quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20084: In Memoriam (347): Dulce Almada Duarte (1933-2019), figura de vulto da cultura cabo-verdiana, viúva do fundador do PAIGC, Abílio Duarte (1931-1996) (Zeca Macedo, EUA)

1. Mensagem de Zeca Macedo [ex-2º tenente fuzileiro especial, DFE 21 (Cacheu e Bolama, 1973/74), nascido na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951, e a viver  nos Estados Unidos, onde é advogado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 13/2/2008; aqui na foto à esquerda, no navio escola Sagres, com a eposa Goretti]


Data: terça, 20/08/2019 à(s) 19:12
Assunto: Morte de Dulce Almada Duarte


Luis, acabo de ler a noticia da morte de Dulce Almada Duarte, viúva de Abílio Duarte [1931-1996]. [um dos fundadores do PAIGC e o primeiro presidente da Assembleia Nacional da República de Cabo Verde] [, foto à direita].

Dulce desempenhou um papel importantíssimo ao serviç de Cabo Verde, durante e depois da luta armada .

(i) a linguista, Dulce Almada Duarte, morreu hoje,as vésperas de completar 86 anos;

(ii) nasceu em 1933 na ilha de São Nicolau;

(iii) mais tarde, estudou línguas românicas na Universidade de Coimbra;

(iv) apoiou a causa  do anticolonialismo e abraçou a luta pela independência em Cabo Verde e Guiné-Bissau;

(v) a  linguista desempenhou várias tarefas durante a luta pela independência: co-produziu um programa de rádio em português para desmoralizar as tropas coloniais em apoio aos combatentes da resistência: durante a luta, escreveu uma série de artigos para a libertação para o PAIGC e traduziu obras feitas por Amílcar Cabral para o francês; em França foi Leitora de Português na Universidade de Caen (Normandia), na Argélia, foi docente na École Supérieure d'Interprétariat;

(vi) esteve no quadro da luta pela independência de Cabo Verde em todos esses países e ainda no Senegal, Guiné-Conacry, Marrocos e Cuba;

(vii) após a independência, Duarte trabalhou nos Ministérios da Educação e da Cultura, tendo desempenhado os cargos de Directora do Gabinete de Estudos, Directora -Geral da Cultura e Directora do Património Nacional;

(viii) dedicou-se à investigação sobre a Língua e a Cultura Cabo-Verdiana, publicou dois livros sobre o Crioulo Cabo-Verdiano: Cabo Verde. Contribuição para o Estudo do dialecto Falado no Seu Arquipélago (1961) e Bilinguismo OU diglossia as relações de força entre o crioulo e o português na sociedade cabo-verdiana (1998).

Um abraço amigo

Zeca Macedo Tenente FZE-DFE 21
Cacheu-Bolama 73-74

Jose J. Macedo,Esquire
Law Offices of Jose J. Macedo
392 Cambridge Street
Cambridge, MA 02141
Tel. (617) 354-1115
Fax (617) 354-9955
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Guiné 61/74 - P20083: Parabéns a você (1669): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20079: Parabéns a você (1668): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)


Casamento de camponeses, c. 1566/69, de Pieter Brugel, o Velho. Cortesia de Wikimedai Commons



Lourinhã > Praia de Paimogo > 3 de agosto de 2011 > Enseada e porto de Paimogo, com o forte do séc. XVII ao fundo.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]

81. Nasceste algures, ou em nenhures, a oeste de qualquer coisa, não vinha (nem teria que vir), no mapa-mundo, a tua terra, perdida na ponta mais acidental do velho mundo, nem no registo civil te puseram a nascer nela, eras da vila, logo vilão, e ao vilão, cuidado, ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão...


E também nunca gostaste do alvoroço do povo, dos ajuntamentos do povo, dos foguetes, da multidão dos loucos, e das matilhas de mastins dos grandes e poderosos… Livra-te do louco e do alvoroço do povo. Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro.

Por que razão é que a tua terra teria que ser importante ? Nunca teve nenhum rei ou rainha, nem muito menos nenhum santo ou santinha.

82. Afinal, nunca gostaste de jogar à bola, nem de andar à bulha e à guerra, nem de apanhar as canas dos foguetes, nem de trepar às árvores e roubar os ovos dos ninhos nem sequer gostavas do nome da tua terra, nem muito menos de ver matar o porco.

Serás, mais tarde, guarda-redes, efémero, de equipas efémeras, nas férias grandes, já adolescente, na maré vazia, na praia do Caniçal, a baliza, feita de canas, desmedida, com o forte de Paimogo, o cabo Carvoeiro  e as Berlengas a esfumar-se, ao fundo, o farol, recortado, entre as brumas da memória, ó Pátria, sente­-se a voz dos teus egrégios avós… 



83. Podia ter sido um filme com final feliz, com lágrimas doces e quentes, como as da tua mãezinha, mas não foi, e nunca te perguntaste porquê nem saberias porventura responder a essa questão existencial.

Afinal, a ração não é para quem se talha, é para quem calha..., ouvirás no Norte, muito mais tarde, quando lá fores casar com uma rapariga nortenha...


Na praia, os padres jogavam à bola, de sotaina preta, e tu jogavas o pião, no adro da igreja, com ar de menino bem comportado, como o "Marcelino, pão e vinho" [1], o filme da tua infância, exibido no cinematógrafo no clube 14 de julho.


Domingo à tarde não havia ainda matinés, entrava-se no cinema, escondido, à noite, debaixo do capote do papá...(Mentes: nunca trataste o teu pai por papá, nem a tua mãe por mamã, que a rica teve um menino, e a pobre pariu um moço!, como se dizia no Alentejo).

Jogar o pião sozinho era triste, mas em grupo, em círculo, era arriscado por causa dos arrebenta-piões como o "Brutamontes". Quantas vezes choraste por ver o teu pião rachado ao meio? Pião das nicas, na escola, e até depois na guerra, foi o papel que te calhou no filme da tua vida.


84. Debulhava-se o trigo e o centeio no campo de jogos do Nadrupe, chamava-se assim a tua aldeia, a terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.

Bruegel, o Velho, podê-la-ia ter pintado, a tua terra, num qualquer domingo à tarde, numa tela com gente atarracada, e doente dos pulmões, a comer pevides e tremoços, no "Casamento de Camponeses", e a dançar o baile mandado do prior e do regedor, enquanto um cão uivava na vinha vindimada do Senhor.





85. Ao fundo, o ti’ Dolfo, de carroça puxada por um macho, indo à vila, atrapalhado, ou não ele fora homem, acossado pela hora do parto, pelas dores do parto da mana Maria, (oh!, raios te partam, priga!), chamar a parteira ou aparadeira, a dona Irene, a primeira mulher, de calças, que tu verás, mais tarde, de olhos esbugalhados de menino, a andar de bicicleta por ruas e ruelas, terraços e telhados, como nas telas do Chagall, guiando a cegonha que trazia os bebés de França.

86. Foi assim que tu foste nascer no Nadrupe, a terra da tua mãe, mas registado na terra paterna, a vila, segredo de Polichinelo que vais guardar dos teus colegas de escola. (Imagina só se o "Brutamontes", que era da vila, sabia que tu eras "saloio... do Nadrupe"!)


87. Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. 
Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem. 


88. As maçãs reinetas metidas na palha, os primeiros beijos roubados na palha do trigo, o pilau que o menino exibia para a criada, a tua tia a degolar as galinhas, (que a galinha perdês não a mates nem a dês!), e a tua mãe a esfolar os coelhos que seguravas pelas pernas, os olhos fechados para não veres o sangue a espirrar, o peixe a secar ao sol no telheiro, ou no estendal da roupa, a arraia, o chicharro, o carapau, e o gato a mijar, e as moscas-varejeiras disputando as vísceras do coelho, no tempo em que até os pobres tinham criados, burros, cães, gatos, perus e patos, e a lagosta era a sete e quinhentos o quilo 
[2], o tamboril, o peixe-diabo, se deitava fora, de tão feio que era, tal como a arraia, o safio, a moreira ou o cação. 

E o polvo, que era o petisco dos pobres. E os ovos crus, com um furinho em cada ponta, que te metiam pela goela abaixo, com dois brutos dedos a apertarem-te o nariz, quando estavas fraco dos pulmões. Os ovos crus e o óleo de fígado de bacalhau eram a medicina do povo.


89. E os vizinhos, valentaços, machos, arruaceiros, que puxavam das navalhas ou das sacholas ou das forquilhas ou das caçadeiras, quando o vinho e as paixões subiam à cabeça, e que se estripavam ou se matavam uns aos outros, por questões de honra, ciúme ou propriedade ?! E  os excessos das paixões da alma das mulheres ? Lembras-te daquela que matou o marido, cortou-o às postas e assou-o no forno a lenha como se fora bacalhau à lagareiro...


Essa violência entre vizinhos perturbava-te… Quem disse, afinal, que a tua aldeia era uma terra de brandos costumes ?


90. Dois tostões o par, o chicharro, no verão de todas as farturas, vinham em bandos, no inverno, os filhos dos pescadores de Peniche, das traineiras da sardinha, estender a mão à caridade dos camponeses, de barriga farta, no pós-guerra em que tu nasceste.


(Continua)

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[1] "Marcelino Pão e Vinho" : um filme espanhol de 1955,  realizado por Ladislao Vajda, baseado no livro homónimo ["Marcelino, pan y vino"] de José María Sánchez. Sinopse: "Marcelino é um órfão deixado à porta de um mosteiro e criado por doze frades. Certo dia, ele oferece, durante sua refeição, um pedaço de pão e um pouco de vinho a uma imagem de madeira de Jesus, crucificado, que aceita a oferta e passa a conversar com o menino. É o início de uma grande e bela amizade."

[2] 7$50, em finais dos anos 50, seria hoje o equivalente a 3 euros... Mas o salário, médio, nos campos, não ultrapassaria os 20 escudos (menos de 9 euros).

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Nota do editor:


(*) Últimos postes da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)

Guiné 61/74 - P20081: Banco do Afecto contra a Solidão (23): o ex-soldado paraquedista nº 04341366, Álvaro Magalhães, eo seu processo kafkiano, que se arrasta desde o início dos anos 90, de reconhecimento de doença em serviço...Camaradas, quem pode ajudar ? (Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

1. Mensagem do nosso amigo e camarada Jaime [Bonifácio Marques da] Silva, natural de (e residente em) Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande, com 60 registos no blogue:


Data: terça, 13/08/2019 à(s) 11:54

Assuntio: Processo do paraquedista Ávaro Magalhães

Caro Luís:

Vê se consegues que algum camarada nosso tem disponibilidade para averiguar se o processo do paraquedista Álvaro Magalhães, combatente em Angola, ainda se arrastará por mais tempo:

O Álvaro, por indicação do seu médico de família, iniciou nos anos 90 o processo para lhe ser reconhecido qe sofre de "stress pós.traumático de guerra".

O processo deu entrada nos Hospital Militar da Força Aérea em Lisboa no início dos anos noventa.
O tempo passou e, quando o Álvaro tenta saber da evolução do processo, é informado que este tinha desaparecido. Por volta de 2008, desesperado, pede-me ajuda e conseguimos que desse entrada um novo processo em 2009..

Tudo volta à estaca zero e entrega novo processo que ainda se arrasta. O Álvaro vive desesperado e necessita de ajuda muito urgente.

Identificação do processo:

Processo de averiguações por doença em serviço N.º 004/ 2018 / AMI / 001 /DS

O último ofício que recebeu foi oriunda do Ministério da Defesa Nacional - Força Aérea - Comando Pessoal / Serviço de Justiça do Hospital das Forças Armadas na Avenida da Boavista,  Porto.

Álvaro Magalhães - Ex. sold. Paraquedista / 04341366

Por favor vê o que podes fazer.
abraço
Jaime
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17427: Banco do Afecto contra a Solidão (22): Notícias do antigo 1º sargento da CCAÇ 1419 (1965/67) e da CCAÇ 2312 (1968/69), e cofundador da ONG Ajuda Amiga, António Joaquim Lageira: deixou de comparecer aos convívios anuais e estava num lar do exército, em Oeiras, em 2015 (Ana Pacheco / Carlos Fortunato)

Guiné 61/74 - P20080: Historiografia da presença portuguesa em África (173): A cédula pessoal do território da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Creio que ninguém se surpreenderá com o facto de a província da Guiné ter nascido juridicamente em 1886. Do século XV ao século XIX, multiplicaram-se as designações, quase todas elas desencontradas. Não havia fronteiras, as praças e presídios situavam-se no litoral ou em pontos estratégicos dos rios. Ninguém se fixava no interior. Quando o Alferes Francisco Marques Geraldes viaja da região do Geba para Selho, no Casamansa, descobre que havia populações que nunca tinham visto um branco, caminhava-se para o fim do século XIX. As fronteiras deram litígio, um deles é uma ferida permanente, o Casamansa. Sékou Touré sonhava com a grande Guiné e com o seu talento diplomático Amílcar Cabral dizia com meridiana clareza que as fronteiras do novo país seriam exatamente as da antiga colónia portuguesa. E assim aconteceu, a despeito de fenómeno de cobiça como a região costeira entre o Senegal e a Guiné-Bissau que se julga estar impregnada de petróleo.

Um abraço do
Mário


A cédula pessoal do território da Guiné-Bissau

Beja Santos

A província da Guiné-Portuguesa nasce no século XIX. Antes, a partir do seu descobrimento, multiplicaram-se as designações, sempre imprecisas, vagas e arbitrárias: Rios da Guiné de Cabo Verde, Grande Senegâmbia, Pequena Senegâmbia, Terra dos Negros… Na constituição liberal não há nenhuma referência à Guiné, fala-se em Cacheu e Bissau, Eça de Queiroz, num dos seus trabalhos jornalísticos, fala de Senegâmbia, referência igualmente feita por Honório Pereira Barreto na sua incontornável Memória para as autoridades de Lisboa. Igualmente os limites territoriais eram indefinidos, havia a ideia de que tudo começava no território continental do Cabo Verde e se estendia até à Serra Leoa. Da leitura que fiz às descrições seiscentistas da Guiné, da autoria de Francisco Lemos Coelho, documento anotado pelo historiador Damião Peres, edição da Academia Portuguesa de História, 1953, apura-se que este comerciante e aventureiro terá passado a meninice em Guinala (região de Buba), morou em Cacheu e Bissau, viajou pelo Casamansa, atravessou por terra deste rio para o rio Gâmbia, navegou pelo Geba, percorreu as ilhas dos Bijagós, explorou a costa da Serra Leoa. Ao começar a sua descrição, é muito claro: “É a Costa da Guiné de que pretendo dar notícia, toda aquela terra que se estende do Cabo Verde, o qual fica em altura de 14 graus até ao focinho da Serra Leoa que fica em 7, que esta é a terra que é navegação dos portugueses, assim moradores que vivem por todos os rios que estão neste distrito, como os que passam a estas partes a negociar, em o qual distrito há os reinos, portos, gentes e comércio que aqui se verá”. E a sua primeira descrição serão os Jalofos, etnia predominante no Senegal.

Produto direto da Conferência de Berlim, que se estendeu de 1884 a 1885, decorrente dos permanentes litígios entre portugueses e franceses naquela região da África Ocidental, obteve-se mediante a Convenção Luso-Francesa de 1886 uma perda entendida como chocante e contrária à presença portuguesa, a região do Casamansa, a posse definida do interior da Guiné, punha-se termo a um mar de brumas e entregava-se a Portugal a Guiné continental e insular, com a mesma superfície que possui atualmente, 36.125 quilómetros quadrados.

Começa o texto da convenção nos seguintes termos: “D. Luís, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, D’Aquém e D’Além mar, Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, etc. Faço saber que se concluiu e assinou em Paris entre mim e o Presidente da República francesa uma convenção especial em que do lado português foram plenipotenciários, o senhor João de Andrade Corvo, Conselheiro de Estado e o senhor Carlos Roma du Bocage, Deputado, Capitão do Estado-Maior de Engenharia…”; e no artigo primeiro esclarecem-se as fronteiras: ao norte, uma linha que partindo do Cabo Roxo, se conservará, tanto quanto possível, em igual distância dos rios da Casamansa e de S. Domingos de Cacheu; a Leste, a fronteira seguirá o meridiano de 16º de longitude oeste de Paris, desde o paralelo de 12º 40’ de latitude norte; a leste a fronteira seguirá o meridiano de 16º de longitude oeste de Paris, desde o paralelo de 12º 40’ de latitude norte, até ao paralelo de 11º 40’ de latitude norte; ao sul, a fronteira seguirá uma linha que partirá da foz do rio Cajet, situado entre a ilha de Catack (que ficará para Portugal) e a ilha de Tristão (que ficará para a França) e, conservando-se tanto quanto possível, segundo as indicações do terreno, a igual distância do rio Componi (Tabati) e do rio Cacine, depois do braço setentrional do rio Componi (Tabati) e do braço meridional do rio Cacine, esteiro de Cacondo a princípio, e do rio Grande por fim, virá terminar no ponto de interseção do meridiano de 16º de longitude oeste de Paris com o paralelo de 11º 40’ de latitude norte. Ficarão pertencendo a Portugal todas as ilhas compreendidas entre o meridiano do Cabo Roxo, a costa, e um limite meridional formado por uma linha que seguirá o talvegue do rio Cajet e se dirigirá depois para sudoeste…

No artigo segundo, o reino de Portugal reconhece o protetorado da França sob os territórios de Futa-Djalon. Depois o texto da convenção espraia-se sob a região do Congo, as possessões francesas da costa ocidental de África.

Foram constituídas delegações para delimitar as fronteiras, trabalho que se iniciou em 1887, com divergências e interrupções. E escreve-se no Anuário da Guiné de 1948: “Constituída uma nova missão Luso-Francesa foi possível de 1900 a 1905 fixar as fronteiras da Guiné Portuguesa. A missão portuguesa era chefiada por Oliveira Muzanty. Em 1919, o Capitão-Tenente Teixeira Marinho à frente de uma missão geográfica conclui os trabalhos de campo, permitindo o traçado de uma nova carta de Guiné. De 1929 a 1931, uma nova missão luso-francesa fez as rectificações das fronteiras. A representação portuguesa foi confiada ao Major de Artilharia Soares Zilhão que a chefiava e aos adjuntos engenheiros geógrafo Baptista Lopes e topógrafos Morais Soares e Fausto Duarte".

Em resumo, a província da Guiné, depois desta convenção de 1886, confrontava-se ao Norte, Leste e Sul com a África Ocidental Francesa (Senegal ao Norte, e Guiné Francesa a Leste Sul), e a Oeste com o oceano Atlântico.

Após os trabalhos de delimitação de fronteiras, ficou então definida uma linha convencional que partindo do Cabo Roxo corre pela região dos Felupes e Baiotes, mantém-se quase a igual distância dos rios Cacheu e Casamansa até ao marco 145; segue depois por novo rumo, aproximadamente na direção Este e, ao chegar ao marco 133, na vizinhança de Canja, inflete para Nordeste, apoiando no paralelo 12º 40’, até ao marco extremo 58. Ali começa a fronteira Leste, entre as regiões de Pachiche e Pajade que desce pela margem sinuosa do rio Cocoli, e se afasta novamente, contornando o Futa-Djalon até ao paralelo 11º 40’. A fronteira sul estende-se pela região montanhosa abaixo de Dandum, acompanha o rio Cogon, segue para o território compreendido entre esse rio e o Corubal e inflete na direção da foz do rio Cajet. Quanto à fronteira Oeste, ela é a linha da Costa banhada pelo Atlântico, recortada de estuários e canais, salpicada de numerosas ilhas entre as quais as do arquipélago dos Bijagós.



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Nota do editor

Último poste da série de 14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20059: Historiografia da presença portuguesa em África (171): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20079: Parabéns a você (1668): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20076: Parabéns a você (1667): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20078: In Memoriam (346): José Manuel Vitória Cordeiro, ex-1.º Cabo At Art.ª do 3.º Pelotão da CART 2520 (José Nascimento, ex-Fur Mil Art)

1.º Cabo José Manuel Vitória Cordeiro (o Reguila)
3.º Pelotão da CART 2520


1. Em mensagem do dia 19 de Agosto de 2019, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) dá notícia do falecimento do 1.º Cabo José Manuel Vitória Cordeiro, "Reguila" do 3. Pelotão da CART 2520.

Camaradas da Tabanca Grande,
Acabo de receber a triste notícia do falecimento dum elemento do 3.º pelotão da CART 2520, trata-se do 1.º Cabo José Manuel Vitória Cordeiro, detentor da alcunha do Reguila a quem há pouco tempo dediquei uma pequena história na nossa Tabanca Grande[1].

Era natural de Muge e desde há longos anos a residir em Mira de Aire, onde também exercia a sua actividade profissional no ramo das mobílias.
Foi um dos grandes símbolos da nossa Companhia, dedicado, amigo do seu amigo, granjeava da amizade e o respeito de todos nós, foi um dos principais impulsionadores dos nossos convívios anuais, inclusive do último, o dos 50 anos da nossa partida para a Guiné e que decorreu em Torres Novas, com a visita às instalações do que foi a nossa unidade mobilizadora, o antigo GACA 2[2].

Descansa em paz Cordeiro, descansa em paz Reguila.
José Nascimento


 O "Reguila" em Santa Margarida. É o primeiro à esquerda.
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Notas do editor:

À família enlutada e aos seus camaradas e amigos da CART 2520, a tertúlia da Tabanca Grande endereça as suas mais sentidas condolências.

[1] - Vd. poste de 30 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20020: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (14): "O Reguila"

[2] - Vd. poste de 29 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19839: Convívios (896): Cinquentenário da partida da CART 2520 para o CTIG, em 24 de Maio de 1969... Comemorado em Torres Novas, a 25 do corrente (José Nascimento)

Último poste da série de 11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20049: In Memoriam (345): Pedro Martinho de Lima Alves Martins, que comandou a CART 6554/73, "Os Intemeratos" (Angola, 1973/75). Era irmão do nosso camarada João Martins. O funeral é amanhã, em São Martinho do Porto, Alcobaça

Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)



Portugal > Cadaval > Adão Lobo > 1950 > Equipa de futebol do Sporting Clube Lourinhanense, da Lourinhã, no campo de jogos do Adão Lobo. O segundo da primeira fila, da esquerda para a direita, é o meu pai, meu velho,  meu camarada, Luís Henriques, então com 29 anos...

Esteve toda a vida ligada ao futebol, quer como jogador quer como dirigente e treinador de futebol das camadas mais jovens... Faria ontem 99 anos, se fosse vivo... Nasceu em 1920 e morreu em 2012, ia completar os 92 anos...

Esta foto foi tirada em 1950, no dia em que o Benfica, seu clube de eleição,  ganhou a Taça Latina (pode-se ler-se na legenda da foto... Ao que parece foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica: ganhou à Lázio nas meias-finais e depois ao Bordéus na final)... É também uma homenagem à sua geração para quem o futebol era uma paixão... Aqui  ficam os seus nomes: "De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro, Miranda (Alfaiate), Jorge "Tarofa" (ou Jorge Serralheiro), José Costa (que haveria de morrer em Angola), José Miguel, Américo "Russo", Manuel "Swing", António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita, Vitor Pedro, Luís Henriques, António Zé da Graça, Manuel Dias ("Néu"), Artur Borges, João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dia faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o "Gino" (ou Higino), o Mário   "Pepe", o Manuel "Ferrador", o António Costa"...


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Cemitério de Mindelo > 1943 >  Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), com a seguinte legenda: "Justa homenagem àqueles que dormem o sono eterno na terra fria. Companheiros de expedição os quais Deus chamou ao Juízo Final. Pessoal da A[nti] Aérea depois das cerimónias desfila fazendo continência às sepulturas dos companheiros. Oferecido pelo meu amigo Boaventura [Horta, conterrâneo, da Lourinhã,] no dia 17-8-1943, dia em que fiquei livre da junta (hospitalar)."




Luís Henriques (1920-2012), ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, Caldas da Rainha. Esteve 26 meses "desterrado" em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo, Lazareto, de julho de 1941 a setembro de 1943, em missão de soberania. Escrevia vinte e tal cartas por semana, em nome dos muitos camaradas do seu pelotão e da sua companhia que não sabiam ler nem escrever. Eram todos oriundos da Estremadura, Oeste

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné]



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.




(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]


71. Sim, descobrirás, mais tarde, os famosos aventais de pau 
[1], no lendário Bairro Alto da formosa Lisboa onde se ia de camioneta, de excursão, uma vez na vida, no passeio da escola ou da catequese, ou quando se ia fazer, os sortudos!, o exame de admissão ao liceu, ou quando um mancebo, cheio de garbo, tiradas as sortes, de fitinha vermelha na lapela, era chamado para a tropa e jurava bandeira, e ia às meninas, para tirar… os três, antes de partir para defender a pátria, lá longe no ultramar, nas Áfricas, nas Índias, como o teu pai, em Cabo Verde em 1941/43…


72. Ah!, e o respeitinho, que naquele tempo ainda era tão bonito, cada macaco no seu galho, Deus no céu e os santos nos altares, nobreza, clero e povo, os três estados, uns em cima e outros em baixo, mal acamados, o povo a cavar a terra, a enxertar o bacelo, a podar, a sulfatar e a vindimar a vinha do Senhor, e o esplendor do cinismo dos grandes e a ostentação da caridade dos ricos, e a abjeção da arraia miúda, que dar aos pobres, era emprestar a Deus, que Deus, santo banqueiro, haveria de pagar-lhes com língua de palmo, juros e dividendos, ámen!... Deus, dizia o padre franciscano, pregador da Quaresma, sempre foi bom nas contas: "Cá se fazem, cá se pagam, meus irmãos!!...


Como os ricos emprestavam a Deus, dando aos pobres, eram cada vez ricos, como os judeus, pro causa dos juros e dividendos. Eles tinham uma conta-corrente no céu, os felizardos. E era importante que houvesse pobres, para os ricos poderem continuar a emprestar a Deus. Era talvez por isso que os ricos da tua aldeia eram gordos e tinham terras e casas, ou tinham terras e casas e eram gordos. Mas o povo mal os via: viviam em Lisboa.Não te lembras de ver um rico, em carne e osso, na tua aldeia. Só os criados e os feitores dos ricos. Os ricos nunca apareciam, tinham os seus representantes na aldeia. Como Deus, que tinha os seus representantes na terra: o papa em Roma, o padre vigário na tua aldeia, a tua catequista, a "Branca de Neve", a senhora professora, o regedor da freguesia, o cabo de esquadra, e poucos mais mais. O "Brutamontes" e o "Frasco do Veneno", esses, eram os representantes do diabo na terra. Nunca lhes viste a credencial passada pelo diabo, mas a verdade é que eram os sacanas que te endiabravam... Ao longo do tempo, irás conhecer outros "Brutamontes" e outros "Frascos do Veneno", na paz e na guerra...


73. E o garboso comandante dos bombeiros, com o seu capacete de latão e o seu machado de paz, faiscante como a espada do samurai, e o aferidor dos pesos e medidas, o avaliador e o agrimensor, e o juiz do julgado de paz e de guerra, e o pobre do legionário, patético, o senhor Pessoa, de seu nome Fernando, sósia do original, escriturário camarário, que era o chefe da Legião Portuguesa, e que fazia ordem unida com os fedelhos, de espingarda Mauser ao ombro, e que era incapaz de fazer mal a uma mosca, e que, dizem, morreu virgem e chupado como uma carocha!...


Ora nenhum herói da pátria, em tempo de paz ou de guerra,  devia morrer virgem, sem reproduzir, ao menos, o ADN do heroísmo. Crescei e multiplicai-vos era então a palavra de ordem. E, pelo menos na tua aldeia, pais e mães faziam o seu trabalho de casa.

Ah!, o senhor capitão Belo, de farda republicana, não menos excelentíssimo presidente do município, pequenitote representante do todo poderoso Estado Novo, que inaugurava o lavadouro e o fontanário e perante quem o povo se desbarretava, sempre atento, venerador e obrigado, o povo, o polvo, temente a Deus e aos grandes deste mundo, o Zé Povinho que só acordava da sua letargia e se agigantava de meio século em meio século.



E, quando acordava, esbaforido, qual gigante cego, era para se alvoraçar e escaqueirar a mobília toda das repartições do Estado e queimar os papéis. E bater na mulher e nos filhos, nos criados e nos marginais, nos judeus e nos pretos, nos malhados e nos comunistas.... O povo dormia demais mas tinha mau despertar, agigantava-se como o ogre. Forte com os fracos, fraco com os fortes... Dava uma manguito e voltava a adormecer por mais cinquenta anos...

Havia um judeu na tua terra chamado Jacó. E um papagaio também chamado Jacó. É estranho: não havia pretos de carapinha. Ou havia, e desfrisavam o cabelo ? 

74. Enfim, havia ainda a charanga no coreto, mas isso era em agosto, na festa da nossa senhora dos Anjos e os foguetes e os meninos, pobretes mas alegretes, e os cães, danados, atrás das canas dos foguetes, alvoraçados, os diabretes, que depois faziam chichi, à noite, na cama, ameaçava-te a tua mãezinha!... (Nunca a trataste por mãezinha, pois não ? Isso eram ternuras citadinas!).


Afinal, eram tantas as emoções!... Mesmo assim... Mesmo se detestasses os domingos à tarde, em que chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Mesmo se nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parasse no relógio, sonolento, da torre sineira da igreja da tua aldeia.


"Experimenta comer um limão à frente do gajo do trombone", ensinava-te o "Brutamontes". "O gajo do trombone começa a salivar e a dar fífias!"... 

As coisas, más, que sabia o "Brutamontes”!... Ou essa ensinou-te o "Frasco do Veneno" ?!... A verdade é que os putos da tua aldeia, provocadores, adoravam comer limões à frente da secção de metais da banda filarmónica. Só havia metais, não havia cordas!...


75. Um cão uivava aos domingos à tarde, enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor descansavam o corpo, magoado, os malteses, os ratinhos que vinham em magotes dos minhos, das beiras, dos ribatejos, dos alentejos, fugidos da fome e dos cavalos da GNR. E dormiam, na papel do trigo ou nas folhas de milho, que se guardavam para se fazer os colchões no inverno.

Em boa verdade, tu nunca chegarás a ver a GNR a cavalo, a espadeirar o povo, só mais tarde em fotografia, isso era no Barreiro da CUF, e tu ainda não sabias que existia o Barreiro da CUF, apenas os sacos de adubo da CUF com que a tua mãe faziam os sacos para o pão, e os aventais de cozinha. No tempo em que nãohvaia sacos de plástico, e tudo se reciclava... 


Muito menos alguma vez tinhas visto as ceifeiras do Alentejo, só conhecias o celeiro do trigo da Federação Nacional do Trigo, com cereal até ao teto em anos de grande fartura de pão. 

Nem sabias da Marinha Grande dos vidreiros ou sequer da Peniche dos pescadores, ali tão perto, as Berlengas à vista e o temível cabo Carvoeiro, o mar da Meia Via, cemitério de corsários, marinheiros, pescadores e outros mareantes.


Sabias lá tu dos operários que estavam em construção, nem muito menos das fábricas de chaminés altas, e dos perigosos comunistas (de que Deus nos livrasse!), inimigos mortais da Nação, metidos a foice e a martelo na fortaleza de Peniche, muda e queda.


76. Tu nunca tinhas saído do perímetro da tua terra, até aos oito anos, idade em que foste de excursão a Lisboa, com a "Branca de Neve" e os "Sete Anões": entrava-se na cidade pela tortuosa e íngreme calçada de Carriche, e pelas vetustas ruas do Lumiar, por meio de quintas, mas só te lembras do Tejo e das velas das fragatas, dos comboios e dos elétricos e do aquário de Vasco da Gama, e dos Jerónimos e do palácio de Belém… 


Não te lembras de ir ao Jardim Zoológico, que devia ser muito caro, para os meninos da tua terra, que levavam farnel e tudo!... Lembras-te dos palacetes do Lumiar e das heras a crescer nos muros altos e da patine do tempo. Nunca mais esquecerás essa expressão, a da patine do tempo.


77. E o Tarrafal ? Sabias lá tu onde ficava o Tarrafal 
[2], o teu pai, expedicionário da II Guerra Mundial, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, nunca te falara do Tarrafal, falava-te do Mindelo, do Monte Cara, do Lazareto, as bias, os tubarões, a morna, a coladera, a baía, o porto grande, a ilha onde até as pedras tinham venéreo, a fome do Joãozinho, a morte do Joãozinho, nosso cabo, bó impedido, Joãozinho, morreu. De fome, da grande fome, da fome milenar, intrínseca, de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, da fome da música e da poesia, da fome de pão de milho, e fome de terra e de céu, de fome de pão de trigo misturado com centeio, de mandioca e de cereal no pilão, e de poesia em crioulo, e de cachupa e de chabéu.


78. Lembras-te do álbum de fotografias do teu pai, o teu único brinquedo de montar e desmontar, que tiveste na infância, lembras-te do Mouzinho de Albuquerque, vapor da nossa orgulhosa marinha mercante, mas sabias lá tu quem era o Xico Vieira Machado, lídimo representante da nação, de visita a Cabo Verde, ministro plenipotenciário, homenzinho atarracado de chapéu colonial, latifundiário da tua terra, patrão do Banco Nacional Ultramarino, banco emissor de patacão da Guiné (, sabê-lo-ás, mais tarde), e que deixou o Joãozinho morrer de fome.


79. Enfim, havia o Império de todos nós, o lusitano império do tamanho da lonjura do Minho a Timor, desmesurado para tão parcas e desvairadas gentes. O último baluarte da civilização ocidental e cristã, lia-se nos títulos de caixa alta dos jornais de Lisboa, que chegavam à província.

Lembras-te, de reler, as cartas apaixonadas que o teu pai escrevia à tua mãe, em papel bíblico, a tinta de cor verde, e belíssima caligrafia, com selo e carimbo do correio de Cabo Verde que ficava lá longe no ultramar dos pretinhos e dos missionários de barbas brancas:

“Maria, minha cachopa,
não me sais do pensamento,
assim que eu sair da tropa,
trataremos do casamento”.



80. Ias para o pequeno rio Grande brincar, o rio Grande da tua aldeia, apanhar as bugalhos dos carvalhos, enquanto o teu pai, o teu ídolo, jogava a ponta esquerda, coitado do sapateiro e campeão das damas, nunca passaria da cepa torta, por jogar à bola e a ponta esquerda num campo pelado, no campo pelado da vida, no campo de jogos da tua terra, ao domingo à tarde, com um cão a uivar na vinha vindimada do Senhor.

Ah!, o rio Grande que só era grande quando galgava as margens e se confundia com o mar, o grande oceano.


(Continua)



[1] Avental de pau  queria dizer as meias portas onde as mulheres do Bairro Alto  se mostravam…

[2] A Colónia Penal do Tarrafal, situada no lugar de Chão Bom do concelho do Tarrafal, na ilha de Santiago (Cabo Verde), foi criada pelo Governo português do Estado Novo ao abrigo do Decreto-Lei n.º 26 539, de 23 de Abril de 1936.

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Nota do editor:

(*) Últimos postes da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

Guiné 61/74 - P20076: Parabéns a você (1667): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20073: Parabéns a você (1666): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20075: Escritos do António Lúcio Vieira (3): carta de amor e saudade à minha praia com nome de mulher, Nazaré



Nazaré > Sítio da Nazaré > 24 de novembro de 2007 > A terra, com nome de mulher, que é muito mais do que um magnífico "postal ilustrado"... Sobre a Nazaré Antiga, vd. aqui fotos no Facebook.


Foto (e legenda) © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



carta de amor e saudade à minha praia com nome de mulher



por António Lúcio Vieira

[ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67); natural de Alcanena, vive em Torres Novas; jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; membro da Tabanca Grande, nº 794] (*)


Quantas vezes te sonho entre as frestas das ruelas. Rendido ao meu mar amado. Minha alcova de azul e espuma. Minha infância longe. Às memórias me afloras sempre que sonho. Assim me acalento no teu berço de ondas e suspiros que do meu corpo tomaram cativo embalo. Embalo e é de música que os meus olhos falam. Quando os meus olhos falam do teu nome. De mar de praias e lendas.

Cheiram sempre a maresia as casas que se estendem no aconchegado regaço do teu colo. E é de música que as casas vestem as ruelas e tangem os degraus e as areias. E bebem quanto amor criámos na polpa dos dedos entre as águas. Nas guias das asas das gaivotas ouço um bater compassado e lúgubre. Meu mar que já te afogas em saudades minhas.

Tinha quase esquecido como se altiva o torso rochoso que aponta a Berlenga. E falo-te da desgarrada do eterno faiscar dos faróis. Dessa tua luz guindada ante o Guilhim quando corteja o tremeluz difuso e distante no ilhéu.

Ainda te amo como nos dias da infância. Ainda sei da tua boca um sabor a algas. Ainda te afago as areias louras. Molhadas pelo cio do teu mar fecundador. E é também dessa voz das ondas, que não se aquieta, que te vim falar. Desse amor a ti que em ti me tarda. Quando tardas. Quando aguardas.

Não te fiques no silêncio das ruelas. Na nesga entre as casas sorvo o teu apelo das águas. Do teu céu. Lavo-me de espuma na proa do teu corpo exposto. Tocam-me de leve as memórias e a seiva. Não me deixes partir agora. Se te beijar fica-me o corpo a arder em mim no repousado refluxo das marés. Música. Ouves, é música. Não vás ao mar Toino.

Vou. Espera por mim. Não tardarei a voltar para o teu seio. À deriva no teu corpo deixo as memórias e deixo-te a seiva. Guarda-as. São eu.

Deixo-me. Deixo-te. Espera por mim, Nazaré. Até logo amor.

António Lúcio Vieira

Julho-2014

Guiné 61/74 - P20074: Notas de leitura (1210): A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo, Grupo de Pesquisa Sobre a Descolonização Portuguesa; Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1979 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Este documento destaca-se por ter sido o primeiro ensaio de investigação fora da balbúrdia dos extremos: proliferavam na época os libelos acusatórios ao colonialismo e os chamados "livros negros" acusando militares e forças políticas de traição e abandono das populações das colónias. Sente-se, do princípio ao fim, a presença tutelar de Adriano Moreira. É um documento com altos e baixos, obviamente, o contexto em que se estuda o chamado problema ultramarino e procede ao balanço da colonização portuguesa decorre com bastante rigor e serenidade. Escusado é dizer que as investigações se aperfeiçoaram nas décadas seguintes, surgiu muita documentação e até se conhece melhor os pontos de vista no campo dos movimentos de libertação.
É lastimável que este documento não conste em qualquer referência bibliográfica sobre o colonialismo português e os atos da descolonização.

Um abraço do
Mário


A descolonização portuguesa, aproximação a um estudo

Beja Santos

“A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo”, da responsabilidade de um grupo de pesquisa dirigido por Mário António Fernandes de Oliveira, edição do Instituto Democracia e Liberdade, 1979, dois volumes, apresentou-se como uma tentativa de oferecer elementos aos estudiosos que no futuro viessem a tratar o tema na perspetiva do conhecimento rigoroso e sereno, e simultaneamente a obra apresentava-se com intuitos de pacificar os portugueses sobre tão traumatizante questão. Importa esclarecer que o Instituto de Democracia e Liberdade era uma área de estudos confim ao CDS que, como é de todos sabido, pretendia ganhar notoriedade como um partido democrata-cristão. O diretor deste estudo, Mário António Fernandes de Oliveira, era um intelectual nascido em Angola com pergaminhos na investigação e na poesia. Paira sobre este estudo a imagem tutelar de Adriano Moreira, prefaciador dos dois volumes. Neste tempo, tanto no campo da esquerda como no dos ultranacionalistas já se apresentavam interpretações (na maior parte meramente ideológicas ou emotivas) para o fenómeno colonial português, e surgiam protestos e denúncias no campo oposto assacando tremendas responsabilidades aos militares, a Spínola, ao MFA, à esquerda em geral e ao PCP em particular, libelos que apareciam como acusação de abandono puro e simples e traição às populações que no espaço colonial se sentiam portuguesas, havia que pôr os réus em tribunal.

Mário António é o primeiro à direita
No que toca à compreensão do colonialismo em geral e da luta nacionalista na Guiné em particular, é o primeiro volume que oferece boas chaves explicativas: analisa-se o colonialismo português, as correntes de opinião sobre o ultramar num amplo arco histórico, esboça-se um balanço da colonização portuguesa bem como das lutas de libertação, expõem-se as hipóteses descolonizadoras anteriores ao 25 de Abril e questiona-se a situação militar nas colónias no primeiro trimestre de 1974.

A equipa dirigida pelo intelectual angolano elabora um pertinente documento sobre o caso português no contexto dos impérios coloniais, procura-se uma especificidade para a empresa ultramarina dos portugueses, alicerçada por posturas permanentemente assertivas desde o liberalismo até às correntes nacionalistas e oposicionistas até à década de 1950, aqui terá lugar uma viragem, a fratura adensar-se-á entre o regime e da oposição socialista para a esquerda. O documento pondera as várias hipóteses de descentralização que surgem em torno da discussão da revisão do Acto Colonial, a questão indiana despertará os próceres do regime para a necessidade de pôr em ação um novo quadro de desenvolvimento socioeconómico para as colónias. Iniciada a luta de libertação em Angola, vão aparecer vozes, de um modo geral desencontradas, apelando a formulações políticas que conciliassem os interesses das populações locais com o projeto imperial. A partir de 1972, sente-se a inevitabilidade de encontrar uma solução por uma guerra sem fim, as posições extremam-se. Um exemplo é dado pelo I Congresso dos Combatentes do Ultramar, que se realizou no Porto em 1973 e em que os ultranacionalistas fizeram aprovar conclusões como estas: 1 – todo o combatente deve continuar vigilante, ativo e dinâmico, na Metrópole e no Ultramar, combatendo todo e qualquer inimigo de Portugal; 2 – o que foge ao cumprimento do serviço militar não é digno de ser português; 3 – Portugal só pode realizar-se integralmente num território pluricontinental; 4 – continuar a defender Portugal por todos os meios e pelo tempo que for necessário. Coube a Spínola criar uma atmosfera propícia ao golpe militar de 25 de Abril.

À guisa de balanço da colonização portuguesa, os autores não iludem as realidades que davam pasto às reivindicações nacionalistas. Por exemplo:
“O número de africanos desempenhando funções médias na sociedade foi reduzido em todas as colónias, assim como o de africanos com títulos de propriedade privada, quer em relação às estruturas fundamentais, como a terra e a habitação, quer em relação a indústrias, incluindo as mais rudimentares. A distribuição profissional dos colonos justifica a posição de marginalidade a que a colonização condenou os africanos”.

Vejamos agora a Guiné: uma economia agrícola predominantemente de subsistência, com um baixo grau de monetarização, a produção agrícola foi profundamente afetada pela guerra, as autoridades procuraram o reordenamento rural e lançaram projetos de produção socioeconómica preferentemente no Chão Manjaco; um conjunto de unidades industriais solicitou autorização de instalação, com especial relevo as dedicadas ao fabrico de cerveja e refrigerantes, reparações navais, plásticos, pão, pescas, conservas e farinação de peixe, em 1973 encontrava-se instalada a CICER – Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné e a Companhia de Pesca e Conservas da Guiné; nesse mesmo ano as atividades industriais de maior significado foram a de moagem e de descasque, a produção de óleo de amendoim, gelo, amendoim descascado, refrigerantes, sumos e serração de madeiras; existiam 56 centrais elétricas, a rede rodoviária dispunha de mil quilómetros de estrada dos quais 460 asfaltados e aproximadamente 517 no fim de 1973. Enfim, não se ilude a insignificância dos dados nem o caráter rudimentar da economia colonial.

Faz-se uma exposição sobre a ascensão do nacionalismo guineense, a partir de 1954 e depois um curto historial sobre o PAIGC. Também não se ilude a evolução favorável ao PAIGC da luta armada, o gradual prestígio internacional do seu líder, o seu armamento e a preparação militar eficiente dos militares e milícias. Releva-se a ofensiva desencadeada pelo PAIGC a partir de Maio de 1973 e o que representou a perda de supremacia aérea com os mísseis Strela. Citando Jaime Nogueira Pinto, os autores referem algo que não corresponde à verdade: “Segundo relatos posteriores dos responsáveis político-militares da Guiné, o governo de Lisboa dera na altura instruções para se evacuar a parte Sul do território até ao Geba, o que não fora cumprido, terminando pouco depois a comissão de Spínola”. E no questionamento se se caminhava ou não para o colapso, os autores opinam: “Sem dúvida que a situação militar na Guiné, no primeiro trimestre de 1974, era de facto bastante grave, quer pelo estado de abatimento das tropas portuguesas, quer pelo reconhecimento de inferioridade dos meios materiais de que dispunham, quer porque começavam a ter problemas na formação de quadros e dos contingentes com vista às rotações normais do pessoal. Contudo, apesar de condenado internacionalmente como ocupante ilegítimo do território de um Estado independente, Portugal mantinha todos os seus poderes de soberania exercendo os actos da administração corrente em quase todos os pontos do território a que tinha acesso”.

Não se tem dado o devido valor a este primeiro documento em que de forma abrangente uma equipa de investigadores procurou com seriedade e busca das fontes e consulta dos documentos uma interpretação global para o fenómeno do colonialismo português e para os atos da descolonização.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20073: Parabéns a você (1666): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20069: Parabéns a você (1665): Coronel Inf Ref António Melo de Carvalho, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465 (Guiné, 1969/70) e Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira, esposa do nosso editor Luís Graça

domingo, 18 de agosto de 2019

Guiné 61/74 – P20072: Memórias de Gabú (José Saúde) (87): A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné. Os homens do volante. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

As minhas memórias de Gabu

A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné

Os homens do volante 

Somos, na generalidade, conhecedores do empenho que os condutores impunham numa especialidade à qual se dedicavam desinteressadamente. Sabemos o quão importante foram os conhecimentos adquiridos ao longo de uma singular aprendizagem que lhes proporcionou um contacto real com o universo da condução. Fizeram tudo o que estava ao seu alcance, isto na minha singela opinião, obviamente. Cumpriram com os seus deveres e não viraram a cara à luta, não obstante as tormentas que o rebentar de uma mina obstinasse o seu querer e naturalmente dos camaradas.

Percebi, nessa altura, que a universalidade da especialidade não era comum a todos e distribuíam-se consoante as necessidades ou a sorte que lhes coube na roda da aventura. Razão esta que me leva a viajar num tempo sem tempo e citar especificamente a honorabilidade de camaradas que conheceram, por dentro, os teores de uma guerra que nos fora deliberadamente bárbara. Padeceram com condições adversas e suportaram as agruras impostas por uma peleja que não dava folgas.

Agarrados ao volante das Berliet, veículos fabricados nas oficinas do Tramagal, ou num Unimog, veículos denominados pela rapaziada como “carros de assalto” e que em 1946 foram projetados pela Daimler-Benz na Alemanha quando a Segunda Guerra Mundial rebentou, sendo que a sua comercialização internacional regista o ano de 1951, já no pós guerra, os condutores mereceram ao largo do conflito os nossos singelos aplausos.


Visualizar a sua despretensiosa ação pela mais recôndita picada numa Guiné a ferro e fogo, sabendo de antemão que as minas anticarro eram comuns, os condutores foram camaradas que não viravam a cara à luta e lá partiam para mais uma coluna, ou para as frequentes visitas a tabancas quando o momento passava por mais uma jornada em que a chamada “psicó” ditava ordem.

É evidente que façamos uma justa destrinça entre as colunas de reabastecimentos e de transporte de pessoal, onde normalmente se utilizavam as Berliet, por vezes intercaladas com Unimog, mas sendo este último veículo usado nas idas às tabancas onde íamos distribuir os aplaudidos “mezinhos” para uma população de todo carente e que vivia isolada na mata a contas com as duas frentes de guerra.

Creio que será de bom senso não desvirtuarmos uma veracidade bem patente que se prende com o facto de uma certa inexperiência evidenciada por alguns dos condutores nos seus inícios das comissões. Aliás, pressuponho que a dita e amadurecida experiência era adquirida com o decorrer das comissões onde um melhor conhecimento do terreno ganhava estatuto.

Conheci duas situações em que o medo se apoderou do meu então jovem corpinho. Vamos aos comentários das ditas ocorrências:

A primeira aconteceu numa das visitações a tabancas localizadas na zona de Gabu. Seguia no Unimog da frente, ao lado do condutor, quando numa picada estreita o “ás” do volante deixou a “máquina de assalto” entrar pelo capim fora, sendo que a malta se vi-o às aranhas para ultrapassar o incidente deparado. Houve umas pequenas mazelas e restou, evidentemente, um tremendo susto. Depois fez-se o “reconhecimento” que a ocasião impunha e o Unimog lá prosseguiu rumo ao seu destino.

A segunda ocorreu numa tarde a caminho de Piche quando uma viatura que seguia atrás de uma outra embateu na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta atirou-se de pronto para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e as G3 que transportávamos nas mãos.

Aqui um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas a exemplo, aliás, de outros camaradas que se queixaram do mesmo mal. Mas o “acidente”, felizmente, não causou vítimas de maior a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso e as pequenas feridas para o saudoso enfermeiro Dinis curar.

Este curto texto visa, essencialmente, abordar o tema que enaltece a bravura comum de camaradas de uma especialidade, condução, que conheceu em paralelo momentos de horror. 

Não sei e nem tão-pouco vou lançar achas para uma fogueira alvitrando o número de condutores que terão perdido a vida na Guiné por via de emboscadas ou de minas rebentadas pelos rodados dos veículos por eles conduzidos.

Com leigo de uma matéria que não domino, deixo, porém, esse repto aos camaradas para que possamos ter uma ideia desse infortúnio, sabendo nós que o número exato das mortes na guerra guineense jamais será real. 

Fiquemos, pois, pelos algarismos virtuais. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: