Caro Luís,
Muito me impressionaram as imagens trazidas pelo nosso camarada Marques Lopes sobre os "restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram".
Dei conta do meu grito de indignação partilhada no meu blogue e conclui assim:
"Um país que não respeita os corpos dos mortos que mandou combater por ordem do governo da pátria, ou do governo do raio do império, permitindo dar a dignidade do luto pelos seus, é um país sem vergonha perante os vivos porque despreza os seus mortos."
Fazendo o meu percurso de dor e repulsa pelo abandono, através das imagens, reparei que a lápide do "lendário Capitão Comando João Bacar Jaló" (tombado no tempo em que ainda estava na Guiné, tendo-lhe deus - o deus da guerra - poupado, desta forma piedosa e antecipadora, a ignomínia de ser fuzilado, sem julgamento, pelo PAIGC e no pós-independência, isto se não tivesse podido fugir e voltar a estar sob as ordens de Alpoim Calvão e Spínola no MDLP e a participar na rede bombista) se apresenta não só com melhor aspecto de conservação, como é diferente, nas inscrições, das dos restantes camaradas mortos em combate, por acidente ou por doença.
Quanto à conservação, entendo as razões aventadas - terá por lá família que a cuide e lhe dê lustro. Quanto à inscrição, já não entendo a falta, para mim incompreensível, da usada nas outras lápides do PELA PÁTRIA.
Talvez o camarada Marques Lopes tenha indagado das razões e possa esclarecer se a lápide é a original ou não terá sido, para que se compreenda a sua diferença, refeita posteriormente em trabalho de reescrita histórica. Mera curiosidade, já que nada adianta ou atrasa quanto à sorte do Bacar Jaló que, neste momento, tanto lhe fará quais os dizeres da sua lápide funerária.
Também fiquei perplexo por, nas legendas das imagens das lápides, o camarada João Bacar Jaló ter tido direito ao epíteto honroso de lendário com que foi distinguido, no blogue, em realce relativamente aos outros nossos camaradas tombados e com os restos para ali abandonados. Que lendas teve este camarada que o diferenciem, na sorte e na missão, dos outros camaradas? Além da lenda do mistério da lápide diferente, o que se alude ou sugere? Combateu mais e melhor que os outros? Foi generoso e humano para com os prisioneiros? Terá sido o Che da contra-guerrilha?
É que das lendas de Bacar Jaló nada sei. Sei apenas que foi um valoroso e impiedoso guerreiro. Apenas me encontrei com ele e os seus guerreiros ou em trânsito ou quando ele se albergava momentaneamente nos quartéis onde estive ou então (isso, várias vezes) em Bissau, na messe de oficiais, quando ele entrava lustroso dos galões novos e arrastando atrás de si uma multidão de esposas bem ataviadas, provocando a debandada enojada da maior parte das esposas dos oficiais metropolitanos ali a tomarem chá e jogarem canasta e que não queriam tais misturas.
E quantos oficiais ao serviço do PELA PÁTRIA olhavam de imediato para o relógio, metiam logo fim ao king ou ao bridge e zarpavam para o cumprimento imediato das obrigações militares no Estado Maior, antes que o Jaló se lembrasse de abancar na mesma mesa?!
Será esta a lendaque referes? Mas, se foi, isto não é lenda, viram os meus olhos, repetidamente e então fazendo-me rir que nem um perdido pelo insólito (mas não era por mal, os copos bebidos é que já eram - sempre - em demasia) e que a terra, se não for o mar ou o ar, há-de comer.
Desculpa as minhas curiosidades. Que são, apenas, isso mesmo.
Grande abraço para ti e saudações camaradas e amigas para todos os estimados tertulianos.
João Tunes
Comentário de L.G.:
João:
(i) O teu olho clínico não deixa escapar nada. E ainda bem, que alguém exerce essa função de vigilância (crítica) sobre os nossos dizeres, a forma e o conteúdo. Claro que se não trata aqui, como no goulag ou na caserna do antigamente, de vigiar e punir. A nossa paixão é a da verdade e do rigor. Felizmente que, não sendo um partido revolucionário ou contra-revolucionário, não sendo um movimento social, nem sendo uma corporação, não sendo sequer um grupo jantarista e excursionista, a nossa tertúlia (virtual) não precisa de comissário político, ideólogo, líder, professor, educador, animador sócio-cultural, pai, mãe ou outras figuras que tais. Liberdade de escrita, liberdade de crítica: eis o nosso lema (implícito na nossa prática bloguista).
(ii) Dito isto, tens toda razão: o adjectivo lendário aplicado ao Bacar Jaló é tão excessivo como a ideia do Marques Lopes me mandar condecorar no 10 de Junho com cruz de guerra com palma e tudo!... Que grande amigalhaço!...
A verdade é, segundo consulta ao meu dicionário etimológico, lendário deriva de lenda, e este vocábulo por sua vez vem do latim medieval legenda que queria significar "vida de santo"... Imagina só!
(iii) Eu não sei se o Bacar Jaló era ou não era em vida um bom muçulmano, mas santo é que eu não posso dizer que ele era (pelo menos, santo da minha devoção), a avaliar, de resto, por testemumnhos como o teu e o do Jorge Cabral (este, para mais, tinha de o gramar como hóspede em Fá Mandinga)...
(iv) Para abreviar razões, e poupar o meu e o teu tempo: O raio do adjectivo saltou-me do saco lexicográfico, por puro automatismo. Lapsus linguae ou acto falhado, eis a questão ?
(v) Pensando bem, sou capaz de inclinar-me mais para a interpretação psicanalítica: eu, tropa-macaca, tão pacifista como tu, tão suspeito de ser do contra como tu - ao ponto de me apodarem de camarada sov - também tinha as minhas fraquezas (humanas), quiçá, as minhas fantasias sadobelicistas... E até um dia tive, por uma fracção de segundo, o desejo secreto de comprar uma Kalash aos gajos dos comandos africanos, acabados de chegar do triste safari de Conacri... Imagina como é o psiquismo de um gajo!... Felizmente que o meu lado solar, racional, diurno, se impôs ao hemisfério lunar, romântico, irracional, nocturno, na outra fracção de segundo em que eu confrontei o desejo com a realidade... Preferi comprar 10 garrafas de uísque com os 500 pesos que me pediam pela bela Kalash...
(vi) É óbvio que o Jaló não merece o epíteto. Chamar-lhe lendário (logo, santo) era pô-lo no Olimpo dos guerreiros e mandar o resto dos nossos camaradas, insepultos, para a miserável vala comum... Era tirar-lhes, como tu insinuas, sugeres ou até afirmas, o resto de dignidade que é devida a um morto pela Pátria, um morto, qualquer morto...
(vii) Depois desta autocrítica mal amanhadas, espero que me releves a falta... de leviandade. Prometo ter mais cuidado com o verbo.
(viii) Escusado será dizer-te que é sempre um prazer ler-te e (re)ver-te mesmo à distância de muitos bytes (ou baites), enquanto a gente não se mete nas nossas tamanquinhas e reserva aí um lugar numa esplanada à beira Tejo para a prova real do blogue, fora nada... Um abraço caloroso. Luís.