Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele, uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74).
1. Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro na Guiné, durante dois anos (BART 6520/72, Mampatá,1972/74), o que me encanta, no livro do António Carvalho (, foto atual à esquerda), são algumas das suas memórias da infância, passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que não era muito diferente daquele que muitos de nós conheceram, de norte a sul do país. (*)
São apontamentos, observações, registos, relatos, pequenos retratos e histórias de pessoas da família e vizinhos. etc., que considero de interesse etnográfico ou documental para se poder conhecer um pouco melhor a infância e a adolescência da nossa geração, aquela que, nascida ao longo dos anos 40 e ainda no início dos anos 50 (,como é o caso do autor), iria depois fazer a guerra colonial / guerra do ultramar, de 1961 a 1974.
A maioria de nós nascemos em aldeias ou pequenas vilas, e temos em comum muitas dessas vivências ou experiências, a começar pelo trabalho no campo ainda em tenra idade. Em 1950, quando o António Carvalho nasceu, a nossa população activa era de 3.2 milhões, distribuindo-se pelo sector primário (ou seja, agricultura, silvicultura e pescas) (50%), sector secundário (24%) e sector terciário (26%).
2. O próprio topónimo Medas poderá estar relacionado com as “medas de palha” (pág. 13), embora na terra do António Carvalho fosse mais comum chamar-lhes “rolheiros”.
De resto, o léxico usado pelo autor também já não é frequente ouvir-se (nem ler-se( e os nossos filhos e netos têm seguramente que recorrer ao dicionário para entender, termos e expressões tais como “paveias”, “vencilho”, “broa”, “restivada”, “malhada”, “chadeiro”, “tarara”, “colmeiros”, “canastro”, “juntas de bois”, "soga", "carros de milho", etc.
(…) "O trigo e o centeio, semeados entre dezembro e janeiro, em junho eram segados e transportados para a eira onde o grão acabava de secar. A segada era um trabalho árduo que decorria sempre sob muito calor, normalmente feito por mulheres, levando cada uma o seu eito e deixando para trás as paveias que outra mulher ou homem se incumbia de amarrar, uma a uma , com um vencilho feito de meia dúzia de caules do mesmo cereal.
"Ao meio da manhã e pela meia tarde algum rapazinho da casa havia de chegar com uma cesta onde raramente havia mais do que broa , vinho e azeitonas, e era esta a hora de reparação de energias e de alguma consolação." (…) (pág. 12).
E já agora, leia-se mais um bocado da descrição das operações associadas à segada (ceifa) do trigo e do centeio:
(…) "Nesse dia ou no seguinte as paveias eram levadas, no carro de bois, para a eira onde se enrolheiravam e assim esperavam mais alguns dias de sol até serem malhadas, quando já o grão se separava facilmente da palha. Nesses campos de cereal de inverno ainda se conseguia semear , em julho, feijão fradinho a que chamávamos a restivada.
O trigo, o centeio e o milho eram fundamentais na alimentação dos portugueses. No Norte predominava a broa de milho com mistura de centeio, cozida semanalmente em forno a lenha. No Sul usava-se mais a farinha de trigo.
Capa do livro |
De facto, aqui nada se perdia: nesse tempo, com a palha de centeio faziam-se os colchões das camas das famílias, palha que era substituída, todos os anos, antes da chegada do inverno.
(…) “Os molhos da palha de centeio, depois de malhados, eram desenvencilhados e passados por uma forquilha que se espetava no chão pelo cabo a fim de serem limpos da parte folear e de novo atados em molhos do tamanho de uma braçada a que chamávamos colmeiros. Eram depois estes colmeiros utilizados na renovação da palha de todos os colchões da nossa casa e os restantes vendidos a quem não semeava centeio e deles precisava.” (…) (pág. 14)
Havia “a meda grande, feita da palha de trigo e de centeio”, que servia para pensar o gado em estábulo, no inverno,
Ora “essas medas, as de palha de milho disseminadas pelos campos e a meda mestra, de palha de trigo e centeio, erigida altaneira junto à eira e ao canastro, eram formações de uma arquitetura móvel demonstrativa, pelo sua quantidade e volume, do tamanho de cada casa de lavoura.” (pág. 14).
3. Muito interessante a história da origem do cemitério de Medas (“O sítio das quatro casas", pp. 33/34), que só muito tardiamente, em finais de 1890, foi construído, graças a uma comissão de seis medenses onde estava representadas as figuras gradas da terra, incluindo o pároco, o professor, o regedor e o presidente da Junta de Paróquia. E logo ali foram construídos os primeiros quatro jazigos funerários…
Na realidade, a estratificação social daquela comunidade camponesa tinha a ver com a riqueza de cada família, sendo esta “aferida pelo número de juntas de bois que possuía e pelo número de carros de milho e, nessa altura, nas Medas, não havia ninguém mais rico que o lavrador mais abastado”.
Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.
O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar
Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036
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(*) Último poste da série > 20 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22557: Notas de leitura (1382): “Mare Nostrum”, por João Paulo Oliveira e Costa; Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2013 (Mário Beja Santos)
(**) Vd. poste de 11 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22533: Notas de leitura (1380): "Um caminho de quatro passos": temos um novo escritor, o António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores (Luís Graça)
(...) Muitos de nós, antigos combatentes, que nasceram em aldeias ou pequenas vilas, do interior do país, vão-se reconhecer neste retrato da infância e adolescência do autor. Em boa verdade, é o retrato da nossa geração... Muitos de nós, para não dizer a grande maioria, que nasceu, cresceu e viveu no campo até à idade de ir para a tropa. Uma geração que:
(i) nasceu de parto com dor, em casa, sem assistência médica;
(ii) foi batizada segundo os cânones da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana;
(iii) foi alimentada a caldo e broa, e alguns provaram pela primeira vez o leite, ainda não pasteurizado, da vaquinha;
(iv) assistiu ao espetáculo, hoje cruel, da matança do porco (, fabulosa a sua reconstituição, em "O festim", pp. 20/22):
(v) aprendeu as primeiras letras à luz do candeeiro a petróleo e, muitas vezes, ia descalço até à escola da vila, com os sapatos de ir à missa atados ao ombro;
(vi) vivia em casas sem saneamento básico, sem eletricidade, muito menos rádio, telefone e televisão;
(vii) foi a 1ª geração de portugueses a ser vacinada contra algumas das mais temíveis doenças infetocontagiosas que no passado causaram elevada morbimortalidade;
(viii) passou a dispor, a partir de 1945, da bala mágica, a penicilina;
(ix) só conheceu a capital do país, quando embarcou para a guerra da Guiné, que a mobilidade espacial (ainda era um luxo)...
(x) mas começou também a perceber a importância da educação como forma de mobilidade social, ou seja, para se poder sair do círculo vicioso da pobreza;
(xi) num tempo em que a democratização do ensino (e a universalização da proteção social) só começaria a chegar no final do consulado de Marcelo Caetano;
(xii) é também a geração que sai, das suas casas da aldeia e das vilas, para fazer a última guerra do Império, ou para emigrar, a salto, para o Eldorado transpirenaico. (...)