sexta-feira, 26 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (4): De bicicleta na guerra

1. Quarta história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim" (*), enviada na mensagem de 18 de Junho de 2009:

Carlos
saiu um... entrou outro
o poder é teu
Sábado lá estaremos
e mais um abraço
José Brás


DE BICICLETA NA GUERRA

- Alferes Ávila, prepare um grupo para ir ao Xitole buscar um médico, temos aí um civil acidentado, com a cara em muito mau estado, escureceu e ninguém virá por ele de Bissau senão de manhã, o Furriel enfermeiro confessa-se incapaz de fazer mais pelo homem e o diabo pode arranjar um infecção grave antes da evacuação.

Era o Capitão Loja, sempre preocupado com os habitantes da aldeia, não por qualquer relação com a lenga-lenga oficial da psico mas por genuína e pessoal humanidade.

- Capitão, sabe onde é que o meu pelotão passou a noite, não me parece que estejam descansados para fazer agora cem quilómetros, toda a noite numa estrada como esta...

- É claro. E eu deixo morrer o homem!

- Não... porra, Capitão, se for necessário até lá vou eu. Sozinho. Sozinho com um motorista.

- Deixe-se de bravatas, alferes, arranje aí uma secção reforçada e um furriel para segurar aquilo. O da ferrugem já tem uma GMC e um motorista.

Conversa entre dois ilhéus, um madeirense, outro açoriano, oficiais milicianos do exército português numa companhia em quadrícula na terra Fula de Aldeia Formosa, a África mais próxima que o império ia tocando como podia, teimando, teimando, prolongando os quinhentos anos até espremer completamente o limão, queimando os dedos de tanta e tão longa acidez.

Os dois insulares que mal vos apresentei ainda, aqui engalfinhados de palavra, cada um com suas boas razões, não estavam tão longe como o mar que lhes separa as ilhas na visão sobre aquilo, sobre a posição dos manda-chuva do regime e sobre a inutilidade da sua própria acção nas emboscadas que faziam e que sofriam, nos assaltos a aldeias de gente pobre e espantada, nas matas a norte de Nhacra, nas picadas, nas estradas de Buba, nos bairros de lata onde viviam fora da sede da companhia, Cumbijã, Chamarra, e este nem bairro de lata era mas acampamento de ciganos, coisa que fisicamente mais parecia, e que parecia o Furriel Pixa Negra, que mais pareciam os soldados da sua secção, ocupantes do lugar, chupando calores e mosquitos naquela anarquia besuntona, dormindo como os locais, em escassas casas de adobe e capim, ou ainda pior, pela precariedade da estadia.

Não generalizemos, entretanto, mais do que convém, porque importa esclarecer, tratando-se de gente, as diferenças culturais de cada um, o olhar que, coincidindo na generalidade, se separava no específico da estrutura humana, Capitão um e doutor em humanidades, alinhado já com oposições, escrevendo em jornais do contra, agarrado e ali colocado a comandar cento e tal homens contra outros homens de quem não discordava, outro, Alferes generoso e espalha-brasas, estranhando somente a necessidade de violência, recusando-a mesmo sem maiores profundezas que o desabafo.

- Tá bem, Capitão! Vou ver se engato um desses Furriéis que saem menos a ver se algum está disposto a fazer o frete!.

- Okey, concordo, mas apresse-se com o resto porque em relação a Furriel, estou a vê-lo mesmo daqui e ele está a ouvir a conversa. Já sabe o que lhe calha esta noite.

Cada um foi à sua e a sua do Capitão era eu, salvo seja, naquela emergência. No fito dele estava escolhida a vítima para a noitada.

- Ouviu a conversa, Furriel? Sabe já o que se passa com o civil. Tem alguma coisa a opor?

- Não, nada, até gosto de ir ao Xitole. Pena é que seja de noite. Dê-me licença, apenas de escolher dois ou três dos soldados que irão comigo e que obtenha acordo deles e dos seus Furriéis!

E com esta conversa entre o Loja e eu, acabam os diálogos que só entraram por melhor servirem o esclarecimento da situação, estando já, nesta altura, a impedir a circulação prática das ordens dadas e recebidas, que na tropa e na guerra nem carecem de explicações mas de cumprimento.

Tudo a andar, sete ou oito soldados, dez, se não me engano, GMC, mensagem para o Xitole a confirmar a ida, e lá partimos à aventura.

A estrada nem estava mal e fazia-se até muito bem, tirando um ou dois atravessamentos de linhas de água, sobre pontes improvisadas, um tronco de cibo para cada rodado e olhinhos do condutor, sobretudo ali no escuro da noite.
Às duas por três, a mais de meio caminho para Contabane, avaria a GMC.

- Porra! E agora?

- Bem malta vamos falar baixo estamos mais perto de Contabane e o Sambel tem uma bicicleta que nos empresta para um de nós poder voltar na gáspea à Aldeia trazer outra viatura nesta escuridão Furriel de bicicleta é quase impossível e Contabane está em auto-defesa ainda algum que lá vá leva um tiro a estrada é direita e á vista do posto de sentinela deste lado não tem árvores nem nada a Contabane vou eu com um soldado os outros vão armar emboscada fora da estrada a dez metros da viatura olhos e ouvidos abertos então e quando ouvirmos o barulho da bicicleta a noite não está escura tenham cuidado que aqui ninguém sabe imitar o pio de pássaros nem isto é um filme quem é que vai comigo vou eu e que seja o que deus quiser.

Posta aqui da maneira que lêem, esta mancha de palavras mais parece conversa de doidos ou então relato de analfabeto ainda hoje enervado com a situação de então.

Mas o que é que vocês querem? Eu não tinha já avisado que não continuaríamos pôr aqui a dialogar os protagonistas da crónica, Capitão isto, Alferes aquilo, Furriel isto e aquilo, como se estivessem em palco de teatro, deixando as falas na cadência ensaiada e nos lugares marcados para parecer real, o que real era já de si próprio?
Disse ou não disse?
Agora, desunhem-se, separem vocês as falas, este disse isto e ou outro coisa diferente, e tal.

O trabalho da construção das imagens que devem saltar de um texto, seja ele história, estória, poema, ficção narrativa ou mesmo relatório, não deve ser apenas do emissor. Quem lê, sobretudo vocês que chuparam com muitos trambolhões parecidos, conhecem o chão e o ar quente que ali se respira, o RDM, os salamaleques de militares ainda que mais aligeirados ali no mato do Sul da Guiné, deve também fazer o seu esforço no recordar da vida ali, no momento e na situação e... imaginar o resto.

Separem vocês as falas, repito, sabendo que umas são minhas e são outras dos camaradas que haviam embarcado no chaveco em Aldeia Formosa com rumo a Xitole e a missão de trazer médico, acredita-se, mais apto que enfermeiro, ainda que este o fosse e dos bons.

O certo é que nos fomos, eu na frente, olhos e ouvidos alerta, tentando agarrar os sons da mata e prevenir surpresas, o soldado caminhando atrás, rezando, creio, forma talvez mais eficaz de nos salvar de maus encontros, se calha ter deus andado por ali naquela noite.

Fizemos dois ou três quilómetros à pata. Na recta que antecede a tosca entrada na aldeia, parece que estou agora a ver o chão arenoso e solto do caminho, o soldado quase implorava para pararmos na crença que do outro lado atirariam assim que se apercebessem de presença humana e caminhante. Havíamos combinado que ao primeiro ruído de metal metendo bala na câmara, o nosso destino imediato, ainda antes do tiro, seria o chão. Outro remédio não teríamos senão gritar quem éramos e esperar que de lá entendessem e acreditassem.

Andando, andando cautelosamente e com os sentidos todos à flor-da-pele, entrámos na aldeia como quem não quer a coisa e sem oposição de sentinela, pedidos de BI ou outro elemento identificador, e nem o ladrar da canzoada trouxe gente alarmada ao nosso encontro.

Buscámos a casa de Sambel, exaltámos quatro mulheres, e outras que se foram chegando ao grupo, explicámos ao que vínhamos e o soldado lá se foi no escuro da noite, agora fazendo o caminho ao inverso e só.

O Sambel destacou dois milícias dos dele para que eu não andasse abandonado por aqueles ermos e ganhei de novo a GMC e o pessoal que lá havia ficado.
Tudo corria sobre rodas, quer dizer, se despachava como esperado.

Mais de duas horas depois vislumbrámos as luzes da outra viatura que vinha substituir a avariada e que trazia outro Furriel e mais dois soldados para continuarem a viagem interrompida, devendo eu retornar à Aldeia.

Aceitei os soldados e recusei a substituição. Já agora queria ir até ao fim.

Passámos de novo Contabane, agora a cavalo, como se diz aqui no Alentejo, mesmo quando o cavalo não passa de tratori, chegámos ao Xitole noite alta, voltámos com o médico para Aldeia Formosa e nem eu já sei se o civil se salvou ou não e como evoluiu a coisa com ele, evacuado de manhã de heli para Bissau.

Por volta da hora do almoço, já retemperado, procurei o soldado da bicicleta e encontrei-o bem abatido do medo do que fizera durante a noite, pensei eu.
Pensei mal. Ou por outra, medo o homem deve ter tido toda a viagem, pedalando e vendo fantasmas em cada sobra de árvore.
E isso nem é de admirar se pensarem bem, se se pensarem vocês no lugar do soldado, alta noite na pasteleira, naquele lugar da Guiné, desejando ardentemente o fim da estrada.
Mas agora o problema do soldado era outro.

- Óh meu Furriel! Agora quem é que paga a bicicleta ao Sambel?

- Como assim? Pagar a bicicleta porquê?

- É que aí a uns dois quilómetros da aldeia, de repente, no escuro atravessou-se-me um bicho grande na frente, bati contra barriga do gajo, caí e ele fugiu

Eu já não aguentava o riso na imagem ali criada com a maior das simplicidades e o soldado olhava-me atrapalhado com o desrespeito.

- Diga-me, quem é que paga? - repetiu.

- Já falaste ao Furriel da tua secção?

Abanou a cabeça na negativa e esperou que lhe desse uma solução para o problema bicudo.

- Óh pá! Pensando bem, o melhor a fazer, é ir à procura do bicho. Talvez que ele acabe por pagar o prejuízo e é bem feito para não andar aí a atravessar a estrada a horas que são de estar na cama. Assim, na próxima, pelo menos, olha antes de atravessar, não vá aparecer outro branco maluco montado em bicicleta de Régulo.

José Brás
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Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4551: Vindimas e Vindimados (José Brás) (3): O Santinhos da Artilharia

Guiné 63/74 - P4586: Bibliografia de uma guerra (50): Os Comunistas e a Guerra Colonial (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data 18 de Junho de 2009:

Queridos amigos,
É a primeira vez que leio o testemunho de um comunista que foi à guerra e lá viveu o peso das suas opções.
Aqui ficam estes dados para a bibliografia da guerra colonial.

Um grande abraço do Mário


Os comunistas e a Guerra Colonial
Beja Santos

Está profusamente documentado na historiografia do PCP que este partido apoiou desde a primeira hora a independência dos povos das colónias portuguesas. A leitura do jornal Avante! permite confirmar a atitude consequente que os comunistas portugueses tiveram no apoio às lutas de libertação, denunciando situações tão diversas como a exploração do trabalho nas colónias, actos de repressão das populações civis africanas, deserções e descontentamento nos quartéis, cá e lá. Quem procurava fugir e era apanhado, quem manifestava descontentamento, se apresentava como objector ou se revoltava, tinha a disciplina militar à sua espera: a Casa de Reclusão da Trafaria, o Presídio Militar de Elvas, o Batalhão Disciplinar de Penamacor, mas também a entrega à PIDE/DGS.

Armando Sousa Teixeira, dirigente estudantil, comunista, seguiu as directivas do PCP, alistou-se e procurou denunciar por dentro os chamados propósitos colonialistas da guerra decidida pelos regimes de Salazar e Caetano. Foi para Mafra, frequentou o curso de oficiais milicianos, de onde foi afastado; mobilizado como furriel para Moçambique, foi preso em pleno teatro do conflito e entregue à PIDE/DGS; detido no campo prisional da Machava, em Lourenço Marques, daqui partiu para Caxias onde foi torturado pela polícia política; foi julgado e condenado no Tribunal Plenário da Boa-Hora; posteriormente reintegrado no Exército, foi feito prisioneiro no Forte da Trafaria, pelas mesmas acusações; despromovido e remobilizado, partiu de novo para Moçambique com uma comissão agravada de 3 anos. É uma narrativa que começa em 1971, em Mafra, e acaba em 25 de Abril de 1974, em Cabo Delgado, em Moçambique. Este o fio condutor de “Guerra colonial, a memória maior que o pensamento” por Armando Sousa Teixeira, Edições Avante!, Abril de 2009, Preço 14,70 €.

Trata-se de uma narrativa que começa na Rua dos Poiais de São Bento e as memórias da resistência, os registos dos primeiros feridos chegam de África, a partida dos amigos e colegas para a tropa, os protestos contra a Guerra Colonial, a atmosfera dos que estavam a favor e dos que estavam contra. Armando de Sousa Teixeira decidiu entremear o seu testemunho com os dados históricos, certamente na presunção de que esses elementos permitem melhorar a compreensão do leitor. É um critério discutível como tantos outros, ganhamos a situação internacional e nacional, perdemos no vigor da evolução de uma experiência que teve etapas de tão grande sacrifício como as que viveu Armando Sousa Teixeira.

Entramos em Mafra, onde ele vai liderar um protesto que foi a afixação de vinhetas pelos corredores do convento, um apelo para não ir à guerra subordinado à palavra de ordem “Não jures, camarada!” e que provocou enorme bulício nas hostes da Escola Prática de Infantaria. E começaram a aparecer punições na ordem de serviço da unidade do tipo: “...Por ter sido encontrado a manipular uma tarjeta colante das que foram ultimamente espalhadas de forma irresponsável, cujo conteúdo visa minar a confiança dos instruendos na Instituição Militar e pôr em causa os sagrados deveres de defesa da integridade da Pátria, é punido com 5 (cinco) dias de detenção o instruendo do 1º ciclo do curso de oficiais milicianos...”.

O autor parte para Moçambique como furriel, a caminho de barragem de Cabora Bassa. África deslumbra-o, com o seu pôr-do-sol vermelho e laranja, a majestade do Zambeze, sente-se magnetizado pela coluna que rola em direcção ao reino da guerra. Descreve ambientes, a expectativa dos ataques, os aldeamentos circundantes, os tiros espúrios que se ouvem longe, no interior da mata. Imprevistamente, dois agentes da PIDE de Tete vêm buscá-lo e transportam-no para a prisão de Machava. Começa o seu processo, afinal ele fora descoberto durante o inquérito em Mafra, denunciado por outros instrumentos. Em Dezembro de 1972 está de novo em Lisboa, é metido na cadeia de Caxias, sujeito à tortura do sono, é porventura um dos episódios mais dramáticos do livro a descrição dos interrogatórios e o maquiavelismo dos processos. A seguir, vemo-lo no Regimento de Infantaria nº 1 onde é punido com 40 dias de prisão disciplinar agravada por ter desenvolvido as tais actividades de agitação subversiva em Mafra. Despromovido para soldado, é obrigado a uma comissão militar de 3 anos, de novo em Moçambique. Embarca para Nampula e daqui para Nangade, em Cabo Delgado, onde o 25 de Abril o vai encontrar.

É um relato por vezes pungente, quando tomamos à letra os sonhos da juventude desfeitos, enxovalhados, nesse sonho do comunista ciente das suas certezas, convicto no fim do colonialismo; é um testemunho que surte efeito pela sinceridade à flor da pele; mas é um testemunho frágil e inconclusivo, por termos uma amálgama entre o narrador e os dados, eventos e situações já devidamente enquadrados pela História que não nos cabe questionar. Era legítimo esperarmos ouvir em toda a sua representação a experiência militar e o seu trajecto sacrificial. Acredite-se ou não no comunismo, a via-sacra que decorre de uma opção como a que Armando Sousa Teixeira fez merecia a plenitude dos sentimentos e emoções. O branqueamento da História não se contraria só porque se fala dela correctamente. Corre-se o risco de branquear a História quando se cerceia a dimensão, a amplitude do sofrimento humano. Esperamos que Armando Sousa Teixeira ainda queira corrigir a contenção (imerecida) deste seu testemunho, invulgar e indispensável.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4576: Bibliografia de uma guerra (49): Lista de 77 autores de obras sobre o fim do Império (Manuel Barão da Cunha)

Guiné 63/74 - P4585: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (7): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro (VI Parte)

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 7 de Junho de 2009:

Caro Carlos:
[...]
Como sugeres, aí vai em anexo a 6.ª e última parte da estória de Madina Xaquili para a série A Guerra Vista de Bafatá.

Tinha combinado com o Luís que iria mais tarde mandar umas bandas sonoras de sons da Guiné. Assim, e esperando que chegue aí em condições de ser postado um primeiro som, incluí na estória o som de pios de morcegos, da forma e com os meios que dispunha. Será para ser ouvido no local do texto onde o coloquei.
Pretendia que ao clicar no desenho do morcego, que nesse sítio aparece, se ouvisse o referido som, mas não consigo. Se tu o conseguires, tudo bem, caso contrário elimina o desenho do morcego. Se assim for o som ouvir-se-á da forma que eu indico.

Se de todo for necessário, mandarei pelo correio um CD. Nesse caso avisa-me.

Um abraço.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

7 - Um Alferes destacado (desterrado) em Madina Xaquili com um cano (só o cano) dum morteiro 60 - parte 6 e última.

Preâmbulo

Como tenho referido anteriormente, na sequência do agravamento da situação no Cossé, fui destacado para Madina Xaquili, onde vivi uma experiência verdadeiramente inesquecível.

No Poste anterior – 4470 (10.º dia dessa minha experiência), descrevi a operação que fizemos na região de Padada, com muitos vestígios IN e mostrei fotos de locais lindíssimos por onde passámos.

Relato do 11.º dia – 22JUN69:

Logo pela manhã dei com o João a andar de forma esquisita, de pernas abertas. Não resisti e perguntei o que se passava com ele. O João, como comandante da Milícia, não fazia quase nada na tabanca. Até a sua lavra de mancarra era cultivada pelos milícias. Assim, como não estava habituado a andar muito, e por ser um pouco anafado, tinha ficado com as coxas em carne viva pelo roçar das calças na caminhada do dia anterior de cerca de 25 Km, com temperaturas a rondar os 40º e a humidade própria da época das chuvas. O problema foi resolvido pelo nosso enfermeiro, que pouco depois também teve que dar uma injecção de soro antiofídio a um milícia que foi picado por uma cobra quando cavava na lavra de mancarra.

Por causa da lavra, o abrigo para a população civil continuava por acabar.

Almoçámos mais uma vez a mesma bianda. Aí tive uma ideia (tanto de brilhante como de pérfida). Fui tentar convencer um civil (penso que seria o chefe da tabanca), a trocar duas galinhas por uma lata de atum de 3 Kg. As conversações foram demoradas. Fartei-me de lhe expor as vantagens (ou desvantagens) para ele, da troca: As galinhas podiam morrer, etc., etc. Lá vim com as duas galinhas para tornarmos a tirar a barriga de misérias.

Creiam, camaradas, que ainda hoje sinto remorsos desse negócio, apesar de que passados cerca de três meses nem galinhas, nem palhotas, nem pessoas existiam em Madina Xaquili.

Ao anoitecer, sentado no característico estrado debaixo do mangueiro, no centro da tabanca, com o relampejar ao longe, continuei a inteirar-me dos usos e costumes daquela gente. Uma pessoa podia sentir-se ali isolado mas também sentia uma paz interior difícil de alcançar nos nossos meios, ditos civilizados. Pela cabeça passou-me a ideia de ficar ali para sempre, se guerra não houvesse, claro. A pureza e ingenuidade das pessoas era total.

O som da guitarrinha do Braima induziu-me ao sono nessa noite.

O fula Braima (com as características duas marcas junto aos olhos)

Relato do 12.º dia – 23JUN69

Essa pureza que referi iria ser quebrada. Em determinada altura ouço, perfeitamente fora do contexto, um gargalhar de dois milícias. O que se passava? À porta de uma palhota um militar metropolitano mostrava a esses dois camaradas africanos um baralho de cartas, daqueles com cenas pornográficas. Interrompi a sessão, chamei o metropolitano e expliquei-lhe, em pormenor, a poluição do seu acto, etc., etc.

À tarde aproveitei para tirar algumas fotos e ir falar com o Braima para saber se ele me vendia a guitarrinha, daquelas típicas, feitas com meia cabacinha, pele de macaco e cordas de fio de pesca. Não o consegui mas falando-se também do seu iuri que ele próprio escavou em pau sangue, com forma de canoa, aqui sim, consegui convencê-lo, considerando essa a peça mais significativa que trouxe da Guiné.

O iuri que o Braima fez. As pedras são sementes de cocnote.

A Binta era sem dúvida a mulher mais vistosa e simpática da tabanca.

A mulher de um milícia

A lavra do João continuava a atrasar a construção do abrigo para a população civil.

A segurança de todos nós continuava a preocupar-me muito. Por um lado andava a pensar em redigir um relatório sobre as condições miseráveis em que nos encontrávamos em termos de armamento e na forma de fazer chegar esse relatório a Bafatá. Talvez os superiores não quisessem assumir a responsabilidade de ter um destacamento em semelhante buraco e tão mal equipado.

Se lá continuasse por muito mais tempo, várias iniciativas teria de levar à prática, de imediato:

1 – Para segurar na tabanca a 1.ª mulher do João (ler relato do 7.º dia) e porque era bastante evoluída iria arvorá-la no único elemento armado da população civil, para no abrigo colectivo fazer a defesa, possível, de todos. Dar-lhe-ia instrução de tiro e fornecer-lhe-ia uma G3. Talvez o João não gostasse mas teria que engolir o sapo. Não esquecia o Bonco; a Binta cuidaria dele.

A Binta com o Bonco, filho do João, ao colo.

2 – Além da já existente sentinela avançada na mata, criaria mais duas durante todo o dia.

3 – Passaria a sair todos os dias, a meio da tarde para patrulhar as redondezas da tabanca, com um grupo de combate e faria emboscadas nas zonas mais problemáticas, regressando já noite para jantar. A detecção de vestígios IN na zona próxima era crucial e indicativa de um próximo ataque. Como já anteriormente referi, o IN não me iria encontrar dentro do arame. O primeiro ataque viria a dar-se, já eu não estava na tabanca, mas precisamente à hora por mim prevista…

Na reunião à noite, debaixo de uma grande tensão e medindo bem todas as consequências, tomei a resolução mais controversa da minha estadia em Madina Xaquili.

Conhecia o valor dos homens que tinha comigo mas pensando no armamento que possuía, além das espingardas, (metade dos milícias tinham só Mausers), só tinha um cano velho (só o cano) dum morteiro 60 e 16 (dezasseis) granadas para o mesmo, tinha que tomar uma atitude. Todos sabem com que armamento o IN fazia os ataques: Vários morteiros 82, canhões sem recuo, metralhadoras, RPG7, etc. Quanto tempo nós iríamos aguentar com 16 granadas de morteiro 60?

É certo que me passou pela cabeça simular um ataque ou outro qualquer contacto com o IN e pedir uma urgente remuniciação. Correria o risco de não a fazerem e ficava pior ou podiam mandar-me outras 16 granadas, ou 10, ou 5…

Achava a situação dramática dada a proximidade do IN.

Finalmente expus a todo o pessoal o que já andava a magicar há alguns dias e caso a situação não se viesse a alterar: Um plano de fuga.

No caso de verificar, que com um ataque se estava próximo de gastar a última das nossas 16 granadas, à minha ordem todos retirariam por uma zona baixa da tabanca, próxima da fonte, muito improvável de instalação IN e caminhariam a corta-mato durante cerca de 1 Km, ao fim do qual flectiriam à direita até encontrarem a picada para Galomaro. Eu e um pequeno grupo aguentaríamos o IN até não poder mais, dando tempo a que a população civil se pusesse a salvo. Então, sim, seria a nossa vez.

Esta atitude comuniquei-a, posteriormente, ao então Chefe do Estado Maior do Agrupamento, Ten Cor Teixeira da Silva que, embora arregalando os olhos, a compreendeu perfeitamente. Também sabia com quem estava a falar, quiçá o oficial superior mais culto e menos militarista, dos que então passaram pelo Comando do Agrupamento.

Foi assim, debaixo dum silêncio sepulcral, sem os acordes da violinha do Braima e só quebrado pelo som metálico do piar dos morcegos nos mangueiros, que fui dormir, ainda sem saber que era a minha última noite em Madina Xaquili.

(OBS: Falta encaixar aqui o ruído dos morcegos)

Relato do 13.º dia – 24JUN69:

Na manhã do 13.º e último dia, como por premonição, resolvi tirar a foto de família e a do forno que eu próprio construí, ambas a preto e branco pois tinham acabado as fotos coloridas.

Comigo está o João e mais 15 dos 38 milícias que constituíam a guarnição africana da tabanca.

O forno que construí. Ao meu lado o Sajuma, que se ofereceu para ajudante de padeiro.

Ajudei a posicionar alguns cibes no novo abrigo e a hora do almoço estava a chegar. Ouve-se então o ruído de uma coluna a chegar, com as viaturas a roncar ao passarem uma linha de água a uns 500 metros da tabanca.

Pensei, talvez como os meus camaradas metropolitanos, que viessem ali mais umas cervejas frescas.

Vinham sim reabastecer-nos de géneros, mas também traziam uma ordem para me levarem embora.

Desta vez não consegui tomar a atitude que seria um tanto estranha para quem, como eu, achava que estava em perigo em Madina: Seria não ir com a coluna e ficar na tabanca, pois não era só eu que estava em perigo. Para isso era só necessário mandar uma mensagem para o Agrupamento a perguntar qual ordem cumpria: Se a que a coluna trouxe para me levar, se a do Coronel Felgas quando me visitou e me disse que eu só sairia dali quando houvesse abrigos para a população civil. Ia a mensagem, vinha a resposta, a coluna já tinha partido e eu ficava.

Para tanto não tive coragem. Pensei na família. Pensei na possibilidade do meu filho Miguel já vir a caminho (tinha estado de férias na metrópole um mês antes). Fui com a coluna.

Não sei se foi a minha tristeza que contagiou os que ficavam, se o contrário.

O João e os outros milícias prometeram visitar-me quando fossem a Bafatá, o que veio a acontecer.

Excerto de um aerograma em que refiro a visita que o João me fez em 03OUT69 e a triste notícia da destruição de todas as palhotas de Madina Xaquili

De fugida verifiquei que tinham finalmente trazido mais uma arma para reforçar o cano do morteiro 60 (só o cano) e as suas 16 (dezasseis) granadas: Uma metralhadora ligeira Degtiarev, de disco, apanhada ao IN. O Cap Jerónimo de Galomaro devia continuar com remorsos.

Subi para um Unimog e aí passou-se uma cena, única em toda a minha vida, quando o Furriel que ia ao meu lado me perguntou se tinha gostado de estar na tabanca.

Gostaria muito que fosse esse Furriel, de quem não lembro o nome, a contar o sucedido mas constrangido direi que as lágrimas me vieram aos olhos pelo que baixei a cabeça. Foi então que os meus dois olhos se transformaram em autênticos chuveiros. Durante largos minutos o Furriel, atónito e confuso, respeitou o meu silêncio. Reagi e reatámos então a conversa.

Sei que passei por Galomaro e falei com o Cap Jerónimo, mas não recordo como cheguei ao Comando de Agrupamento em Bafatá.

Fim desta longa e curta estória que para mim fez História.

Até para a semana camaradas, com uma estória curta mas engraçada passada com o pessoal do Esquadrão de Cavalaria instalado ao lado do Agrupamento.

Texto e fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. poste de 6 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4470: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (6): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (V Parte)

Guiné 63/74 - P4584: Controvérsias (26): Cabo Miliciano: Cabo, Sargento ou Soldado? (Libério Lopes)





1. Mensagem enviada pelo Libério Lopes, que foi 2º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65 (*), em 24 de Junho de 2009:






Cabo Miliciano: Cabo, Sargento ou Soldado?

Dizia o Manuel Maia há alguns dias, que o único país do Mundo onde existiu o posto de Cabo Miliciano foi em Portugal. E tem razão. Só em Portugal isso podia acontecer e foi devido à lucidez brilhante de um Ministro do Exército do Governo de Salazar que isto podia acontecer. Se não me engano foi o Santos Costa. Se não for ,e se alguém souber ao certo quem foi, é bom transmitir a todos os camaradas para lhe prestarmos as nossas homenagens…

Foi um indivíduo inteligente ao tomar esta atitude (poupou milhões ao Estado) só que criou inúmeros problemas.

Com o vencimento de um soldado, tinha um Cabo a fazer um serviço de Sargento. É claro que alguns comandantes usavam e abusavam do seu poder discriminatório para rebaixar os Cabos Milicianos.

Fui Cabo Miliciano no Batalhão de Caçadores 6, em Castelo Branco, desde Janeiro de 62 a Abril de 63. Dei salvo erro três recrutas e, por falta de aspirantes muitas vezes comandámos pelotões de 100 recrutas.

Neste quartel aconteceram, com o comandante de então, coisas interessantes. Ao Cabo Miliciano era proibido frequentar o bar dos soldados, porque faziam serviço de Sargento. Só que os sargentos do QP não nos deixavam entrar no seu Bar.

Houve, inclusivamente, um Cabo Miliciano de Sargento de Dia ao Batalhão que ao querer tomar café no Bar de Sargentos, durante a noite, foi posto na rua por um 1º Sargento. Isto serviu para que os Cabos Milicianos se juntassem e conseguissem uma pequena sala onde se reuniam e tinham uma máquina de café.

Como defesa da classe, deliberamos só responder quando nos tratassem por Cabo miliciano e não por cabo. Ainda estou a ver o Comandante a chamar o Silva… gritando: ó nosso cabo… ó nosso cabo e o Silva… não lhe respondia. O comandante aproxima-se dele e pergunta-lhe se não o tinha ouvido chamar. O Silva retorquiu-lhe: 0 meu comandante desculpe mas chamou nosso cabo e eu sou Cabo Miliciano. O Comandante engoliu e calou. Serviu de exemplo para todo o quartel.

Esse mesmo senhor quis aplicar-me como castigo, de me ver á civil na rua, uma carecada (”écada” no meu tempo).

Em Março de 1963 fomos promovidos a Furriéis Milicianos. Nunca nenhum de nós entrou alguma vez no Bar de Sargentos.

Termino dizendo que, embora todos estes condicionantes, sinto-me honrado por ter pertencido á classe dos Cabos Milicianos. Fomos explorados no Continente como mão-de-obra barata ao contrário dos Aspirantes Milicianos, que, ao fim da especialidade, tinham desde logo acesso á classe de oficiais.

No Ultramar foi o que toda a gente sabe: sempre na frente de combate enquanto a maioria dos profissionais estavam no ar condicionado. Mas isso é outro assunto...

Libério Lopes
2º Sarg Mil
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4583: Convívios (151): Tabanca de Matosinhos - Sardinhada na noite de S. João (Xico Allen/Magalhães Ribeiro)



Camaradas,

Neste poste, apresentamos alguns instantâneos enviados pelo Xico Allen, no passado dia 24 de Junho, nos quais nos dá bem conta do excelente e animado jantar/convívio levado a efeito na noite de S. João, pelo pessoal da Tabanca de Matosinhos, onde não faltou, com certeza, a habitual, saborosa e indispensável sardinha assada e um naco da gostosa broa de Avintes que, pela velhinha tradição, deve terminar com uma boa malga de caldo verde.

E é também à boa moda do S. João do Porto, que se devem fazer os pedidos em curtas quadras populares.

Então vamos lá tentar:


S. João sê nosso bom amigo
Olha pela malta da Guiné
Livra-o de qualquer perigo
Mesmo aquele que não tem fé


S. João olha pelos mais fracos
Sabes o que esta gente sofreu
Metidos em pobres bu… rakos
Fosse agnóstico, cristão ou ateu

S. João lembra-te sempre de nós
Nós também não t’esquecemos
E nunca nos deixes um minuto sós
Porqu’é do convívio que vivemos


S. João dá-nos mil e um balões
P’ra festejarmos com sabedoria
As nossas confraternizações
Com muita saúde e alegria!


Fotos: © Xico Allen (2009). Direitos reservados
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4582: Os Nossos Camaradas Guineenses (11): Ernesto… procuro saber algo sobre este meu Amigo guineense (António Matos)

APELO

Camaradas,

O nosso Camarada António Matos, pede-nos que publiquemos a repetição de um apelo que já tinha feito, no seu poste Nº 3473, em Novembro de 2008, na tentativa de localizar um Amigo seu guineense, que muito gostava de rever e do qual apenas se lembra dos seguintes dados.


- O seu nome é Ernesto;
- Esteve integrado na CCAÇ 2790 em Bula;
- Fazia parte do seu grupo de combate (4º);
- Período de amizade 1970/72;
- Etnia balanta;
- Não tinha qualquer graduação militar;
- Tem uma foto que se apresenta a seguir.

Dizia então o António no mencionado poste:

Um blogue com a concepção deste nosso cumprirá a sua missão se, paralelamente ao acervo que possibilita a gerações futuras, entenderem esta temática da guerra do ultramar (1961-1974), conseguir também ser um verdadeiro ponto de encontro de camaradas cujo rasto se perdeu pelas vicissitudes da vida.

O Ernesto.

Dos meus tempos de Guiné recordo este jovem negro, o Ernesto, que acompanhou muita da minha actividade em chão Balanta. Era um dos meus lançadores de roquetes.

A sua simpatia e o seu espírito colaborador angariaram-lhe a afeição generalizada.

Hoje desconheço de todo se é vivo, se morreu, se andará pela Guiné, se, quiçá, por Portugal, se é um pé rapado ou algum senhor bem colocado na vida, enfim, perdi-lhe o rasto mas gostava de saber dele.

Se alguém o conheceu, ou saiba algo sobre o seu paradeiro por favor diga-me!

Se nas digressões à Guiné encetadas por vários camaradas alguém o vir ou conseguir saber alguma coisa (nomeadamente em Bula), informe-me!

Seria, para mim, um momento memorável que daria direito a celebração especial.

Um abraço,
António Matos
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:


Guiné 63/74 - P4581: Blogpoesia (50): Guiné 2009: Será que gosto de mim ? E do meu país ? (António Graça de Abreu)

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O António Graça de Abreu mostrando um quadro, em madeira, gravado a fogo (pirogravura), da autoria do Mário Fitas, seu vizinho de Cascais, oferecido por este camarada para ser sorteado entre os participantes do Encontro...

Por falta de tempo e condições, o quadro não chegou a ser sorteado, aguardando assim melhor oportunidade... Em todo caso, vai daqui um abraço muito especial ao Mário Fitas pelo seu gesto de carinho para com o nosso blogue e os seus camaradas. Sentimos a tua falta, grande Lassa! ( O Mário foi Fur Mil , CCAÇ 763, Os Lassas, Cufar, Região de Tombali, 1965/66; é, além disso, autor de dois livros e um homem dos sete ofícios e muitas paixões (da ornitologia à pirogravura) (*).

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O João Seabra (Figueira da Foz) e o Fernando Franco (Amadora), dois intendentes... De pé, o António Santos (Loures), um homem das transmissões, que andou pelo Gabu...

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O João Seabra, novo membro da nossa Tabanca Grande... Foi Alf Mil, comandante do PINT (Pelotão de Intendência) 9288, Cufar, 1973/74), a que pertenceu também o Fernando Franco (embora tenha estado sempre em Bissau) (**).

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O António Graça de Abreu, ao centro, na segunda fila, entre o Rui Ferreira (o nosso Ruizinho, como é tratado carinhosamente, o autor de Rumo a Fulacunda) e o António Martins de Matos (que, em termos de patentes militares, era o mais graduado de todos nós: Ten Gen Pilav, na reserva)... Na primeira fila, da esquerda para a direita, o Álvaro Basto (Matosinhos), o Abel Rei (Marinha Grande) e o Fernando Oliveira (Porto)...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2009). Direitos reservados

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > Um abraço de dois bons camaradas que nem sempre estiveram de acordo, no blogue, na avaliação da situação político-militar da guerra na Guiné, na véspera do 25 de Abril de 1974: o António Graça de Abreu (à esquerda) e o Juvenal Amado (à direita). (LG)

Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados.


Guiné, Região de Tombali, Cufar > Janeiro de 1974 > O António Graça de Abreu num Heli Al III

Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Direitos reservados



1. Mensagem do António Graça de Abreu (que foi Alf Mil, no CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74):

Meus caros Luís, Carlos, Magalhães Ribeiro:


Na boa ressaca do nosso encontro da Ortigosa, escrevi este simples poema. Se acham que é de publicar, publiquem. Nas fotos do Santos Oliveira há uma espantosa (a primeira de duas) em que o Juvenal Amado e eu nos abraçamos. Essa fotografia diz tudo, é bem melhor que o meu poema. Se acharem bem, publiquem a fotografia com o poema.

[ O nosso camarada esteve recentemente em Macau, para apresentação do seu última de um tradução de um clássico da pesia chinesa), em depois em Hong Kong, Zuhai, Xangai e Pequim. Entretanto, a 3 de Julho próximo, volta a viajar para a China, "com a minha família chinesa e meia chinesa", , só regressando a Portugal no dia 3 de Setembro. Vai ser um Verão cheio de China].



Guiné 2009


Será que gosto de mim?
Será que os que me rodeiam gostam de mim?
Será que gosto do meu país?
Será que o meu país gosta de mim?

A herança da História, os acasos do tempo,
o estertor do Império, a insensatez das gentes
levaram-nos um dia a servir numa guerra.
Homens-meninos, por bolanhas verdes,
no tarrafo cinza, na picada traiçoeira,
na humidade quente do amanhecer das florestas,
o espanto, a morte, o medo, a coragem.

Quase rasgámos a alma.
Sobrevivemos, envelhecemos devagar.

Hoje, reencontramo-nos no meio de Portugal,
a festa, o vinho, o nosso fado,
as sinuosidades da vida, mil estórias,
o gosto cristalino de um abraço de irmãos.

E ainda uma lágrima,
a guerra da Guiné somos nós.

António Graça de Abreu

Estoril, 22 de Junho de 2009


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Notas de L.G.:~

(*) Vd. poste de 27 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3096: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (2): Pirogravuras, de Mário Fitas

(**) Vd. postes de:

19 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4377: Tabanca Grande (145): João Lourenço, ex-Alf Mil do PINT 9288 (Cufar, 1973/74)

20 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4389: (Ex)citações (28): Ah! Grande Lourenço ou… confessando os nossos pecadilhos de Cufar 1973/74 (António Graça Abreu)

26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4415: (Ex)citações (29): A Guiné que todos temos um pouco na alma (João Lourenço)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio




1. O Cherno Baldé nasceu na antiga província portuguesa da Guiné, em Fajonquito, na zona leste, junto à fronteira com o Senegal, há cerca de 50 anos, numa sociedade sem escrita, sendo educado na cultura do seu povo, um povo de pastores, fulas, islamizados, tendo como vizinhos, pouco amistosos, os mandingas...

Aos cinco/seis anos, em 1965, viu pela primeira vez homens brancos, armados e equipados para a guerra, que se instalaram em Cambajú onde o pai era empregado de uma casa comercial... A primeira visão foi de terror... Mas a irrestível curiosidade infantil veio ao de cima: a descobertas das diferenças, dos cheiros dos corpos, dos comportamentos sociais...

Hoje ele pertence ao mesmo mundo desses homens brancos, aprendeu a sua língua, o português, formou-se na antiga União Soviética como engenheiro, faz uma pós-graduação em Lisboa na área da gestão. No seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento, há dossiês com palavrões como Segurança, Ambiente, Gestão de Estaleiros, Auditoria, Análise de Projectos, Gestão de Contratos, Formação de Formadores, Fiscalização de Obras de Conservação de Estradas, etc., que eram completamente inteligíveis para ele em 1965... Com a chegada dos homens brancos, passou o ser Chico, Jubi, Chico...

O texto que a seguir se publica (o nº 3 das suas crónicas, em que ele descreve a maneira como o Chico viu e viveu a chegada dos primeiros homens brancos à sua aldeia, é absolutamete fantástica, é uma peça de antologia etnográfica, de descoberta do outro, o estrangeiro, que provoca terror e fascínio... Nunca tinha lido nada parecido, da autoria de um guineense, sobre nós, homens brancos... Deliciado, já li o texto três ou quatro vezes seguidas...

Obrigado, Chico, obrigado Cherno, obrigado meu amigo e irmãoinho... És um caso sério de talento literário. Os meus, os nossos parabéns. A nossa Tabanca Grande fica mais rica, contigo. Faz uma boa viagem de regresso a a casa. Obrigado, djarama, kanibambo... LG

PS - Não te esqueças, que combinámos tratar-nos por tu... Era assim que os romanos se tratavam entre si. É assim que se tratam os camaradas e, por tabela, os amigos da Guiné. Foi distracção tua, já corrigi. Aqui somos todos primeiros entre iguais [em latim, primi inter pares], além de pertencermos todos à única raça humana que eu conheço (e que os zoólogos conhecem), a espécie Homo Sapiens Sapiens.

2. Eis uma mensagem do nosso amigo Cherno Baldé, que está em Moçambique, em viagem de serviço (»):

Amigo Luís,

Não tenho palavras para manifestar a minha gratidão pelo trabalho voluntarioso e desinteressado que estás a desenvolver para reunir pedaços de memórias espalhados por este mundo fora. Memórias que certamente nos unem a todos, independentemente de tudo o resto.

No dia em que descobri o Blogue da Tabanca Grande fiquei tão emocionado que, quase, não consegui pregar olho, porque a máquina do tempo dentro da minha cabeça activou-se e começou a vasculhar nos escombros do passado de forma desordenada. Foi como se tivesse reencontrado todos os meus amigos.

Muito obrigado pela confiança, a fidelidade no tratamento do material e também pela sinceridade das tuas palavras cheias de sabedoria. Vou encarar a vossa reacção positiva e o comentário simpático do Manuel Maia como sinais de encorajamento para prosseguir nas crónicas, esperando e rogando a Deus e a todos que as lerem, vejam nelas uma simples tentativa de descrição de factos na justa medida em que a minha memória falível e a minha capacidade intelectual bastante limitada forem capazes de os conservar e transmitir.

As opiniões e pontos de vista nele contidos só me engajam a mim e de forma alguma devem ser conotados com o país, o grupo étnico ou a raça a que pertenço.

Neste preciso momento encontro-me em Maputo (antiga Lourenco Marques), Moçambique, em missão de serviço e estou vislumbrado com a beleza da cidade. Aqui fez-se trabalho pensando no futuro e este já está a chegar.

A ti e a todos os teus colaboradores um grande KANIMAMBO.

Um forte abraço,

Cherno AB - Chico

3. Memórias do Chico, menino e moço (3) > Os homens brancos

por Cherno Baldé (*)

No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área.

Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo.

Quando chegaram, estávamos a jogar no largo da zona comercial que também fazia de paragem para as carroças que traziam mercadorias. Foi o barulho dos motores que nos alertou, como habitualmente, corremos atrás dos veículos, e foi nessa altura é que reparamos no insólito. As pessoas que estavam sentadas em cima dos veículos, todos vestidos com o mesmo tipo de tecido, um chapéu que se estendia de trás para a frente da mesma cor na cabeça e uma arma entre as pernas, completamente imóveis, não eram pessoas normais, como estávamos habituados a ver. Eram brancos, meu Deus do céu, tão branquinhos que se podia ver o sangue vermelho rubro a correr nas veias.

Não foi preciso dizer a ninguém, não houve nenhuma concertação entre nós. A nossa primeira reacção foi fugir, fugir dali com todo os pés. Eu fui directamente ao quarto da minha mãe que nesse momento se encontrava na cozinha, meti-me debaixo da cama, no mesmo sítio em que costumava esconder-me sempre que quisesse estar a salvo dos perseguidores, quando fazia das minhas. Não me lembro quanto tempo estive ali escondido, o certo é que o céu não tinha desabado sobre mim, sinal claro de que afinal não era o fim do mundo. Aliás, era o prenúncio de um novo mundo para mim ao qual, mais tarde, por força da minha educação e formação, viria a pertencer para sempre.

Passado o susto, agora era a curiosidade que tinha ganhado terreno. Não se falava de outra coisa na aldeia e seus arredores, houve mesmo pessoas que regressaram dos seus lugares de trabalho para assistir à vinda das pessoas de cor branca. Em todos, a curiosidade de ver aqueles seres estranhos suplantava o questionamento sobre as razões da sua presença. Queríamos ver e entender cada gesto, cada olhar, cada palavra desses seres de olhos azuis ou mesmo verdes que, entre nós, eram conhecidos só de alguns animais dotados de poderes especiais como os gatos que tinham sete vidas ou os eternos camaleões que tinham a capacidade de adquirir as cores de sua preferência.

Não admira que as pessoas tivessem medo deles, afinal de contas, o que eram eles, diabos ou feiticeiros? De certeza que não eram pessoas normais. Isto, nós iríamos compreender mais tarde. No dia seguinte, o meu amigo e colega, Samba, veio a minha casa para as brincadeiras habituais, falámos do acontecimento de ontem e fiquei a saber que tudo não passara mesmo de um susto injustificado pois, aqueles sujeitos eram soldados portugueses vindos directamente de Portugal, o que queria dizer nossos amigos e aliados.

Segundo Samba, “Eles vinham proteger-nos dos roubos e outras maldades que os terroristas, encabeçados pelos mandingas, nossos vizinhos e preguiçosos natos que, invejando a nossa posição e riquezas, queriam tirar-nos tudo”. “Alguns dos nossos colegas já tinham feito amigos entre os brancos recém-chegados e em troca lhes tinham oferecido latas de conserva de peixe muito saborosas com o azeite a escorrer pelos dedos quando as comiam”, disse-me ele.

Decidimos fazer o mesmo e fomos, sem medo, até o sítio onde estavam alojados. Quando chegamos junto deles, notámos que o acampamento estava cercado de arame farpado por todos os lados excepto num sitio por onde todos entravam e saíam. Estas circunstâncias não agradaram a minha natureza de felino livre e mandrião, arrepiava-me só a ideia de estar fechado num sítio donde não se podia sair livremente, a maior parte deles estava de tronco nu, só tinham no corpo uns calções curtos que quase deixavam ver as nádegas.

Que falta de vergonha, pensei comigo, pessoas adultas com as nádegas de fora. Todos tinham na cabeça aqueles chapéus estranhos que traziam no primeiro dia e que tinham uma ponta redonda pela frente a cobrir o fronte e descaíam para trás em forma de dois rabos curtos. Estavam todos ocupados, isoladamente ou em pequenos grupos, alguns limpando suas armas, outros lavando roupa interior ou colocando tendas de campanha.

Houve duas coisas que saltaram logo a minha vista: Eram todos bastante jovens, fisicamente robustos e bem nutridos, todos apresentando uma pelugem de cor preta e/ou acastanhada no peito.

Era um espectáculo ainda mais incaracterístico do que a primeira vez que os vira, e de mais a mais, havia um cheiro esquisito e forte que, certamente, estaria relacionado com aquela gente estranha. Mais tarde vim a saber que se tratava do cheiro de alho que eles utilizavam abundantemente na sua alimentação. Não pude avançar mais.

Sem prevenir o meu amigo que avançava para dentro da cerca, parecendo alheio a tudo, pensando certamente, no pão e nas conservas que nos esperavam, dei meia volta e pus-me ao largo. Contudo, ninguém pode fugir do seu destino e estava destinado que a nossa geração entraria lá dentro e faria amigos entre esses brancos de origem e modos estranhos e, sobretudo, ficaria para sempre ligada a esta gente de hábitos libertinos, ao gosto inesquecível da sua sopa, da sua batata, do bacalhau e grão-de-bico e a sua civilização através da aculturação que viria a sofrer por meio da escola.

Passado o tempo da surpresa e da incompreensão, acomodámo-nos perfeitamente dentro do acampamento. Fazíamos pequenos trabalhos de limpeza e em contrapartida tínhamos direito à sobremesa do amigo. Cada um tinha o seu amigo de quem esperava que lhe trouxesse as sobras do prato igual a um cachorrinho de casa. Eu não tinha conseguido arranjar um amigo de imediato, na verdade, o medo inicial não tinha permitido muita ousadia da minha parte. Felizmente, tinha umas irmãs muito giras que não precisaram se deslocar ao acampamento. Devo dizer que esses jovens soldados portugueses eram muito atrevidos e mal-educados não se coibindo de entrar nos recintos das nossas moranças (casas) para irem atrás de uma rapariga da forma mais descarada que havia, agarrando nos seios e nos traseiros, mesmo à frente dos pais.

Os velhos da aldeia, em vez de os corrigirem daquela falta de educação, riam-se e deixavam-nos levar avante a sua insolência. “Na sua terra, certamente, não sabem o que é a vergonha”, diziam eles, senão como é que se podia entender que um adulto andasse, quase, todo nu em pleno dia, e corresse atrás de rapariguinhas que, ainda por cima, não lhes eram prometidas.

E foi assim que a coberto das minhas irmãs mais velhas que tinham amigos que vinham a nossa casa, tive acesso facilitado ao acampamento e também a possibilidade de me aproximar dos brancos e pouco a pouco habituar-me ao seu cheiro peculiar de alho moído e aceitar a sua presença no meu espírito ainda assustado.

Esse cheiro, foi para mim, o primeiro sinal da diferença entre o campo onde habitavam, em estado puro, a nossa gente, todos falando a mesma língua e os mesmos costumes com o mesmo odor de terra com mistura de calor e bosta de vaca e o ambiente urbano onde viviam pessoas vindas de outras partes e se misturavam cheiros de origens diferentes, como o do alho que veio com os soldados portugueses e o cheiro que resultava da mistura da urina e excrementos de porco que só vim a sentir quando mudamos para a localidade de Fajonquito e que estava relacionado com a presença de porcos domésticos, animal que até aquela data não conhecia.

Fotos: Arquivo

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...