CHABAL, Patrick - Amilcar Cabral: Revolutionary Leadership and People's War. 2 rev edition. London: C Hurst & Co Publishers Ltd; 2004. 278 p. £14.95
This text tells the story of Amilcar Cabral, who, as head of the PAIGC, Guinea-Bissau's nationalist movement, became one of Africa's foremost revolutionary leaders. He led Guinea-Bissau's nationalists to political and military success over a colonial power.
Source/ Fonte: Hurst & Co (Publishers) (courtesy from / com a devida vénia...)
1. Ao chegarmos ao poste P3000, e às cerca de 700 mil páginas visitadas (cerca de 1300 por dia, nos últimos doze meses), deixem-me hoje, amigos e camaradas, publicar um dos meus textos, esquecidos no limbo dos meus papéis da Guiné... Criador e editor deste blogue, a publicar os papéis dos outros, não me resta tempo para escrever os meus...
É sobre a análise da estrutura social da Guiné feita por Amílcar Cabral e que é reveladora das qualidades de Cabral como pensador, como teórico, como analista social... O que ainda hoje me leva a respeitá-lo e a admirá-lo, é que, para além do grande político, do dirigente revolucionário combativo, do genial estratego militar e do tenaz organizador, há nele um homem culto e intelectualmente brilhante, seguramente um dos melhores da sua geração e de toda a África.
Ele sabia que a acção colectiva organizada, incluindo a luta armada de libertação, tem de ser guiada pela teoria. Cabral não se limitou a ler a cartilha dos pensadores (marxistas-leninistas) que, no seu tempo, influenciaram grande parte das elites e dos dirigentes africanos da época da descolonização. Uma influência desastrosa e desastrada, em muitos casos. Cabral, pelo contrário, era capaz de pensar pela sua própria cabeça e confrontar a teoria com a prática: o pensamento sempre guiou a sua acção; e foi capaz de reformular a teoria à luz dos ensinamentos da prática...
Passados trinta e cinco anos da sua morte, é pena não termos uma edição crítica das suas obras (1). Cabral está morto e esquecido. Tanto na sua terra como em Portugal, em África como no retso do mundo. Digo-o com pesar. A sua existência (física) faz-nos falta, a todos nós. E é sobretudo duro ver que ele não teve ninguém, com a sua estatura humana, intelectual e moral, para o substituir à frente dos destinos do PAIGC e da Guiné independente, um sonho que ele de resto já não chegou a viver. É confrangedor ver, por exemplo, a deriva teórico-ideológico do actual PAIGC, que ele criou e ajudou a crescer... A criatura não sobreviveu ao seu criador... Não é caso único na história...
De qualquer modo, estes apontamentos que escrevi em tempos, nos finais dos anos 70, e que revi agora, são também uma pequena homenagem ao intelectual guineense que eu já admirava, quando despertei para a política e para a problemática da guerra colonial, a partir de 1961, com os meus quatorze anos, e que, por ironia, fui obrigado a combater, de armas na mão, ao ser mobilizado para a Guiné, oito anos depois, em 1969...
Devo reconhecer que sou apenas um leitor de Amílcar Cabral, e não um especialista. Não conheço ainda, de resto, a biografia escrito pelo Patrick Chabal, considerado o seu melhor biógrafo e um especialista do seu pensamento e acção. Tive o privilégio de conhecer, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje, o investigador francês, que vive em Inglaterra, e que fala o português... Estes apontamentos que a seguir se publicam são apenas um resumo crítico de alguns textos do Amílcar Cabral sobre a estratificação social da Guiné ... (LG)
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Amílcar Cabral, analista social, por Luís Graça
(i) A distinção cidade/campo
Em 1964, Amílcar Cabral fez uma sumária análise da “estrutura social” da Guiné colonial. Era uma análise tipicamente marxista, ou melhor, que usava conceitos sociológicos de inspiração marxista. Socorro-me de um texto que condensa diversas intervenções orais feitas por Cabral, em francês, num seminário organizado pelo Centro Frantz Fanon de Milão, em Treviglio, de 1 a 3 de Maio de 1964.
Estava-se ainda no início da “luta de libertação” (oficialmente iniciada em 23 de Janeiro de 1963, com um ataque ao aquartelamento Tite), mas o PAIGC já detinha, desde a sua criação em 19 de Setembro de 1956, uma larga experiência de organização e de luta política na clandestinidade, apesar da repressão da PIDE. Tinha também um ano e tal de experiência de luta armada.
Recorde-se, que de Janeiro a Março de 1964, as NT tinham lançado uma contra-ofensiva na Ilha do Como, com a Op Tridente, a maior que se realizou no CTIG, em 11 anos de guerra. Por outro lado, entre 13 e 17 de Fevereiro desse ano, o PAIGC realizava o seu primeiro Congresso, em Cassaca, em pleno Cantanhez, região que reclama como sendo a primeira “região libertada”.
Depois da
Batalha do Como (o primeiro grande embate do PAIGC contra um exército convencional, reforçado por importantes meios aéreos e anfíbios), o principal linha de infiltração de homens e material a partir da vizinha República da Guiné-Conacri passa para o célebre
Corredor do Povo (ou corredor de Guileje). A
Batalha do Como foi bem explorada em termos de propaganda, e contribui em muitos para criar um mito: João ‘Nino’ Vieira (que não participou directamente na batalha, ao que parece, por estar hospitalizado em Conacri).
Voltando ao texto de Amílcar Cabral, ele começa por fazer a clássica distinção entre o campo e a cidade. No campo, sinaliza dois grupos principais: (i) um, que ele chama semifeudal, representado pelos fulas; (ii) e outro, o dos balantas, que seria um grupo sem Estado, leia-se, sem poder político.
Entre estes dois grupos étnicos extremos haveria depois situações intermédias: por exemplo, (iii) mandingas e biafadas, de um lado; papéis e felupes, de outro (Os exemplos são meus).
Grosso modo, haveria uma coincidência entre o semifeudalismo e o islamismo, por um lado, e a ausência de organização estatal entre os animistas, por outro. O caso dos Manjacos, animistas, merece uma atenção à parte, uma vez que “à chegada dos portugueses mantinham já relações que se poderiam qualificar de feudais” (Cabral, 1976.24).
Quanto aos fulas, o fundador, dirigente e teórico do PAIGC fala deles em termos de uma forte “estratificação social”. Em primeiro lugar, temos (i) os chefes, os nobres e os dignatários religiosos (por ex., o Cherno Rachid de Aldeia Formosa); vêm depois, (ii) os artesãos e os jilas ou comerciantes ambulantes (que circulam pela Guiné, Senegal e Guiné-Conacri); finalmente, e na base da pirâmide social , (iii) os camponeses.
Sobre o grupo dirigente, Amílcar Cabral diz o seguinte:
“Os chefes e a sua comitiva têm ainda, a despeito da conservação de certas tradições relativas à colectividade das terras, privilégios muitos importantes no quadro da propriedade da terra e da exploração do trabalho de outrem. Os camponeses que dependem dos chefes são obrigados a trabalhar para eles um certo período do ano”.
Daí chamar aos fulas, aliados históricos dos portugueses, um grupo semi-feudal.
Os artesãos desempenham um papel importante na sociedade fula, constituindo um núcleo embrionário de uma indústria de transformação da matéria-prima: do ferreiro, na base da escala, até ao artesão do couro. Os comerciantes ambulantes (jilas) são os que têm, na prática, a possibilidade de acumular dinheiro. Por fim, os camponeses: em geral desprovidos de direitos, seriam os “verdadeiros explorados da sociedade fula”.
A estratificação da sociedade fula também pode ser vista a partir da família, extensa, que é a sua célula: a família de um homem grande é constituída pela morança; um conjunto de moranças formam uma tabanca; um conjunto de tabancas um regulado; e por fim, os regulados fulas estão associados ao chão fula (Leste da Guiné, compreendendo hoje as regiões de Bafatá e de Gabu), uma entidade territorial e simbólica, ligada à conquista.
Aqui a mulher não goza de quaisquer direitos sociais: participa na produção sem quaisquer contrapartidas; por outro lado, a prática da poligamia significa que ela é, em grande parte, propriedade do marido.
Estranha-se, não haver aqui uma referência ao
fanado feminino e sobretudo ao profundo significado sócio-antropológico que tinha (e tem) a Mutilação Genital Feminina entre os Fulas (mas também entre os Mandingas e os Biafadas). Será que Cabral tinha consciência das terríveis implicações, para a mulher, desta prática ancestral, e também aceitava tacitamente em nome do relativismo cultural, tal como os antropólogos colonialistas ? Não conheço nenhum texto em que o ideólogo do PAIGC tenha tomada posição sobre este delicado problema.
(ii) Os balantas, sociedade horizontal
O outro exemplo extremo é o dos balantas, um sociedade sem estratificação. É o conselho dos anciãos da aldeia (ou de um conjunto de aldeias, em geral ribeirinhas e próximas) que tomam as decisões relativas à vida comunitária. A propriedade da terra é da aldeia. Cada família recebe uma parcela para trabalhar. Os instrumentos de produção, por sua vez, pertencem à família ou ao indivíduo.
O balanta é monógama, apesar de “fortes tendências para a poligamia” (sic). A mulher tem mais liberdade e estatuto na aldeia balanta do que entre os fulas. Cabral também não refere, na ocasião, os seus rituais de passagem, a cultura da virilidade, o uso e o abuso entre os balantas do consumo do “vinho de palma” e das suas eventuais consequências (v.g., saúde mental, violência doméstica, comportamentos antissociais).
Ainda no que refere ao campo, Cabral refere a existência de um grupo minoritário de pequenos proprietários africanos que se teria revelado “muito activo no quadro da luta de libertação nacional”. Dos europeus nos campos ele não fala porque praticamente não existiam. Mas
existiam caboverdianos, com as suas pontas (hortas)… Porquê omiti-los ?
Recorde-se que Cabral era de ascendência caboverdiana e originalmente casado com uma portuguesa. Sabe-se que parte da administração colonial, pelo menos ao nível de posto administrativo e de circunscrição administrativa, é preenchida funcionário portugueses de origem caboverdiana. Seria interessante termos estatísticas sobre isso.
Nas cidades, haveria dois grupos distintos: (i) os europeus; e (ii) os africanos. Ao nível mais elevado, entre os europeus, estão os altos funcionários da administração colonial, a começar pelo governador geral, mas também os directores das empresas (por ex., Casa Gouveia, pertencente ao Grupo CUF; a NOSOCO, ligada aos interesses franceses). É um grupo restrito que está isolado do resto dos escassos milhares brancos que existiriam no início da década de 1960 (dois a três mil). A um nível intermédio, pode-se referir os demais funcionários públicos, os pequenos comerciantes, os empregados de comércio, as profissões liberais. Por fim, teríamos os operários diferenciados.
A estratificação entre os africanos seria mais complexa: em primeiro lugar, temos os funcionários superiores e médios (da administração colonial e das empresas), as profissões liberais, os empregados de comércio com contrato de trabalho e os pequenos proprietários agrícolas; depois, vêm os assalariados propriamente ditos: os empregados de comércio sem contrato, os trabalhadores dos portos, dos barcos e dos transportes, os trabalhadores domésticos ou criados (em geral, homens), os operários de pequenas fábricas e oficinas de reparações. Cabral não os considera como fazendo parte do “proletariado” ou da “classe operária”.
Há por fim os “sem classe”, que Cabral divide em dois grupos: (i) o dos mendigos, desempregados, prostitutas, etc. (poderia ser o nosso "lumpen-proletariado” se na Guiné houvesse um proletariado com consciência de classe, o que não era o caso, na altura); (ii) um segundo grupo, "que se revelou muito importante na luta de libertação nacional, e que é constituído por um número muito elevado de jovens, vindos recentemente do campo, que conservam laços estreitos com este ao mesmo tempo que entraram em contacto com a vida dos Europeus”.
Seria interessante conhecer-se, com detalhe, a origem social dos principais dirigentes, políticos e militares, do PAIGC: sabe-.se que alguns, como Luís Cabral, Aristides Pereira, Turpin, eram empregados das casas comerciais europeias (a Casa Gouveia, a Nosoco, etc.) que poderíamos considerar como o “front office” do colonialismo.
(iii) A dificuldade de mobilização dos camponeses
Posteriormente, em 1969, num seminário de quadros (3), Cabral teve oportunidade de precisar melhor o seu pensamento sobre os camponeses da Guiné que ele não considerava uma “classe social”, mas antes como uma “camada especial”, pessoas que vivem no campo (“mato”), que vivem da agricultura, ou seja, dos produtos que a terra dá.
Contrariamente ao pensamento maoísta, Cabral não considera os “camponeses pobres” – os que, cultivando a terra, não saem do círculo da pobreza, são roubados no peso dos produtos, pagam impostos e taxas aos chefes tradicionais, trabalham uns tantos dias para estes dirigentes semi-feudais, aliados dos “tugas”… - como a classe mais importante da Guiné, do ponto de vista da luta de libertação. A amarga experiência de Cabral leva-o a falar das dificuldades de mobilização do campesinato guineense:
“Ainda hoje, quando alguma coisa não corre bem, fogem e põem-se do lado dos portugueses, mesmo sendo pobres e infelizes” (Cabral. 1976.111).
Lembra ainda as diferenças que, a nível do campo, existiam na época em Cabo Verde e na Guiné. No primeiro caso, havia a propriedade individual da terra, enquanto que no caso da Guiné a terra pertencia, teoricamente, à comunidade, à tabanca. Além disso, havia também a grande propriedade (nas Ilhas de Santiago e de Santo Antão) e a pequena propriedade (por ex., ilhas de S. Nicolau e Brava). Também existia a figura do rendeiro, do camponês sem terra. Em Cabo Verde faria sentido a palavra de ordem:
“A terra a quem a trabalha”, mas não na Guiné. Aqui, além disso, há o factor étnico a ter em conta, e que vem complexificar a análise da estrutura social.
Cabo Verde e Guiné tinham em comum o facto de serem sociedades coloniais, ou seja, dominadas por um Estado estrangeiro, com as suas tropas, a sua polícia, a sua administração, os seus missionários, os seus antropólogos, etc.
“Somos um povo sem autonomia” (Cabral. 1976. 114).
Que tipo de sociedade representam os Balantas, pergunta Cabral. Estão
“talvez na fase de desagregação do comunismo primitivo, mas muito longe deste” (Canral. 1976. 115). Era uma sociedade que não conhecia o dinheiro, as relações mercantis, até aos finais do Séc. XIX. A moeda foi introduzida pelo colonialismo, o que modificou inevitalmente a sociedade balanta (e as outras, de outros povos animistas).
Já os fulas têm uma estrutura “feudal”, com chefes, com senhores, com gente que lhes está subordinada, os artesãos e os camponeses, ou seja, gente dos ofícios (“corporações”), e gente que trabalha a terra (e que na Europa do feudalismo se chamavam “servos”)… Mas seria inapropriado falar de feudalismo fula, porque a propriedade da terra não é individual, mas sim comunitária.
Usando a vulgata marxista, Cabral utiliza conceitos como “desenvolvimento das forças produtivas”, “infra-estrutura”, “super-estrutura”, “classe burguesa”, “classe operária”. etc. Mas, em geral, tem um discurso didáctico, em crioulo, procurando operacionalizar os conceitos e exemplificá-las. A sua linguagem procura fugir ao jargão, à
langue du bois, tão típica dos anos 60, entre os movimentos e partidos marxistas ou de inspiração marxista.
Era o Cabral um marxista ? Teríamos que ter em linha de conta o seu pensamento, a sua escrita, os seus discursos, a sua prática… Há quem diga que ele nunca foi verdadeiramente um marxista, como é o caso do seu principal biógrafo, o francês Patrick Chabal, que escreve em inglês e vive no Reino Unido.
Onde Cabral revela o seu melhor é como pedagogo, como educador, em intervenções orais, em crioulo, como no seminário de quadros de 19 a 24 de Novembro de 1969 (“Os princípios do Partido e a prática política”). Usando uma linguagem simples, coloquial, recheada de imagens, é aí que Cabral se revela como o grande comunicador, o grande sedutor que é:
“Na Guiné, por exemplo: por um lado há gente da cidade, por outro, gente do mato, pelo menos. Na cidade o que é que há ? Na cidade há brancos e pretos. Entre os africanos há altos empregados e empregados médios, que têm a certeza de que no fim do mês ganha o seu dinheiro certo. Têm aquela ideia de comprar o seu carrinho, como eu, por exemplo, que tinha o meu próprio carro. Com geleira [frigorífico], boa raça de mulher, filhos que vão ao liceu de certeza e que mesmo, se estudarem muito, vão para Lisboa.
“Depois, há aqueles empregadinhos que fazem o seu Sábado, o seu tinto e o seu bacalhau, que podem comprar o seu rádio transistor, as suas coisas. Depois há os trabalhadores de cais, reparadores de carros, podemos meter aí também os chauffeurs e outros que vivem um bocado melhor. Trabalhadores assalariados em geral. E depois há aquela que tem nada que fazer, que vive de expedientes cada dia, por todo o lado, que nem mesmo sabem que fazer para arranjarem maneira de viver. Quer gente de vida fácil, como as prostitutas, quer pedintes, trapaceiros, ladrões, etc., gente que não tem nada que fazer. Isto é que é a sociedade das cidades” …
O que tem em comum esta gente da cidade, empregada, com um certo estatuto e um certo nível de vida ? Estão
“todos agarrados aos tugas, fingindo ser portugueses o máximo que podem, até proíbem os filhos de falar outra língua em casa que não seja o português”…
Cabral está a falar para um auditório onde há gente (boa parte dos dirigentes e quadros do PAIGC) que veio desse meio relativamente privilegiado dos “empregados”, do universo (restrito) dos “assimilados”, o embrião de uma pequena burguesia africana. Conclui ele:
“Alguns de vocês, por exemplo, que eram empregados, mas que são nacionalistas, não é verdade ? Mas os interesses eram mais ou menos os mesmos, vivem sempre na mesma esfera, no mesmo grupo social” .
Tenho ideia que Cabral se movimentava (e pensava) melhor no campo do que na cidade, já que ele trabalhou como engenheiro agrónomo, na Guiné e depois em Angola, ao longo da década de 1950. Entre 1953 e 1956 fez o recenseamento agrícola da Guiné (…), e julgo que lhe veio daí a sua admiração pelos povos animistas, e em especial os balantas, os magníficos camponeses da Guiné, os grandes cultivadores de arroz.
Cabral utiliza o exemplo da sua própria origem social e da sua experiência pessoal, para melhor ilustrar os conceitos que usa na análise da estratificação social da população na Guiné e em Cabo Verde. Dá o exemplo dos trabalhadores portuários e dos transportes marítimos, que formam um outro grupo, distinto do primeiro:
“Vocês podem encontrar-se, conversar, mas sabem que não vão sentar-se juntos com eles à mesa para comer”.
O mesmo se passa no
“grupo dos tugas, por exemplo, as famílias do governador, do director do banco, do director de Fazenda, etc., não vemos aí nunca a mulher do tuga operário ou de qualquer um que é batedor de chapas. Só se ele tiver alguma filha muito linda, que toda a gente admira, e que de vez em quando vai dançar com a gente da alta. Mas a mãe, que não sabe ler nem escrever, não vai. Acompanha a filha à porta e sai. Vocês lembram-se de casos desses em Bissau”. E Cabral está a pensar nos famosos bailes da UDIB – União Desportiva Internacional de Bissau onde a só “a fina flor” colonial podia entrar, pelo menos até ao início da guerra…
Falando das gentes do mato, Cabral dá uma lição sobre os balantas, grupo que ele não só conhece, como agricultores, como admira, enquanto povo, que foi historicamente um povo resistente. Chama-lhes uma “sociedade horizontal”, isto, é, “que não classes por cima umas das outras”. Entre eles não há hierarquias. Os chefes foram uma invenção dos tugas, que lhe impuseram régulos fulas ou mandingas, nalguns casos antigos cipaios, leais aos portugueses:
“Cada família, cada morança tem a sua autonomia e, se há algum problema, é o conselhos dos velhos que o resolve, mas não há um Estado, não há nenhuma autoridade que manda em toda gente”. A sociedade balanta seria uma sociedade tendencialmente igualitária, que Cabral descreve nestes termos singelos :
“A sociedade balanta é assim: Quanto mais terra tu lavras, mais rico tu és, mas a riqueza não é para guardar, é para gastar, porque um indivíduo não pode ser muito mais que o outro”… Explicitando melhor: “
Quem levantar muito a cabeça já não presta, já quer virar branco, etc. Por exemplo, se lavrou muito arroz, é preciso fazer uma grande festa, para gastar”…
Já os fulas e os mandingas são sociedades verticais, estratificadas, têm os seus próprios chefes, que não foram impostos pelos tugas… Mas é bom que os camaradas saibam, acrescenta Cabral, que os fulas e os mandingas da Guiné não são verdadeiros fulas e mandingas…
Recuando no tempo, sabe-se que os mandingas vieram de fora e conquistaram o território do que é hoje a Guiné até à região de Mansoa… Os vencidos foram ‘mandinguisados’, assimilados, tornaram-se mandingas.
“Os balantas recusaram-se e muita gente diz que a própria palavra balanta significa aqueles que recusam. O balanta é aquele que não se convence, que nega. Mas não recusou tanto, porque existe o balanta-mané e o mansoane. Sempre apareceram alguns que aceitaram e foram aumentando aos poucos”, islamizando-se…
E aqui põe-se uma questão interessante: por que é que os balantas foram a grande base de apoio do PAIGC ?
Em 1969, Cabral não tem dúvidas na resposta: não é por eles serem melhores do que os outros, mas por causa do seu tipo de sociedade, horizontal, rasa, igualitária, composta por homens livres que querem continuar a ser livres, sem a “opressão dos tugas":
“O balanta é e o tuga por cima dele, porque ele sabe que o chefe que lá está, o Mamadu, não é nada seu chefe, é uma criatura do tuga. Portanto, mais interesse tem ele em acabar com isso para ficar com a sua liberddae, absolutamente. E é por isso também que, quando qualquer elemento do Partido comete um erro com os balantas, eles não gostam e zangam-se depressa, mais depressa do que qualquer outro grupo” (Cabral, 1976. 125).
Luís Graça
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Nota de L.G.:
(1) Vd. Obras ecolhidas de Amílcar Cabral, de que foram publicados 2 volumes pela Seara Nova
CABRAL, A.- Unidade e luta (compil. Mário de Andrade).
Lisboa : Seara Nova, 1976-1977 (Obras Escolhidas de Amílcar Cabral). 1º Volume: A arma da teoria, 249 pp. 2º volume: a prática revolucionária, 224 pp.