Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > o Fur Mil At Inf Op Esp Casimiro Carvalho junto ao monumento aos mortos e feridos da CCAÇ 3325 (que esteve em Guileje de Janeiro a Dezembro de 1971).
Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Casimiro Carvalho no quotidiano de Guileje.
Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.
Cartas e aerogramas enviados pelo José Casmiro Carvalho (Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350, 1972/74) à família, durante a 2ª quinzena do mês de Junho de 1973 (1). A última carta que publicámos anteriormente era de 30 de Maio, escrita em Gadamael, onde o Casimiro, vindo de Cacine, se juntou à sua destroçada e desmoralizada companhia (2).
Alguns dias depois (?), ele será ferido em combate, em Gadamael, depois de ter ajudado a salvar e a evacuar o seu comandante, o cap Quintas, ferido com gravidade (a 1 de Junho de 1993). Não temos cartas ou aerogramas desse período (1ª quinzena de Junho de 1973), em que os paraquedistas do BCP 12 tiveram que vir aliviar a pressão do PAIGC sobre Gadamael, a seguir ao abandono de Guileje pelas NT (em 22 de Maio de 1973). Não sei se o Carvalho escreveu à família, ou se não o pôde fazer. Ele não fala desse ferimento em combate (que terá sido ligeiro: um estilhaço de morteiro 120) (3).
De qualquer modo é muito interessante cruzar estas informação epistolográfica com as memórias do Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista da CCP 121 que esteve do inferno de Gadamael nesta altura (2), depois do inferno de Guidaje.
A selecção, a revisão e a fixação do texto, bem como os subtítulos, são da responsabilidade do editor do blogue. Mais um vez agradeço ao nosso herói de Gadamael, o Casimiro Carvalho, o carinho, a confiança, o apreço e a franqueza que ele teve para connosco, permitindo-nos entrar na sua intimidade, na intimidade da sua família, conhecer as suas emoções, as suas alegrias e tristezas. Espero que nos ajude a todos a conhecer melhor o duro quotidiano dos nossos camaradas que, em Maio/Junho de 1973, sofreram no sul da Guiné uma das maiores ofensivas do PAIGC em toda a história da guerra (LG) .
Ficar não era heroísmo, era suicídio
Paizinho:
(…) Estou bem, àparte uma dor de estômago e diarreia, provocadas pela má alimentação e má água (…)
Isto, às 7 da manhã começa-se com cerveja, para acabar às 7 da noite. Já bebi mais cerveja aqui do que você em toda a vida. É o que nos vai aguentando.
Isto está a melhorar, só bombardeiam de vez em quando e fora do quartel, portanto sem consequências. Há agora muitas emboscadas feitas aos paraquedistas que cá estão (2 companhias). Já há alguns que foram evacuados: ficaram malucos com isto aqui. Eu ando porreiro.
Diga lá ao Fernando [ Carvalho, o irmão,] que se torna a mencionar a palavra cobarde, não lhe escrevo mais. Pois se eu fugi da emboscada [descrita em 3] é porque éramos 14 homens só com G-3 e quatro ficaram logo ‘prontos’; a outro encravou-se-lhe a arma e seis fugiram logo. Estava só eu a dar fogo e outro moço, eu fui o único que tirei outro carregador e o disparei. Ficar lá nestas condições, não era um acto heróico mas sim um suicídio. Portanto, cuidado com as palavras, sr. Fernando. Eu não estou zangado. Eu não devia falar na quantidade de homens. Adeus.
Em Gadamael, estamos a dormir nas cabanas dos pretos que fugiram
Gadamael, 20/6/73
Minha querida mãezinha:
Como você me pediu, cá estou eu a escrever-lhe como posso. Se não lhe escrevi mais amiúde foi por causa da situação, pois nem tínhamos com que escrever, roubaram tudo e nem apetecia fazer nada porque andávamos a fugir das granadas, e desmoralizados com isto tudo. Até tínhamos medo de ir tomar banho.
Além de tudo, não tínhamos condições para nada pois nunca parávamos em sítio certo. Agora estamos a dormir e viver em cabanas dos pretos que fugiram , cheias de ratos e mosquitos. Mas pelo menos já dormimos, e eu com um Lusospuma.
Pode acreditar que me encontro bem, felizmente, pois agora acabou a história dos bombardeamentos. Agora só há emboscadas, quando saímos para o mato. Vamos cheios de medo e eu principalmente, pois vou à frente sempre porque, voluntariamente, levo uma metralhadora ligeiro. É uma defesa pessoal e de grupo muito boa. Eu levo 200 balas e a minha equipa 400.
Outro dia eu e o meu grupo comprámos 5 cabritinhos e eu é que os cozinho, Sou elogiado por oficial e soldados que os comem, pois tornei-me AQUELE cozinheiro. Desenrasco-me muito bem. Limparam-me também a máquina fotográfica.
Informem-me também do que se diz acerca disto aí, pois eu gosto de saber. Como já disse, vou outra vez, mais a Companhia, para o Cumeré onde estive quando cheguei à Guiné.
O irmã da Ana [, a namorada,] não está em Catió mas sim em Cufar.
(…) Parece que Guileje fica abandonado. O General Spínola não deu nenhuma ordem acerca de Guileje. A aviação vem aqui todas os dias bombardear à volta do quartel e todos os dias as antiaéreas turras ripostam.
Não vou ficar aqui muito tempo. Ando com uma diarreia maluca. Mas há-de passar. Continuo a sair para o mato.
Vamos para o Cumeré porque a nossa cmpanhia tem muitos mortos e mais feridos, para virem mais soldados completar a Companhia.
Eu devo levar um louvor, e não só mo darão se forem injustos. Pois andei debaixo de fogo a transportar mortos e feridos e a curá-los (não havia enfermeiros) numa BERLIET que eu conduzia e a transportar motores de botes para ser possível fazer as evacuações. Transportei feridos graves (a pé), debaixo de fogo. Mas ESTOU OK!
Seu filho que a ama.
Grande ronco dos paraquedistas, em 23 de Junho de 1973 (2)
Gadamael, 24/6/73
Queridos pais:
Estou óptimo, verdade! E vocês, como têm passado ? Sempre em sobressalto, mas sem razão. Pois isto agora está mais ou menos normal, embora vivamos sem condições de higiene e de habitação.
(…) Ontem, uma das companhias paraquedistas que aqui está, surpreende um grupo de turras, entre os quais cubanos, e pô-los em debandada, apanhando-lhes fardamento, alimentos, armamento, munições, coisas que eles tinham apanhado no Guileje, etc. Dois mortos deles e muitos feridos (2).
Estamos perto de abandonar esta vida, pois devemos ir para Cumeré.
Gosto muito das cartas da mãezinha, nunca deixe de me escrever. Pois dão-me umas horas de vida, enquanto penso nelas. E o meu velhinho ? Então tem-se esquecido do seu filho ? (…).
Queridos pais:
Estou óptimo, verdade! E vocês, como têm passado ? Sempre em sobressalto, mas sem razão. Pois isto agora está mais ou menos normal, embora vivamos sem condições de higiene e de habitação.
(…) Ontem, uma das companhias paraquedistas que aqui está, surpreende um grupo de turras, entre os quais cubanos, e pô-los em debandada, apanhando-lhes fardamento, alimentos, armamento, munições, coisas que eles tinham apanhado no Guileje, etc. Dois mortos deles e muitos feridos (2).
Estamos perto de abandonar esta vida, pois devemos ir para Cumeré.
Gosto muito das cartas da mãezinha, nunca deixe de me escrever. Pois dão-me umas horas de vida, enquanto penso nelas. E o meu velhinho ? Então tem-se esquecido do seu filho ? (…).
Vêm aí os periquitos: vai haver bebedeira pela certa
Gadamael, 26/6/73
Now we have peace
Minha querida mãezinha:
É com imensa ternura que, mais uma vez, lhe dedico uns minutos do meu pensamento. Neste momento batem 8 horas numa emissora de London [sic] que ouvimos no rádio.
Então, como têm passado todos aí em casa, enquanto o vosso soldadinho finalmente tem sossego, pois os turras não nos têm chateado, nestes últimos dias ?!
Ontem chegou uma companhia nova aqui, veio substituir a companhia daqui, e há-de vir uma outra, daqui a uns dias, para nos substituir. Vai haver bebedeira, pela certa, e vamos para o Cumeré, para completar a Companhia, substituir mortos e feridos graves. O capitão também foi ferido gravemente, e foi evacuado para a Metrópole. O outro capitão, o daqui, também foi ferido.
Há já alguns dias que vivemos em paz de espírito, e agora, desde há alguns dias fui nomeado instrutor de um novo grupo de milícias (pretos, 40). Ensino-lhes desde armamento a táctica de combate a ginástica. É um passatempo e não saio para o mato, pela primeira vez em oito meses, feitos ontem, dia 25.
Já passou a nuvem negra que tapava o nosso amor, entre mim e a Ana (…).
Parece que há um aumento de 500$00 a partir de Março e que recebemos tudo junto em Agosto. Mande dizer quanto marca o saldo B.B. & Irmão (…).
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9
13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento
14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira
24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!
(2) Vd. post de 19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)(3)
(...) "13 de Junho de 1973: aliviando a pressão sobre Gadamael
"No dia 13 de Junho, de manhã cedo, preparámo-nos para rumar [de Cacine] a Gadamael, sendo transportados em Zebros do Destacamento de Fuzileiros Especiais Africanos nº 21, dois grupos de combate sendo colocados nas margens do rio nas proximidades de Gadamael para onde seguimos em patrulhamento depois de serem desembarcados os outros dois grupos de combate da 121 que foram deslocados em LDM. No regresso, as embarcações seguiram para Cacine com os paraquedistas da CCP 122, aonde iriam recuperar durante um curto período.
"Chegados ao destacamento [ de Gadamael], verificámos que o estado do mesmo era na verdade aterrador, fruto dos constantes ataques, sendo bem visíveis os buracos dos rebentamentos das granadas do IN. Era evidente que quem lá tinha estado anteriormente, tinha passado por uns maus bocados.
"As nossas duas companhias de paraquedistas que se encontravam aqui estacionadas estavam em permanentes patrulhamentos no exterior do aquartelamento, indo a este simplesmente para remuniciamento e reabastecimento. Desta forma fomos alargando o raio de acção indo até junto à fronteira, para conseguir referenciar os locais de onde o PAIGC fazia os ataques, para dar indicações à nossa Artilharia e Força Aérea. A impossibilidade de referenciar, por ar, estes alvos, levou-nos a ocupar as zonas em que o IN poderia instalar as suas bases do fogo e deste modo a fazê-lo afastar-se. Foi o que, realmente, veio a acontecer.
"A partir desta altura fomos ao encontro dos locais de onde se ouviam os disparos das bocas de fogo e ocupámos essas áreas mesmo junto à fronteira, algumas vezes chegámos mesmo a ultrapassar a linha de fronteira com alguma profundidade - nunca por períodos longos, mas apenas porque havia aí bases de fogo IN. Nunca conseguimos apanhá-los desprevenidos, pois havia sempre forças de infantaria do PAIGC que os alertava com tiros acabando por retardar a nossa progressão.
"No entanto os ataque a Gadamael deixaram de ser tão frequentes, passando as flagelações a a realizarem-se com menos intensidade e sem a precisão até aí evidenciada, além de feitas a partir daí sempre de locais diferentes. Quando as nossas forças aí chegavam, já eles tinham partido para outro local.
"Mesmo já quando as forças do PAIGC não flagelavam o destacamento com tanta frequência, fomos mantendo a actividade de patrulha ao mesmo ritmo, por forma a manter as áreas próximas do braço do rio que dava acesso a Gadamael e que era a nossa única via de ligação para o exterior.
"Consequentemente a eficácia de tiro até aí verificada por parte do IN deixou de existir e a intenção e pressão inicial caiu por terra, as forças do nosso exército voltaram ao destacamento e com os paraquedistas fizeram vários patrulhamentos transmitindo-lhes os nossos conhecimentos e mais confiança nos deslocamentos em plena mata até aí de arrepiar" (...).
"23 de Junho de 1973: atolados num campo minado!
"A 23 de Junho de 1973, recebemos ordens para novo patrulhamento. Manhã cedo arrancámos desta vez saindo pela que era considerada porta de armas virada para o rio, o qual atravessámos. Avançámos para o local indicado pelos nossos superiores, em progressão lenta e com cuidados redobrados.
"Esta zona não era para brincadeiras. Nesse dia éramos acompanhados por 2 militares do exército que eram sapadores e montavam minas no terreno tentando proteger o destacamento da acção do inimigo. Passado algum tempo, recebemos ordens para parar na frente, estávamos num local minado pelos nossos novos companheiros e a sua missão era indicar-nos a localização das minas para podermos contornar o local sem qualquer incidente (...)".
(3) Vd. resenha biográfica do J. Casimiro Carvalho. Não há grande precisão nas datas, por parte do Casimiro Carvalho, no que diz respeito ao período em que esteve em Gadamael. O BCP nº 12, a duas companhias (CCP 122 e CCP 123) é enviado para Gadamael a 2 de Junho, seguindo-se a 13 a CCP 121, do Victor Tavares. Regressa a Bissau a 7 de Julho (as CCP 122 e 123) e a 17 de Julho (a CCP 121). Os páras cosneguiuram travar a ofensiva do PAIGC a partir do momento em que se instalam em Gadamael.
Eis como Carvalho descreve o seu ferimento, que deve ter ocorrido em finais de Maio de 1973 (a situação mais crítica em Gadamel é nos dias 31 de Maio, 1 de Junho e na noite de 1 para 2 de Junho; o cap Quintas, da CCAV 8350, é gravemente ferido na tarde do dia 1 de Junho, sendo ajudado pelo Fur Mil Carvalho, que estava operacional e foi um dos derradeiros defensores do aquartelamento antes da chegada dos páras - CCP 122 e 123 - a 2 de Junho) (4):
(...) "Em Gadamael, fugindo das morteiradas certeiras do 120
"Aqui vão alguns itens, e falo assim para não ser acusado de subverter a verdade dos factos.Em Gadamael não havia casamatas como em Guileje, só valas. Os bombardeamentos eram tão intensos que nem dava para acreditar, quando ouvíamos as saídas, tínhamos 22 ou 23 segundos até as granadas 120 caírem em cima de nós ou , muito raramente, caírem mais além. O pessoal começou a fugir para o rio, e as granadas caíam no rio, o pessoal corria para o parque Auto e as granadas caíam no parque Auto, o pessoal saltava para as valas e as granadas iam cair nas valas.Numa dessas quedas (voos) para a vala - e já lá ! -, senti as nádegas húmidas e, ao pôr lá a mão, esta veio encharcada em sangue... Berrei que estava ferido e fui evacuado num patrulha da Marinha para Cacine (entretanto no barco fui tratado e apaparicado pelos marujos).
"Em Cacine verificaram que era um estilhaço de morteiro 120 do IN, e que não havia necessidade de ser transferido para Bissau, pelo que fui nomeado chefe de limpeza em Cacine (um Ranger, imaginem) .
"Quando começaram a chegar as vítimas desse holocausto, e como ouvia os meus camaradas a embrulhar, deu um clique na minha cabeça e peguei numa Kalash que eu tinha, virei-me para um oficial e disse:- Ou me mandam já para Gadamael onde morrem os meus homens ou eu varro já esta merda!" (...)
Vd. post de 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)
(4) Vd. post de 15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)
(5) Ainda sobre o referido ferimento em combate, o Carvalho continua sem me responder às questões factuais (datas, etc.)... Enfim, a esta distância no tempo e no espaço, não se lhe pode pedir muito mais... Eis o que ele me escreveu, num mail recente:
"Fui ferido em Gadamael, por estilhaço de 120 (?) quando em voo para a vala. Fui evacuado por um patrulha até Cacine, onde me trataram e não viram motivo para ir para Bissau. Fiquei a ser chefe da limpeza em Cacine (um ranger...) até que me passei dos carretos a ouvir os bombardeamentos e a ver os meus camaradas a chegarem feridos aos magotes e resolvi voluntariar-me para regressar a Gadamael (insensatez própria da idade e da valentia de ser especial (Ranger).
"O Fernando é meu irmão mais novo e a Ana era minha namorada e hoje esposa".