1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2018:
Queridos amigos,
É caudaloso o número de artigos, ensaios e livros que se produziram, e continuam a produzir, para justificar as razões da guerra em África. Tudo começou com obras de pura propaganda que as instituições do Estado Novo alimentaram, logo nos primeiros anos da guerra, com reportagens, programas televisivos, obras encomendadas ou não, e muito mais. Com a descolonização, começou outra batalha ideológica passada ao papel: que a guerra era sustentável, que o colapso era iminente.
É nesse contexto que merece realçar-se as exigências que Kaúlza de Arriaga apresentou ao Governo, pedindo meios astronómicos para continuar a ser Comandante-Chefe, mas sempre dizendo que a Frelimo estava de pantanas... A História que pondere estes tiros no pé.
Um abraço do
Mário
General Kaúlza de Arriaga defende-se e critica a descolonização
Beja Santos
Tem-se procurado fazer o levantamento de tudo, sem exceção, que se escreveu sobre descolonização, sem olhar a contextos ideológicos, deixando ao leitor que sopese a argumentação avançada. A este antigo Comandante-Chefe de Moçambique já se fizera referência no livro “África – A vitória traída”, 1977, o antigo Secretário de Estado da Aeronáutica dava como taxativamente provado que a Frelimo entrara em liquefação e a luta armada estava sustada, era uma questão de tempo até que o terrorismo se extinguisse. No livro “Guerra e Política, Em nome da verdade os anos decisivos”, Edições Referendo, 1987, Kaúlza de Arriaga retoma os tópicos da guerra no ultramar português, repertoria as doutrinas de guerra existentes e dedica larga atenção à luta em Moçambique, capítulo em que não esconde o autoelogio.
Exprime-se favorável ao que ele chama a Solução Portuguesa para o Ultramar: defesa intransigente da integridade territorial, promoção do progresso económico e sociopolítico, de modo a abrir caminho a autodeterminações autênticas (conceito jamais explicitado, embora se fale em novos Brasis). As causas da guerra, diz o general, prendiam-se fundamentalmente devido à confrontação Leste/Oeste, o terrorismo era uma arma usada para essa confrontação, não era um paradigma nem uma aspiração dos povos coloniais.
Em termos doutrinais, justifica a contrassubversão e o seu sucesso, mas quando ele regressa em 1973, finda que lhe fora a sua comissão em Moçambique, descobre que a situação interna caminhava para a rutura, Marcello Caetano estava ultrapassado e havia grandes perigos: nascera o MFA, Spínola e Costa Gomes tinham passado para a oposição, a última remodelação ministerial fora um fiasco, o general encontrou-se várias vezes com o Presidente da República para que este atalhasse o caminho para o abismo e dá-nos notícia de que o regime tinha previsto um contragolpe, e escreve: “Se o Poder na metrópole falhasse e entrasse por caminhos confirmadamente indesejáveis, o Governador-Geral mais antigo de Angola ou Moçambique, em coordenação com o respetivo Comandante-Chefe, deveria, em ação de recurso extremo, substituir aquele Poder metropolitano, assumindo a direção política do Conjunto Português”. E explica o que falhou: “Na ocasião deste golpe revolucionário, talvez os Governadores-Gerais de Angola e Moçambique, se bem acompanhados e apoiados, ou mesmo impulsionados pelos Comandantes-Chefes, fossem capazes de se lançar naquela ação de recurso extremo. Contudo, o facto é que os Comandantes-Chefes, então em exercício, não tinham altura nem posição para efetivarem aquele acompanhamento de apoio e muito menos para impulsionarem os Governadores-Gerais e lançarem-se em ação de tamanha envergadura e tão carregada de consequências”.
Dá o parecer sobre as consequências dramáticas da descolonização, entende fazer uma lista das figuras que ele considera as mais responsáveis pelos “atos delituosos” da descolonização, e dedica então um capítulo às doutrinas de guerra no Ultramar Português, confessando-se devoto da ideologia salazarista, não deixa, no entanto, de referir que enviara documentação e revelara posições altamente críticas sobre a falta de estratégia militar e os fatores negativos em que se encontrava a instituição militar, não se coibindo de dizer ao próprio Salazar que, se tais fatores não fossem corrigidos, poderiam conduzir a graves desastres.
Mais adiante fala de erros que terá praticado, começa por referir que hesitou muito quanto à independência unilateral de Moçambique em 1972/1973; confessa que se devia ter empenhado num golpe de Estado em fins 1973 e escreve o seguinte: “Em Dezembro de 1973, alguns consideraram estar eu envolvido num golpe de Estado de extrema-direita contra o Governo do Presidente Marcello Caetano. Não era verdade. Olhando, porém, agora, todo esse período, sou levado a pensar que teria sido bem melhor para o país eu ter-me realmente empenhado num golpe de Estado vitorioso, não daquela suposta direita, mas sim de uma direita ponderada e moderna” (também não explicita a que direita alude, quem a compunha e com que programa); confessa que lhe ocorreu tarde de mais a celebração de um Pacto do Atlântico Sul, organização teria como dínamos a África do Sul e o Brasil, o equivalente à NATO, pensa que teria sido um sério obstáculo à expansão comunista. E lança várias culpas, uma delas dirigida à formação dos oficiais milicianos, o marxismo grassava nas universidades e passou para os quartéis, eram ideias dissolventes com grande força, aceleraram o processo de desagregação das Forças Armadas.
A sua dama de defesa é o que pensa ter feito em Moçambique para bem dos moçambicanos e para travar ou fazer cambalear a luta armada, havia sucesso na contrassubversão em Angola e Moçambique. Conta a história da sua nomeação para Comandante-Militar e Comandante-Chefe das Forças Armadas em Moçambique, fala com exaltação da Operação “Nó Górdio”, começa a vituperar Costa Gomes e Silva Cunha, diz que não houve massacres em Moçambique e em 1972 começa a ameaçar o Governo de Marcello de Caetano de que não fica em Moçambique se não lhe derem mais meios e poderes. Se tudo estava a correr tão bem e a Frelimo à beira do KO técnico, porque é que o ministro Viana Rebello lhe escreve em 18 de março de 1973 uma carta em que alude aos reforços que ele insistentemente pedia:
“Tais reforços, depois de estudos efetuados no Estado-Maior do Exército, levam à conclusão de que seriam precisos mais 220 oficiais, 700 sargentos e 4500 praças, num total anual de 350 mil contos; e sem contar com a colmatagem de faltas nas unidades existentes, que seriam 180 oficiais, 450 sargentos e 1400 praças.
O Comandante-Chefe de Moçambique merece, por todos os motivos, ser ajudado. É quem dirige aí as operações e quem sofre os embates do inimigo em primeira mão. Os números apresentados são, porém, tão vultuosos e dispendiosos que não julgo haver Ministro da Defesa no nosso País que pudesse tomar o compromisso de lhes dar integral satisfação. Faltam na Metrópole os homens e não é demasiado o dinheiro. Além de que há outros teatros de operações que também reclamam reforços e a prioridade estratégica”.
Retenha-se que Kaúlza de Arriaga escrevera de Nampula para Sá Viana Rebello em 29 de janeiro desse ano, pedindo-lhe mais competências, 150 minas antipessoal para o obstáculo de Cabora-Bassa e um milhão de minas antipessoal para interdição da fronteira de Cabo Delgado e novos meios aéreos, como 5/6 aviões Notratlas, 20 helicópteros Alouette III e o fornecimento de helicópteros Puma. Em nenhum ponto do seu livro Kaúlza de Arriaga justifica as razões pelas quais exigia tão bastos meios e muitos mais poderes.
Obra necessariamente a considerar na argumentação durante muitos anos usada pelos próceres do Estado Novo. Não vale a pena adiantar que quanto a massacres, o que se dizia ser uma enorme mentira dos opositores do regime português se veio a revelar historicamente verídico: Wiriamu existiu, há mesmo a confissão feita pelo capitão da linha de comandos que conduziu tal operação.
Kaúlza de Arriaga na apresentação da Operação “Nó Górdio”
____________Nota do editor
Último poste da série de 29 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22049: Notas de leitura (1349): “Trabalho forçado africano, o caminho da ida”, com coordenação do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Edições Húmus, 2009 (Mário Beja Santos)