segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?


Guiné ou Guiné-Conacri > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça ou mais provavelmente já em teritório da Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava às "áreas libertadas" > Novembro de 1970 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné- Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de retirada de Guileje, por parte das NT, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá da fronteira, utilizando o corredor de Guileje... 

O "grande celeiro do sul" abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de "Armazéns do Povo" que ia de Conacri até ao interior das "áreas libertadas" (o seu número não ultrapassaria as escassas duas dezenas, desde 1964 a 1974). Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra"  de que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, não fazia a mínima ideia...

Até ao fim da guerra, e pelos dados disponíveis (*), provenientes do próprio rgime, não haveria mais do que duas dezenas de "armazéns do povo" nas "áreas libertadas" (desconhece-se a sua locaização), para por volta de 1978 atingirem já um total de  de 129...


Fonte: Nordic Africa Institute (NAI)  / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias, em formato jpg,  tem numeração, esta é a nº 28, mas não trazem legenda. Legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. No livro de memórias do ex-cap inf Aurélio Manuel Trindade, ex-cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, jul 65 / jul 67)  ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, 339 pp), a palavra "arroz" aparece, obsessivamente, ao longo dos cerca de 70 capítulos ou histórias. 

Em Bedanda, em 1965/67, a população, maioritariamente fula, refugiada da guerra,  não cultivava arroz e passava fome, segundo o cap Cristo. O  arroz que se lá se consumia, vinha de barco,  de Bissau, ou então era o que era lavrado nas bolanhas em redor pela "população do mato" (maioritariamente balanta) controlada pelo PAIGC ou sob duplo controlo, e comprado pelos comerciantes locais às "mulheres do mato" que vinham à "povoação comercial" vender o que lhes sobrava (arroz, mandioca, mancarra, óleo)  e comprar o que lhes faltava (cana, tabaco, panos). Isto queria dizer que pelo menos no setor S3 (Bedanda), não havia "Armazéns do Povo" ou, se existiam, funcionava muito mal. Realidade ou mito,  os "armazéns do povo" foram um elemento importante da propaganda do PAIGC, nomeadamente para consumo externo. 

Em termos de segurança alimentar, e nomeadamente, no pós-guerra, no tempo do Luís Cabral, a continuação da experiência dos "armazéns do povo" terá sido mais um dos "elefantes brancos" da economia planificada. A tal ponto que acabaram por ser "privatizados" (em 1992) e hoje definitivamente extintos (segundo notícia da agência Lusa, de 1 de abfril de 2022)...

Do lado das NT ("nossas tropas"), na época, ao tempo dp governador e comandante-chefe  gen Arnaldo Schulz, a missão era (e iria continuaria  a ser no início do consulado de Spínola) "aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo". O arroz, muito em especial, era destruído: era a base da alimentação da guerrilha e da população sob o seu controlo. O mesmo se passava com o gado e demais animais domésticos: às vezes salvavam-se as vacas, desde que fosse possível transportá-las para o aquartelamento mais próximo. (Spínola percebeu, tardiamente, que o terror não se combatia com o contra-terror...).

Leia-se estes excertos, retirados do livro acima citado, de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do hoje ten gen ref Aurélio Manuel Trindade):

(...) Logo os pelotões do Carvalho e do Oliveira dispersaram e se espalharam pela bolanha. Alguém tinha fósforos, fizeram-se tochas e com um rapidez incrível os homens iam de monte em monte e destruíam o arroz. A bolanha ficou em chamas. Os homens libertavam-se da tensão com que estiveram toda a noite e manhã. O arroz era a principal fonte de rendimento. Destruir o arroz era como destruir as fábricas no tempo da segunda grande guerra mundial. A companhia destruía sempre todo o arroz que encontrava na sua passagem. O capitão dizia que era mais importante destruir o arroz do que as casas. Estas podiam ser facilmente reconstruídas, mas o arroz representava o trabalho perdido de um ano e era preciso esperar pela nova colheita (...) (pág. 144) (Negritos nossos).

(...) "Muito preto e pouco branco, é tropa de Bedanda e é preciso ter cuidado. Muito branco e pouco preto é outra tropa. Outra tropa não mete tanto medo à população do mato nem aos guerrilheiros (...) (pág. 146) (Negritos nossos).

(...) O Capitão Cristo nem teve tempo de dizer mais nada. O Cordeiro e os seus homens
já iam a meio da bolanha, em direcção às LDM, com as vacas. Foi debaixo de fogo que
a tropa teve que embarcar, mas os guerrilheiros tiveram que assistir à coragem da tropa
de Bedanda que, nas suas barbas, lhes surripiou 14 vacas

A Marinha, depois de muita insistência, lá embarcou as vacas, ficando onze para a companhia de Bedanda e três para os marinheiros. Tudo negócio feito pelo Cordeiro. Iriam ter carne para alguns dias. 

A nossa vacaria ficava na área controlada pelos guerrilheiros, mas nós íamo-nos
abastecendo desta forma pouco ortodoxa, não tínhamos alternativa. Ou vacas
roubadas ou nada. Chegados à Companhia, cansados física e psicologicamente, o mais
difícil de acalmar era o capitão Cristo que dizia mal da companhia de Cufar e do
Comando do Batalhão. (...) (pág. 56).

Curiosamente, não aparece, nas 4 centenas do livro, qualquer referência aos famosos "armazéns do povo" de que o PAIGC se gabava de ter, em funcionamento,   nas "áreas libertadas",e em particular no sul do território... Se eles existiam, o cap Cristo e os seus homens da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 nunca os viram ou lhe prestaram a mais pequena atenção...

Vale a pena reproduzir aqui um excerto do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971 (**), documento classificado na época como reservado, e de que nos foi facultada uma cópia,   pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, na situação de reforma. 

O documento teve ampla divulgação no blogue, sob a série " PAIGC: Instrução, táctica e logística: Supintrep, nº 32, Junho de 1971".

Na altura, e por causa de alguns melindres de alguns dos nossos camaradas,  fizemos questão de sublinhar que a divulgação deste e doutros documentos sobre a organização e o funcionamento do PAIGC era meramente informativa, não implicando, da nossa parte, qualquer juízo de valor. 

Por outro lado, tivemos o cuidado de lembrar que  não se tratava  de um documento de PAIGC, mas sim das NT,  embora utilizasse fontes escritas e orais ligadas à guerrilha contra a qual  então combatíamos. A sua origem era o próprio Com-Chefe da então província portuguesa da Guiné. Tratava-se de um subintrep distribuído aos comandos das unidades do CTIG em junho de 1971 (Supintrep: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar).

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares, há diversa documentação fotográfica sobre os "armazéns do povo". 


2. Subintrep nº 32, junho de 1971 > AGRICULTURA, PECUÁRIA E INSTALAÇÕES COMERCIAIS (*)

(1) Produção agrícola e pecuária nas “áreas libertadas”

Em todas as “áreas libertadas” do sul da província a produção das culturas alimentares tem registado elevado crescimento, tanto como resultado do aumento das superfícies cultiváveis com ainda em consequência de melhores cuidados atribuídos a essas culturas.

Efectivamente, apesar da redução do tempo útil de trabalho motivado pela crescente actividade das NT, muitas bolanhas têm sido aproveitadas, o que se traduz num aumento de produção de arroz em percentagens que chegam a atingir de ano para ano os 20%. 

As “áreas libertadas” do sul são mesmo já autosuficientes para satisfação das suas necessidades alimentares, sendo os excedentes da sua produção de arroz enviadas para o exterior, para distribuição a outros locais onde a produção não atinge os níveis necessários.

O mesmo não acontece no norte da província. Aqui a população, tradicionalmente mais ligada a outras culturas, não produz arroz em quantidades suficientes para se abastecer, pelo que são enviadas regularmente colunas à fronteira para transporte desse produto para o interior.

Outras culturas alimentícias, tais como mandioca, batata doce, milho e legumes, subsidiárias na ração alimentar da população, têm tido também apreciáveis aumentos de produção. O desenvolvimento da cultura de féculas e legumes abre novas perspectivas para a utilização de um sistema alimentar novo, reduzindo o uso do arroz, quer na frequência quer na proporção.

Ainda nas “áreas libertadas” do sul, nomeadamente nas regiões de Catió e Cacine, as populações têm-se dedicado ainda ao desenvolvimento das culturas frutíferas, tendo os cuidados prodigalizados no tratamento permitido a obtenção de uma abundante produção de anazes, bananas, papaias, laranjas, etc.

Igualmente se refere, dada a importância de que se reveste, a especial atenção que tem sido dada ao tratamento de gado e animais de criação.

Como factores decisivos no desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que se verifica especialmente nas “áreas libertadas” do sul, refere-se, por um lado, a existência de agrónomos especializados na Rússia e Cuba e, por outro, o intenso trabalho político levado a efeito no seio das massas rurais, convencendo-as da importância que representa o desenvolvimento agrícola das “áreas libertadas”.

A fim de recompensar os que mais se esforçam no trabalho dos campos, o Partido institui prémios para os melhores produtores.


(2) Empresa de comércio geral (Armazéns do Povo)

Em fins de 1965 afirmava Amilcar Cabral:

“Na Guiné, em dois anos e meio de luta armada, libertámos cerca de metade do país. Nas regiões libertadas estamos a construir uma vida nova, temos várias dezenas de escolas, instalámos comércio para abastecer as populações em artigos de primeira necessidade através dos Armazéns do Povo, criámos serviços de assistência sanitária e vários outros organismos que definem o novo Estado em formação”.

O objectivo do PAIGC, ao levar a cabo estas iniciativas, foi o de criar condições que estabelecessem bases de uma sociedade nova. No que diz respeito aos Armazéns do Povo teve-se em vista a sua criação satisfazer as necessidades de abastecimento das populações, fornecendo-lhes artigos de uso corrente para seu consumo em troca de produtos agrícolas que, por sua vez, são trazidos para o exterior onde são vendidos, revertendo os lucros dessas transacções para os cofres do Partido.

Verifica-se, assim, que os Armazéns do Povo permitiram a valorização do trabalho do povo, na medida em que trouxeram uma solução ao problema da comercialização, da agricultura e artesanato, já que, como se referiu, os produtos agrícolas (arroz) e, provavelmente, os artigos de artesanato funcionam como moeda de troca.

Estes Armazéns não são contudo, em princípio, destinados a auferir lucros. Dando para já uma experiência útil na futura organização do comércio, os Armazéns do Povo têm como objectivo, na hora actual, servir como elo e ligação com as massas, representando por si só uma arma poderosa ao serviço dos interesse do povo e do Partido, não só do ponto de vista económico mas também, e especialmente, do ponto de vista político.

Através deles, na medida em que evita as transacções comerciais nos nossos estabelecimentos, o PAIGC procura o nosso "isolamento" ao mesmo tempo que garante a segurança das suas "áreas libertadas"

Dum modo sumário e face aos elementos disponíveis, é a seguinte organização e funcionamento da Empresa de Comércio Geral do PAIGC, a qual depende, para efeitos de organização do Departamento da Organização e Questões Internas e para efeitos da prestação de contas do Departamento de Economia e Finanças.

Esta tem em Conacri o órgão de abastecimento central – os Armazéns Centrais – e “antenas” em todas as “regiões libertadas” – Armazéns do Povo -, designados também por Depósitos, os quais são numerados, encontrando-se à frente deles um responsável, possuidor de conhecimentos genéricos de contabilidade.

Como se referiu, os Armazéns Centrais abastecem estes Depósitos com artigos de consumo corrente nomeadamente açúcar, sal, conservas, roupas e calçado, enviando à data da expedição dos artigos uma "factura" na qual constam discriminadas as quantidades e valor da mercadoria.

Muito embora seja utilizado o dinheiro, o mais vulgar é o sistema de permuta em que os podutos agrícolas, especialmente o arroz, ou mesmo o gado, funciona como "moeda" de troca, sendo os produtos obtidos na troca enviados aos Aramazéns Centrais com nota de remessa, local onde essa distribuição é devidamente escriturada em mapas dos quais se junta o Mapa de Distribuição de arroz.

Admite-se, para facilidade de transporte, que parte desses produtos sejam enviados directamente às bases logísticas sem passar pelos Armazéns Centrais, embora estes movimentos em mapa sejam sempre feitos nestes armazéns creditando-se às Bases que directamente receberam os produtos.

Todos estes movimentos são contabilizados, sendo feitas periodicamente inspecções tendentes a verificar a “situação” em que se encontram os depósitos.

Nestes, diariamente, é elaborado um mapa relativo às receitas diárias, no qual são escrituradas as mercadorias saídas e a entrada de produtos.

Ainda se conhece, nos movimentos dos Depósitos, um documento nota de crédito. (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos: LG] (***)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca > Rio Udunduma, afluente do rio Geba Estreito  > 1970 >  A  economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... 

As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... 

Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se fundamentalmente por duas vias: (i) o pré dos soldados africanos e das milícias (a par do dinheiro que as lavadeiras recebiam); e (ii)  e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... 

O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado, para além da destruição de toneladas de arroz... Muitos animais foram abatidos a tiro, nalguns casos foram, inclusive, levados até ao aquartelamento do Xitole onde foram abatidos e consumidos.

Também não há referências, no relatório da Op Lança Afiada, a "armazéns do povo" no Sector L1,  nas áreas controladas pela guerrilha. A existirem, deveriam estar muito bem escondidos ou camuflados, em zonas de floresta-galeria, de difícil observação tanto aérea como terrestre.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 
15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)

(...) Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados: “Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”. (...)

domingo, 11 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23608: Blogpoesia (786): "Esta cabeça esgotada", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


ESTA CABEÇA ESGOTADA

Este livro
este copo
esta mesa…
…este mar d’águas quentes
bordando a lodo o cais de Pindjiguiti
onde caiu meu corpo
no dia da memória.


Este livro
este copo…
…este mar d’água e sangue
estoirado na cabeça
do último respiro
da vida e da história.


Este livro…
…este Wiriyamu fuzilado
na penugem de Chinteya
nas balas de Vaina
no esventrar de Zostina.


Esta cabeça esgotada
de milhões de pensamentos
perdidos na estrada…
…este chão de Babi-Yar de sangue regado
nas lágrimas caladas
do Dniepre.


Esta cabeça esgotada
de acordar pensamentos…
…este grito do vento
nas entranhas do Soweto
dos rios da morte
e do silêncio.


Esta cabeça esgotada…
…esta louca mania
de semear momentos
em séculos de nada.


adão cruz (poema e pintura antigos)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23606: Blogpoesia (785): "Estrela que brilhas no horizonte sem idade" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

Guiné 61/74 - P23607: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XV: Conto - O lobo que queria comer os filhos da lebre



Ilustração (pág. 79) do mestre Augusto Trigo (2016), pai da pintura guineense e grande ilustrador, a sua obra é uma referência.
 


O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das pp. 79/80 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)



J. Carlos M. Fortunato > Lendas e contos da Guiné-Bissau



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


Conto - O lobo que queria comer 
os filhos da lebre (pp. 79/80)



Um dia, o lobo (hiena) foi à casa da lebre para lhe comer os filhos, mas a lebre conseguiu fugir e foi esconder os filhos ao pé de um poilão (36).

O lobo não desistiu e continuou a procurar os filhos da lebre. Tanto o lobo procurou, que acabou por descobrir o local onde estavam os filhos da lebre.

A lebre não estava em casa, porque tinha ido ao mercado comprar peixe, mas os filhos da lebre ao sentirem o lobo perto, fugiram para o alto do poilão. O lobo pelo cheiro sentia que os filhos da lebre estavam perto, mas não os conseguia encontrar. Então imitou a voz da lebre a chamar os filhos.

   Meninos, onde estão?     chamava o lobo imitando a lebre.

Mamã, mamã, estamos aqui em cima −  responderam os filhos da lebre do alto do poilão, e pensando que era a mãe que tinha chegado, atiraram uma corda para ela poder subir. Ao ver a corda, o lobo começou a subir por ela acima para ir comer os filhos da lebre, mas nesse momento chegou a lebre.

 A lebre nem precisou de corda para subir rapidamente até ao alto do poilão, e, lá de cima, chamou o lobo:

−  Vem, vem para aqui, para junto de mim!

E o lobo assim fez, pois assim comia primeiro a lebre e depois os filhos. Quando o lobo chegou perto, a lebre indicou-lhe um tronco para ele se sentar e disse-lhe:

−  Senta-te aqui, enquanto eu arranjo este peixe. Depois, já me podes comer.

Como a lebre não podia fugir, o lobo pensou logo que ia ficar de barriga cheia, pois ia comer a lebre, os seus filhos e ainda o peixe que ela estava a arranjar.

A lebre que era muito esperta, tinha escolhido um tronco podre para o lobo se sentar. Assim, quando ele se sentou, o tronco partiu-se e o lobo caiu do poilão e ficou no chão sem se mexer.

A lebre, como sabia que o lobo podia estar a fingir de morto, disse para os filhos:

 
−  Não  vamos descer já. Vamos esperar até vermos as moscas poisarem em cima do lobo.

Quando a lebre e os filhos viram as moscas poisadas em cima do lobo, ficaram tão contentes que até dançaram. O lobo tinha morrido.

E foi assim, que a lebre conseguiu salvar os seus filhos de serem comidos pelo lobo.

_________

Nota do autor:

(36) Poilão - árvore de grande envergadura, muito vulgar na Guiné-Bissau.


2. Vamos ajudar a Ajuda Amiga: com pouco podemos ajudar muito

(i) Donativos em Dinheiro

Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTPL

 
(ii) Donativos em Espécie


Os bens em espécie que a Ajuda Amiga valoriza, prioritariamente, neste momento, são:
  • Dicionários de português;
  • Gramáticas básicas de português;
  • Material escolar;
  • Computador portátil;
  • Impressora laser;
  • Bolas de futebol.

3. Ajuda Amiga > Contactos:

J. Carlos M. Fortunato
Presidente da Direção da ONGD Ajuda Amiga
E-mail jcfortunato2010@gmail.com | E-mail jcfortunato@yahoo.com
Telem. +351 935247306

Escritório > Ajuda Amiga – Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento
Rua do Alecrim, nº 8, 1º dtº
2740-007 Paço de Arcos

Sede > Ajuda Amiga – Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento
Rua Mário Lobo, nº 2, 2º Dtº.
2735 - 132 Agualva - Cacém

Armazém > Centro de Atendimento da União das Freguesias do Cacém e São Marcos
Rua Nova do Zambujal, 9-A, Cave
2735 - 302 - Cacém

NIPC 508617910
ONGD – Organização Não Governamental para o Desenvolvimento
Pessoa Coletiva de Utilidade Publica

Sítio: http://www.ajudaamiga.com

Facebook: https://www.facebook.com/Ajuda-Amiga-1050756531631418/?ref=hl

E-mail: ajudaamiga2008@yahoo.com

Telemóvel: +351 937149143

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23254: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XIV: Conto - O lobo e a lebre vão à pesca (pp. 75/78)

sábado, 10 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23606: Blogpoesia (785): "Estrela que brilhas no horizonte sem idade" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

1. Na mensagem de 1 de Setembro de 2022, onde vinha a estória do Senhor Augusto, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos também um cartaz com a publicidade ao seu livro "Palavras que o Vento (E)Leva", a lançar brevemente, e um poema dedicado a uma criança, quem sabe, um neto:

Meus amigos editores
(...)
Junto também um cartaz publicitário do livro que vou lançar e um poema para juntar.

Fraternal Abraço do
Zé Teixeira


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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23585: Blogpoesia (784): "Meu amigo Dostoievsky", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23605: Os nossos seres, saberes e lazeres (525): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (67): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 5 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Ainda há bastante para calcorrear, mas, por minha conta e risco, vou percorrer aqueles espaços que a memória nunca abandonou, são recordações encetadas em 1977, têm o condão de se cruzarem com muitíssimas outras. Foi com pesar que não encontrei uma exposição que me desse volta ao miolo, a idade ajuda-nos a ser sinceros naquilo que chamamos valores estéticos, não contribuo para bater palmas com os troncos caídos umas pedras bolorentas ou uns cabos de aço a que chamam instalações. Cirandei por Marolles, é a veia cava das minhas compras de pechisbeque, revolutiei pelo centro, foi o imenso adeus, até à próxima. Amanhã será um dia de estalo, visita à Villa Empain, uma joia do modernismo, estão aprazados passeios pela Cité du Logis, e pela primeira vez irei conhecer as entranhas do maior matacão de Bruxelas, o Palácio da Justiça, é o Vale dos Reis nesta capital, uma monumentalidade tão desmesurada que nem dá para ficarmos boquiabertos.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (67):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 5


Mário Beja Santos

É sempre com um profundo sentimento que visito a Igreja de Santa Maria Madalena, a escassas centenas de metros da Grand Place, e numa artéria cheia de movimento. Tem estado várias vezes ameaçada, conheceu uma profunda intervenção entre 1956 e 1958 e a sua origem remonta a meados do século XIII, como qualquer outro templo religioso conheceu adições desde o gótico ao barroco, mas impressiona-nos pela harmonia das dimensões, a natureza dos seus materiais e a cor dos vitrais. A ameaça mais recente foi no princípio do século XX, à sua volta houve imensos trabalhos, lá foi poupada e restaurada. Confesso que são os vitrais do coro (que ilustram a história da Redenção, da Ressurreição e da Contemplação de Deus) que mais me impressionam. Há também uma referência aos mártires de Gorcum (1572), o relicário está na Igreja de São Nicolau, também ali perto, lá para o fim da tarde dar-se-á uma saltada. Estes vitrais de meados do século XX, perfeitamente datados, opinião minha, gozam de uma espiritualidade inatacável.
Interior da Igreja de Santa Maria Madalena
Sai-se da Igreja de Santa Maria Madalena com vontade de subir o Monte das Artes, só para contemplar o Hotel Ravenstein, não conheço nada de tão impressivo em mansão aristocrática entre os fins do século XV e princípios do século XVI no belíssimo estilo gótico brabanção, não perco a oportunidade de entrar no Bozar (Palácio das Belas Artes, construção de Victor Horta), infelizmente o que oferece em exposições não me levanta o entusiasmo, prefiro calcorrear, é nisto, a descer o bairro de Marolles que deparo, primeiro com a icónica capa do livro de banda desenhada de Edgar Jacobs, “A Marca Amarela”, quem andou por ali a pincelar sabe da poda e não esconde admiração pelo genial artista, e depois confrontei-me com um espetáculo, mas não escondo que foi o mural que me reteve ali tempo suficiente na contemplação, a ver se na próxima visita aqui venho em peregrinação.
É como se estivesse a despedir-me de Marolles e não me satisfaz a melancolia que me invade a alma. É uma das artérias mais antigas de Bruxelas, ainda há vestígios de comércio com quase um século, como esta montra de uma enorme elegância, e depois encontro um baixo relevo modernista, que não deixa de me fascinar, o bairro está a ser gentrificado, mas dá gosto ver o cruzamento de marroquinos e turcos, turistas de diferentes índoles, gente de África, parei a ver este trânsito humano e a pensar naquele festival de que anteriormente vos falei, esteve suspenso 2 anos, percebe-se neste tráfego de desvairadas gentes como na Bruxelas capital o discurso do ódio e o racismo vesgo não pegam.
Após uma paragem para me amesendar e, diga-se a verdade, dar um certo descanso às pernas, regresso à Igreja de São Nicolau, um templo religioso bem cuidado, gosto de ver os edifícios civis a ela adossados, em Bruxelas não conheço coisa igual, deve ser o último vestígio da Idade Média, o relicário dos mártires de Gorcum prende-se com os tumultos religiosos da Reforma, 19 crentes católicos foram enforcados pelos protestantes holandeses, o relicário é uma peça impressionante, um primor de artes decorativas.
Por ali deambulei a ver a Virgem e o Menino ao bom estilo de Rubens, uma bela capela, fiz as minhas despedidas, era inevitável, a caminho de apanhar o metropolitano, dar uma derradeira olhadela à câmara municipal na Grand Place, sempre gostei muito deste ângulo. Amanhã vai ser um dia agitado, mete passeio matinal à volta de Watermael-Boitsfort e há uma bela vila modernista à nossa espera, confidencio que foi um dos mais belos dias que passei em Bruxelas, estou pronto a repetir.
(continua)
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 3 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23582: Os nossos seres, saberes e lazeres (523): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (66): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 4 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23595: Os nossos seres, saberes e lazeres (524): Viagem no Douro (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23604: Convívios (939): XIX Encontro do pessoal do HM 241 de Bissau, dia 8 de Outubro de 2022, em Espinho. Almoço/Convívio dos antigos Militares da CCAÇ 2797; Pel Canh S/R 2199; Pel Caç Nat 51 e Pel Caç Nat 67, dia 8 de Outubro em Leça da Palmeira

C O N V Í V I O S

1. Em mensagem do dia 8 de Setembro de 2022, o nosso camarada Manuel Freitas (ex-1.º Cabo Escriturário do HM 241, Bissau, 1968/70), dá notícia do 19.º Encontro do Pessoal daquela Unidade de Saúde, no dia 8 de Outubro, em Espinho.

Boa tarde
Pedia o favor de anunciar o 19.º Encontro do pessoal do HM 241 - Guiné.
Será no dia 8 de Outubro em Espinho.

Contacto 964 498 832 - Freitas

Obrigado
Cumprimentos,
manuel freitas | manuel.freitas@equicontas.com


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2. Mensagem do nosso camarada José Alberto Mota, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 2797 (Cufar, 1970/72), com data de 9 de Setembro de 2022:

Antigos militares da CCAÇ 2797 em conjunto com o Pelotão de Canhões 2199 e graduados dos Pelotões de Caçadores Nativos 51 e 67, que fizeram a sua comissão na Guiné, localidade de Cufar em 1970/72, vão ter um encontro de confraternização de almoço a realizar no dia 8 de outubro no Hotel Tryp Expo Porto em Leça da Palmeira.

Algum camarada interessado que serviu esta Companhia ou Pelotões, queira por favor contactar José Alberto Mota para 918 623 378.

Muito grato fico à Tabanca Grande, a eventual possibilidade de ser feita publicidade no vosso blogue à realização deste encontro.

Com os meus melhores cumprimentos
José Alberto Mota,
Ex-Furriel Miliciano de Transmissões
CCAÇ 2797 - Cufar

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23492: Convívios (938): Almoço de confraternização do pessoal da 2.ª CART/BART 6521 (Có, 1972/74), dia 24 de Setembro de 2022 em Cacia - Aveiro (José Morgado)

Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"

 
Guiné > Região de Cacheu > CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) >  2 de maio de 1969  > O nosso camarada, membro da Tabanca Grande (e da Magnífica Tabanca da Linha), Miguel Rocha, ex-alf mil inf, na altura a fazer as funções de comandante da companhia,  aqui a "tabaquear o caso",  com a presidente do Movimento Nacional Feminino, Cecília Supico Pinto  (1921-2011) (a menos de um mês do seu 48º aniversário natalício)... O nosso camarada "indaga da possibilidade de obter mais uns maços de tabaco para os rapazes da sua Companhia" (*)... Mas o caixote está quase vazio... e o que restava já tinha destino... Até o tabaquinho era rateado...

O caixote tem uma marca ou um logo, "INTAR", que hoje a maior parte dos nossos leitores já não é capaz de decifrar: INTAR - Empresa Industrial de Tabacos, SARL... Foi nacionalizada, juntamente com a Tabaqueira (grupo CUF): as  duas empresas tabaqueiras detinham praticamente a totalidade do mercado nacional de cigarros. Em 30 de junho de 1976,  foi criada a Tabaqueira - Empresa Industrial de Tabacos, EP (que já não existe, ou melhor é ums subsidriária de uma multinacional).

Esta cena (a da foto acima)  foi recordada pelo Miguel Rocha, em poste ainda recente (*). E nele acrescentou:

(...) "no ano do I Centenário do nascimento (30/05/1921) de Cecília S. Pinto, em sua memória, e com profundo respeito e admiração pela sua pessoa e sua obra, não esquecendo todas as outras Senhoras do MNF, muitas delas Mães de jovens mobilizados para as frentes de combate, venho aqui deixar meu testemunho de eterna gratidão pelo apoio dado aos combatentes na sua inegável qualidade de 'portadora de afectos' " (!) (...).(*)

Foto (e legenda): © Miguel Rocha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné  > Região de Tombali > Nhala > 10 de março de 1974 > Visita da líder do  Movimento Nacional Feminino > A Cilinha, aqui já com 53 anos feitos, de óculos escuros, e sempre impecavelmente vestida e penteada,  olha directamente para a objectiva do fotógrafo.  Ela sabia que, ali no "cu de Judas", era o alvo de todas as atenções... Era uma mulher, branca, de personalidade forte, corajosa, elegante e vistosa sem ser bonita.  Em 1974, já tinha o "respaldo político" que tinha no tempo de Salazar...

A seu lado o comandante de batalhão de Aldeia Formosa, ten cor inf Carlos Alberto Simões Ramalheira, e o cap mil inf Domingos Afonso Braga da Cruz (1946-1987), cmdt da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72,  que estava em Nhala, tendo estado também em Aldeia Formosa e Cumbijã. (A 1ª Companhia passou por Buba e Mampatá; a 3ª estava em Aldeia Formosa.)

Foto (e legenda): © António Murta  (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Estas duas fotos, com uma diferença de cinco anos,  servem para ilustrar uma outra visita, do MNF, realizada en 1966,  três anos e oito anos antes (respetivamente),  ao capitão Cristo e aos seus bravos de Bedanda, e reconstituída no livro de memórias do cap inf Aurélio Manuel Trindade (n. 1933) ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, pp.  340-342), de que temos publicado diversas notas de leitura (**)

A visita a Bedanda está descrita em  três páginas deliciosas que servem para comprovar que a Cilinha e o seu Movimento Nacional Feminino (MNF) estavam longe de ser consensuais e até queridos, aos olhos de muitos militares, não só milicianos (que eram os mais críticos), como  também de uma parte dos  oficiais do quadro permanente, sobretudo os mais jovens.

Os militares de Bedanda (onde estava a 4ª CCAÇ, companhia de guarnição normal da província)  é contemplada por uma rápida e inesperada  visita de duas senhoras do  MNE, que vêm de Bissau, de DO-27 (presume-se), acompanhadas de um alferes.  

O autor não a identifica, mas a protagonista desta história da visita (que  "acabou por não dignificar em nada o MNF", pág. 340), era seguramente a Cecília Supico Pinto (mais conhecida por "Cilinha" pelos "rapazes" que prestavam serviço no ultramar). 

A visita deve ter ocorrido em fevereiro de 1966, na época seca (a primeira vez que ela foi à Guiné,  à sua "Guinezinha") (***), e não em junho de 1966 (já na época das chuvas, como sugere o cap Cristo, traído  certamente pela memória, ao dizer que já tinha 11 meses de comissão). 

Na mesma altura, a CCAÇ 736, em Cufar (1965/66), comandanda pelo cap inf  (Carlos Alberto Wahnon Mourão da) Costa Campos recebeu a visita da  delelegação do MNF, constituída pela  Cecília Supico Pinto e  a Renata da Cunha e Costa, aqui documentada pelo nosso Mário Fitas, ex-fur mil op esp,  no poste P8371 (****)

O cap Cristo terá sido pouco "oficial e cavalheiro" no trato com as senhoras, dirão alguns... No livro é irónico, para não dizer sarcástico e até truculento, na descrição e apreciação que faz da visita (é certo que muitos anos depois, talvez 30 anos depois):

Primeiro "hipotecaram um avião" (sic), um recurso sempre escasso e dispendioso naquela época e, para mais, no sul da Guiné, e depois "os resultados da visita foram menos que nulos porque foram negativos". 

(...) Depois da visita ficaram convencidos de que as senhoras quiseram ver, com
os seus próprios olhos, uns macacos que levavam vida de cão, algures no sul da Guiné, sem as mínimas condições e péssima alimentação (...)  Negritos nossos].           

Num aquartelamento onde faltava tudo ou quase tudo, abastecido penosa e perigosamente uma vez por mês, por via fluvial, a visita das senhoras do MNE, de mãos vazias, podia parecer um insulto gratuito. E, para a tropa nativa, deveria ser algo de intrigante e exótico:

(...) Quanto a frescos, muito raramente os comiam. Combatiam os guerrilheiros, dia e noite, sendo mais os dias de contacto com a guerrilha do que o contrário. Não por acaso dizia-se que Bedanda era uma ilha cercada pela guerrilha. Na opinião dos oficiais da Companhia de Bedanda as senhoras queriam levar no seu palmarés, para contarem às amigas durante os chás-canastas, que tinham estado no sul da Guiné, numa Companhia onde o perigo era constante. Para elas isso era bom, para a tropa era um frete (...) (pág. 340).

"Frete": eis talvez o termo mais apropriado, para  caracterizar a atitude dos homens de Bedanda face à visita meteórica das duas senhoras do MNF. Esta opinião seria compartilhada por alguns comandantes de subunidades no mato, comandantes operacionais como o cap Cristo que davam o "litro e meio" e pouco ou nada recebiam em troca, dos  seus superiores hierárquicos (comando de setor, comando de agrupamento e senhores de Bissau). 

O cap Cristo, pessoa civilizada e militar aprumado, mas frontal, beirão, cumpriu naturalmente os seus deveres de hospitalidade, "oferecendo-lhes o que tínham: cerveja, uísque e conservas",  sem esquecer a  água... que era ingerível. Em contrapartida, elas nada tinham para ofecerer, para além das palmadinhas nas costas, dos sorrisos postiços e da exibição... da cor da pele:

(...) A visita tinha sido mal planeada. Uma visita deste tipo deve ser acompanhada de algumas lembranças, bolas de futebol, por exemplo, ou rádios, jogos de damas, isqueiros, cartas, algo que possa servir para atenuar o isolamento destes homens. Nada disso foi oferecido à Companhia pela delegação do MNF. 

As ofertas foram exclusivamente bate-estradas [aerogramas, na gíria da tropa, LG] que divididos pelo efectivo, davam três exemplares a cada militar. Era muito pouco para uma visita que se supunha ter por finalidade dar alguma alegria e apoio aos militares. O capitão pediu outros materiais ao MNF que nunca foram recebidos (...) [Negritos nossos] . 

No decurso da visita, o cap Cristo verificou que "uma das senhoras era mais extrovertida do que a outra. Falava muito com toda a gente, e na sala de oficiais sentou-se em cima duma mesa com as pernas a baloiçar e a saia um pouco subida, parte das coxas à mostra" (...) (pág. 340).  

Este diálogo entre os dois (a senhora só pode ser a Cilinha que, nessa altura, em fevereiro de 1966, já tinha 45 anos), reconstituído muitos anos depois, merece ser transcrito (pág. 341). É um belo naco de prosa castrense:

(...) "- Senhor capitão, há quanto tempo está aqui?

─ Onze meses, minha senhora. [Ele queria dizer sete meses, desde julho de 1965, fez mal as contas. LG ]

─ Já foi à metrópole depois de ter chegado à Guiné?

─ Ainda não. Quando cheguei vim logo para Bedanda e daqui só tenho saído para o mato. Nem a Bissau fui.

─ Então hoje está cheio de sorte.

─Não sei porquê. Só se for por ter visitas. Para quem está isolado da civilização como nós estamos, as visitas são sempre bem-vindas e dão-nos muito prazer e alegria.

─ Era disso que eu estava a falar. E as de hoje são visitas especiais. Desde há onze meses que não via uma branca e hoje teve oportunidade de ver duas.

─ É verdade,  minha senhora. Nesse ponto tem razão. Já não via uma mulher branca há onze meses e daqui a pouco nem sei como elas são. Hoje vejo duas brancas e duma delas vejo as pernas até às coxas. Mas como deve calcular, isso é muito pouco. Quem está aqui no mato, na situação em que nós estamos, precisa e merecia mais do que ver brancas. E a esse respeito, como sabe, estamos a zero.

─ O senhor capitão é muito exigente.

─ Não, minha senhora. Primeiro não exijo nada, nem sequer a vossa visita. Segundo, tenho trinta anos e sempre ouvi dizer que um homem é um homem e um bicho um bicho. Além disso não sou de pau. Tenho as minhas necessidades como todos os homens e o instinto mais apurado pelas dificuldades por que tenho passado no que a nossa conversa subentende.

─ Compreendo a sua situação mas mais nada posso fazer.

─ De qualquer maneira muito obrigado pela intenção e pela boa vontade.

─ Senhor capitão, está na hora de me ir embora e acredite que deixo Bedanda com pena, e também sofro com a vida de isolamento que vocês aqui levam. Tudo o que puder fazer por vocês, farei. Gostaria, se me permitisse, de me despedir dos seus soldados à moda do MNF. (...)


A despedida da líder do MNE, perante a companhia formada na parada,  foi, para surpresa de todos, feita com um valente assobio à cabreiro da Serra da Estrela:

(...) ─ Pedi ao vosso capitão para me despedir de vocês. Gostei de estar aqui convosco, estas horas, tenho pena de não poder estar mais tempo. Daqui a pouco é noite e o avião não pode levantar voo. Tenho que estar hoje em Bissau. Sei que são uma boa tropa, valentes combatentes. Estou contente por isso e deixo-vos a minha solidariedade, amizade e respeito, bem como a de todas as mulheres portuguesas que se sentem felizes por saberem, que mesmo em más condições, os soldados portugueses cumprem com eficiência as suas missões. Se me permitirem vou-me despedir “à MNF”. (...)

E o autor não deixa o leitor com água no bico, descreve o modo da despedida com detalhe e sentido de humor:

(...) Ao dizer isto, a senhora leva dois dedos à boca e solta um assobio que faria inveja a muitos pastores. Toda a companhia ficou sem saber com reagir. Esperavam tudo menos os assobio. Conseguiu surpreender. O mais surpreendido parecia ser o capitão que olhou para a senhora com uma cara de basbaque que metia aflição (...) Negritos nossos]

A seguir, o capitão  e os restantes oficiais  acompanharam as senhoras até à pista, como mandavam as boas regras da etiqueta militar. Embasbacados, "ele e os alferes ficaram na pista até o avião desaparecer no horizonte". (...) (pág. 342).

Caros leitores, digam lá se não é um texto de antologia? Parabéns ao autor. Não estamos habituados a esta lhaneza e desassombro na escrita, por parte dos militares da sua geração, oriundos da Escola do Exército... Tiro-lhe o quico, meu general!...


Guiné > s/l > Fevereiro de 1966 > Cecília Supico Pinto, então com 44 anos, na sua primeira viagem à sua "Guinezinha",  falando para um grupo de militares; em segundo plano, um dos seus "braços direitos", também elemento da comissão central do MNF,  [Amélia] Renata [Henriques de Freitas] da Cunha e Costa.  

Fotograma do vídeo (6' 43'') da RTP Arquivos > 1966-02-01 > Cecília Supico Pinto visita Guiné (Com a devida vénia...)
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Notas do editor:



Último poste da série > 9 de setembrro de  2022 >  Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23602: Estórias do Zé Teixeira (60): O Senhor Augusto - Parte III (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Conclusão da estória do Senhor Augusto, enviada ao blogue pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) em 1 de Setembro de 2022.


O Senhor Augusto

José Teixeira

Parte III (Conclusão)


Um dia, em pleno verão, passou pela aldeia um médico novo, sobrinho da patroa. Levava um casaco branco vestido e montava um lindo cavalo branco. Atrás dele, juntou-se logo um magote de rapazes que o seguiram até entrar na porta da quinta. Eu tive mais sorte. Estava no quinteiro quando ele chegou. Escondi-me com medo do cavalo, e vergonha, mas ele sorriu-me. Deu um beijo à tia e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta pela quinta. Ela sabia que ele gostava muito de uvas e disse-lhe:
– Vai e leva o rapaz. Ele que te diga onde estão as melhores uvas.

Colocou-me em cima do cavalo, à sua frente, e lá fomos nós, todos lampeiros, para a vinha, onde estava o meu amigo. O senhor Augusto viu-nos ao longe e desceu ao carreiro de cabeça descoberta a saudar os visitantes. 
Claro que foi ele quem me indicou onde podia ir buscar as uvas para o senhor doutor, enquanto eles ficavam a conversar.

Foram uns dias maravilhosos para mim, os poucos em que o médico por lá ficou. Não havia tarde que não saltasse para a garupa do cavalo, com o senhor doutor atrás, para irmos visitar o guardador da vinha. Também ele se apaixonou pelas histórias. O senhor Augusto contou-lhe os seus padecimentos. O nosso amigo médico quando partiu, prometeu que ia ajudá-lo, e voltaria em breve.

E assim foi. Um domingo de manhã, o doutor chegou à aldeia. Vinha num automóvel, uma arrastadeira da Citröen, preta, como nunca se vira por aquelas bandas, e onde havia apenas um automóvel, o do embaixador da quinta de Padões, que aparecia na aldeia no tempo das colheitas.

Ao fim da tarde partiu de novo. Sentado ao seu lado, seguia o amigo Augusto que tivera o cuidado de tomar banho e vestir roupa lavada, antes de se apresentar, e partiram os dois para a cidade.
Voltou três meses depois, no comboio das cinco. Reconheci-o pelo andar quando ainda vinha longe. Era ele, o meu amigo, mas parecia outro. Abraçou-me ternamente e caminhámos monte acima. Agora, as histórias eram diferentes, eram histórias reais, e deixavam-me espantado. Recordo a da casa amarela com muitas janelas e um pau no telhado que corria pela rua fora cheia de gente…

Estava gordo, e vendia saúde. Afinal, não era assim tão velho com os seus sessenta e cinco anos. O nosso amigo médico internou-o às suas custas no hospital, onde foi tratado como um general. Foi operado à perna e recuperou bem, sobretudo deixou de ter dores ao movimentar-se. Fez outros tratamentos em que teve de tomar muitas mixórdias, e “picas” no rabo. A coluna já não doía. Era um homem novo. Sentia-se cheio de vigor, e com vontade de trabalhar.

No dia seguinte, apresentou-se na quinta e disse à patroa que se sentia como novo e queria voltar de novo para a labuta, no campo. E assim aconteceu, para alegria dos colegas que viam no Augusto um verdadeiro companheiro de trabalho.

Eu completei a escola primária, perdi-me na cidade à procura de um futuro melhor, e o meu amigo Augusto ficou pela aldeia. A luta pela vida afastou-nos. Sei que ainda viveu vários anos. Do que tenho a certeza é que, quando partiu para a sua última morada, teve muitos amigos a acompanhá-lo.

O senhor Augusto era um homem bom, e foi o meu melhor amigo quando eu ainda era uma criança.

Zé Teixeira

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Notas do editor:

Vd. postes de:

7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
e
8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
O diário de Sérgio de Sousa centra-se em Sagal, Moçambique, há emboscadas, muitas minas anticarro e muito sofrimento com as minas antipessoal. É um diário que dura menos de um ano, irá culminar com um acidente brutal que deixará este alferes-miliciano com incapacidade. O autor chamou-lhe inicialmente Diário de Guerra. O semanário O Jornal publicará em 1981 dois excertos. Assume o documento como um diário íntimo, não encontrei, em tudo quanto li até hoje, ninguém a ler tanto, a comentar tanto, a desnudar-se, tinha medo, como ele escreverá, da desintegração da personalidade, falará sempre mais de si, descurando gentes e ambientes. Quando, décadas depois, publica o que escrevera meticulosamente, e numa caligrafia arredondada e bem legível, dirá que já não é a mesma pessoa, como se fosse possível fazermos cisões de tal modo brutais em que os tempos de juventude deixassem de fazer parte do que prossegue na maturidade e na velhice. Mas reconheça-se que Sérgio de Sousa não tem rival nos diários de guerra.

Um abraço do
Mário



Um caso ímpar na literatura diarística da guerra colonial (1)

Mário Beja Santos

Intitula-se "Diário Pueril de Guerra", seu autor é Sérgio de Sousa, Editoral Escritor, 1999. Sérgio de Sousa pertencia à CART 2718, que partiu para Moçambique em 20 de maio de 1970, seguiu para Sagal, a sua unidade militar dependerá do BART 2918. O que cativa neste documento de um jovem de 23 anos, assumidamente snob, ledor compulsivo, que viajou por Franças e Araganças, é o olhar que lança, em permanência, para o que deixou do seu círculo de afetos, como este mesmo círculo de afetos o ajuda a urdir o grau de resignação como ele vive a guerra. Irá penitenciar-se no posfácio, escrito décadas depois, que perpassa o seu documento um desesperado egocentrismo, sobretudo pelo que ali é omitido, pouco ou nada saberemos de Sagal, é parcimonioso nas referências às operações, no entanto não deixa de empolar os múltiplos incidentes e acidentes. “E não há nenhuma referência à paisagem do planalto onde vivi durante meses e que, como se presumirá, era avassaladora. Nem a um espetáculo único que então presenciei, quando atravessei uma parte da floresta que tinha ardido, enterrando os pés nas cinzas quentes, e a nossa movimentação fazia mexer o ar parado, provocando a queda das árvores que se mantinham eretas, carbonizadas, até que a nossa passagem as fez cair, desfeitas. Não me detive quase a falar das pessoas com quem convivi. Em contrapartida, anotei uma série de temas que na altura pensava interessarem-me, e que não me parece hoje que tivesse o valor que lhe atribuía”.

Temos o embarque no Niassa, observa o que os outros leem, nota que os soldados dormem em beliches apinhados nas cobertas. Doze dias depois, chegam a Luanda, para ele é uma cidade ocupada pela tropa, entra nas casas de espetáculos, a viagem prossegue, lê Roger Vailland; os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, do John Reed, a 13 de junho saem à noite de Lourenço Marques, seguramente que o impressionou pois fala dela com alguma abundância:
“Nascida sobre uma prancheta de desenho, Lourenço Marques parte dos caraterísticos edifícios coloniais, de dois pisos, de madeira, sendo o inferior recuado, de modo ao passeio ficar coberto pelo outro piso, varanda ou telhado, assente em finas e espaçadas colunas de ferro, implantadas na borda do passeio. Assim nas três ou quatro ruas estreitas, junto ao porto.
Depois vêm, nas longas avenidas do centro, os bons edifícios não muito altos, onde se aloja o melhor comércio e os bancos. E já os prédios com mais de uma dezena de andares conquistam espaços na baixa e se difundem, ao longo das rasgadas avenidas que ganham uma periferia, de vivendas antiquadas para o interior, modernas e luxuosas ao longo da costa.
No caminho para o aeroporto, os bairros indígenas, imensos, no meio de um deles uma lixeira municipal. Situam-se à porta da cidade branca, para o interior, sendo as habitações mais próximas as mais decentes, segue-se a favela; algumas fábricas erguem-se por ali.
O urbanismo de Lourenço Marques vinca a sua realidade racista. Na cidade racionalizada, elegante, luxuosa, só penetram os negros dos serviços que se apresentam limpos e decentemente vestidos. Além dos serviços, nada mais há na vida da cidade branca que lhes seja acessível. Os brancos nada têm que fazer nos bairros indígenas, por isso não entram lá”
.

Também não perdeu a oportunidade de entrar nos cabarés laurentinos. A viagem prossegue pela beira até chegar a Nacala, depois Porto Amélia, finalmente Mocímboa da Praia. Já ouviu várias vezes falar na Operação Nó Górdio, ele irá participar nela. A sua unidade parte de Mocímboa da Praia para Diaca, e chega-se a Sagal, considera que as instalações são bastante razoáveis, pertenciam a uma antiga exploração algodoeira. A casa senhorial é ocupada pela messe de oficiais.

Já se respira a Operação “Nó Górdio”, como ele escreve no seu diário:
“Consiste num cerco a uma região onde o inimigo se encontra, e intervenções de limpeza no interior desse cerco. A picada fica a constituir parte do limite da área cercada; ao longo dela as nossas tropas hão de emboscar-se e executar patrulhamentos (…) Levámos grande parte da manhã e toda a tarde para percorrer os seis quilómetros de picada nova aberta três dias antes; nela foram detetadas e rebentadas dez minas anticarro e removidos bastantes abatises. Numa das vezes em que, ao ser detetada uma mina fizemos reconhecimento pelo fogo para, prevendo a hipótese dela ser comandada, afugentar o acionador, o inimigo respondeu com fogo de presença”.

No início de julho, Sérgio de Sousa sai com o seu grupo de combate para montar uma emboscada em Chindorilho. A “Nó Górdio” já está a decorrer. A Berliet que seguia à frente estrondeia, segue-se uma emboscada, caíram na zona de morte o Unimog, uma Fox e um Granadeiro. Finda a emboscada retiram da Fox o condutor, tinha uma perna perdida, fora uma bazucada que lhe acertara. “Juntei os meus homens e fomos fazer uma batida ao local de onde partira a emboscada. Encontrei a uns trinta metros da picada, o capim pisado e um cadáver cuja cabeça terminava no maxilar inferior, daí para cima não restava nada. Devia tratar-se de um rapaz. Vestia calções curtos verdes e uma camisola às riscas brancas e azuis, calçava alpercatas e tinha ao lado uma Simonov e sob o corpo, presa à cinta, uma granada de bazuca”. A emboscada dura vários dias, regressam a Sagal. Deixa no diário a ideia de que o inimigo se está a escapar ao cerco, são largas as malhas por onde pode passar. Dias depois parte para nova operação, também relacionada com a “Nó Górdio”, nada de especial acontece. Durante os dias em que se manteve emboscado leu a Guerra Revolucionária, de Mao Tsé Tung. ´

A operação dura já quinze dias, começa-se a falar dela, há poucas ilusões do seu sucesso:
“Segundo as imprecisas notícias que chegam até aqui, comando do cerco norte, as bases foram tomadas, mas nelas apenas se capturou material, os ocupantes fugiram; quanto à pretendida desorganização, não foi atingida. Os guerrilheiros continuam a contornar a população. Perspetivas: a operação termina, os guerrilheiros reabastecem-se de armamento em pouco tempo e caem-nos em cima com toda a forma da organização que não lográmos destruir”. Lê, chegam-lhe jornais, cartas do pai e dos amigos, dá nota dos filmes estreados, da vida musical, de uma exposição de Vieira da Silva, da morte de Elsa Triolet. E confidencia: “O autor deste diário é um indivíduo tímido. Por isso faz gala em ser pedante, antipático, descortês. Ostenta um certo luxo e finge que não conhece alguns conhecidos, socialmente desfavorecidos. Para os colegas arvora um ar superior, polido, frio; para os mais íntimos e familiares mostra-se indelicado. Amigos, tem muito poucos e é-lhes extremamente sincero, deixa-os partilhar de toda a sua verdade; gosta de abrir-se. De si mesmo procura esconder o bluff que é; na realidade, opina sobre livros, teorias, ideologias, conceitos, acontecimentos de que apenas sabe o nome; tem muito medo de ser desmascarado”.

A Operação “Nó Górdio” chega ao fim, Sagal deixou de ser a pior zona, agora é Nangololo, escreve. E a 30 de julho regista uma nova perda, o Furriel Rocha pisa uma mina antipessoal. Deixa um comentário no seu diário: “Pertence a uma família remediada, é eletricista, os seus horizontes são uma vida pacata, no emprego, ao lado da moça de quem gosta e em contacto com a família. Para realizar este futuro foi-lhe imposto como condição realizar a presente guerra. Ele jogou a sua sorte e perdeu. Se a mim me acontecesse a desgraça que o vitimou, eu merecia-o. Porque sei o crime que cometo empenhando-me numa guerra colonial. Tal como as cadências aceleradas e os acidentes de trabalho são exemplos da violência da classe exploradora sobre a trabalhadora, também os estropiados e mortos desta guerra colonial são casos da violência da classe que a quer, sobre aquela que é obrigada a fazê-la”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Monumenta Missionaria Africana – coligida e anotada por António Brásio; Agência – Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (1) (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)