domingo, 23 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4856: Blogues da Nossa Blogosfera (18): Carlos Silva abre uma página sobre a CCAÇ 2381 no seu Blogue



1. Mensagem de Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71, com data de 21 de Agosto de 2009:

Amigos e Camaradas

Acabo de abrir a página sobre a CCaç 2381 de Buba com fotos da minha viagem em 2007.

http://carlosilva-guine.com/

http://carlosilva-guine.i9tc.com/index.php?option=com_content&task=view&id=107&Itemid=1

É só clicar nos links e depois navegar

Vejam e divulguem. Promovam o turismo de Saudade daquela terra.

Enviem fotos e textos

Um abraço
Carlos Silva

CCAÇ 2381 - Divisa: Os Maiorais - Pela Lei Pela Grei

Região de Quinara>Sector Buba, 13-03-2007 > Aldeamento Turístico "Gabi"> Bangalwos com 2 quartos propriedade de uma Senhora romena radicada na Guiné há 20 anos muito simpática tem arte de bem receber

© Foto ex-Fur Carlos Silva>CCaç 2548/Bat Caç 2879

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Vd. último poste da série de 24 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4574: Blogues da Nossa Blogosfera (17): Um raio de luz e fez-se luz (António Santos)

Guiné 63/74 - P4855: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (13): "Fábrica de heróis"


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 13ª estória:

Camaradas,

Este é mais um texto, ou ensaio, como queiram designá-lo, que eu fui buscar ao infindável “caixote do lixo” das minhas memórias.

"FÁBRICA DE HERÓIS"

Foram inúmeros os feitos de coragem protagonizados pelos nossos valentes militares, voluntariamente, de modo consciente ou instintivo, muito além do que o dever com a Pátria obriga, nos teatros de guerra em África, entre 1962 e 1975.

Muitos desses incríveis actos fazem arrepiar de espanto e amdiração, mesmo os mais inssensíveis a estas questões, já que, em muitos casos, a estes nossos Camaradas, tais "ousadias" lhes acarretou custos elevadíssimos às suas integridades físicas e psíquicas, quando não a privação da própria vida.

São muitos os Heróis constituídos da melhor cepa de Homens desta Lusa Pátria, que muito honraram e dignificaram, juntando mais um punhado de magníficas e impressionantes páginas na nossa já longa e eterna História de Portugal.

Nomeá-los a todos, aqui, seria de toda a justiça, mas como o rol é demasiado vasto, corria o risco de não os contemplar a todos.

Muitos desses Heróis foram, devida e merecidamente, referenciados, exaltados e premiados, com clareza e honestidade.

A estes que estão dignificados e perpetuados na minha memória e na dos portugueses que se dignam de o ser, nada mais tenho a acrescentar.

Outros Heróis houveram, no entanto, que se evidenciaram em feitos e actos exemplares de ousadia e valentia idênticos aos dos primeiros, que por várias razões e motivos, foram completamente omissos e, ou, ostracizados. A estes só acrescento que é triste e lamentável!

Mas além destes Heróis, houve ainda uma “classe” de “heróis” inventados em gabinetes, que devido a pequenos e, ou, insignificantes actos, devido a lamentáveis, estranhas e maquiavélicas estratégias políticas, e, ou, militares, viram essas acções serem empoladas ao mais alto grau, desonesta, inadmissível e vergonhosamente.

Esta abordagem não teria qualquer justificação de existência e sustento, se eu não fosse testemunha viva por, infelizmente, ter observado e vivido alguns desses casos de “fabricação de heróis”, alguns à força, sem qualquer culpa formada.

Camaradas que fique desde já assente e óbvio, que não pretendo com estas alegações beliscar ou desonrar as virtudes dos nossos camaradas falecidos em combate. Pretendo sim denunciar, desmontar e desmistificar a falsa e tenebrosa teoria da "Ideologia, Propaganda e Construção de Heróis Fabricados em Gabinetes", muito em voga então, em alguns sectores específicos do nosso Exército.

No meu tempo, em Aldeia Formosa, havia um oficial muito conhecido na nossa “praça”, que gostava de ser “patrão” de tão repugnante fabrico.

Não havia relatório de operação, patrulha, ou outra qualquer acção militar digna de registo no papel, que lhe chegasse às mãos, onde o mesmo não tentasse descobrir (inventar), um relevo desmedido nos actos descritos nos mesmos.

Este oficial, de patente elevada com basta formação académica e militar, deveria saber, em primeiro lugar, que um Herói quer ocasionalmente (por reacção espontânea em condições adversas), quer por instinto natural, é guiado por ideais nobres e altruístas, em nome de qualidades e valores como justiça, coragem, lealdade, valor, valentia, fraternidade, sacrifício e moral.

A maioria de nós, procurava apenas a sobrevivência, o importante era sair da guerra com vida, sem mazelas físicas (já nos bastavam para toda a vida as psíquicas) e com a comissão cumprida, por isso e para maximizar essas possibilidades, não podíamos ser dados a grandes feitos de heroísmo.

Para heroísmo já bastava andarmos lá, a correr sérios riscos de vida.

Para mim todos fomos Heróis de uma forma ou de outra.

Infelizmente houve camaradas nossos que pereceram no campo de batalha, aos quais foram prestadas escassas honras, por feitos distintos, valentia e heroísmo, tendo-se o seu desempenho reduzido ao simples facto de terem sido atingidos por acção de armadilhas e fogo IN.

Portugal na altura seguia uma política em relação ao Ultramar, que era contestada por todo o mundo civilizado, até pelos nossos tradicionais países aliados. Por isso, e para sossegar as hostes nacionais, foi criada esse estratagema da “Fábrica de Heróis”, que assentava nos seguintes princípios básicos:

"OS HERÓIS NACIONAIS SÃO USADOS COMO SÍMBOLOS PARA FORTALECER SEU POVO; TORNAR O PAÍS SOBERANO, EDIFICAR E SOLIDIFICAR A CULTURA E POR ÚLTIMO ELEVAR A AUTO ESTIMA DAS PESSOAS".

Para complementar “isto” foram criadas as nossas bem conhecidas cerimónias do 10 de Junho, datas em que se condecoravam os Heróis Nacionais.

Quase todos nós conhecemos casos de Camaradas nossos, que recusaram medalhas (por exemploCruzes de Guerra), por acharem honrosa e honestamente que o desempenho e os factos que lhes eram atribuídos não eram merecedores de tais honras.

Conheço um caso que pela sua originalidade e postura aqui vos apresento:

Num dos muitos confrontos com o IN, o militar em questão foi ferido e, em consequência, foi louvado pelo seu comandante.

Mais tarde, seguindo os habituais trâmites, esse louvor foi transmitido ao comandante do Batalhão do Sector, de onde transitou para o Chefe do Estado Maior do Exército da Região de Évora, que lhe conferiu uma “Cruz de Guerra de 2.ª Classe”.

Interessante é que o dito militar já nem se encontrava nas fileiras do exército. Por isso, e por não concordar com atribuição da mesma, não compareceu nas cerimónias do 10 de Junho, em Évora, no ano de 1972, alegando, para justificar a sua não comparência, a sua ausência do País (para quem não sabe, se ele não tivesse justificado, e muito bem essa falta, teria a PIDE a questioná-lo sobre a verdadeira razão da sua falta).

Esta é uma prova indiscutível de que nem todos nós concordávamos com a “Fábrica de Heróis”.
Felizmente e a favor dos verdadeiros Heróis, digo eu!

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4854: Estórias do Juvenal Amado (21): O dia de Alcobaça e a Feira de S. Bernardo, dia 20 de Agosto

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 22 de Agosto de 2009:

Caros Carlos, Luís, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca Grande.

A coisas têm o valor que lhes damos em certa altura das nossas vidas.
A feira de S. Bernardo era aguardada por mim ansiosamente todos os anos. Numa vila pequena sem grandes divertimentos, era esse evento aproveitado para nos divertirmos e gozarmos de alguma liberdade junto do sexo oposto. Os pais fechavam os olhos às voltinhas de carrossel, ou mesmo nos carrinhos de choque a dois.

Enfim coisas que fariam rir às gargalhadas os miúdos e miúdas de hoje, que até nesse ponto não fazem ideia o que a sua liberdade custou a conquistar.

A feira começa a 20 de Agosto e dura uma semana.

Quem estiver interessado, é naturalmente bem-vindo.

Um abraço
Juvenal Amado


O dia de Alcobaça e a Feira de S. Bernardo, 20 Agosto

No posto acabei de render o Pinto, que se deitou de imediato na cama improvisada do mesmo, adormecendo de seguida. Não sei se ele já não estava meio adormecido quando o rendi.

São 2 horas e 15 minutos, olho a mata sombria para além do campo de futebol. O gerador envia aquela luz que dá para ver pouco mais de meio do campo.

O Lourenço é o outro camarada de serviço, render-me-á às 4, somos obrigados a permanecer todos no posto. O lion-brand arde junto a eles para afugentar os mosquitos.

Levantei-me todo encharcado de suor, mas agora tenho frio, saio do posto para desentorpecer as pernas.
Penso na notícia dada pela a rádio e a saudação do locutor de seviço (PIFAS) a todos os combatentes de Alcobaça, espalhados pela Guiné. As suas palavras sobre a alegria a rodos na abertura da feira anual de S. Bernardo, tiveram o efeito de acirrar as saudades.
A guerra era tão longe, só quem lá tinha os seus, se distanciava dos festejos.

“Mais uma corriiiiiiiiiida mais uma viaaaaagem”

“ Esta é para a menina do casaco amaaareelo”

“Tomem os seus lugares e não descer nem subir do carrossel em movimento”

Gritavam os feirantes pelo som distorcido dos altifalantes de corneta.

Os garotos faziam birra para andar em tudo.

O barulho de ensurdecer dos geradores dos carrosséis, pistas de carros, das motas no poço da morte.

As barracas de tiro. “ Oh simpático não vai um tirinho?” As espingardas de pressão de ar com as miras completamente desalinhadas, não se acertava no alvos a dois metros. Mas o que a malta lá ia fazer, era meter-se com as funcionárias de ar duvidoso das ditas, queríamos lá saber dos “tirinhos”

As farturas e os namoricos.

Com os olhos em brasa procurava o olhar de uma em especial não importava que tivesse a família toda a acompanhá-la. Se ela retribuisse o olhar, eu não dormiria nessa noite.

Faço concha com a mão e tapando com o casaco camuflado, acendo um cigarro. Tento espantar o sono.

Por volta das 10 horas tinha sido atacado Cancolim ou outro destacamento na mesma direcção.

Há uns meses Cancolim foi atacado perto da hora de jantar. A Maria Turra tinha dito na rádio do PAIGC que os seus combatentes tinham esperado que a malta acabasse de jogar à bola para depois atacar. Era a acção psicológica deles a actuar.

Os pensamentos baralham-se, não vejo hora de ser rendido pelo Lourenço pira.

Finalmente chamo:

- Lourenço, oh Lourenço está na tua hora. Acorda lá porra.

Deito-me e parece que nem adormeci o Lourenço chama-me, já é dia ainda fosco.

- Oh Amado, não queres ver uma puta de uma perdiz, que está poisada no arame farpado mesmo à minha frente. Só pode estar a gozar comigo -acrescenta.

Caçador inveterado, agarra numa pedra e sem qualquer convicção, atira-a na direcção do pássaro.

Para surpresa dele e minha, acerta no papo da ave que cai para trás. Ficámos incrédulos, não acreditando no que tinha acontecido, a ave aproveitou para meio cambaleante fugir dali para fora.

O Lourenço só dizia:

- E deixei-a fugir e deixei-a fugir f………..

Foi a rir que acabámos a noite de reforço.

Voltando à feira, já lá não vou há mais de dez anos.
Em memória daquela noite, tenho que lá fazer uma visita.

Juvenal Amado

Vinho de palma bem fresco de manhã. O pior era umas horas depois.

A ferrugem antes da partida para o Xime

Juvenal Amado na Parada de Galomaro

Fotos: Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4794: Estórias do Juvenal Amado (20): Um tiro na Parada de Galomaro

sábado, 22 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4853: Dando a mão à palmatória (23): Verdadeira causa da morte de três camaradas açorianos da CCAÇ 2444 (Carlos Cordeiro/Carlos Vinhal)

1. Mensagem de Carlos Cordeiro (*) com data de 21 de Agosto de 2009, enviada ao nosso Blogue:

Exmo. Senhor
Carlos Vinhal
Editor do mês do blogue

Por poder ser do vosso interesse, envio o link do jornal "Correio dos Açores" num artigo de homenagem à memória de três militares açorianos mortos em combate em 6 de de Fevereiro de 1969 (que contradiz o post 2819 sobre as circunstâncias da morte daqueles militares): http://www.correiodosacores.net/view.php?id=18945&poll=11&resposta=2.

A companhia era a 2444, mobilizada pelo BII18.

Como assíduo leitor do vosso blogue, saúdo-vos pelo vosso excelente trabalho.

Com os meus cordiais cumprimentos,
Carlos Cordeiro


2. No mesmo dia foi enviada resposta a este nosso leitor

Caro senhor Carlos Cordeiro
Desculpe não retribuir o Exmo. Senhor que julgo ser dispensável.

Agradeço o link que teve a amabilidade de me enviar.

Consultando a pág. 423 referente ao camarada José Bento Veiro; pág. 427 referente ao camarada Manuel Carreiro e pag. 429 referente ao camarada Manuel Costa Almeida do Livro I - Guiné - Tomo II - 8.º Volume - Mortos em Campanha, confirma-se a morte deles em combate na estrada Cacheu-Bachile, em emboscada do dia 6 de Fevereiro de 1969.

Pedi já a devida autorização ao meu camarada Coronel Marques Lopes, responsável pelo post 2819, para se proceder à devida correcção.

Julgo ser açoriano, pelo que peço que aceite na sua pessoa a minha homenagem a todos os açorianos, valente povo ilhéu que eu admiro muito mais desde que vos visitei há relativamente pouco tempo.

Permita que lhe deixe um abraço,

Carlos Vinhal
Ex-Fur-Mil
CART 2732 (madeirense)
Guiné 1970/72


3. No poste > Guiné 63/74 - P2819: Lista dos militares portugueses metropolitanos mortos e enterrados em cemitérios locais (4): 1968-1973 (Fim) (A. Marques Lopes), pode ler-se:

Aqueles que nem no caixão regressaram - Parte IV (Final)

(Organização por ordem cronológica da data de morte: A. Marques Lopes, Cor DFA, Ref) (Continuação) (2)

[...]
José Bento Pacheco Aveiro, Soldado / CCaç 2444 / 06.02.69 / Rio Corubal / Afogamento na evacuação de Madina do Boé / Nordeste, São Miguel, Açores / Corpo não recuperado.
[...]
Manuel Amaral Carreiro, Furriel / CCaç 2444 / 06.02.69 / Rio Corubal / Afogamento na evacuação de Madina do Boé / São José, Ponta delgada, Açores / Corpo não recuperado.
[...]
Manuel dos Santos Costa Almeida, Soldado / CCaç 2444 / 06.02.69 / Rio Corubal / Afogamento na evacuação de Madina do Boé / Arrifes, Ponta Delgada, Açores /Corpo não recuperado.
[...]


4. Dando a mão à palmatória e depois de consultado o Livro 1 - Guiné - Tomo II do 8.º Volume - Mortos em Camapanha da Resenha Historico-Militar das Campanhas de África - Edição do Estado-Maior do Exército - Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), aqui fica a verdade acerca da morte destes três malogrados camaradas:

Nome: José Bento Pacheco Aveiro
Posto: Soldado Atirador
Unidade: CCAÇ 2444
Unid Mobilizadora: BII18 - Ponta Delgada
Estado civil: Casado
Freguesia: Achadinha
Concelho: Nordeste - S. Miguel - Açores
Local de Operações: Na estrada Cacheu-Bachile
Local da sepultura: Cemitério Municipal de Nossa Senhora da Estrela - Ribeira Grande

Nome: Manuel Amaral Carreiro
Posto: Furriel Miliciano
Unidade: CCAÇ 2444
Unid Mobilizadora: BII18 - Ponta Delgada
Estado civil: Solteiro
Freguesia: S. José
Concelho: Ponta Delgada - Açores
Local de Operações: Na estrada Cacheu-Bachile
Local da sepultura: Cemitério Municipal de S. Joaquim - Ponta Delgada

Nome: Manuel dos Santos Costa Almeida
Posto: Soldado Atirador
Unidade: CCAÇ 2444
Unid Mobilizadora: BII18 - Ponta Delgada
Estado civil: Solteiro
Freguesia: Arrifes
Concelho: Ponta Delgada - Açores
Local de Operações: Na estrada Cacheu-Bachile
Local da sepultura: Cemitério de Arrifes
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Notas de CV:

(*) Carlos Carneiro, ex-combatente em Angola, é professor de História Contemporânea em Ponta Delgada e é irmão do malogrado Cap Pára-quedista João Manuel da Costa Cordeiro da CCP 123 (**). É um leitor atento do nosso Blogue.

(**) Sobre o Cap Pára João Cordeiro, Vd. postes de:

19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4216: Comentários que merecem ser postes (4): Homenagem à memória do Capitão Pára-quedista João Costa Cordeiro (João Seabra)

16 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4694: Meu pai, meu velho, meu camarada (6): Ex-Cap Pára João Costa Cordeiro, CCP 123/ BCP 12 (Pedro M. P. Cordeiro / Manuel Rebocho)

17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4700: Meu pai, meu velho, meu camarada (7): Cap Pára João Costa Cordeiro: Um homem de carácter (António Santos / Carlos Matos Gomes)

17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4703: Meu pai, meu velho, meu camarada (8): Sobre o Capitão-Pára João Costa Cordeiro (Manuel Peredo)

18 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4705: Meu pai, meu velho, meu camarada (9): Testemunho do Coronel Pára Sílvio Araújo sobre o Cap-Pára João Costa Cordeiro (João Seabra)

18 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4706: Meu pai, meu velho, meu camarada (10): Depoimento e fotos sobre o Cap-Pára João Costa Cordeiro (Miguel Pessoa)

24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4731: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): Mensagem do filho do Cap-Pára João Costa Cordeiro (Pedro Miguel Pereira Cordeiro)

Vd. último poste da série Dando a mão à palmatória de 23 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4728: Dando a mão à palmatória (22): Nota Prévia em defesa do bom nome de Luís Rainha (Rui A. Ferreira)

Guiné 63/74 - P4852: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (10): “Em sentido não mexe!”



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 10ª estória, que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", que mais uma vez muito agradecemos, com data de 18 de Agosto de 2009, a que deu o seguinte título:

Em sentido não mexe!

Esta é uma estória de sacanagem que há distância no tempo é recordada com um sorriso mas que podia ter acabado em tragédia!

Mas deixemos as considerações e vamos aos factos…


“Intimidades” entre militares e nativas obviamente que as houve.

Ignorá-las seria... ”tapar o sol com uma peneira”...

Com o Capitão Tomé Pinto presente «elas» teriam que ser muito bem feitas porque... senão... não!

Com o nosso Capitão no «quartel» não havia «baldas».

Com o «patrão fora» a situação mudava um pouco de figura.

Houve militares que rapidamente se «africanizaram», aprenderam umas palavras de dialectos nativos e conseguiram «comunicação» mais fácil.

Outros ainda tornaram-se exímios dançarinos e nos batuques «estreitaram» mais facilmente relações.

Malta de vinte e poucos anos, nativas pouco vestidas e... o calor dos trópicos... dá (dava) uma mistura explosiva...

Houve intimidades de que não são conhecidos problemas ou efeitos secundários.


Até que um dia se registou a excepção… e a bronca… que, por mérito e sangue frio do protagonista desnudo , só deu bronquite!

A situação – complicada - terá acontecida com um militar de primeiro nome Artur... que foi surpreendido em trajes (muito) menores pelo marido de uma nativa numa fase de
adiantada intimidade...

Para aumentar a delicadeza do momento haverá que referir que o marido “enganado”era soldado das milícias e chegou à tabanca mais cedo do que o esperado.

A patrulha fora rápida e sem problemas.

Desceu do Unimog e caminhou para a sua morança com a espingarda «Mauser» ao ombro! E entrou sem bater à porta…

O militar de nome Artur – perante a delicadeza do momento – puxou dos «galões» – da farda que então não vestia – e gritou para o soldado das milícias: «Sentido».

E... a ordem foi cumprida.

De imediato.

E... em «sentido» não mexe!

O militar de nome Artur pegou nas suas roupas e... ala que se faz tarde.

Foi um susto de morte.

A estória obviamente só veio a ser conhecido muito mais tarde.

E… após o regresso de Maio de 1966, nos primeiros convívios da malta da “675”… deu uns valentes gozos.

Se o militar de nome Artur não tem puxado das “divisas”, digo, dos “galões” as intimidades dessa tarde africana podiam ter acabado mal...

Efeitos secundários do «cagaço» não são conhecidos... sendo certo que a medicina ao longo dos tempos evoluiu muito…

A disfunção sexual tem nos dias de hoje muitas panaceias.

O ex-militar Artur diz que desses tempos tem muitas saudades.

Havia coisas que se punham facilmente em “sentido”!

Do cagaço de então ficou-lhe uma tosse seca - tipo bronquite - que, apesar de tantos anos passados, faz todo o “sentido”!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675


Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4851: Parabéns a você (21): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Os Editores)

No dia 22 de Agosto do ano da graça de 2009, faz anos o nosso camarada José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav que comandou o Pel Rec Daimler 2206 que andou por Bambadinca e arredores nos anos de 1970/71/72. Boa parte da Tertúlia conhece o camarada Vacas de Carvalho desde o I Encontro da Tertúlia em Montemor-o-Novo, mais propriamente na Ameira. Daí para cá só faltou este ano, por uma boa causa familiar, felizmente. Granjeou grande simpatia pelo que se notou a sua ausência e a da sua viola. Onde estiver e se acompanhado de outros intrumentistas, que os temos e bons, há sempre bom fado. De acordo com os registos no blogue, pode-se ouvir várias letras adaptadas (atapetadas, como diria um amigo meu) à nossa experiência de vida na Guiné, acompanhadas pela música de conhecidos fados de Lisboa. Bonito de se ver. E então se forem cantados pelo vozeirão do nosso camarada Mexia Alves... Tem, Vacas de Carvalho, um sentido de humor apurado, prova provada a mensagem que se segue: Mensagem do J. L. Vacas de Carvalho, com data de 22 de Outubro de 2006: O que se passou na Ameira faz-me lembrar um ditado árabe que passo a escrever: ??????? ??????? ?? ?????? ?????? ??????. ???????? ???????? ? ??? ??? ?????? ???? ??????? ( ???? ????? ??? ??? ? ???? ?????? ? ??? ????? ?????????? ???? . ????? ?????????? ?????? ?????? ?? ????? ??????????? ????? ?? ?????? ????? ???? ?????????? ?? ???? ??????? ? ????? ??????? ?? ????? ?????. ???? ??????? ? ??????? ??? ??????? ?? ??? ???????? ???????? ??? ????? ?????????? ???????? . ??? ??????? ???? ?????? ??? ?????? ???? ??????? ( ???? ????? ?????????? ??? ????? ? ?????????????? Creio que isto nos assenta que nem uma luva. Pensem nisso... Um abraço Zé Luis Ao nosso aniversariante de hoje, deixamos os mais sinceros votos de que este dia se repita mais umas vezitas, poucas, talvez umas 40, para não pedir muito, cheios de boa disposição, para tirar da viola aqueles sons tão portugueses do Fado de Lisboa. Que pela vida fora esteja sempre acompanhado por quem mais o ame, seja familia ou amigos, entre os quais nos consideramos. Fotos ao acaso: O Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/72). Era (é), além de um companheirão, um exímio cantor de fado e tocador de viola... (LG)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > Coluna logística ao Xitole... Pessoal em cima de um Daimler, do Pel Rec Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/71). Da esquerda para a direita: O Fur Mil Op Esp Humberto Reis (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), o Alf Mil Cav Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler 2206, o Fur Mil Enf Godinho (CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72) e, por fim, o Fur Mil At Inf T. Roda (CCAÇ 12)

Fão, Esposende > 1994 > Encontro da malta de Bambadinca (1968/71): CCS do BCAÇ 2852 (1969/71), CCAÇ 12 (1969/71), Pel Daimler 2206 (1970/71) e outras unidades adidas. Na foto, da esquerda para a direita, o Reis, o Sousa, o Carlão e o Vacas de Carvalho. Fotos: © Humberto Reis (2006) Direitos Reservados

Guiné-Bissau > Zona Leste > Estrada Xime - Bambadinca > Carreira de tiro > 1971 > O Alf Mil Cav José Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206, foi também instrutor de tiro de "duas ou três companhias de milícias", numa altura em que aumentava a escalada da guerra e se intensificava o esforço de africanização das NT. "Eu estou atrás do General Spínola. Ao meu lado direito está (parece-me) o Fabião e logo a seguir o Polidoro Monteiro. E atrás, de óculos escuros, parece-me ser o Tomé". Foto: © J.L. Vacas de Carvalho (2006) Direitos reservados

10 de JUNHO de 2009, DIA DE PORTUGAL > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto. O Jorge Cabral cercado pela PE. Foto: © Mário Fotas (2009). Direitos reservados

Lisboa, Belém, Forte do Bom Sucesso > 10 de Junho de 2009 > Mini-encontro do pessoal da Tabanca Grande > O Mário Fitas e o J. L. Vacas de Carvalho (uma família que mandou, pelo menos, três dos seus homens para a guerra. Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

Ameira, 2006 > Vacas de Carvalho dedilha a sua viola sob o olhar e ouvidos atentos dos circunstantes.

Pombal, 2007 > Vacas de Carvalho em conversa com alguns camaradas

Monte Real, 2008 > Vacas de Carvalho e David Guimarães acompanham Mexia Alves
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 Notas de CV: 

Sobre J.L. Vacas de Carvalho, vd. postes de:










sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)

1. Mensagem de José Teixeira, (*), ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 20 de Agosto de 2009:

Camaradas.
Agora que está a chegar o fim das férias, fui buscar ao "meu diário" mais um texto para a nossa estória de combatentes.

Fraterno abraço para todos
José Teixeira

Mampatá 1968 > O meu abrigo


O BU… RAKO EM QUE CAÍ

Do “meu Diário

Setembro, 1968 /Mampatá / 20


Estou a escrever sentado num tosco banco de três pernas, de fabrico artesanal, que me foi oferecido pelo Aliu Baldé, o Chefe de Tabanca, nos primeiros dias em que cá cheguei.

Estou debruçado sobre uma mesa engendrada por algum habilidoso, que por aqui passou. Quatro paus espetados na terra, com a parte superior em forma bifurcada, onde assentam outros dois na horizontal. Por cima, duas tábuas, eis uma escrivaninha à maneira.

A meu lado, uma candeia improvisada, dá uma ténue luz, a suficiente para iluminar este buraco de cerca de três por quatro metros. Uma garrafa de cerveja cheia de gasóleo, um furo na cápsula e uma gaze a fazer de torcida. Esta é a luz que nos alumia nesta habitação/abrigo subterrâneo, cujo tecto é construído com troncos de palmeira, sobrepostos com terra e chapa alongada de bidons de combustível e por cima chapas de zinco. Habitáculo de sapos, sardões, formigas, camaleões e cobras, possivelmente.

Ainda há dias, na Chamarra, um camarada, quando à noite, se dirigiu ao abrigo e se foi deitar, deparou com uma companhia inusitada a mexer-se por debaixo dele. Tinha como companheira de cama uma cobra que dormia o seu repousante soninho, protegida pela capa de oleado que usamos quando saímos em tempo de chuva. Felizmente, a capa que servia de lençol foi a sorte do camarada e o azar da bichinha que ali mesmo perdeu a vida.

No chão deste apartamento estão três colchões pneumáticos onde repousam dois corpos jovens cheios de vida e esperança no futuro. O terceiro é a minha cama. Já temos madeira para engendrar umas camas que terão de ser baixinhas para não darmos com a cabeça no tecto.

É o local de esperança para onde toda a gente corre quando se ouvem sinais da presença do inimigo. Longe ou perto, as nossas almas ficam em sintonia com os que estão a embrulhar. Surgem comentários e palpites. Uns reflectem esperança, outros, pessimismo e desânimo.

E... há um respirar fundo, quando volta o silêncio, sinal de que a contenda acabou.

Aqui funciona o posto de rádio de Mampatá. Eu como enfermeiro estou aqui por empréstimo. Permite-nos saber, rapidamente, onde há camaradas em perigo nas tabancas que estão a ser atacadas. Sobretudo estamos atentos à relação vida e morte, isto é, se há apelos, se há feridos, se há mortos.

A experiência e o conhecimento do terreno vão-nos dizendo, rapidamente, onde está a acontecer a festa.

É daqui que partem as nossas informações de apreensão e apelo ou de bem estar, que também existe felizmente, quando somos atacados nesta pequenina tabanca de Mampatá.

Felizmente neste momento, apenas uma roufenha telefonia deixa escapar uma linda e suave canção da Helena Tavares que tem um título bem sugestivo – "Adeus".

Ontem, por esta hora, estavam os camaradas Gandembel e talvez Cacine ou Gadamael a ouvirem outro tipo de música. A que nos faz correr para o local mais próximo onde haja expectativa de alguma segurança, ou de G3 na mão, vamos defender a vida. A nossa, a dos nossos camaradas e a da população que nos rodeia e em nós confia.

Zé Teixeira
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Notas de CV:

(*) Vd. poste 14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 – P4819: Estórias do Zé Teixeira (36): Mataram o futuro (José Teixeira)

Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4632: Os bu... rakos em que vivemos (13): Sare Banda um dos bu…rakos em que morremos! (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P4849: A galeria dos meus heróis (6): O Renoir de Montemuro, nascido no ano zero da idade atómica (Luís Graça)

Pierre-Aguste Renoir (1841-1919): Pintura a óleo, Le déjeuner des canotiers, 1880-1881. Fonte: Wikipedia. Uma das obras-primas da pintura ocidental, que mais me fascina (LG).


A galeria dos meus heróis (*) > Nascido em 45, no ano zero, o Renoir de Montemuro

por Luís Graça


Nascido no ano zero. 1945... Lembro-me de teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI (Lembras-te, em 1965 ?!... Ainda pensámos em dar o salto até Paris, éramos vagamente existencialistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmarte, enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!... Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta a financiar o nosso inconsistente projecto de aventura).

1945… Ano zero da idade atómica. Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, diziam os franceses. O fim do pesadelo da ocupação nazi. O direito à esperança. O recomeço da humanidade… As palavras eram tuas, escritas no meu catálogo que até estava bonito… não estava ?! ... Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… 

Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas... Enfim, aprendiz de Renoir...

Na minha cédula pessoal, um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Mais uma boca com direito a senha de racionamento. Milho, açúcar, farinha, azeite… Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não, nasceste depois, em 47, já não apanhaste esses tempos que foram duros para os nossos pais e irmãos mais velhos. E estavas mais perto da capital, no Oeste Estremenho.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do francês, o cabo chefe da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. Tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara tuberculoso e herói de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa e Salazar. Vociferava contra a corja dos republicanos

Era meu padrinho. Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus pais. Nunca soube quais. Nunca quis saber. Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo e dependência que vigoravam na aldeia. Na minha aldeia da Serra de Montemuro, uma aldeia de pastores que não era muito diferente de tantas tabancas fulas por onde passei na Guiné… Ainda hás-de conhecê-la, a minha aldeia, e eu reconhecê-la, contigo, num próximo verão em que fores lá cima ao Norte, a Candoz… Em Agosto, no teu e meu querido mês de Agosto

Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. Mais tarde, Ultramar. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. Quando puto, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce. Estás-me a imaginar de sotaina branca e longas barbas pretas, não estás ?! E acabar, santo e mártir, frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos…

Em 45 os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, o milho, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Contavam os meus pais. Mesmo assim fazia-se festa rija. O foguetório não era como hoje. Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Ou até nos barcos rebelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. Negociante de gado ou, melhor, intermediário. Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali e nas redondezas… Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… Ele era engenhocas. E, além disso, dava-se bem com gente graúda: por exemplo, o major de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. A esposa mandava cartas ao Salazar, contava a minha mãe, sempre atenta a (mas não menos temerosa de) os fios com que se costurava o poder. Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu padrinho soube da minha partida para África em 1968. Eu nunca lhe pedira nada, nem sequer o Pão-Por-Deus. E muito menos que me safasse de ir parar à Guiné. Inclusive proibi os meus pais de o fazerem por mim. Tinha a mania dos princípios. E da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, em 1970, já tinha morrido. Ele e o Salazar. O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai, advogado no Porto. Numas férias de verão, em meados dos anos 60,  ficou em Londres a lavar pratos. Em Setembro desse ano estava na Suécia. Fazia 20 anos. Foi dado como refractário ou desertor, não te sei dizer ao certo, que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. Como estava a estudar na Faculdade de Direito, beneficiava do adiamento da data de incorporação. Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, até filho de general era mobilizado. Nunca conheci nenhum, mas imagino que, na pior das hipóteses, ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família. Coimbra, a república dos estudantes, dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. Para mais era o seu neto querido, o mais inteligente, o mais parecido com ele. Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça, concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias em Julho de 1969. Sua bênção, padrinho - foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos… Já o pai não prestava, era um fraco, arrematava ele, entre dois ataques de tosse. As melhoras, padrinho – foram as últimas palavras que lhe dirigi… Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. 

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcello Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo. Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,  respeitado mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, um verdadeiro cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…

Gustavo, o neto do meu padrinho, ainda me escrevera um dia para o meu SPM, já no final da minha comissão. Éramos amigos. Ou melhor, mais conterrâneos do que amigos , tínhamos brincado juntos, quando garotos, nas férias de verão. Estudara em colégio particular. Vivia no Porto. Passava férias na aldeia. Agora, em Estocolmo, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC. Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e na frente de batalha. Não se podia objectivamente estar do lado de cá, fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… Além disso, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas, na zona leste… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas…

Nunca lhe respondi. Achava-o um puto mimado e provocador. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. Secretamente, invejava-lhe a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas… e eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné. Achei que o mundo não era justo. Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Nova Lamego  e Bambadinca, até nem foram maus. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros que até tiveram um ou outro comprador. Outros ofereci, a um família de comerciantes libaneses que costumava frequentar. Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, de Montemuro…

Passei por uma crise existencial, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições pequeno-burguesas, agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu ainda conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata. Não esqueço a última carta que me mandou, de despedida. Era um encanto de miúda, delicadíssima, mas com pouca margem de decisão em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto percebi, era um homem do regime, da média burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área da exportação de banana. Família numerosa, muitos manos. Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Fui surpreendido quando um dos meus amigos do Funchal me veio lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento. Foi um choque. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida… sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado… No mínimo, chegar inteiro à meta. Ainda tentei telefonar-lhe, de Nova Lamego. Em vão. A chamada caiu. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha noiva que afinal nunca o fora. (Acabei por casar com uma galega de Orense, que nunca chegarás a conhecer, por que já fomos cada um à sua vida…).

Depois,  meu amigo, veio o rol de desgraças que me aconteceram. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, em rendição individual. A mina que me mandou quase um ano  para o Hospital Militar da Estrela. Poupo-te os pormenores, eu próprio só agora fui desenterrar esses pesadelos que ainda povoavam o sótão da minha memória…

 Esqueci a Guiné durante décadas. Até ao dia em que, não sei porquê, vi na Internet o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a Bambadinca, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias… Desencontrámo-nos na Guiné. Tu e eu. Nem sequer sabia que estiveste lá, depois de mim… Mas achei piada ao teu jogo de palavras: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca… é Grande”.

Um dia hei-de telefonar, para conversarmos com mais tempo e vagar. Até lá, um abraço, como vocês dizem,  do tamanho do nosso Rio Geba. O teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustado companheiro da viagem a salto, até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1965, no SNI, entre copos de ginjinha nos Restauradores. Teu Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores para beber ginjinha… Nunca mais te pus a vista em cima.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. restantes postes da série A galeria dos meus heróis:

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)

12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)