1. O nosso Camarada de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520 - Cameconde, 1971/74 – enviou-nos mais uma história das suas memórias da guerra:
Camaradas,
Para rentrée, aqui vai mais um retalho das minhas recordações de Cacine!
Seria interessante se conseguísseis juntar uma carta da região que é mencionada - Cacine, Cameconde e Cassacá.
Os especialistas sois vós, eu não sei fazer isso.
Fico-vos a dever uma cervejinha ou mesmo uma bazuca!
Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:
Fotos do desembarque da LDG "Montante" em Cacine
Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:
HÁ PERIQUITOS (*) NO QUITÁFINE
A região do Quitáfine, a Sul de Cacine, era considerada o santuário do PAIGC, que aí estava fortemente instalado e provido de dispositivos de segurança, que tornavam os nossos movimentos impossíveis, salvo com utilização de meios excepcionais.
Trilhos minados e sentinelas avançadas, permitiam-lhes uma tranquilidade apenas quebrada pelos obuses de 14 cm, disparados do nosso destacamento de Cameconde!
Os efectivos de que dispunham com um grupo especial de 20 lança-granadas, responsável pelas constantes flagelações a Cameconde, apoiado por um bigrupo disperso pela zona de Cassacá e Banir (onde se supunha estar o comando), eram reforçados por uma vasta população armada em auto-defesa, distribuída, entre outras, pelas tabancas de Ponta Nova, Bijine, Dameol, Cassacá, Banir, Campo, Cassebexe e Caboxanque.
O PAIGC furtava-se sistematicamente ao contacto, optando por uma estratégia defensiva de protecção às populações que controlava, privilegiando as flagelações e a colocação de engenhos explosivos!
Quem circulava a Sul de Cambaque (que distava cerca de 3 Km de Cameconde) tinha como certo algumas surpresas no trilho! Provavelmente um campo de minas e a seguir (algum humor-negro), munições de Kalash espetadas no chão formando a palavra PAIGC!
O Quitáfine permitia ainda ao PAIGC, um reabastecimento regular e seguro, processado a partir da República da Guiné, através de vários rios, em especial o Caraxe e o Camexibó!
Ao dispositivo militar juntava-se uma mata densa intransponível!
Os pára-quedistas, após uma operação no Quitáfine, só à noite conseguiram chegar a Cameconde, com grande dificuldade e orientados pelo clarão da queima de cargas de obus, em cima dos abrigos!
O grupo de Marcelino da Mata, largado de helicóptero, fez um golpe de mão a Cabonepo, a base do PAIGC mais a Norte do Quitáfine, onde estaria instalado um posto transmissor. Quando chegou, após lenta progressão através da mata… não havia lá nada… a base tinha sido abandonada momentos antes!
O Quitáfine era, efectivamente, o santuário do PAIGC, desde o início da guerra! Foi ali que se realizou, na tabanca de Cassacá – a 15 Km de Cacine e a 8 Km de Cameconde -, em meados de Fevereiro de 1964, o 1º Congresso do PAIGC, com a presença de Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira e outras individualidades do Partido!
ACÇÃO PERIQUITO
A CCaç 3520 tinha chegado ao porto de Cacine, a bordo da LDG Montante, em 24 de Janeiro de 1972, para render a CCaç 2726 – companhia açoriana comandada pelo Capitão Magalhães -, o homem que retorcia as pontas do bigode com cera e a quem o tabaco nunca faltava! Dizia-se mesmo, à boca pequena, que, quando o tabaco acabava em Cacine, o PAIGC deixava, no mato, uns macitos para o Capitão! Rumor ou realidade… ninguém sabe! Ficou por provar!
Decorria ainda o período de sobreposição, que se prolongou até 22 de Fevereiro, quando foram recebidas instruções de Bissau, para ser preparada uma operação ao Quitáfine – Cabonepo e… Cassacá!
Seríamos, então, ainda bastante inexperientes, mas nunca aquilo a que alguém chamou um verdadeiro bando, embora a preparação que recebêramos para a guerra fosse bastante incipiente, com uma IAO feita no Cumeré, que pouco valor guerreiro nos acrescentara.
A formação garantida pelos oficiais e sargentos da companhia, essa sim permitia que o pessoal se apresentasse bastante bem preparado!
Os comentários e interrogações começaram a surgir entre as poucas pessoas que tinham conhecimento da operação!
Como vamos entrar no Quitáfine, com tudo minado e com sentinelas avançadas?
Qual será o grupo de combate eleito, quem serão os milícias que o acompanham?
Porque vamos intervir a nível de grupo de combate, quando estão estacionadas duas companhias em Cacine, enquadradas por capitães do quadro?
Será que com mais efectivos e um comando experiente e profissional, não poderíamos tentar um assalto frontal à base de Cassacá?
Parece que uns sentiam que a comissão estava terminada e o embarque estava à vista, enquanto outros, recém-chegados, temiam que a sua estreia no teatro de operações não fosse a mais auspiciosa… pelo que ninguém considerava ser o melhor momento para pôr em prática uma operação de grande envergadura!
Assim sendo, avançou um grupo de combate de periquitos, reforçado por alguns milícias, para um terreno totalmente hostil e com efectivos IN muito superiores!
Enfim, o moral das tropas era elevado e os madeirenses eram gente de muita coragem!...
Cassacá, 16 de Fevereiro de 1972
Exactamente no 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC, exactamente no mesmo local! Se alguém o pensou… ninguém o confessou!
A lotaria contemplou o 1º Grupo de Combate do Alferes Alexandre Margarido (mais tarde Spínola viria a graduá-lo como Capitão), uma escolha certa, seria aquele que estaria melhor preparado, tanto pela sua formação em Operações Especiais, como pelas suas características pessoais!
O 1º Grupo de Combate seria apoiado por um grupo de milícias, formado pelos melhores elementos da respectiva companhia!
A operação foi preparada em detalhe, vindo mesmo um Major de Operações de Bissau que a comandaria o pessoal desde… Cacine! Haveria apoio aéreo de dois helicanhões! Sabia-se, então, que a abordagem ao Quitáfine se faria através do Rio Cacine primeiro, e do seu afluente Rio Poxiuco depois, dada a impossibilidade de o aceder por terra e a necessidade de não perder o factor surpresa!
Hora de partida… havia apenas dois sintex para transportar o pessoal ao longo dos rios! Nada de grave! Tudo se desenrasca! O restante pessoal será transportado em canoas gentílicas!
A viagem é lenta! Os sintex puxam as canoas para que se ganhe algum tempo! A organização é impecável e os meios fazem inveja aos exércitos melhor equipados!
A Armada Invencível chega, finalmente, ao ponto previsto para o desembarque! Os operacionais, depois de camuflarem os barcos, para reutilizarem no regresso, penetraram na mata, tentando chegar de surpresa à base do PAIGC, em Cassacá!
Andam, andam, andam… até que é avistado, já perto de uma tabanca, um solitário nativo armado! Um dos milícias, contra todas as instruções recebidas, faz fogo… o alarme estava dado!...
O cagaçal feito pela população da tabanca, incitando à descoberta e captura do grupo, é enorme!
Quebrara-se o efeito surpresa, o PAIGC poderia organizar-se e os efectivos com que contava na zona eram muito superiores e, naturalmente, melhor conhecedores da zona de acção!
A ocorrência é do conhecimento imediato do comando, em Cacine, que decide sobrevoar o local da operação numa avioneta Dornier 27, que após verificar a situação no terreno, ordena a retirada!
O pequeno grupo constata, porém, que a retirada não seria fácil!
Em pouco tempo a maré baixara, a armada estava atascada na bolanha, o rio era apenas um fio de água, insuficiente para garantir o reembarque e a retirada dos candidatos "a apanhar o IN pelas costas".
Um daqueles pequenos pormenores que, a falharem na hora “h”, transformam muitas operações planeadas ao detalhe em autênticos desafios de sobrevivência e desenrascanço!
O pequeno grupo encontrava-se assim entre a espada e a parede ou… pior, entre uma armada atolada na bolanha e 10 Km de terreno hostil, ocupado por largas dezenas de guerrilheiros e centenas de habitantes armados!
Que fazer então?
O alferes conferenciou com os seus graduados e com os elementos da milícia mais experientes, excelentes caçadores e determinantes neste terreno, não apenas para evitar o contacto com o inimigo, mas também para detectar e evitar as minas e armadilhas colocadas nos trilhos!
Acabaram por decidir criar uma manobra de diversão!
Iniciaram, então a progressão, como se o objectivo fosse chegar à base de Cassacá, para evitar que o inimigo descobrisse as embarcações, entretanto guardadas por uma secção e, simultaneamente, ganhar o tempo necessário para que a maré subisse e a armada pudesse navegar!
Não foi preciso caminhar muito para se pressentir uma emboscada de um grupo numeroso, mas barulhento, o que permitiu aos periquitos mergulharem na mata!
Com os dedos nos gatilhos mergulhados em absoluto silêncio - determinado pelo medo ou pelo treino? – o pequeno grupo, assistiu ao desencadear de forte tiroteio a uns 100 metros, não traindo a sua posição, facto este que constitui condição essencial para evitar um previsível desastre!
A situação, contudo, estava a tornar-se insustentável! A pouca experiência de movimentação na mata iria, certamente, acabar por denunciar as suas posições no terreno!
Entretanto o tempo decorrido permitiu, certamente, que os sintex e as canoas pudessem flutuar, pelo que não foi necessário simular mais o falso avanço para Cassacá!
Mas como chegar às embarcações sem ser detectado, com guerrilheiros e população armada em sua perseguição?
O alferes solicitou o apoio aéreo, que com umas valentes bujardas largadas cirurgicamente pelos helicanhões, criaram uma verdadeira confusão entre os guerrilheiros, permitindo aos piras, já então detectados e perseguidos de perto, chegarem às embarcações, entretanto já a flutuar!
Uma autêntica saga!
O reembarque foi um sucesso, mas o regresso iria representar uma nova aventura!
Avariou-se o motor de um dos sintex, o que obrigou à formação de um comboio naval indescritivel! À cabeça desse "comboio" seguia o único sintex com
motor que rebocava o outro sintex e ainda meia dúzia de canoas. Esta formação arrastou-se penosamente ao longo do Rio Cacine, por longas horas, com a pequena ondulação a ameaçar permanentemente o seu afundamento.
motor que rebocava o outro sintex e ainda meia dúzia de canoas. Esta formação arrastou-se penosamente ao longo do Rio Cacine, por longas horas, com a pequena ondulação a ameaçar permanentemente o seu afundamento.
Completamente ensopados e exaustos, os homens desta operação de periquitos, tinham, no cais de Cacine, todos os restantes elementos das duas companhias à sua espera! Com tanto rebentamento e explosão, ninguém acreditava que todos ali chegassem… sem um arranhão!
Da nossa parte acabou assim, deste modo frustrante, com um indigno fogo de artifício (de apenas um tiro), a comemoração do 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC em Cassacá!
À noite, com pompa e circunstância a Maria Turra (nome por que era conhecida a locutora IN da rádio oficial do PAIGC), anunciava o aniquilamento completo do grupo que tentara o assalto a Cassacá!...
Pois é… poderia mesmo ter acontecido…
Um abraço do,
Juvenal Candeias
Alf Mil da CCAÇ 3520
Nota 1: (*) Na Guiné, os periquitos ou piras, era a designação dada aos tropas recém-chegados ao território.
Nota 2: O relato desta história teve a colaboração directa do Alexandre Margarido, que ainda hoje não sabe como saiu vivo do Quitáfine, e a quem agradeço com um grande abraço.
Fotos: © Juvenal Candeias (2009). Direitos reservados.
_____________
Notas de M.R.:
Vd. último poste da série em:
1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4623: Histórias de Juvenal Candeias (3): Um Manjaco em chão Nalú