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Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 > O Furriel Miliciano Luís Casanova, o fotógrafo em actividade. Em primeiro plano, uma das crianças de Missirá. "O Casanova é um dos meus mais agudos problemas de consciência. Chegou no final de Agosto [de 1968] a Missirá e, progressivamente, tornou-se o meu interino. Chegou muito triste, procurando estudar seres humanos e situações. Depois levantou voo, foi imaginativo e um grande colaborador. Distrai-me e não dei pela sua exaustão. Quando partiu com um colapso nervoso é que me apercebi do peso da sua ausência. Ele foi a minha rectaguarda, confiei-lhe as contas e a sorte dos aquartelamentos sempre que estava no mato" (BS).
Foto e legenda: ©
Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.
Belíssima capa do célebre livro policial de Agatha Christie, passado em África, no Nilo, no Egipto, O
Barco da Morte. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 4). A propósito deste tipo de literatura, escreve o nosso Beja Santos: "No torpor do cansaço, ainda remexo nos meus policiais de devoção, onde incluo Ellery Queen, Frank Gruber e Mickey Spillane. Um dia destes, falo-vos da companhia que estes autores consagrados de uma literatura injustamente classificada como
entretenimento, me dão nos silêncios destas noites de Missirá, ainda poupadas às flagelações".
Foto: ©
Beja Santos (2007). Direitos reservados.
42ª Parte da série
Operação Macaréu à Vista, da autoria de
Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 21 de Março de 2007.
Caro Luís, para além dos livros do costume que vêm citados neste texto, segue uma cartinha de um tal Bacari Cissé diz o seguinte:
"Meu querido alferes, faça-me o favor de arranjar um livro da 1ª classe que eu também andava na escola mas peço-te este livro pelo teu bom nome que ouço constantemente. Os teus amigos que me dizem sempre do teu bom nome. Eu chamo-me Bacari Cissé, o teu soldado Quebá Cissé mora na casa do meu irmão".
Não seria mau voltares a insistir na tertúlia com a revelação deste tipo de mensagens, pois seguramente todos nós recebemos milhares de pedidos, prova de confiança nestes militares que por acaso até faziam a guerra mas que contribuiam para moldar o quotidiano de uma sociedade em movimento. Sugiro como ilustrações duas fotografias de crianças que te enviei no conjunto de fotografias do Luís Casanova. Hoje retomamos a prosa habitual mas o formato epístolar reaparecerá em breve.
Um abraço do Mário.
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O Tigre volta a rugir
por Beja Santos
No fim de Abril [de 1969], enquanto se reconstroem a um excelente ritmo as cubatas e os abrigos estão de pé, prontos para nova flagelação, a burocracia tolhe-nos os patrulhamentos e as emboscadas. São os autos de abate, infindáveis, são os autos por ferimentos em combate, o Setúbal reclama peças do Unimog, o Alcino recorda que desapareceram mais dois cantis e seis carregadores, a população civil está novamente sem arroz devido à falta de barcos já que o Geba se transformou numa auto-estrada que transporta a toda hora novos contigentes militares.
O sector L1, no rescaldo da
Lança Afiada (2), prepara-se para ir confirmar os resultados nas matas que envolvem Xitole, Mansambo e Xime. Começa a chuviscar quase todas as manhãs, felizmente os blocos de adobe estão prontos e protegidos por oleados, aproveitando-se todas as abertas para a conclusão das obras.
Com o auxílio do furriel Pires enviei para Bissau a resposta a novos quesitos sobre o recurso interposto da minha punição: voltei a explicar todas as medidas de segurança tomadas entre Agosto e o presente, as actividades de arrumação em função das infra-estruturas existentes, o meu relacionamento com a população civil nesta situação original do aquartelamento estar submetido ao funcionamento de uma tabanca mandinga onde pontifica a vontade do régulo. O meu abrigo está praticamente concluído, o Teixeira reboca, o Gibrilo põe esteiras no tecto, Tomani Sanhá e Ussumane Baldé consolidam as frestas por onde a Dreyse pode fazer fogo.
Eu trabalho no abrigo do Casanova, são 10h da noite, excepcionalmente recebo o chefe da tabanca Mussá Mané que reclama uma coluna para em desespero ir tentar encontrar arroz na região de Galomaro ou mesmo Bafatá. Estão presentes Quebá Soncó e Domingos Lopes da Costa que ajuda a interpretar as frases mais difíceis. É nisto que se ouve ao longe o vomitar de duas
costureirinhas, o estrondo de uma explosão, silêncio e a seguir a cadência de tiros isolados que nos pareceram pistolas. Pergunto de onde vem este fogo e Quebá responde prontamente que é do outro lado do rio, em Mero ou proximidades.
Pimbas: amor com amor se paga...
Previa sair para Mato de Cão às 4h da tarde e de imediato altero a agenda da saída, tendo convocado 30 homens às 6h da manhã, com rações de combate e água para 24 horas. Mussá Mané, que de manhã sairá para Finete com civis armados de Mauser, leva uma carta para o Pimbas onde terei escrito o seguinte:
"Meu Comandante, há a registar fogo a noite passada na região de Mero. Ou foi gente da população a perseguir um grupo de Madina ou foram tropas de Bambadinca a emboscar grupos que vieram reabastecer-se. Vou de manhã cedo saber o que se passa do meu lado e depois sigo para Mato de Cão. Por favor, esclareça o que se passou e dentro de dois dias falamos".
Chuvisca teimosamente quando vamos directamente de Missirá pela estrada que leva à Aldeia de Cuor subindo para Undarael, contornando os palmares de Gambiel, subindo até Bucol, descendo até ao Geba em frente a Fá Mandinga e pela estrada da Aldeia de Cuor até Cansonco. Não há indícios de presença humana, com os binóculos vejo as populações a cultivar as bolanhas à volta de Mero e Fá Balanta. De Gã Joaquim descemos até Flaque Dulo, depois Boa Esperança e sempre a contornar a bolanha chegamos ao fim da manhã a Finete.
Reuno-me com Bacari e peço-lhe conselho. Para Bacari terá sido uma refrega entre balantas já que o tiroteio só envolveu armas soviéticas. Ao amanhecer, ele fora até junto ao rio, e os trabalhos agrícolas decorriam normalmente em Santa Helena e Ponta Nova. Aproveito para ver as obras em Finete e partimos para Mato de Cão. A estrada está visivelmente marcada pela presença humana e vestígios de vacas, a chuva ajuda-nos a interpretar o terreno molhado entre Gambaná e os palmares de Chicri. Curiosamente, o grupo que recentemente passou por aqui prosseguiu até junto dos palmares de Mato de Cão e junto do pontão de Saliquinhé subiu para Madina. Tomo nota, em breve vou esperá-los aqui, dentro do mato cerrado.
Voltámos ao fim da tarde e Mussá Mané entrega-me uma carta do Pimbas e um maço de correio. Diz o Pimbas:
"Não te preocupes, não fomos nós nem o pelotão de Fá. Dei instruções para esclarecer a situação. Não temos meios para controlar toda a margem do rio, vê se os emboscas e divides connosco as vacas que apanhares. Aparece, pois precisamos de ti numa operação. Por favor, não peças mais arame farpado, nem cimento, nem munições. Tens sido um privilegiado, se um dia fôssemos atacados tu terias a obrigação de nos vir cá trazer os cartuchos que nos fazem falta". Mal sabia o Pimbas que na noite de 28 de Maio iríamos cumprir a nossa obrigação com o BCAÇ 2852.
Pondo o correio em dia
Lavado e jantado, examinada a escala de reforços, tendo discutido a divisão de tarefas administrativas para a manhã seguinte, leio o meu correio . Tenho labaredas e queixumes de familiares. A Cristina fala na eventualidade de um casamento de procuração e vir dar aulas em Bissau. Recordo que nessa noite, quando responder à Cristina irei pedir-lhe uma certidão completa narrativa numa Conservatória do Registo Civil ali para S. Vicente de Flora, numa travessa íngreme que leva a Santa Apolónia. Também nessa noite irei pedir à minha mãe uma certidão de baptismo.
O Major Bispo, antigo 2º Comandante de Batalhão, escreve-me de Bissau onde está colocado, falando-me na eventualidade de, quando cessar a minha comissão em Missirá o ir ajudar no plano de reordenamentos de população, um pouco por toda a Guiné. Estranho a oferta, naquele tempo ainda se cumpriam 12 meses no teatro de operações e outros 12 em teatros de instrução ou secretaria, mas já se falava também que o comandante-chefe teria decidido que essas rotações iam findar.
Um tribunal militar em Bissau informa-me que vou ser chamado a depor no julgamento do nosso Ieró Djaló que adormecera na
Anda Cá e deixara fugir o Aruma. É uma noite plácida, tenho o corpo entorpecido a reclamar na quietude uma ou duas horas de leitura.
As crianças de Missirá através da poesia de Ruy Cinatti
Começo pela
Crónica Cabo-verdiana, um livro do Ruy Cinatti escrito com o pseudónimo de Júlio Celso Delgado, datado de 1967. Trata-se de um relato forjado de um furriel açoreano colocado no Mindelo. É uma reconstituição brilhante da cultura cabo-verdiana e inclui um dos mais belos poemas que até hoje vi dedicado ao sofrimento infantil:
Que vêem os meus olhos senão o que vêem?
Barriga de esfera
à espera.
As pernas, dois ossos
mais estreitos que os pés.
Bracinhos-gravetos
que tampouco servem
para acender o lume.
E olhos enormes sem fundo na febre
e os dedos ruídos que enganam a fome.
São estes os filhos de Cabo Verde,
gritando na noite angústias sem nome!?
Que vêem meus olhos senão o que vêem?
A culpa dos pais a cair de bêbedos,
das mães que se vendem...
A culpa de quem nem sempre tem culpa?
Que vêem os meus olhos senão o que vêem?
As crianças riem,
correm, pulam, cantam
e jogam à bola.
Volteiam nas ondas melhor que os delfins.
E quando anoitece
na calma das ilhas
dormem sonos livres
de sonhos malévolos
Que vêem meus olhos senão o que vêem?
Alguns atletas
por via da raça
e de alguma carne.
Que vêem os meus olhos senão o que vêem?
Todos sabem ler
e decoram versos!
Que vêem meus olhos além do que vêem?
Todas têm alma
que oferecem, de graça,
a quem lhe quer bem.
São estas crianças
(mas quantas não morrem...)
que correm os mares
e marcam o mundo
com a nossa presença!
As crianças de Missirá, tenho na consciência, não passam fome e os meus olhos vêem crianças que brincam e labutam, que auxiliam e querem aprender. É um tempo em que procuro conhecer os costumes dos mandingas. Por isso passo dos poemas de Cinatti para um clássico da antropologia social:
Padrões de cultura, da Ruth Benedict.
A famosa antropóloga recorda neste ensaio que nós, ocidentais andamos polarizados pela crença na uniformidade da conduta humana. O branco, em contacto com outras culturas, está convencido que os seus padrões de cultura sairão vencedores. Estamos cegos perante outras culturas, agarrados ao mito de que com os instrumentos da nossa civilização subordinaremos os outros graças a padrões superiores. Daí a necessidade de estudarmos as heranças culturais, matriz da tolerância e do diálogo entre culturas, cimentando os valores da diversidade. Este precioso ensaio a três povos bem diferenciados é um ponto de partida para se entender a relatividade social, a doutrina da esperança e de confiança em padrões de vida coexistentes, pondo-se assim termo ao racismo, à exploração colonial às superioridades religiosas e a outras formas de fanatismo. É bom ler Ruth Benedict e depois os usos e os costumes dos mandingas, procurando conhecer melhor estes homens que se movem com andar garboso como se fossem filhos de reis.
Às vezes fazem-me falta, mesmo muita falta, muitos dos livros consumidos pelas chamas, é uma saudade do retorno aos clássicos, desde o Padre Vieira, a Cervantes, a Moliére. Paciência, os entes queridos estão a reenviar combustível, o meu padrinho já escreveu a dizer que um barco há-de chegar a Bissau com William Faulkner, Henry James e William Golding, entre outros. O Comandante Teixeira da Mota faz saber que há mais estudos guineenses a caminho. Imprevistamente, o Carlos Sampaio manda-me
O Estrangeiro, de Albert Camus.
Sou um homem bafejado pela riqueza da amizade. No torpor do cansaço, ainda remexo nos meus policiais de devoção, onde incluo Ellery Queen, Frank Gruber e Mickey Spillane. Um dia destes, falo-vos da companhia que estes autores consagrados de uma literatura injustamente classificada como
entretenimento, me dão nos silêncios destas noites de Missirá, ainda poupadas às flagelações.
Os ataques, grandes e pequenos, serão uma constante em Julho, Agosto, Setembro e Outubro. Convém deixar esclarecido o leitor que aquele tiroteio em Mero, segundo apurou a força que foi o local e falou com o chefe de tabanca, tinha a ver com dois balantas que vinham numa coluna de Madina e que fugiram aos rebeldes. Tinham-se apresentado em Bambadinca e confirmaram que Madina/Belel estava em fase de reequipamento, trabalhando com o bigrupo de Banir e de Sara-Sarauol, preparando-se para uma ofensiva no Cuor.
Maio, o mês que vai começar, exigirá constantes acompanhamentos a essa auto-estrada do Geba, todos os dias vemos passar militares que irão preencher posições em todo o Leste. Nessas manhãs frias, quando eu me perfilo à sua passagem e os saúdo com entusiasmo, interrogo-me se um dia eles se recordarão destes vigilantes obscuros, estes anos da guarda que descem dos palmares até ao terrafe para lhes desejar saúde e uma boa missão.
Este Maio que vai começar será acompanhado de muitos tiroteios e lá para o fim tudo irá mudar em Bambadinca com o fim da sua inexpugnabilidade. Vamos ver.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 13 de Abril de 2007 >
Guiné 63/74 - P1657: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (41): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (3)
(2) Sobre a Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores, no
triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março de 1969), vd. os seguintes posts:
31 de Julho de 2005 >
Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 -
CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 -
CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 -
Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal