Queridos amigos,
Tinha saudades de percorrer a pé Vila Franca, sentir o vetusto, passear junto do Tejo e visitar núcleos artísticos tão interessantes, impressiona-me imenso a arquitetura da Fábrica das Palavras e do Museu do Neorrealismo, que conheço desde a primeira hora, visitei-o de alto a baixo na companhia de David Santos, um museólogo de gabarito, em qualquer parte do mundo. Perguntei pela atual diretora, Raquel Henriques da Silva, uma investigadora de truz, não estava, fica para a próxima. Sentei-me num jardim como igualmente me espequei numa varanda na Fábrica das Palavras, sempre com textos de Alves Redol e a literatura da guerra da Guiné do Álvaro Guerra a fazerem-me companhia. Deste pensei num romance posterior, Café Central, vou revê-lo antes de preparar o próximo passeio, sempre em segurança, ditame máximo da pandemia.
Um abraço do
Mário
Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa
Mário Beja Santos
Na roda da fortuna, aconteceu ter relido dois romances de Álvaro Guerra relacionados com a ambiência vilafranquense, li igualmente Avieiros, de Alves Redol, se bem que o seu livro que eu mais revisito é Barranco de Cegos, por minha conta e risco a sua obra-prima. Agora que sou portador de um cartão em que pago 20€ e posso visitar 19 concelhos da área metropolitana de Lisboa, ponderei uma visita segura a Vila Franca de Xira, estudei o que me interessava ver, almocei ao meio-dia, apanhei comboio em Roma-Areeiro, transbordo para o comboio do Carregado, entrei neste santuário de campinos ainda muita gente amesendava. A estação da CP é mais do que bonita, espelha aquela linha arquitetónica concebida pelo arquiteto Raúl Lino que acreditava na existência de uma casa portuguesa, com mansardas muito nossas, arrebiques nos telhados, varandas quase medievais. Ali fiquei especado a dimensionar o todo, e fui bisbilhotar a azulejaria de Jorge Colaço, um primor que se vai estendendo por muitas estações, havia o cuidado de azulejar tendo em consideração o local, veja-se a tipicidade do que ele forjou para esta estação, e digam lá se não é um regalo para os olhos.
Preparava-me para visitar o Núcleo de Arte Sacra que dá pelo nome de Núcleo do Mártir Santo, na Igreja de S. Sebastião, fundada em 1576 pelo dito jovem monarca, por voto à Peste Grande de 1569. Veio o Terramoto e foi reconstruída. Entre a estação e o templo religioso já passei por ruas de boa escala, vivendas familiares, outras rés-do-chão e primeiro andar, aqui e acolá a arquitetura dos anos 1950 e 1960, com todo o desengonço da escala. Não vi a Arte Sacra porque era terça-feira e só abre de quarta a domingo, postei o olhar na pedra de armas de D. João VI proveniente do antigo Palácio dos Sousas (Palácio da Vilafrancada, terá sido aqui que D. Miguel preparou o seu primeiro golpe que D. João VI ainda pôde travar).
O Museu do Neorrealismo tem farta história, evoluiu a partir de um centro de documentação, tive a dita de ir conhecendo o desenvolvimento graças a um companheiro de colégio, o António Mota Redol, a quem a cultura portuguesa muito deve. É um edifício inspirador, tem a assinatura de Alcino Soutinho, e o seu interior é todo do século XXI, percorrem-se aquelas linhas perfeitas, sobe-se ao terceiro andar e é sempre um gosto rever a exposição permanente intitulada “Batalha pelo conteúdo”, está ali o elementar de como nasceu este movimento de Artes Plásticas, influente entre as décadas 1930 e até ao final da década e 1950, abarcando todos os géneros literários, diferentes artes plásticas, ali se registam o que mais determinante se escreveu e se faz justiça a nomes como Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Virgílio Ferreira, Júlio Pomar, Manuel Ribeiro de Pavia, Vespeira, Rogério Ribeiro, Querubim Lapa ou Alice Jorge. Por ali andarilhei, estava a ser montada uma exposição, desci ao rés-do-chão para visitar uma exposição alusiva à Biblioteca Cosmos, passei de raspão pelo auditório, tomei um café e fui namorar o recheio da livraria. Abençoada visita!
Chegou a hora de ir visitar o Museu Municipal, sedeado numa casa apalaçada setecentista, que não foi concluída, marcada por algum barroquismo. Consta que já foi tribunal, cadeia, escola, coletividade e agora é um museu. A pandemia alterou a vida cultural, vinha à espera de me deliciar com as coleções de pintura e gravura, altamente interessantes e com peças de mérito, vinha para ver uma exposição sobre o Oculista Nunes, uma das mais emblemáticas lojas de ótica do concelho, os herdeiros doaram esses objetos de trabalho que podemos agora admirar desde focómetros passando por óculos de ensaio para lentes astigmáticas, esferómetros e cravadeiras de ourives e ótica. Mas a grande surpresa foi a de que quando o imóvel foi recuperado e adaptado a espaço museológico convidou-se o pintor João Ribeiro a pintar 44 telas que foram colocadas junto ao arco da antiga igreja dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo. Tirei imagem desta bela porta vista do interior do museu. Olhei para o relógio, quero regressar no sentido inverso ao tráfego, hesito se não devo ir ao Celeiro da Patriarcal ver uma exposição de desenho de humor ou se devo ir diretamente para a Fábrica das Palavras, decidi prontamente por este itinerário porque a nova biblioteca, inaugurada em 2014, está junto do Passeio Ribeirinho, beija o Tejo e sugere que se volte em breve para ir a passear pelo menos até Alhandra, sempre com a campina exuberante, terreno fértil ali não falta. E fui maravilhar-me com a obra do arquiteto Miguel Arruda. Ora vejam.
Pus-me à varanda a ver o Tejo correr para o oceano, já congemino novo passeio, ainda tenho uma exposição do desenhador de humor António para ir visitar, chama-se entrelinhas. Como escreveu Arnaldo Saraiva a propósito deste desenhador que é presença permanente do Expresso: “As produções de António mostram bem que nenhum rosto é o que julgávamos ver ou desejávamos ver; há sempre um desconhecido ou um estranho onde julgávamos encontrar o familiar e o ‘normal’. E o que surpreendemos nos outros talvez seja o que ainda não surpreendemos em nós”. Saio da Fábrica das Palavras e contemplo este Álvaro Guerra de quem não me importaria vir um dia aqui falar da sua literatura da Guerra da Guiné, de que foi mestre e esteve entre os primeiros dos primeiros a descrever a tragédia que nós vivemos e que não esquecemos.
A luz começa a empalidecer, está na hora de regressar, desta feita despego-me do lado do Tejo, e o comboio depois inflete para Roma-Areeiro, sei que vou voltar depressa, e com muito prazer.
Nota do editor
Último poste da série de 27 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21952: Os nossos seres, saberes e lazeres (438): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (2): (Mário Beja Santos)