Era uma hora e meia da tarde
quando o teu relógio parou,
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.
... O sol dos trópicos desintegrou-se,
o céu tornou-se de bronze incandescente,
mil e um pedaços de sol riscaram o ar,
e o mamute de três toneladas deu um urro de morte,
ao ser projetado sob a lava do vulcão.
Uma súbita explosão,
um trovão que ecoa até ao Mato Cão, a norte...
E depois o silêncio, o silêncio da morte.
...À uma e meia hora da tarde
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.
Gritaste:
– Agarrem-se que a viatura vai despenhar-se!–
Foste projetado ao lado do condutor,
batendo violentamente
com a cabeça na chapa do tejadilho.
Conseguiste equilibrar-te
dentro do caixão de ferro.
Não vias nada,
e a espessa nuvem de pó, envolvente,
exalava um forte cheiro a enxofre.
Mas ainda conseguiste pensar:
– O ar está rarefeito,
milhões de partículas de pó barrento
bloqueiam-te os pulmões,
vais sufocar dentro desta maldita cabina!
... Foi quando parou o teu relógio,
à uma e meia da tarde
do dia 13 de janeiro de 1971,
à saída do reordenamento de Nhabijões.
… Um curto-circuito ocorreu no teu cérebro,
como se tivesses sido eletrocutado,
ficaste rigidamente colado ao assento,
a G3 entrelaçada nas pernas,
e a estranha sensação
de que a massa encefálica te tinha saltado da caixa craniana.
O olhar vidrado de quem mergulhou
nas profundezas da terra,
o gélido terror de quem entrou
num mundo desconhecido,
a antevisão da viagem no barco do barqueiro do Rio de Caronte,
o calafrio da morte,
trespassando o teu corpo da cabeça aos pés.
...À uma e meia da tarde
na estrada Nhabijões-Bambadinca.
Nunca saberás ao certo
quantos segundos se passaram,
mas houve um solução de continuidade,
essa fração de tempo
em que a tua consciência esteve bloqueada,
e os pulmões falharam,
e o sangue gelou,
e o coração parou, de puro terror,
escreve, não tenhas pudor, de puro terror...
até compreenderes que a velha GMC
tinha acionada... uma mina!
– Outra mina, meu Deus!, que horror!–
E instintivamente agarraste-te àquela carcaça de mamute,
mal refeito da surpresa de estares vivo.
...À uma e meia da tarde,
à saída do reordenamento de Nhabijões.
Quando saltaste para o chão,
tinhas, sob o olhar aterrado, os destroços duma batalha:
corpos por todo o lado,
juntamente com espingardas, cartucheiras, cantis,
canos de bazuca e de morteiro, granadas de bazuca e de morteiro,
granadas de mão, dilagramas,
um rádio, bocados de chapa e de borracha,
quicos, botas, restos de camuflado,
tudo numa profusão indescritível,
corpos que gemiam, que gritavam, ou que talvez já fossem cadáveres.
...No vulcão de Nhabijões,
a oeste de Bambadinca,
Setor L1,
Zona Leste,
Teatro Operacional da Guiné,
África subsariana,
Planeta Terra!
– Mortos! Tudo mortos! – gritava-te o puto Umaru,
os braços abertos, o pânico estampado no seu belo rosto de efebo,
menino fula feito soldado, sem o seu inseparável pequeno cachimbo,
que sempre usava para lhe dar o ar de falso Homem Grande.
E logo ali o Transmissões, o primeiro ferido que reconheceste,
todo encolhido junto ao colosso de ferro amalgamado,
numa postura fetal, de defesa, em estado de choque.
Abeiraste-te depois do comandante da 1ª secção,
teu companheiro de quarto, o Marques,
o teu querido Marquês sem acento circunflexo,
como o gostavas de tratar,
mas ele já não reagia à tua voz
nem às bofetadas que lhe davas no rosto,
o olhar vidrado dos moribundos...
Aparentemente não tinha qualquer fratura exposta
mas de um dos ouvidos, o do lado direito, corria-lhe um fio de sangue,
um fiozinho, vermelho e logo negro,
rapidamente oxidado em contacto com o ar.
Procuraste desesperadamente os seus sinais vitais,
mas sua respiração era cada vez mais fraca,
e o pulso escapava-se-te, entre os teus dedos,
como a areia da ampulheta.
Trágica ironia!, um minuto antes,
ao subirem os dois para a viatura,
haviam disputado amigavelmente o 'lugar do morto'.
– Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...
… À uma e meia da tarde de um dia treze,
ao vigésimo mês de Guiné,
em janeiro de 1971.
Acabaste por ser tu a ir para o 'lugar do morto',
ao lado do condutor.
Mas daquela vez, e para sorte tua,
a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros
da GMC, embora do teu lado.
A velha GMC do tempo da Guerra da Coreia,
que gastava cem aos cem...
e que acabava de fazer a inversão de marcha,
de regresso ao quartel, em Bambadinca.
Outra filha de puta de mina,
não detetada pelos nossos picadores,
fora acionada, na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões,
a coqueluche do comando do batalhão, e do Spínola,
300 moranças para os "turras", diziam os teus soldados fulas!
Porra, camaradas,
a escassos metros da anterior, já fora da estrada!
… À uma e meia da tarde de um dia 13,
que nem sequer era sexta-feira 13,
era uma vulgar quarta-feira,
mas foi 13 de azar!
Estavas de piquete, quando duas horas antes
uma viatura do destacamento acionara uma mina.
Um frágil burrinho, um Unimog 411,
ia buscar o almoço para o pessoal do reordenamento.
O condutor, o Soares, teve morte imediata,
o furriel Fernandes, também da CCAÇ 12,
o alferes sapador Moreira e outro militar,
ambos da CCS do batalhão,
ficaram feridos, com gravidade…
Mas só agora reparaste no velho Tenon, no Ussumane, no Sherifo,
mesmo ao teu lado, a teus pés,
sem darem acordo de si.
E ainda no Quecuta, no Cherno e no Samba, teu bazuqueiro,
arrastando-se penosamente sobre os membros superiores,
como lagartos cortados ao meio.
…À uma e meia da tarde
na estrada da morte,
com as palmeiras de Samba Silate
e o Rio Geba ao fundo.
As duas secções que seguiam atrás, na GMC,
tinham sido projetadas pelo vulcão de trotil,
como se fossem cachos de bananas.
Caso se seguisse uma emboscada,
então seria um massacre, pensaste tu!
Tu que eras o único que tinha uma arma na mão,
mas inútil, inoperacional, encravada,
devido ao choque sofrido…
Não deixaste de sentir um calafrio
ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG
e sob o matraquear das 'costureirinhas' e das Kalash.
… Ali, à uma e meia da tarde,
em Nhabijões, na Guiné, longe de Saigão,
'far from the Vietnam'.
Tinhas acabado de fazer o reconhecimento das imediações,
detetando o trilho dos guerrilheiros, até ao rio.
Durante a noite, eles tinham vindo pôr as minas assassinas…
Eles faziam a guerra deles, tão cruel e tão suja como a tua,
e esse trilho, mais fresco, acabava por confundir-se
com os usados pela população de Nhabijões
que, como tu sabias, não morriam de amores pelos "tugas"…
Hoje sabes os seus nomes,
os nomes dos que te montaram as duas minas,
a ti e aos teus:
Mário Mendes, chefe de bigrupo,
e Mário Nancassá, sapador.
Não podes deixar de sentir ódio,
mais de meio século depois,
por aqueles que te quiseram matar,
a ti e aos teus camaradas.
Pedes SOS, evacuação Ypsilon,
vais a correr para o heliporto,
sem soro, sem garrotes, sem pensos,
sem maqueiro, sem mala de primeiros socorros,
sem picador, sem arrebenta-minas à tua frente!
...Numa luta desvairada contra o tempo,
na estrada Nhabijões-Bambadinca.
Era possível, entretanto, que houvesse mais minas
pela estrada fora,
anda hesitaste em mandar picar o terreno,
mais alguns metros em redor,
mas não podias perder nem mais um segundo,
para logo seguires, de imediato,
para os helis que aguardavam os feridos mais graves,
no heliporto de Bambadinca.
Mais até do que a solidariedade entre camaradas de guerra,
mais até que a tua amizade pelo Marques,
de repente o que te terá movido,
o que te deu a força anímica dos gigantes,
o que te deu uma raiva imensa de vulcão,
foi o brutal sentimento do absurdo da morte,
do absurdo daquela guerra,
a raiva contra aquela guerra,
na véspera de fazeres 24 anos, dali a dias!...
… À uma e meia da tarde
nessa maldita picada do inferno.
Foi uma corrida louca, aquela, na estrada de Nhabijões,
na fronteira indefinida que separava a vida da morte,
no primeiro Unimog 404 que te apareceu à mão,
e que levava um carregamento letal de feridos,
três deles estavam em estado de coma
e tinham como destino outro inferno,
o hospital de Bissau
os Alouettes III, roncando como o macaréu,
sobre o Geba, largo e medonho,
a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte
aos vinte e poucos anos de idade.
…No dia 13 de Janeiro de 1971,
num dia 13 que nem sequer era sexta-feira,
mas que foi de terrível azar,
às treze e meia da tarde,
quando o teu relógio parou
à saída da grande tabanca de Nhabijões,
finalmente reordenada
e controlada…
Luís Graça, Bambadinca, 13/1/1971 / Madalena, V.N. Gaia, 13/1/2023
[Revisto nesta data, pela "enésima" vez...]
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Nota do editor:
Último poste da série > 4 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22876: Efemérides (360): Os 50 anos da Corrida de São Silvestre no Saltinho, 1971/72 (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)