:

Sou leitor, de longa data, da Visão e editor do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Fui objectivamente um combatente do exército colonial português, comandei soldados fulas. Fui actor crítico e testemunha atenta. Sofri violentas emboscadas, no mato, com algumas dezenas de baixas (entre mortos e feridos graves). Tive acidentes de viação em acções militares. Voei, com a minha GMC, debaixo de uma mina anticarro. Fizémos e interrrogámos prisioneiros. Aprisionámos população civil do PAIGC...

É pena que o Luís Almeida Martins (que assinou o artigo 'Portugal e o passado' da Visão, nº 833, de 19 a 25/2/09), não tenha tempo, ao menos, de visitar, de vez em quando, o nosso blogue... Sabemos do que falamos, não sei se o jornalista sabe do que fala... Refiro-mo à experiência de guerra, vivida, no TO da Guiné, o nosso Vietname... Se calhar nem tem que saber, para falar do Spínola, que já morreu e já faz parte da nossa história... Agora o jornalista não pode confundir combatentes com assassinos.

Atenciosamente, Luís Graça


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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3943: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (5): Quero exprimir a minha revolta (Fernando Franco)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3946: Tabanca Grande (123): Ricardo Almeida Teixeira, bazuqueiro do 1.º Pelotão/CART 3494/BART 3873 (Xime e Mansambo, 1971/74)

1. Mensagem de Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74, com data de 18 de Fevereiro de 2009:

Assunto: O Ricardo Teixeira pertenceu à CART 3494

Para publicar se acharem que tem algum interesse.
Castro


2. Mensagem/resposta de LG para Sousa de Castro, com conhecimento a CV, com a mesma data:

Obrigado, camarada nº 2, o mais antigo, comigo, dos membros da nossa Tabanca Grande.

O Carlos Vinhal vai apresentar o teu amigo.
Diz ao teu amigo que já pode ver o filme da Diana Andringa e do Flora Gomes, em duas partes, através do sítio Guerra Colonial (1961-1974), alojado em endereço próprio: http://www.guerracolonial.org/.


3. O Ricardo Teixeira pertenceu ao 1.º Pelotão da CART 3494, comandado pelo Alf Mil Carneiro, Fur Mil Godinho, Fur Mil Ferreira entre outros, era o homem da Bazuca.

Curiosamente foi este Pelotão apanhado pelo macaréu, em 10 de Agosto 1972, onde desapareceram três homens.

Devido a ter espetado um prego no pé, não participou nessa Operação. Conta até uma pequena estória sobre o que lhe aconteceu (*).

É imigrante em França, enviou-me uma mensagem a pedir o filme "AS DUAS FACES DA GUERRA" já comprou os bilhetes de avião para estar presente com sua esposa, pela primeira vez, no XXIV Convívio da CART 3494, a realizar no dia 13 de Junho de 2009, em VAGOS. Encontrou-nos no blogue do Luís Graça & camaradas da Guiné.

António M. S. Castro


(*) Conta Ricardo Teixeira:

No site falavas nos que morreram no rio Geba em 10 de Agosto 1972, JOSÉ MARIA DA SILVA E SOUSA, MANUEL SALGADO ANTUNES e ABRAÃO MOREIRA ROSA.

Pois esses três homens eram do meu pelotão. (1.º Pelotão)
A esse respeito, tenho uma pequena estória a contar.

Na véspera desse acidente eu estava de serviço de limpeza ao Quartel, a certa altura a viatura já tinha muito lixo e eu subi acima para o calcar.
Azar meu, por um lado e sorte por outro, espetei um prego num pé que inchou muito, a pontos de não o poder pousar no chão.

Dia 10 vou ao médico a Bambadinca na coluna que vai a Bafatá, ao chegar ao quartel soube do acontecimento. A mando dos superiores do meu Pelotão, o José Maria da Silva e Sousa, levou a minha bazuca, o meu cinto com faca e 4 granadas de mão.
Tudo isto para dizer, que o ter espetado o prego no pé, foi a minha salvação! Se não lá tinha eu ido pró maneta. Há males que dão para bem! (eu encontro-me dentro desta situação).

Dias depois fui chamado à Secretaria para dar baixa do meu material (o que o José M. S. Sousa tinha levado). Ao mesmo tempo um dos sargentos, deu-me um pequeno pincel e uma latita de tinta, e mandou-me escrever numa mala de madeira a direcção do José Maria da Silva Sousa, SÃO TIAGO DO BOUGADO – TROFA, se a minha memória está boa, era esta a direcção do nosso camarada.

Sem mais, aqui fica o meu muito obrigado por tudo aquilo que tens feito por todos nós.

Um forte abraço do Teixeira e até breve.


3. Comentário de CV:

Caro Ricardo Teixeira, bem-vindo à nossa Tabanca Grande.
Tens a responsabilidade de ter sido apadrinhado pelo Tertuliano n.º 2 do nosso Blogue. Será que nos vais contar a tua experiência como ex-combatente da Guiné?

Sempre admirei os bazuqueiros, porque tinham de transportar uma arma demasiado grande para progredir, muitas vezes, pelo meio de densa vegetação e, quando chegava a hora de dar tiro era um problema arranjar um local minimamente aberto para fazer o disparo e que ao mesmo tempo não pusesse em causa a integridade física do apontador. Ser municiador também não era pera doce.

Cá ficamos à espera das tuas histórias. Deixo-te um abraço.
CV

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3923: Tabanca Grande (122): João Carlos Silva, ex-Cabo Especialista da Força Aérea Portuguesa (1979/82)

Guiné 63/74 - P3945: Convívios (97): Pessoal da CCAÇ 2679, na Pérola do Atlântico no dia 2 de Maio de 2009 (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, (Bajocunda, 1970/71, com data de 26 de Fevereiro de 2009:

Caro Chefe, queridos editores,
Prezo-me, orgulhosamente, das atenções recebidas na Tabanca Grande, deste local de encontro onde se valorizam os homens e se cultiva a camaradagem. Com estes mesmos pressupostos, hoje divulgo a próxima festa de confraternização da CCaç 2679, que foi mobilizada no BII-19, e cumpriu deveres em Piche e Bajocunda, nos idos de 70 e 71.

Vai ser no FUNCHAL, no próximo dia 2 de Maio, em local a designar, que realizaremos o almoço de camaradagem, aberto a familiares. Depois, e durante uma semana, é nossa intenção desbravar os interstícios da ilha, por trilhos e levadas, recorrendo à mochila para carregar alguma água e alimento. Mas também seremos turistas, e abancaremos em apraziveis lugares de refeiçoar, e dançaremos à noite nas melhores e piores "boites", tudo em homenagem à amizade camarada, ao esplendor da vida que acabámos por merecer.

Mas também haverá lugar para reflexão sobre os companheiros afectados e os já desaparecidos, com quem nós, os safos, convivemos com frequência, e os que têm fé religiosa vão celebrar adequadamente.

Peço, por isso, a divulgação através da Tabanca Grande, e forneço os seguintes contactos:

Dinis - 913 673 067; Morais - 914 668 476.
Na Madeira podem contactar:
o Gonçalves de Machico; o Rodrigues, o Valentim, o Canelinhas ou o Teotónio Andrade, no Funchal.

Abraços fraternos
José Dinis
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3937: Convívios (95): Pessoal do BCAV 3846 e Companhia Independente, dia 15 de Março de 2009 em Ortigosa - Leiria (Delfim Rodrigues)

Guiné 63/74 - P3944: Bibliografia de uma guerra: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IV): Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)


Vídeo promocional (1' 15'') da D. Quixote, editora de Braço Tatuado (2008), da autoria do nosso camarada Cristóvão Aguiar.
Cortesia da editora.

Cristóvão de Aguiar

Licenciado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tem-se revelado um escritor de mérito, a avaliar pelos prémios recebidos: Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa, pela "Raiz Comovida"; Grande Prémio da Literatura Biográfica APE, pela "Relação de Bordo" e o Prémio Nacional Miguel Torga, pelo livro"Trasfega".

Foi agraciado em 2001 pelo senhor Presidente da República com a Ordem do Infante D. Henrique. Na sua obra contam ainda outros títulos: Ciclone de Setembro, Grito em Chamas, Passageiro em Trânsito, O Braço Tatuado, Marilha, Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia, A Descoberta da Cidade e outras histórias, Emigração e Outros Temas Ilhéus, e a tradução de A Riqueza das Nações, de Adam Smith. Em 2005 foi homenageado pelos quarenta anos de vida literária pela Faculdade de Letras em conjunto com a Reitoria da Universidade de Coimbra, publicando o livro "Homenagem a Cristóvão de Aguiar - 40 anos de vida literária".


Fonte: Universidade de Coimbra > Imprensa da Universidade > Galeria de Autores > Cristóvão de Aguiar


Diário de Guerra,
de Cristóvão de Aguiar

Enviado por José Martins (ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70).

Revisão e fixação do texto: vb


Julho, 13, 1964

Como os instrutores nunca ministraram um curso tão comprido, não sabem que mais hão-de dar.

Andamos a re­petir o que fizemos na re­cruta. Aplicação militar, ordem unida, crosses, obstáculos, rastejar, percursos fan­tas­mas, in­s­trução nocturna, o raio.

A grande novidade é darem os instruen­dos al­gumas aulas de ginástica para irem treinando as vozes de co­mando. Hoje coube-me a mim dar a minha, na parada. O meu vozeirão chegou ao convento. Al­guns amanu­enses vieram às janelas para ver o que estava acon­te­cendo. No final da aula, o comandante de pelo­tão chamou-me e disse-me que tinha uma voz invejável. Prometeu-me que me da­ria uma boa classi­fica­ção nessa alínea.

Julho, 18

O que são as coisas! Nunca gostei de melão

Quando estava na Ilha, nem o cheiro dele podia suportar. Meu Avô Anselmo (que hoje faria anos se fosse vivo) bem que in­sistia co­migo para que experimentasse. Dizia-me que devia começar pela meloa, que era me­nos cus­toso. Qual quê! Dava-me vontade de lançar tudo quanto tinha e não tinha no estô­mago. Aqui, no refeitório da unidade, têm dado todos os dias me­lão à sobre­mesa. Ao princípio, e julgando que não insistissem muito, dava a minha parte ao camarada que se sentava ao pé de mim. Ficava sem so­bremesa, o que me deixava um buraquinho no estômago. E pus-me a pensar na minha fobia. Até que hoje re­solvi experimentar. Que tivesse o meu camarada de armas santa paciência. Provei a medo. E gostei tanto, que, em meia tarde, quando saí do quartel, fui com outros comprar melões a um lugar de fruta. Fo­mos depois comê-los para o quintal de uma tasca. Foi um fartote. E ve­nham-me cá dizer que na tropa não se aprende nada!

Agosto, 28

Terminei o meu primeiro curso.

Amanhã é a entrega das armas e ala bote para Coimbra passar umas férias até ser colocado numa Unidade para dar instrução. Durante este longo curso apanhei chuva, árvores em flor, sol de estorricar os miolos, Agosto sem cheiro sequer a mar.

Sofrimento, suor, medo, espe­ranças logo abortadas. E com umas seguras noções de como se engraxa o calçado, e se muda de farda várias vezes ao dia, e alguns conhecimentos sobre a Pátria, virtudes militares, granadas, inimigo, armas automáticas – obtive a minha carta de curso...

No fim, os homens que entraram já não eram os mesmos. Nas conversas, em casa, no café com os camaradas, saía-nos da boca uma virtude militar com o mesmo à vontade com que toda a gente se peidava na caserna. Esta foi para alguns mais aplicados, ou com o cérebro mais bem lavado, um verdadeiro campo de treino, depois da instrução do dia: passos à frente e à retaguarda, meia volta volver, continências como mandam as re­gras, vozes de comando...

Terminou hoje a primeira fase da escola de virtudes. Bebe­deiras de fictícia alegria, com a tristeza ferindo, subtil, certos gestos e sentidos, ga­lões ensopados em whisky, como manda a praxe militar... E fica a EPI de Mafra, a casa-mãe da Infantaria (Entrada para o Inferno), aguardando, na sua adiposa arquitec­tura conventual, mais magotes de jovens cadetes para tentar fa­zer deles máquinas com o pensamento estrangulado no fundo opaco do crânio. Mas muitos resistem e conti­nuam sendo jovens, embora tristes e abstractos.

Agosto, 29

Fui promovido a aspirante a ofi­cial mil­i­ciano (isto é, trouxe os galões comigo e enfiei-os, já fora de Mafra, nas platinas do dól­men), mas já sei que fui colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar.

Te­nho de me apre­sen­tar em meados de Setembro, numa segunda-feira, e só então po­derei usar os ga­lões, mas hoje quis entrar em Coimbra já promovido e de facto apa­nhei algumas conti­nências pela rua. Tinha pedido para ir para o Batalhão Inde­pen­dente 18, acanto­nado na freguesia dos Arrifes, na Ilha. Não calhou.

Talvez por­que vou ser mobili­zado muito em breve. Até à minha apresenta­ção em Tomar, vou go­zar umas fé­rias nesta Coimbra de­serta. Na República não há quase nin­guém. Al­guns de férias, nas Ilhas, outros já na guerra, como o José Bretão e o Viri­ato Ma­deira, ambos na Guiné e ou­tros como eu, quase a partir. O calor é muito. De dia não se pode sair de casa. À noite, dou grandes passeios pela fresca, jun­tamente com um rapaz da Terceira, o Helder Gomes, que está a preparar-se para o exame de aptidão à Uni­versidade. É interessante conver­sar com ele. Noto que me tem muito respeito, não sei se por ser oficial do exército, se por ser terceiranista da Universi­dade e ele simples para­quedista, isto é, nem bicho nem ca­loiro, segundo a praxe académica.

Tomar, Setembro, 14

Apresentei-me ao coman­dante da uni­dade.

Den­tro de dias, vou principiar a dar uma recruta em substituição de um aspi­rante, perten­cente a um Batalhão de Caçadores com des­tino a An­gola, que se encontra de baixa. O comandante desse contingente, um tenente-coronel muito aprumado e de pinguelim, tem um ar de lunático e parece de uma tropa de outro tempo.

Enshy;contrei dois açoria­nos na unidade. O capitão Moniz e um cabo mil­ici­ano, o Pedro Jácome Correia. Três ilho­tas neste mar de terra e oliveiras. Não há ainda instalações para oficiais no quartel novo, que ainda se não acabou de construir. E no velho estão já lotadas. Tive de ar­rendar um quarto, que fica na rua da sinagoga.

Setembro, 30

O comandante do regimento mandou-me cha­mar ao gabi­nete.

Fiquei assustado. Depois de lhe ter pedido licença para en­trar, ele, depois de desfazer a continência, disse-me com bons modo:
- Soube que o nosso aspi­rante acamarada com um cabo mili­ciano e até se tratam por tu; quero infor­má-lo que tal atitude é contra o Regulamento Militar.

Nem justificando-me que se tratava de um con­ter­râ­neo e colega de Liceu, o homem se demoveu. Vem no regu­la­mento!

Dezembro, 15

A minha companhia tem o número oito­cen­tos e destina-se a Cabo Verde, Ilha do Sal.

Acho que é muita sorte para um homem só.

Coimbra, Dezembro, 22

Cheguei de Tomar em meia tarde, ainda a tempo de comprar a "Praça da Canção", que saiu ontem ou anteontem, mas que já os­ten­ta, na capa, a data de 1965.

Foi o Antero Dias quem me deu a novidade. Fui com ele jantar ao Texas da baixinha e a seguir viemos para a República, onde es­tive até al­tas horas a ouvi-lo ler em voz alta o livro do Manuel Alegre do primeiro ao úl­timo verso. Ele declama tão bem e com tamanha força expres­siva, que fiquei arre­piado por dentro e por fora. Como não houvesse mais poe­mas, principiámos de novo.

Ficámos com a sensação de que nos encontráva­mos perante uma poesia tão diferente daquela que estávamos habitua­dos, revolucionária e lírica ao mesmo tempo, com uma lingua­gem poética tão encan­tatória, que nos encheu o íntimo não sei de que energia e entu­siasmo. Dava vontade de sair por aí tocando os sinos que cada homem tem no cora­ção. É livro para ser proibido pela PIDE. Felizmente, está a edição prestes a esgo­tar-se, se­gundo me disse o livreiro. É natural que os esbirros não cheguem a tempo.

Coimbra, Dezembro, 24

Natal passado com a família cor­sária, com vinho abundante para afogar não sei que saudade im­pertinente.

Não consigo arrancá-la do pensamento. E nestes dias lem­brados ainda pior. Não sei que nome hei-de dar a este ardume que me corrói as vísceras como um ácido forte. Não, não quero sequer pensar que seja o que neste instante estou pen­sando!

Hospital Militar de Coimbra, Fevereiro, 26 de 1965

Dei entrada de urgência neste hospital.

Apendicite aguda. Fui operado ontem de manhã. Anestesia só da cin­tura para baixo. Dei conta de tudo. Depois de uma aula de aplicação mili­tar, em que pus o meu pelotão de língua de fora e completamente enlameado, como eu, que era sempre o primeiro a demonstrar o que queria que os homens fizessem, sobre­veio-me o castigo, dores de barriga insuportáveis. Vim de am­bulância de Tomar para Coimbra e aqui estou numa cama de hospital. Há pouco veio-me ver o Antero Dias.

Março, 4

Cabo enfermeiro

Como não me permitiram que saísse do hospi­tal para ir dar uma volta, chamei o cabo enfermeiro, dei-lhe uma nota de vinte escudos e disse-lhe que ia guindar o muro das traseiras. Nem esperei pela reacção dele. No fim e ao cabo, era ou não era seu superior hierárquico? E, com a breca, a ginástica de apli­ca­ção militar sempre havia de servir para alguma coisa de préstimo.

Abril, 6

Afinal, a minha companhia vai para a Guiné.

O co­man­dante recebeu hoje um rádio urgente a anunciar a mu­dança. Olhámos uns para os ou­tros como condenados à morte. Só o capitão é que aparentemente se não des­caiu. É a vida que escolheu. E eu que já tinha comprado sabonetes es­peci­ais para a água salo­bra da Ilha do Sal!
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Notas de vb:

Último artigo do Diário de Guerra, do Cristóvão de Aguiar em

5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3843: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (III): Mafra, Maio/Junho de 1964



Guiné 63/74 - P3943: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (5): Quero exprimir a minha revolta (Fernando Franco)

1. Mensagem do nosso camarada Fernando Franco, ex-1.º Cabo Caixeiro do Pelotão de Intendência (PIAD), Cufar, 1973/74, com data de 26 de Fevereiro de 2009:

Amigos, há muito que ando afastado de escrever algo, mas não de visitar o nosso blogue e não fosse um conselho do meu psiquiatra, que em vez de me alienar de tudo sobre a Guiné, deveria fazer o contrário, porque me ia sentir e dormir melhor, se tal me agradasse como vinha acontecendo.

Como tal aqui estou revoltado, para me juntar a tantas outras vozes indignadas, com o que se escreve sobre nós , ex-combatentes.

Falam e escrevem como tivessem, alguma vez, sentido na pele o medo de morrer ou ficar mutilado, numa guerra que nos impuseram e a que não fugimos, simplesmente enfrentámos cada um à sua maneira... E como escreve o Mário Fitas, “fomos combatentes e não assassinos”.
Escreverem sobre as noites e dias sucessivos que passámos em alerta máximo nos ataques, patrulhas, colunas militares ou outras operações sempre com os nossos mil sentidos a funcionar em pleno, isso não merece a pena falar ou escrever, pois será que alguma vez aconteceu?

Apesar de ter sido um felizardo em relação a outros camaradas que frequentam o nosso blogue, digo bem alto e escrevo que passei por alguns momentos desses e que ainda hoje me atormentam com noites mal dormidas, momentos de solidão e má disposição, enfim igual a tantos outros camaradas que sofrem, ainda na pele, todos esses momentos nas nossas mentes.
Cada um tenta superar esses momentos de crise duma forma ou doutra e todos temos a certeza, os que estivemos na guerra “não fomos assassinos mas sim combatentes”.

Um abraço para todo o pessoal da Tabanca Grande
Fernando Franco

OBS: Negrito da responsabilidade do editor
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3942: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não asssassinos (4): Compreendo o que vos vai na alma (Virgínio Briote)