terça-feira, 17 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23270: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte III

1. III Parte da publicação do texto de memórias intitulado "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte III


Com a Companhia de Comando e Serviços já quase toda no Pelundo por alturas do mês de setembro, fui mais o Médico e um Sargento para os Adidos. Por esta altura, eu já tinha reservado viagem de férias ao Continente. Aconteceu também, adoecer com sintomas de apendicite, e com os Médicos do Hospital Militar a querer que eu embarcasse o mais rapidamente para Lisboa de modo a poder aqui ser observado.

Logo em Bissau me deram uma injeção anti-inflamatória, e mal cheguei a Lisboa dirigi-me ao Hospital Militar Principal para ser tratado. Aproveitei também passar pelo Porto antes de ir visitar meus pais e demais família, ir medicar-me ao Hospital Militar desta Cidade onde por sinal havia realizado o meu estágio. Devo dizer ainda, que foi nestes dois Hospitais Militares que eu passei meu tempo antes de embarcar para a Guiné.

Nesta minha passagem pelo Porto, fiquei uma noite numa República chamada “Deixa cá Ver”. Nesta República passei muitas noites durante a minha permanência no Porto durante o meu estágio, convivendo com estudantes universitários de vários cursos e de várias regiões do País. Aqui assisti a muitos serões de debates políticos. Nela encontrava-se um jovem também de Foz Côa que era como um irmão para mim e eu para ele. Criados na mesma rua e cuja família se encontrava ligada à minha por laços muito fortes. Nunca esquecerei na minha vida o quanto ele me ajudou naquela época. Também tentei ser prestável aos frequentadores da República dando algumas injeções a quem por vezes necessitava. Fui muito acarinhado por todos.

Aconteceu nessa noite de passagem mais uma vez por lá vindo da Guiné, para se gerar discussão sobre a guerra. Verifiquei como as notícias eram destorcidas. Falaram-me em acontecimentos que não eram verdadeiros. Eu vindo da Guiné três dias antes, tive que fortemente os desmentir dizendo-lhes que aquelas notícias eram totalmente falsas. Foi difícil convencê-los. Para eles, já em 1969 a Cidade de Bissau encontrava-se cercada por todos os lados. Já bastante melhor das dores e febre que me traziam debilitado, fui descansar e continuar o meu tratamento em Foz Côa junto da minha família. Foi muito bom para mim ter vindo de férias naquela altura até porque sabia que logo que chegasse a Bissau, teria que apanhar escolta que me levasse para o interior Norte da Guiné e para a aldeia do Pelundo.

Passados os meus repousantes dias de férias e com o estado de saúde melhorado, lá apanhei o avião em Lisboa de regresso à Guiné.

Mal cheguei ao aeroporto de Bissau, um jipe esperava-me para me conduzir até ao Quartel dos Adidos onde uma escolta já se encontrava pronta para me levar, mais uns soldados que tinham vindo a Bissau à consulta externa bem como, mantimentos para as nossas tropas do Batalhão.

Cheguei ao Pelundo já ao fim da tarde. Ao contrário de Buba onde tinha estado quinze dias conforme já aqui referi, o ambiente aqui era diferente bastante calmo. Em Buba, só por duas tardes consegui ter algum descanso e confraternizar com companheiros militares, mas somente, dentro do arame farpado. Não tomei conhecimento de nada daquela aldeia. Ao contrário, ao chegar ao Pelundo vi logo à entrada da aldeia soldados confraternizando com jovens locais. É certo que para Buba fui de helicóptero que me deixou já dentro do Quartel e da mesma forma de lá saí para Bissau.

Como uma das minhas missões era fazer ação psicológica com a população, verifiquei que seria um bom lugar para o meu feitio e gosto de conviver e aprender os hábitos de vida daquelas gentes, iria ser bom.

Também só agora iria tomar conhecimento próximo com os militares da minha CCS e, da Companhia operacional 2886 do meu Batalhão que, juntamente com a Companhia de Comando, se encontrava no mesmo local.

Após deixar a minha bagagem no abrigo onde ficaria alojado juntamente com quase todos os Furriéis da CCS, fui até ao Posto Médico reencontrar-me com todos da minha equipa (Médico, Cabo Enfermeiro e Maqueiros).

Depois de os cumprimentar e deitar uma olhadela ao edifício que mais não era que um barracão um uma parte mais ampla que funcionava como sala de consultas e tratamentos e, ao lado, uma outra divisão separada com porta para o exterior que servia de armazém. No mesmo local e separados por uma ruela, ficavam as messes de Oficiais e de Sargentos e, num outro edifício, os quartos dos Comandantes (Major e Tenente Coronel).
 
Mais afastados, encontravam-se os alojamentos da Companhia operacional 86. Todos estes espaços se encontravam cercados com arame farpado tendo à sua entrada uma guarita com sentinela.
Separados por uma estrada que vinha desde o início da povoação, encontrava-se o novo Quartel ainda em construção, mas já com algumas funcionalidades.

Este quartel situava-se num amplo espaço plano com os abrigos à prova de morteiros nas paredes externas e espessura normal nas paredes voltadas para o interior do mesmo. Estes abrigos que a maioria eram os dormitórios de todos nós menos dos comandantes como já descrevi, circundavam o quartel em formato octogonal. Atrás com um espaço ainda considerável era cercado por arame farpado que, creio, porque nunca perguntei nem observei, que fosse eletrificado como acontecia em Buba.

Num destes abrigos e próximo da entrada do quartel, veio mais tarde a funcionar como Posto Médico. Nele dormiu o Médico desde a sua chegada até ao fim da Comissão.

Não resisti de, logo nesse fim de tarde e após o jantar, dar a minha primeira caminhada pela rua principal e juntar-me a um grupo de soldados mais um Alferes de origem cabo-verdiana que confraternizavam com jovens locais. Este Alferes que só lá conheci, era de apoio ao Comandante e detentor de todo o sistema de informações. Profissionalmente meu colega.

Logo no dia seguinte, apresentou-se-me uma jovem dizendo-me que seria ela a tomar conta da minha roupa. Nem tive hipótese de escolha. Disse-me que seria ela e mais ninguém e que já tomava conta da roupa do Médico, do Major e do Comandante e que só ela tinha autorização de entrar no Quartel buscar e trazer roupa. Todas as outras lavadeiras ficavam fora do arame farpado para receberem e entregarem roupa. Esta jovem de nome Judite tornou-se uma pessoa muito importante para mim durante toda a Comissão, e lhe serei toda a minha vida grato por tudo o que fez por mim, lhe devo o meu bom estado mental com que regressei daquelas paragens. A ela me referirei com mais pormenores na parte final desta minha narrativa.

Tive também a surpresa de ter um conterrâneo aqui em Pelundo e na Companhia 2886. O Adriano Sousa, natural da Freguesia das Chãs e Concelho de Foz Côa, era Soldado atirador dado não ter completado o quinto ano dos liceus. Estudou no Colégio de Foz Côa. Dado ele não ter feito parte das minhas amizades habituais em Foz Côa naquele tempo, e nos últimos anos eu tê-los passado fora de Foz Côa, não o conhecia. Ele, ao ouvir o meu nome abeirou-se de mim identificando-se. Construímos uma amizade até ao dia que Deus nos levar. O Adriano é testemunha de muitos dos meus factos que aqui transcrevo. Era meu confidente.

No momento que estou a escrever estas linhas, tenho meu coração triste ao tomar consciência da pequenez moral dos políticos responsáveis que o representam Portugal.
Acabei de assistir ao vídeo do funeral do militar Português mais condecorado do meu país de nome Marcelino da Mata. Desprezado no direito às honras merecidas que a Pátria lhe devia e, por aqueles que a representam, a Pátria que com sangue e lágrimas ele como nenhum outro soube defender. Não teve honras de abertura de telejornais, nem comunicados dos Estados-maiores e, principalmente, do atual Presidente da República.

A qualquer pé descalço afeto ao poder político, a bandeira é colocada a meia haste e decretado três dias de luto Nacional. Ao Tenente Coronel Marcelino da Mata nascido na Guiné, soldado Comando detentor da Torre Espada Lealdade e Mérito e mais cinco cruzes de guerra de 1.ª Classe por coragem demonstrada em combate, nem uma salva de tiros teve direito no momento do seu corpo descer à sepultura. Porém, seus companheiros de armas, brancos e negros, não o deixaram só e nunca será esquecido por muitos anos que passem. Honra à sua memória e que sua alma descanse em paz. Conheci-o um dia em Bissau.

Voltando à minha escrita sobre a minha passagem pela Guiné, direi que as minhas primeiras preocupações foram o verificar, as funcionalidades e existências do Posto Médico, conversar com o Médico sobre o meio em que nos encontrávamos e sobre todo o exterior que nos rodeava.

Quando o segundo Comandante ainda em Bissau soube da minha ida de férias à Metrópole, pediu-me para que no meu regresso à Guiné eu levasse de Portugal e, principalmente da minha terra, sementes hortícolas para criarmos uma horta nas periferias do Quartel. O objetivo era podermos ter vegetais frescos para serem utilizados na alimentação dos nossos militares, serem semeadas numa horta a construir no Quartel do Pelundo de modo a termos produtos verdes e frescos na alimentação senão para toda a tropa, mas, pelo menos, para as messes (Sargentos e Oficiais).
Entrada do aquartelamento do Pelundo
Foto: © António Teixeira (2011)

Assim fiz. Logo no segundo dia da minha chegada ao Pelundo, criei um pequeno canteiro junto ao Posto Médico onde semeei tomates e alfaces.
 
Como esta iniciativa havia partido do Segundo Comandante Major Pinho, ele foi logo nesse dia de manhã falar comigo. Primeiro, porém, pediu álcool para limpar o seu cachimbo duma forma que eu não gostei. – Dá-me álcool para eu limpar o cachimbo - disse-me ele. Eu respondi-lhe que não estava a ouvir nada. – Não ouves? – Voltou ele. Sou o teu Segundo Comandante. Eu, serenamente respondi-lhe que daquela porta para dentro era eu que mandava e, como tal, ou me pedia o álcool educadamente por favor ou não levava nada. Disse-lhe mais já um pouco fora de mim que, ficasse a saber, que não estava na tropa para ser criado fosse de quem fosse e, quando alguém me pisasse os calos, lhe responderia, f….-se que já me pisaste.

Estou a ver que me saíste uma grande encomenda – observou ele pedindo-me por favor algodão e álcool. Aproveitei logo para lhe comunicar que não iria tomar conta da dita horta. Mas tu és o engenheiro – voltou ele à carga. – Sou disse-lhe. Mas não quero contratos com o Comando. Chega-me os cuidados de saúde para os quais sou um dos responsáveis, continuei. Assim o fiz a partir daquele dia.

Logo nos primeiros dias da minha presença naquela localidade, aproveitei os momentos livres e após o almoço, fim de tarde e depois do jantar para familiarizar com a população local. Cedo me apercebi que a jovem que tomava conta da minha roupa possuía grande influência não só nos jovens, mas também nos mais adultos da população. Assim, comecei a socializar-me com todos eles. Para tal, comecei a juntar-me com ela e outros e outras jovens durante noites para ganhar a sua confiança e, também, eu começar a captar os seus hábitos e anseios e, acima de tudo, aprender frases do seu dialeto. Cheguei a permanecer fora do quartel até cerca da meia-noite em muitos os dias.
 
Comecei deste modo a conquistar amizades que me foram muito úteis até ao fim da minha estadia nesta terra, já que tinha duas missões a cumprir para com eles. Tratar da saúde e ensinar-lhes dentro do tempo que me fosse possível melhores técnicas agrícolas sempre que para tal me fosse solicitado.

Mensalmente, recebíamos medicamentos não só para os militares a meu cargo como também para a população da aldeia. Felizmente, durante toda a minha comissão pude utilizar na população medicação que era destinada aos militares porque para estes não foi necessária.

Durante toda a comissão levei muito a sério a minha missão. Sentia-me muito feliz quando percorrendo as ruelas do Pelundo as crianças se vinham agarrar às minhas pernas solicitando afetos. Os mais idosos me cumprimentavam baixando a cabeça e, passados poucos meses me beijavam as mãos. Sempre lhes ia dizendo que não fazia sentido aquela forma de afeto já que eu não fazia mais que o meu dever de cuidar deles com dignidade. Criei assim um ambiente saudável junto da população. Os gestos dos mais idosos me faziam lembrar meus pais que em Portugal não recebiam apoios e tratamentos de saúde que nós ali estávamos a proporcionar às populações locais. A este propósito, muitas e muitas vezes alguns militares graduados me faziam acusações de possivelmente, eu desviar medicamentos destinados às nossas tropas para os civis. Felizmente, foi possível tal poder fazer, já que não foram necessários para as tropas a meu cuidado.

Já quando me deslocava a Bissau e aos Serviços de Material de Saúde que se encontravam junto ao Hospital Militar para resolver determinadas faltas de material, me perguntavam quais os contratos que eu tinha com o PAIGC, dado que as nossas colunas não sofriam emboscadas enquanto outras colunas de outros Batalhões eram atacadas no mesmo percurso. A minha resposta foi sempre a mesma. Porque eu tratava bem dos seus familiares.

Estas perguntas que me eram feitas tinham razão de ser, dado que não muitos dias antes, uma Companhia de Paraquedistas tinham sofrido uma penosa emboscada na mesma estrada que eu percorria e, semanalmente, escoltas do meu Batalhão eram feitas duas vezes. Alguns daqueles Paraquedistas foram tratados no nosso Posto Médico por mim e o Dr. Dinis Calado.
 
Talvez por isto, o Diretor do Serviço de Saúde em Bissau Dr. Bissaya Barreto, sempre que eu aqui vinha me chamava ao seu gabinete para falar comigo e me tratou sempre com muito carinho. Também não foi por acaso que uma fotografia minha foi colocada numa capa da revista do Exército, tratando um garoto, e com o título – Assim tratamos as populações.

Uma das particularidades que encontrei no Pelundo foi a existência de uma espécie de discoteca. Esta situava-se mais ou menos ao meio da aldeia e numa palhota. Possuía apenas a porta de entrada e uma janela que nem sempre se encontrava aberta.

Para este espaço, e durante os fins-de-semana e em dias alternados da mesma, as jovens e os jovens da aldeia se deslocavam à noite com o fim de se divertirem dançando ao som de um Gira-discos a pilhas. Quanto ao tipo de músicas, elas iam das africanas às brasileiras.

Eu comecei a frequentar assiduamente aquele espaço. Só não ia quando me encontrava adoentado ou por motivos de serviço ao Quartel. Muitos outros militares começaram a frequentar aquele lugar como o Médico (que eu o arrastei) e este sempre acompanhado pelo Alferes Tunes. O Médico ia para dançar e se divertir, mas o Tunes ia apenas para observar o ambiente. Também vários Furriéis da Companhia 2886 eram assíduos daquele espaço. Da CCS, tirando eu e o Médico e o dito Alferes, apenas os soldados para lá se deslocavam.

Verifiquei com certa admiração, como os e as jovens locais confraternizavam com os nossos soldados e alguns graduados como eu. A jovem que me cuidada da roupa ajudou-me a entrar naquele ambiente que não mais larguei durante todo o tempo que por lá me mantive.
O preço da entrada na discoteca era de dois pesos e meio, moeda local. Para nós, um preço acessível, mas para os jovens e alguns menos jovens da população local já lhes custava a pagar.

Este Alferes Tunes e eu, passados anos, viemos a viver perto um do outro no Concelho do Seixal. Resolvi com o bailarico, quebrar o stress dançando à noite sempre que me era possível.

A frequência na procura de cuidados de saúde pela população aumentava de dia para dia. Nos mais idosos eram frequentes as queixas de dores respiratórias e musculares. O clima quente e húmido contribuía para as pneumonias e dores reumáticas. A estes, com tratamentos injetáveis e em corpos pouco habituados a receber medicamentos, o seu efeito benéfico transmitia resultados a olhos vistos. Porém, com o decorrer do tempo, mesmo com muitas melhoras, lá estavam diariamente a pedir que lhes aplicássemos injeções, principalmente, vitaminadas. Cá miste Campingo diziam eles e elas.

Ainda nos adultos mais idosos, as doenças de pele e, em especial, as bilharzioses conhecidas também por elefantíases, muito difíceis de curar, tivemos pela frente.

O paludismo era uma doença complicada para todas as idades e para todos nós. No meu caso, felizmente que me passou ao lado. Sobre esta doença e sequelas nos militares escreverei mais à frente citando alguns casos mais especiais.

Continuando com os adultos, as doenças sexuais foram um bico-de-obra. Muitos casos tivemos, apesar das palestras preventivas que eram dadas aos militares informando-os dos meios preventivos que lhes seriam fornecidos sempre que nos fossem solicitados. Estes meios preventivos tanto eram fornecidos aos militares como a elementos da povoação, acaso nos fossem solicitados. As mulheres que se prostituíam tinham receio que o preservativo lhes ficasse dentro da vagina. Com tantas explicações que tive o cuidado de dar a algumas que conheci, verifiquei a pouca aceitação para obrigarem os seus clientes a usarem o preservativo. Pelo menos tentei dar-lhes conhecimentos de prevenção.

No caso das crianças, as otites foram os casos mais complicados que fomos tendo, derivado não só a falta de higiene como por fatores climatéricos. Como para estes casos era necessário a aplicação de antibióticos e como tal, a necessidade de regras na sua aplicação, o Médico resolveu o caso com a dissolução dos antibióticos em frascos de xarope até porque não possuíamos no quartel antibióticos próprios para crianças. Além deste drama, tivemos a dificuldade de comunicação com os pais das crianças, dado não entenderem bem o Português, e não muito habituados a terem assistência médica perto de casa.

Outro caso de saúde que me impressionou negativamente não só nesta localidade, mas também em quase todo o interior da Guiné, foi a desnutrição das crianças. Corpos muito magros e barrigas aventadas e umbigos excessivamente salientes.

O aventamento era provocado pelo tipo de alimentação com base no arroz e farinha de mandioca. O caso dos umbigos salientes tinha a ver com a falta de aperto com ligaduras após os partos.
Assim, nos primeiros meses todos nós, Médico, eu e Cabo Enfermeiro, mais os Maqueiros, procuramos aprender um pouco do dialeto local. Para isto, o convívio já descrito atrás, ajudou-nos muito nestas nossas tarefas.

A nível militar, fomos tendo uma certa acalmia, mas outras tropas que se movimentavam nas mesmas estradas já não tinham a mesma sorte como já atrás descrevi.
A minha aproximação com a população local foi dia após dia aumentando. Fui convivendo dia a dia mais não só com os mais jovens, mas também com mais velhos. Começaram aqui os meus problemas com as chefias do Batalhão que não viam esta minha atitude com bons olhos.

Em meados dos anos 70, o General Spínola mandou construir um Posto Médico e uma Escola Primária no Pelundo. Soube na altura que o mesmo aconteceu em muitos outros locais da Guiné. Esta Escola foi mobilada com o de mais moderno havia. Na terra onde nasci não tínhamos escolas iguais a esta. Assisti, como não podia deixar de o fazer, à sua inauguração. O General Spínola fez um discurso dirigido principalmente para o Régulo local não muito meigo para este, chegando a chamar-lhe traidor. Pouco tempo antes tinha acontecido o assassinato dos Majores. A meu lado tinha o chefe da Granja de Teixeira Pinto e, meu colega de profissão civil, que me ia comentando, dizendo que o General era maluco pois aquele discurso colocava-o em perigo ali mesmo.

(Continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 12 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23258: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte II

Guiné 61/74 - P23269: In Memoriam (436): Maria do Céu F. Pedro Esteves, Cap Enfermeira Paraquedista (1940-2022), falecida no dia 16 de Maio de 2022

IN MEMORIAM

Cap. Enfermeira Paraquedista - Maria do Céu F. Pedro Esteves

O anúncio da morte de mais esta querida camarada Enfermeira Paraquedista, chegou até nós por intermédio do Miguel Pessoa que nos encaminhou a mensagem da Associação de Pára-quedistas Tejo Norte, que se segue:

Data: 16 de Maio de 2022

Boa noite

Comunica-se, com muito pesar, o falecimento da Camarada, Colega e Amiga, Cap. Enfermeira Paraquedista Maria do Céu F. Pedro Esteves.
Descansa em Paz Amiga. Até sempre.

Informa-se que o seu corpo estará presente amanhã, pelas 16,30h, na Igreja da Força Aérea, para velório, saindo, no dia seguinte, pelas 8 horas, para a sua terra natal, com Missa pelas 14 horas em Casais-Proença-a-Nova.

Com os melhores cumprimentos,
P´A Direcção
José Ventura Domingos


Enfermeira Paraquedista Maria do Céu Pedro

Foto: Com a devida vénia à senhora Enfermeira Paraquedista Maria Arminda Santos

********************

À familia da nossa amiga e camarada Maria do Céu, assim como a seus camaradas e amigos, o Editor, Coeditores e tertúlia deste Blogue, deixam as suas mais sentidas condolências.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23267: In Memoriam (435): Maria Ivone Reis, Major Enfermeira Paraquedista Reformada (1929-2022), falecida no dia 15 de Maio de 2022

Guiné 61/74 - P23268: Parabéns a você (2066): António Pinto, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 506 (Nova Lamego, Geba, Madina do Boé, Beli e Bolama, 1963/65)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23265: Parabéns a você (2065): Vasco da Gama, ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 8351 (Aldeia Formosa e Cumbijã, 1972/74)

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23267: In Memoriam (435): Maria Ivone Reis, Major Enfermeira Paraquedista Reformada (1929-2022), falecida no dia 15 de Maio de 2022

IN MEMORIAM

Maria Ivone Reis, Major Enfermeira Paraquedista Reformada (1929-2022)


Soubemos da notícia do falecimento da senhora Enfermeira Paraquedista Ivone Reis através do facebook da senhora Enfermeira Maria Arminda Santos.

À família da nossa querida Ivone Reis deixamos o nosso mais profundo sentido de pesar, assim como às suas camaradas, para as quais a Enfermeira Ivone foi sem dúvida um exemplo a seguir.

No nosso Blogue temos muitas referências à senhora Enfermeira Ivone Reis graças, principalmente, à contribuição de duas das suas amigas, as Enfermeiras Maria Arminda Santos e Rosa Serra.

Em Janeiro de 2021 foram publicados no nosso Blogue excertos de um depoimento de senhora Enfermeira Ivone à Revistá Crítica de Ciências Sociais feito em 2004, através dos quais podemos saber um pouco do muito que dedicou da sua vida em benefícios dos outros:

Guiné 61/74 - P21764: (De)Caras (168): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte I
e
Guiné 61/74 - P21766: (De)Caras (169): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte II (e última)

Tancos > Batalhão de Caçadores Paraquedistas > 26 de maio de 1961 > As 11 candidatas ao 1.º Curso de Enfermeiras Paraquedistas > Da esquerda para a direita, de pé: Cap Pára Cunha, Maria Ivone, Maria da Nazaré (falecida), Maria Arminda, Maria de Lurdes, Maria Margarida Costa, Maria do Céu Bernardes e Major Lelo Ribeiro; na primeira fila, de cócoras: Maria do Céu Policarpo, Maria Zulmira André (falecida), Maria Helena, Maria Margarida Pinto e Maria Irene... (Deste grupo inicial, de onze voluntárias, só ficaram seis...).
Angola > 1961 > A bordo de um Noratlas, com tropas paraquedistas. A Maria Arminda à esquerda e Ivone Reis à direita.
Foto (e legenda): © Maria Arminda (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Guiné > Região de Tombali > Cacine > CART 1692 > Dezembro de 1968 > A Ten Enf Paraquedista Maria Ivone Reis e o Alf Art António José Pereira da Costa, posando para a "posteridade"

Foto (e legenda): © António J.P. Costa (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contribuição da Enfermeira Paraquedista Maria Arminda Santos, no dia 13 de Janeiro de 2012, ano em que a Enfermeira Ivone completava 83 anos:

Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)

Enfermeira Paraquedista Maria Ivone Reis, a segunda a partir da esquerda. Falta a Maria da Nazaré que por motivo de uma entorse ao (4.º salto), acabou dias depois.
Enfermeiras Paraquedistas Maria Ivone e Maria Arminda

Fotos: Maria Arminda Santos. Enf Paraquedista

Contribuição da Enf Paraquedista Rosa Serra:

Guiné 63/74 - P5971: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (12): Ivone Reis, a primeira Enfermeira Pára-quedista que conheci (Rosa Serra)
e
Guiné 63/74 - P6535: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (18): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (5): Maria Ivone Reis (Rosa Serra)

Tancos, 2005 > Enfermeira Paraquedista Ivone Reis
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de Abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23162: In Memoriam (434): Sargento Ajudante Manuel Gomes Valente (1938-2022), que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné integrado no BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71

Guiné 61/74 - P23266: Notas de leitura (1446): “Cartas à Guiné-Bissau, Registos de uma Experiência em Processo”, por Paulo Freire; Moraes Editores, 1977 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Dizia Paulo Freire que a cultura africana é auditiva, é oral e não escrita. O eminente pedagogo contatou a Guiné-Bissau, apercebeu-se da realidade socioeconómica e cultural do país, defendeu que se devia ensinar crioulo com base na cultura oral e elaborar uma escrita. Profundo admirador de Amílcar Cabral, esqueceu-se que este era adepto incondicional do uso da língua portuguesa para o país independente. Cabral nunca disse publicamente as razões de fundo, mas ele sabia que era indispensável uma comunicação que dificultasse o caminho à francofonia, naquele tempo o apetite de Sékou Touré sob a Guiné-Bissau era grande, ele sonhava com a grande Guiné, Cabral promoveu a barreira linguística, depois da sua morte, a liderança do PAIGC seguiu o seu pensamento sem titubear. Mário Cabral é nestas obras um protagonista maior, fala de grandes sonhos e da escassez de recursos. O conflito político-militar de 1998-1999 caiu como uma bomba em todo o sistema educativo. Até hoje.

Um abraço do
Mário



A Guiné-Bissau e Paulo Freire

Beja Santos

Cartas à Guiné-Bissau, Registos de uma Experiência em Processo
 foi publicado pela Moraes Editores em 1977. A ressonância foi mínima, ver-se-á adiante que todas as propostas para a remodelação do sistema educativo sugeridas pelo eminente pedagogo brasileiro não avançaram, Mário Cabral explicará como e porquê. Há expressões de Paulo Freire que têm conteúdo duradouro, exemplo: “A fascinante experiência de aprender primeiro, ensinar depois e continuar a aprender ensinando”. Todos os documentos de Paulo Freire para as autoridades guineenses são um verdadeiro ensaio sobre a alfabetização, nunca descuram o facto de mais de 90% da população ser camponesa. Freire tivera uma experiência feliz na América Latina com os Círculos de Cultura e Círculos de Cultura Popular: a leitura da realidade através da descodificação de fotos e de desenhos, seguindo-se a leitura da realidade através de textos. Além de cientista empenhado, Freire era profundo conhecedor de todo o processo da luta armada e conhecia com fluência o pensamento de Amílcar Cabral. Enquanto fala nas palavras geradoras e a sua codificação para o arranque da literacia, não deixa de mencionar a preocupação de Cabral com aquilo que ele advertia sobre “o suicídio da pequena burguesia”. Insiste na correspondência com Mário Cabral que deve haver uma unidade territorial com que o aprendiz das letras se sinta familiarizado, a realidade da geografia, da produção, da política, da história, as etapas da política de saúde e até da cultura do arroz.

Bastante tempo depois, em 2003, a editora brasileira Paz e Terra editava “A África Ensinando a Gente”, conversas entre Paulo Freire e Sérgio Guimarães, sente-se que a experiência guineense permanece no coração desse grande mestre da alfabetização, vemos aqui afloradas questões muito polémicas como o português, o crioulo e as línguas étnicas. Apegado às convicções de Cabral, Freire considerava que a luta da reconstrução nacional era a continuidade da luta de libertação, em que se inclui o problema da identidade cultural, e recorda ao seu interlocutor uma frase de Cabral: “A luta de libertação é um facto cultural e um fator de cultura”. Na questão polémica da língua oficial, Freire dizia que o crioulo guineense não tinha condições para ser a língua oficial porque lhe faltava a escrita. Não se podia ensinar em crioulo a não ser pelo recurso oral, já que não havia um texto sequer escrito em língua crioula, era manifestamente insuficiente a boa vontade de alguns intelectuais que publicavam em crioulo, faltavam quadros no período posterior à independência, era praticamente impossível também ensinar a língua portuguesa nas zonas rurais do país. Freire sentiu-se enternecido quando viu camponeses criando palavras a partir da palavra portuguesa.
Retenha-se a seguinte observação de Freire: “Creio que a questão que se coloca no caso da Guiné, no momento, não é tanto mais a de pretender alfabetizar as grandes massas populares em português, mas, pelo contrário, de disciplinar estritamente a língua crioula, ao mesmo tempo que enfatizando, respeitando e desenvolvendo as demais línguas nacionais, para que, num futuro próximo, se ponha a língua portuguesa no seu devido lugar”. Mas ele pressentia que não era essa a vontade da liderança do PAIGC, esta sentia-se profundamente irmanada com o pensamento de Cabral quanto ao uso do português. Havia o entendimento (creio que permanece) que o crioulo era a língua nacional veicular e o português era a língua oficial, se é esta a catapulta no futuro para a comunicação entre os guineenses.

As conversas que vão saltitando por outros países como Angola e São Tomé, ouvem-se queixumes de gente autorizada como Lúcio Lara, Pepetela e Alda do Espírito Santo, Angola com a guerra civil e a despender minimamente na educação e São Tomé sem recursos, contando exclusivamente com a ajuda internacional. A entrevista com Mário Cabral é ainda hoje uma peça relevante, ele foi o destinatário da maior parte das cartas escritas por Paulo Freire. Começa o seu testemunho deste modo:
“Tínhamos uma pequena equipa que foi trabalhando, mas os primeiros embates começaram por ser pela língua. Porque nós, a alfabetização, estávamos a fazer em português. Lembro-me, uma vez disseram: ‘Mas, afinal, os colonialistas estiveram cá quinhentos anos e não nos fizeram aprender a língua deles. Como é que agora o PAIGC, que lutou contra o colonialismo, vai-nos ensinar o português?’. Eu disse: ‘Olha, é tão simples como isso: eu sou agrónomo. Estamos a tentar melhorar a nossa agricultura. Nós temos que recorrer a instrumentos, sementes melhoradas, adubos, etc., mas também vamos recorrer a tratores. Não fomos nós que inventámos o trator. Ora, a alfabetização é isso mesmo. As nossas línguas são muitas e não temos capacidade de fazer a alfabetização em todas as línguas. Vamos utilizar o português”.

Mário Cabral rememora a participação marcante de Paulo Freire naqueles primeiros anos da independência da Guiné-Bissau, o ideal de um processo educativo para todos, não atingido, não se ultrapassaram os 50% da alfabetização das crianças em idade escolar. Não podia iludir que o orçamento da Educação era reduzido, se alterara o quadro político com o multipartidarismo, que houvera um número impressionante de ministros da Educação. Embora a educação não fosse muito privilegiada do ponto de vista orçamental tinha havido um grande apoio da parte dos doadores, com a Suécia à cabeça. Mas a instabilidade levou a um quadro regressivo. “Acaba-se por dar mais dinheiro à Segurança ou às Forças Armadas do que à Educação. Bom, quando realmente a situação política é de instabilidade, a ponto de ter que se reforçar o controlo do cidadão para evitar o pior, há aí qualquer coisa de errado. Ora o desenvolvimento, a paz social existem quando há um mínimo de capacidade de gestão. Quando você não tem, numa perspetiva de futuro, coisas que o estimulem, a tendência é recorrer a um passado glorioso que você teve. E acho que este país está muito a sonhar com o passado, não está efetivamente a afrontar o presente e sobretudo, fazendo uma perspetiva para o futuro”.

Recorde-se que a entrevista de Mário Cabral a Sérgio Guimarães foi dada em 2002, o conflito político-militar de 1998-1999 devastara o país, restava a esperança, e Mário Cabral depositava esperança no profissionalismo da classe política, esperança numa perspetiva democrática de acesso ao desenvolvimento.

Aqui se deixa a recensão sobre as etapas cruciais do processo educativo da Guiné-Bissau, um quarto de século de sonhos e profundas deceções.



Uma imagem da fascinante arte bijagó.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23259: Notas de leitura (1445): “Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp; Editorial Inquérito, 1994 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23265: Parabéns a você (2065): Vasco da Gama, ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 8351 (Aldeia Formosa e Cumbijã, 1972/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23264: Parabéns a você (2064): António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493/BART 3873

sábado, 14 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23263: Os nossos seres, saberes e lazeres (504): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (50): Uma amostra dos tesouros colecionados pelo Dr. Anastácio Gonçalves (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
Edifício, portão Arte Nova, jardins, uma nova entrada gerando novos espaços atrativos para desafiar a museologia e a museografia, mobiliário, porcelanas e pintura sobretudo naturalista de indiscutível valor. Percorrem-se as divisões da casa e pasma-se como se reorganizou o espaço e se aproveitam cantos e recantos para exibir maravilhas da coleção, buscando um equilíbrio dos três eixos principais do acervo com um mostruário de outras coleções, como a arte oriental ou os relógios. Quem puder previamente documentar-se, tem tudo a ganhar em obter mais informação sobre as porcelanas chinesas, os artigos religiosos, os vitrais, assim se aproveita a contemplação da sala de jantar, do atelier ou do escritório e quarto. Há peças para ver e rever, caso do Pote dos 100 meninos, uma obra-prima de Columbano, o Contador Holandês, o deslumbramento da marcenaria portuguesa que é o Preguiceiro. É para admirar e voltar depois.

Um abraço do
Mário.



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (50):
Uma amostra dos tesouros colecionados pelo Dr. Anastácio Gonçalves


Mário Beja Santos

Aqui se dá continuidade à visita Casa-Museu de Anastácio Gonçalves, instalada num edifício com projeto do arquiteto Norte Júnior, Prémio Valmor 1905. Deu-se conta que há três eixos principais deste acervo: a pintura (sobretudo a naturalista), o mobiliário português e europeu (com preferência por exemplares dos meados e terceiro quartel do século XVIII), e a porcelana chinesa que é a coleção de renome internacional, com centenas de peças adquiridas entre 1941 e 1965. Não se pode deixar de gabar a configuração do museu um novo cuidado por estabelecer um programa museológico que salvaguardasse a ambiência e o gosto do colecionador, o visitante vai seguramente usufruir desse ambiente preservado no antigo atelier do pintor José Malhoa; obviamente, tratando-se de uma coleção riquíssima e versátil, houve igualmente o cuidado de aproveitar todos os espaços, exibindo as peças segundo um critério de apresentação cronológico ou didático.
Veja-se o mobiliário, com peças datáveis entre os séculos XVII e XIX, mas onde é patente o gosto do colecionador pelas obras da época de D. José I e D. Maria I, no caso português, a atração por mesas de encostar, secretárias, papeleiras, cómodas ou canapés. Quanto ao mobiliário importado, ele também é variado, com peças de origem francesa, inglesa, holandesa, espanhola e mesmo chinesa.


Naquela que foi a sala de jantar do colecionador houve o cuidado em selecionar peças adequadas, criando um espaço cenográfico de intensa decoração e luminosidade, esta é transmitida por um belo vitral fim do século XIX. Aqui, mais do que noutra divisão da casa pululam elementos decorativos requintados. A mesa da sala de jantar é do século XVIII, tem peças de um serviço de jantar “família rosa”, em que a decoração é composta por cenas de jardim com rochedos, borboletas, peónias floridas. No mobiliário temos peças chinesas, da Companhia das Índias, pode ver-se no armário louceiro português do século XVIII peças ao gosto ocidental.
Vitral da sala de jantar
Houve o cuidado em gerir os espaços de passagem com peças maravilhosas de mobiliário e porcelana, exibindo pintura a preceito, também aqui a encenação e a decoração saem triunfantes.
Diante de nós o quadro de Jan Brueghel “de Veludo” (atribuído), um dos membros de uma das famílias icónicas ao nível da pintura mundial, ele era filho de Brueghel, o Velho, uma das personalidades mais originais de toda a pintura flamenga. Apresenta ao centro da composição, no meio de uma paisagem de flora imaginária quatro figuras alegóricas que ostentam os símbolos dos Elementos: o vaso que derrama a água, a esfera armilar (ar), a tocha (fogo) e a cornucópia de qual caem os frutos da terra. Em primeiro plano, sobre o chão estão representados animais e muitos frutos, flores e legumes. À esquerda, observa-se um braço de água onde aparece um cortejo de Neptuno, muito comum a estes temas dos Quatro Elementos. Peixes, moluscos, crustáceos e aves marinhas estão pormenorizadamente representados enquanto no ar e nas copas da árvores podem observar-se aves e pássaros.
Num corredor atrás do antigo atelier de José Malhoa podemos observar uma doação da neta do pintor Silva Porto de objetos de trabalho do seu avô, numa bela museografia.
Um exemplo eloquente da paixão do colecionador por obras do naturalismo português.
O belo vitral do antigo atelier de José Malhoa.
Chama-se Preguiceiro, feito em pau-santo e veludo, obra portuguesa do terceiro quartel do século XVIII. Inegavelmente mostra características de origem inglesa, mas com adaptações. É o caso do couro que forrava os coxins e a cartela central veio ser preterido por outros revestimentos. Vemos aqui um colchão forrado de veludo decorado com padrão floral. Neste preguiceiro os motivos rococó que rematam o montante do espaldar e as pernas já fazem parte daquele reportório que era conhecido por volta de 1770. Destaca-se o trabalho de marcenaria em transformar uma matéria tão densa e difícil como é o pau-santo nesta obra escultórica fenomenal.
Papeleira miniatura chinesa: raríssima, retorna a forma e as dimensões reduzidas dos exemplares setecentistas ingleses. A sua origem chinesa está bem patente que é uma técnica quer nos materiais utilizados, como madeira de canfora, teca e tola e as placas de cobre esmaltado.
Chama-se A Senhora de Preto, foi pintada em Paris em 1884, ano em que António Ramalho regressou a Portugal. É nítida a influência francesa. Ramalho apreciava a técnica de Manet, o que aqui se observa é o retrato de mulher tipicamente parisiense, pelo seu ar fascinante e ousado, pela sua força expressiva. As pinceladas são largas, espessas e muito livres. O negro luminoso do vestido e do chapéu é vivificado pelo matizado fundo vermelho. Ramalho regressou a Portugal passou a conviver com o Grupo do Leão, mas continuou a enviar obras para Paris.
Andar superior do antigo atelier de José Malhoa com o preguiceiro e o vitral ao fundo. É a maior divisão da casa e a grande pinacoteca, com realce para Silva Porto, mas ali também se encontram obras de José Malhoa, João Vaz, António Ramalho e dos irmãos Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro. Está aqui um impressionante acervo de pintura naturalista em que prevalece o tema da paisagem.
O retrato impressionante de um velho.
Foi no passado a entrada principal da residência de Malhoa e do Dr. Anastácio Gonçalves.
Não há melhor maneira para concluir esta viagem à Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves fixando-nos no deslumbrante quadro de Columbano, Convite à Valsa. Trata-se de um pequeno formato, reserva a frescura do instantâneo, com as personagens centrais captadas num momento imediatamente anterior à dança, na ligeira vénia que ambos realizam, perante o olhar cúmplice da senhora, à direita, e a indiferente dormência do homem sentado. O genial Columbano conseguiu vencer os perigos da rígida fixação das personagens centrais, há ali muitíssimo mais do que um equilíbrio compositivo. Interessa ver como nesta obra o desenho começa a perder importância, num jogo de manchas de cor, detém-se no rosto da mulher, nos panejamentos do seu vestido; os fatos masculinos em tons negros são apenas demarcados nos contornos. E aquela rosa no primeiro plano não está ali por mero acaso. Os modelos são o próprio Columbano e a sua irmã Maria Augusta.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23239: Os nossos seres, saberes e lazeres (503): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (49): O médico oftalmologista que ofereceu aos portugueses sublimes obras de arte (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23262: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIII: Parque Nacional da Mesa Verde, Colorado, EUA, 2005





EUA, Colorado, Parque Nacional da Mesa Verde



Parque Nacional da Mesa Verde, Colorado, EUA, 2005

 por António Graça de Abreu (*)


[ (i) Docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem 308 referências no blogue; (vi) texto e fotos enviados em 5/4/2022 ]



Estou no Colorado, e o gosto que isto me dá. Desde pequenino a olhar para esta América, dos filmes, do Bufalo Bill, do Daniel Boone, dos índios sioux e do Sitting Bull, do Mark Twain e dos Tom Sawyer e Huckleberry Finn, lá nas margens do rio Mississipi. E da Becky, a namoradinha do Tom, de quem eu tanto gostava. Depois, na faculdade, na cadeira de Literatura Norte-Americana, a ler, de empreitada, romance após romance os grandes escritores norte-americanos, Poe, Melville, Steinbeck, Faulkner, Hemingway. Era bom aluno, tinha boas notas.

Agora, 2005, o Colorado, as Montanhas Rochosas, a carícia no ouro do sol poente, pássaros escrevem poemas nas nuvens brancas, flores saúdam os peixes nas águas dos rios, um buda passeia descalço ao luar.

Em Mesa Verde, imensa a terra, os barrancos rasgando a penedia, a brisa dos quatro horizontes. Não há muitos anos aconteceu por aqui um pavoroso incêndio, ainda troncos calcinados espalhados nas encostas do vazio, casas de pedra abrigadas nas reentrâncias da falésia. Depois do dilúvio das línguas de fogo, por todo o lado a floresta renasce. Imperturbáveis, entre os arbustos ou nos ramos das árvores, esquilos dançam.
____________

Nota do editor:

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23261: Documentos (38): Boletim Informativo n.º 2 do Movimento das Forças Armadas na Guiné, de 17 de Junho de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 12 de Fevereiro de 2022:

O período 1974/75, a que chamo cinzento ou de má memória começou em Junho de 1974 e terminou em 25 de Novembro de 1975. Neste período estivemos perante o espectro de uma guerra civil e ao contrário do que alguns teóricos bem pensantes dizem, só somos um povo de brandos costumes até a mostarda chegar ao nariz, porque a partir daí...

Com o 25 de Abril, assistimos a uma multiplicação do número de revolucionários e cada um deles mais revolucionário que o outro. Em pouco tempo deixaram de existir militares que serviram o antigo Regime ou foram poucos os que o fizeram. Foi um autêntico milagre das rosas, da disciplina à hierarquia que durante anos nos habituámos a seguir, era-nos agora proposto mudar para um sistema de centralismo "democrático" do Leste, a ser aplicado à tropa, rapidamente e em força.

Dizia o Ex-Chanceler alemão Willy Brandt, quando questionado sobre o seu passado revolucionário que: Ser revolucionário até aos 28 anos de idade, é normal, faz parte da natureza humana, mas continuar a sê-lo depois dos 28, qualquer coisa está errada. Esta citação aplica-se que nem uma luva a muitos dos nossos militares na Metrópole e na Guiné.

Existem títulos e artigos no Boletim Informativo n. º 2 do MFA na Guiné que merecem ser lidos com atenção e em particular o da Reunião de trabalho do MFA na Guiné. Este tem duas referências ao Sr. Gen. Spínola, uma referência ao Sr. Gen. Galvão de Melo, a determinante da evolução será a relação capital-trabalho e que a revolução ora iniciada só poderá prosseguir numa base de aliança Povo-MFA e Governo e continua, assim a Comissão Coordenadora assoberbada de trabalho, não tem exercido as funções para que foi criada, fim de citação (depreende-se que fosse trabalho político), a Comissão Coordenadora (de 7 elementos) irá ter, além das funções de membros do Conselho de Estado a de se constituir em repartição de Relações Públicas e Acção Psicológica (espécie de 5.ª REP.) que funcionará ao nível do EMGFA - (cá está, 5.ª REP, já só falta atribuir o nome correcto) - , foi criada a Polícia de Informação Militar (PIM), no seio das FA começa a esboçar-se uma divisão entre esquerda e direita, falta de legislação própria para os saneamentos levanta-se novamente o problema da politização das FA etc, etc, etc.

Das referências e títulos atrás citados, há pelo menos dois que se destacam, a Polícia de Informação Militar (PIM) e a espécie de 5.ª REP. - (a Comissão Coordenadora assoberbada de trabalho), trata-se de uma referência a trabalho político intenso desenvolvido e com uma linha política clara, que poderá conduzir a uma caça às bruxas. Para mim um simples leitor do Jornal República, as cito - (sugestões para o trabalho a realizar pelas Delegações do MFA) -, e outros Títulos desenvolvidos que constavam do Boletim Informativo n.º 2 do MFA na Guiné, era areia demais para a minha camioneta, agora sim, já não restavam dúvidas, daqui para a frente seria sempre cumprir e fazer cumprir as ordens do Comando. Mesmo assim, lá guardei estes papéis como recordação, mas estava longe de imaginar o poder e a influência que a 5.ª Divisão viria a ter na Guiné e na Metrópole. Ainda bem que o fiz, hoje dá para os ler, olhar para trás e ver como era.

Espero que a publicação destes boletins sirva para mostrar como decorreu o período de negociações e transferência de soberania na Guiné e porque aconteceram algumas quebras na cadeia de Comando que afectou a hierarquia e a disciplina em algumas Unidades, com efeitos negativos na imagem das NT.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur. Mil. Inf.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23187: Documentos (37): Boletim Informativo n.º 1 do Movimento das Forças Armadas na Guiné, de 1 de Junho de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

Guiné 61/74 - P23260: Consultório militar do José Martins (73): Procura-se camaradas do 1.º Cabo Atirador do Pel Caç Nat 58, Joaquim da Silva Magalhães, ferido mortalmente numa emboscada no itinerário Canjambari-Jumbembem, no dia 30 de Agosto de 1969

1. Mensagem de Joel Magalhães, com data de 26 de Abril de 2020, sobrinho do 1.º Cabo Joaquim da Silva Magalhães, natural de Santo Tirso, caído em combate no itinerário Canjambari-Jumbembem no dia 30 de Agosto de 1969:

Olá, muito boa noite.
Meu nome é Joel Magalhães.
Com as datas do 25 de abril sempre me vem à memória o meu tio Joaquim da Silva Magalhães, natural de Santo Tirso, Primeiro Cabo, morto em combate na guerra do ultramar, mais concretamente na Guiné.
A família apenas teve a informação na altura que ele terá sido morto numa emboscada! E hoje as minhas pesquisas levou-me até si.
Chegou a conviver com ele, ou conhece alguém que tenha convivido ou presenciado o acontecimento que levou a morte dele?
Desde já lhe digo que admiro e louvo o seu excelente trabalho e arquivos que vai partilhando.

Atentamente,
Joel Magalhães


********************

2. Mensagem do nosso especialista em Assuntos Militares, José Martins, em 27 de Abril:

Boa tarde para os senhores administradores.
Cá recebi a incumbência, que se me afigura difícil.
Os pelotões, salvo raríssimas exceções, não têm História da Unidade, quanto mais Pelotões de Caçadores Nativos.
Parto apenas com os dados do Volume 8, portanto, muito pouco.
Na informação não tem indicação de unidade a que estava adstrita operacionalmente.
Não há mais mortos nesta operação. Nesta data só em Fulacunda, numa unidade de comandos.
Resta, com base nos meus resumos, o COP 3, um BART e respetiva CART e uma CART independente.

Hoje já não dá para ir ao AHM, veremos amanhã.
Abraços.


********************

3. Nova mensagem do José Martins, esta com data de 29 de Abril:

Boa tarde
Viagem, em vão, até ao Arquivo Histórico.
Junto texto sobre o que consegui, consultando os elementos que tenho disponíveis em casa, os livros da CECA.

Abraço
Zé Martins


O Pelotão de Caçadores Nativos n.º 58, do Comando Territorial Independente da Guiné, foi criado em Maio de 1967, estando dependente administrativamente do Quartel-General de Bissau e, operacionalmente, da unidade que comandava o sector em que o mesmo se integrava geograficamente.
Foi constituído em Bissau e, em Junho de 1967, foi deslocado para Cacheu, em Agosto desse ano seguiu para Teixeira Pinto onde se manteve até Agosto de 1968, altura em que regressou a Cacheu. Em Abril de 1969 foi para Canjambari e em Novembro desse ano de 1969 foi para Infandre, onde se manteve até Agosto de 1974, quando foi dissolvido.

Este texto surge por nos ter sido solicitado, pelo Joel Magalhães, informação sobre a morte em combate do seu tio e nosso camarada 1.º Cabo Joaquim da Silva Magalhães, NM 01779368, que estava no Pelotão de Caçadores n.º 58, na altura estava em Canjambari, e foi numa emboscada entre Canjambari e Jumbembem.

Numa pesquisa que efectuei nos meus arquivos, tomei nota de unidades a nível de Batalhão e Companhia que poderiam ter estado na área, e consultei as respectivas Histórias da Unidade, no Arquivo Histórico Militar. Nem sempre se tem sorte, e desta vez foi isso que aconteceu: nada encontrei, que pudesse esclarecer ou dar uma pista.
Desta forma, se algum camarada souber qual o Batalhão e/ou Companhia que tenham estado no sector onde se enquadrava Canjambari, nos informe, a fim de se tentar, como sempre fazemos, esclarecer quem se nos dirige, pedindo informações.

Odivelas, 29 de Abril de 2022
José Marcelino Martins


********************

4. Comentário do editor CV:

Como refere o José Martins, o Pel Caç Nat 58 esteve destacado em Canjambari entre Abril e Novembro de 1969.
Consultando o 3.º Volume da CECA - Dispositivo das Nossas Forças - Guiné, verifiquei que a CCAÇ 2533 foi deslocada para Canjambari em Junho de 1969, onde se manteve até ao mês de Novembro do mesmo ano, altura em que foi substituída pela CCAÇ 2681.
Salvo melhor opinião, é muito provável que o Pel Caç Nat 58 estivesse adstrito à 2533 e que o seu pessoal se lembre desta emboscada, ocorrida em Agosto, da qual resultou a morte do nosso camarada Joaquim Magalhães.
Talvez o nosso camarada Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da 2533, nos possa dar uma ajuda.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22487: Consultório militar do José Martins (72): Quem ainda não recebeu o cartão de antigo combatente, por favor contacte o Balcão Único da Defesa... Mais de 200 mil já receberam

Guiné 61/74 - P23259: Notas de leitura (1445): “Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp; Editorial Inquérito, 1994 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Uns dias passados na Biblioteca Nacional deram-me oportunidade para reler e confirmar o valor deste trabalho de Eva Kipp, uma holandesa que andou enfronhada em vários projetos de divulgação da cultura tradicional da Guiné. Sente-se à vista desarmada o seu deslumbramento pela cultura bijagó, nomeadamente nas vertentes da antropologia, etnografia e etnologia. Trata-se de uma revisitação, em 2011 publicou-se aqui no blogue uma recensão que saudava o trabalho de Eva Kipp, ele era e é bem merecedor de ser reeditado.

Um abraço do
Mário



Revisitar um belo texto etnográfico e etnológico, com fotografia ímpar:
“Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp


Beja Santos

Em 2011, aqui se fez uma primeira menção ao livro de uma perita holandesa que colaborou com o Governo da Guiné-Bissau em vários projetos de divulgação da cultura da Guiné com publicação da Editorial Inquérito, 1994. Reler pode significar nova iluminação, desapontamento, descoberta de uma apreciação excessiva ou injusta. Confesso-vos que valeu a pena voltar ao livro de Eva Kipp: pela organização, pelo deslumbramento, pelas pistas que abre sobre a arte dos Bijagós, a sua religião, as suas pinturas murais, as suas práticas funerárias, a vivência da mulher guineense no trabalho.[1]

Quanto à arte dos Bijagós, diz a autora que segundo uma lenda Bijagó, a vida começou assim: Deus, o Criador, existiu sempre e, no início da vida, foi criada a primeira mulher – Orango, que era o mundo. Uma lenda que dá uma interpretação para o influente papel da mulher na sociedade Bijagó. A arte Bijagó está estritamente ligada à religião. A representação dos Irãs encontra especial relevo na escultura em madeira, a qual se alarga à representação de outras cenas da vida quotidiana e mesmo à produção de objetos de uso comum, caso de colheres ou bancos.

Uma religião que assenta nos Irãs e nos seus santuários. Os Irãs Grandes, chamados Irãs do Chão, são os mais poderosos da tabanca. Além de forma humana, eles são multiformes. O Irã Grande da tabanca de Entiorp, em Canhabaque, por exemplo, tem uma forma abstrata. Faz lembrar uma panela com a tampa decorada e envolvida num pano vermelho.

Em princípio, os Irãs Grandes devem estar na chamada “baloba dos defuntos”, que é o santuário das mulheres. Ficam depositados em casa dos régulos por motivos de segurança. Com o Irã Grande da tabanca é possível realizar muitas cerimónias pessoais, como para pedir que alguém tenha saúde ou sucesso no trabalho.

Não se pode falar de arte Bijagó sem relevar as suas pinturas murais. É sobretudo nas ilhas de Canhabaque, Bubaque e Formosa que existem pinturas murais em santuários e em casas. Na atualidade estas pinturas podem ser encontradas sobretudo nas balobas (santuários) e nelas retratam-se cenas do dia-a-dia da sociedade local. Assim, encontramos imagens de Irãs, feiticeiros, defuntos e animais.

O pequeno fanado é um acontecimento iniciático que tem uma profunda envolvente religiosa. Em cada período de seis ou sete anos, realiza-se nas ilhas dos Bijagós o fanado das raparigas. São cerimónias de iniciação em que participam raparigas de idade compreendida entre os 17 e os 25 anos. Essas raparigas são chamadas aos “defuntos”, pois nessa cerimónia vão receber a reencarnação do espírito de uma pessoa já falecida.

Continuando nos aspetos religiosos, Eva Kipp refere os djambacós ou curandeiros. São mediadores procurados por pessoas que precisam de conselho, possuem artes de vidência e poderes de curandeiro. Realizam cerimónias com conchas, orientam sacrifícios de animais; casos há em que os djambacós praticam a cartomancia ou prescrevem tratamentos para pessoas doentes.

Os aspetos da reencarnação são crença inabalável das sociedades animistas da Guiné-Bissau, pois as pessoas continuam, para além da morte, a participar na vida diária dos que permanecem vivos. Eva Kipp estende estas considerações de índole religiosa que abarcam, por exemplo, o funeral de um Homem Grande, o fanado, o Kussundé, que é dança tradicional de algumas etnias animistas, e não esquece o papel dos “mouros”, que são os sacerdotes muçulmanos. No Islamismo, a religião está no centro da organização social, e ela refere a mesquita, a peregrinação a Meca para a obtenção do título de El Hadj e o jejum por altura do Ramadão, tudo está presente na vida diária do crente muçulmano. Aliás, os mais novos são induzidos à aprendizagem dos versículos do Corão em escolas. Nessas escolas corânicas inicia-se a criança. A criança deverá fazer os dois níveis que compõem a escola corânica, ela memoriza, através da repetição cantada, os versículos e aprende a escrever os mesmos em curiosas tábuas. Os mouros mais famosos reúnem em si o filósofo, o conselheiro familiar e político, o curandeiro e a autoridade religiosa.

Na recensão aqui publicada em 2011 concluiu-se dizendo que se tratava de um livro de grande valor fotográfico e que bem merecia ser reeditado. Mantém-se o apelo, é evidente que tem continuado a investigação da sociedade dos Bijagós mas há aspetos essenciais inquestionáveis: na religiosidade, na arte, no papel do djambacó ou curandeiro, nas práticas funerárias, até no fanado.

Durante muito tempo correu a lenda de que a sociedade Bijagó era patriarcal, hoje sabe-se que não é assim, a despeito da mulher Bijagó ter um desempenho relevante e incomparável face às outras etnias. No quadro geral da mulher guineense no trabalho, quando a família é poligâmica, é a mulher mais velha a dona da casa, é ela que atribui, no dia anterior, a distribuição das tarefas pelas outras. Mas na sociedade bijagó é bem claro que a mulher não goza da submissão das mulheres das outras etnias, tem plena liberdade, por exemplo, de manifestar o desejo de divórcio, que exterioriza pondo os tarecos do marido à porta, é deste modo que se torna evidente no local a sua decisão.

Não se pode estudar a sociedade Bijagó sem dar atenção ao belíssimo trabalho de Eva Kipp. E ponto final.


Barco Bijagó: estatueta de Bubaque.
O Irã Grande da tabanca de Angura, em Canhabaque, rodeado de objetos sagrados. À esquerda está o Irã de Mão do régulo.
Em frente do Nan, o régulo da tabanca de Angura com o tridente numa mão e o Irã de Mão na outra.
____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 7 DE JANEIRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P7567: Notas de leitura (185): Guiné-Bissau, Aspectos da Vida de um Povo, de Eva Kipp (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23248: Notas de leitura (1444): "Histórias da História da Guiné-Bissau", por Manuel Grilo, obra financiada pela Fundação do BCP para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998 (Mário Beja Santos)