Guiné > Região de Tombali >
Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Maio/Agosto de 1968 > A construção do aquartelamento de Gandembel requereu muitas canseiras envoltas em perigo permanente, para que se garantisse alguma segurança aos nosso homens, uma vez que eram alvo de inúmeros e consecutivos ataques inimigos.
Foto 309 > "A chegada dos 2 obuses... A chegada de armamento pesado, como metralhadoras e obuses, revelaram-se de enorme importância na defesa do aquartelamento
Foto 310 > "Os obuses devidamente apontados "
Foto 311 > "A água que fluía pelo Balana, tornava-se abundante. E assim, já se tornava possível usufruí-la com uma certa sofreguidão e contentamento... Na imagem, o posto das 'lavagens', que servia para lavar a roupa e para a higiene pessoal simples.
Foto 312 > "Outro posto, o dos duches. Em geral, a água era sujeita a aquecimento solar através do uso de garrafões de vidro de 10 litros".
Foto 313 > "Havia até direito para quem quisesse usar o banho de imersão"
Foto 314 > "Limpeza, com queimada das ramadas.... Os trabalhos de limpeza eram permanentes. No exterior, cada vez mais se procurava alargar a capacidade de visão"
Foto 315 > "Trabalhos de manutenção da parte interior... Havia sempre que realizar infra-estruturas de apoio, casos de um paiol bem fortificado, um armazém, e outras para um merecido descanso "
Foto 316 > "Na construção de uma arrecadação"
Foto 317 > "O hastear da bandeira em Gandembel... No simbolismo do hastear da bandeira nacional, a 27 de Junho, marcava-se um facto de enorme relevância, pois que considerávamos que as casernas já detinham as condições suficientes para lá nos alojarmos"
Foto 318 > "Eu próprio, envolto por 236 invólucros das granadas de RPG-7"
Foto 319 > "Spínola quis ver verificar os efeitos do grande ataque de 15 de Julho... E, apesar de tudo, fizemos gala em montar uma singela guarda de honra ao Comandante-Chefe"
Foto 320 > "E nestas acções, a aeronave trazia sempre algo. Desta vez, uns cunhetes de armamento que se descarregam, enquanto o ferido espera a oportunidade de ser levado até ao Hospital Militar"
Fotos e legendas: ©
Idálio Reis (2007). Direitos reservados.
VII Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835,
Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1). Texto enviado em 11 de Fevereiro de 2007.Continuação.
Os ataques e flagelações mantinham-se a um ritmo praticamente diário, a que nos íamos habituando, pois que a generalidade das detonações era resultado da acção de morteiros 82, e a maioria das granadas continuava a deflagrar na periferia. Os morteiros ainda não estariam devidamente assestados, e tornava-se necessário e urgente ter que acabar as obras do aquartelamento, com condições mínimas de segurança.
27 de Junho de 1968: O simbólico hastear da bandeira
E com as casernas a serem consideradas como terminadas, uma das grandes preocupações da Companhia chegava ao fim, e o próprio quartel de Gandembel já apresentava todas as características de uma razoável fortificação de campanha.
Para testemunhar este feito, a 27 de Junho, fez-se hastear a bandeira nacional, com o respeito, a dignidade e a solenidade merecidos, e a partir daquele data, sempre drapejou num cuidado mastro. E já que me refiro a este símbolo, um outro exemplo que retrata o que só em Gandembel poderia acontecer: o estandarte da Companhia, que estava arrumado na secretaria, a funcionar numa tenda de campanha, viria a ser muito esfarrapado por acção de estilhaços de
rockets, e assim chegou à nossa unidade mobilizadora, o Regimento de Infantaria 15, em Tomar.
15 de Julho de 1968: ataque, de meia-hora, às duas da madrugada; um morto e uma dezena de feridos evacuados para Bissau
O PAIGC, nas suas escaramuças quotidianas, procurava tomar conhecimento do nosso modo de reacção. A não ser alguma flagelação de armamento ligeiro, com os guerrilheiros mais próximos, a contra-resposta era pronta e denotava alguma firmeza e intensidade, pondo a funcionar todo o arsenal bélico disponível. Porém, já tomávamos uma atitude mais contida quanto aos ataques de morteiros, não dando grande utilização aos 2 morteiros 81, nem aos 2 obuses que já tinham sido devidamente posicionados. Todavia, a 15 de Julho, cerca das 2 horas da madrugada, desencadeia-se um intenso ataque ao aquartelamento, mesmo junto ao arame farpado, e com uma duração superior a meia hora.
O inimigo dispõe o seu efectivo paralelamente à estrada, com a instrução plena do modo de actuação de cada. Vinha fortemente apostado em fazer rombo, mesmo intuído do propósito de assalto, quer pela intenção de destruir as 2 casernas-abrigo que lhe eram frontais, quer no rompimento de uma abertura nas fiadas do arame.
Esse efectivo devia ser bastante poderoso, atendendo aos fortes quantitativos de armamento ligeiro empregues, com especial ênfase na utilização das metralhadoras ligeiras e dos famigerados RPG-7, em que deixou 236 invólucros, como de milhares de munições das metralhadoras. Antes, a bateria de morteiros, fez detonar mais de 3 centenas de granadas.
Da incomensurável refrega, uma destas casernas cede parcialmente aos impactos que nela incidiram, e do resultado das deflagrações, um conjunto infindo de estilhaços entra no interior da mesma, provocando 1 morto e mais de uma dezena de feridos, dos quais 6 seriam evacuados para Bissau, ainda que 2 deles em mau estado, e que seriam enviados para Lisboa.
O morto, foi o alferes José Araújo, do Pelotão de Nativos, recém-chegado apenas há 12 dias. Lembro esta data, de má memória, com a emoção própria dos que a viveram muito intensamente, dado o comportamento gigante de alguns elementos da Companhia que, ao saírem das suas casernas e sem qualquer protecção, como os homens dos lança-granadas e dos morteiros 60, ripostaram de tal modo, que calaram o inimigo e lhe frustraram os seus intentos. E o apontador daquela Browning, mesmo em frente ao inimigo.
Heróis em causa própria, homens que perante o perigo, pareciam transformar-se, ao mostrarem o seu denodo e estoicismo, e que se agigantavam de modos tão distintos: os que denotavam uma frieza de comportamento invulgar, outros que pareciam exultar quando lhe aparecia uma situação para aliviarem ódios acumulados.
Uma derrota para Nino Vieira
A seu modo, cada um fazia libertar as suas pulsões conflituais. E, passados os momentos de turbulência, tudo serenava e cada um como que se recolhia, quem sabe, procurando ler a sua desgraçada sina. Quantos momentos de silêncio, em busca de uma resposta vinda não sei donde, mas os sentimentos preferiam toldar-se, e então ficávamos mais suspensos nos pensamentos tresvariados.
Na altura, afirmou-se que este ataque tinha sido o maior de todos que alguma vez o PAIGC desencadeara. Em resultado dos indícios que deixou no terreno, inúmeros e bem visíveis, e como sua testemunha, não tenho grandes dúvidas que se retirou com pesadas baixas. O objectivo perpetrado não foi concretizado. Saldou-se num malogro.
Creio mesmo que Nino Vieira perdera a sua maior aposta desde sempre, fracassando rotundamente, e não conseguindo minimamente viabilizar os seus velados interesses, sai vergastado ao peso da derrota, e humilhado pelo desmoronamento da sua estratégia de crença, tudo indicia que se retira da zona.
15 de Julho de 1968: o ataque mais aterrador
Mas o PAIGC continuou, mesmo assim, bastante empenhado na zona, tanto que Gandembel, viria posteriormente a ser sujeito a outros ataques de grande violência, mas o de 15 de Julho, foi de longe o mais aterrador, jamais esquecido pelos que o viveram.
Julgo que o PAIGC se apercebeu de vez, que tinha no interior de um pequeno aquartelamento, um conjunto de homens atentos e de têmpera rija, e prontos a não admitirem ousadias deste jaez.
Passados apenas 3 dias, Spínola aterra de novo em Gandembel. Prestámos-lhe uma singela guarda de honra, e sinto nos seus olhos alguma comoção, ao pedir para a findar. Quer tomar conhecimento
in situ do que tinha acontecido, e o grupo que o secunda sobe para o tecto da caserna-abrigo que tinha sido alvo dos impactos dos
rockets. Passado pouco tempo, quando lhe estavam a ser referenciadas as posições que o inimigo assumira no ataque, eclodem algumas granadas de morteiro 82, ainda que bem fora do arame farpado.
Spínola estatelado no chão de Gandembel
Os militares que estavam com ele, saltam do cimo do abrigo (2,5 a 3 metros) para procurarem refúgio.
Torna-se óbvio que Spínola é o que encontra mais dificuldades, e no seu salto para o solo, estatela-se, criando uma situação pouco abonatória para a sua condição de Comandante-Chefe.
Embora não denotando qualquer incómodo, julgo que este incidente representou o início de um julgamento que tinha de rever consigo mesmo, quanto ao destino a reservar para Gandembel. E com os seus acompanhantes, o helicóptero descola rumo a um outro destino.
A intensa movimentação do PAIGC, com um contingente dotado de uma enorme experiência, altamente fortalecido com armamento muito mais evoluído e eficaz, naturalmente que teria de preocupar Spínola, já que o desenrolar das situações com que éramos assiduamente confrontados, poderia até levar ao desastre total, que teria de evitar a todo o custo.
Também não poderia subestimar o estado anímico das tropas, que pareciam estar cerceadas, como que abandonadas a si mesmas.
Aqui me parece, que Spínola olhou bem de frente para essa gente, e não lhe foi difícil reconhecer que havia ali um punhado de homens numa tenaz luta de sobrevivência, e saíra cabisbaixo como que denotando uma grande apreensão.
Julguei, então, que Spínola iria gizar do modo que julgava como decisivo, todo um plano táctico fiável e consequente, tendente a minimizar esta situação. Fá-lo-á?
19 de Julho de 1968: uma roquetada destrói o forno, ficando o pessoal 3 semanas sem pão(!)
Muito certamente tomara conhecimento que uma
rocketada destruíra mais uma vez o forno num ataque a 19 de Junho, e ficámos durante cerca de 3 semanas, sem pão, qualquer tipo de carne ou peixe exceptuando dobrada desidratada e chouriço.
Enganava-se a fome, na base de apenas rações de combate, arroz, batata desidratada, café, marmelada, chouriço, feijão. As ementas pouco variavam, onde a bianda cabia sempre, e até a marmelada a acompanhou.
Também dificilmente chegavam bebidas e em especial a desejada cerveja; mas, mesmo esta, a existir muito espaçadamente, era ingerida à temperatura ambiente, pois que só havia 2 frigoríficos, um para a cozinha e outro no posto de enfermagem.
28 de Julho de 1968: é abatido um dos Fiat G-91 que bombardeavam Salancur
Mas já há muito tempo, e quase todos os dias, pela tarde, vinham 2 Fiats G-91 a descarregarem bombas sobre a zona de Salancaur, de que se dizia terem abrigos inexpugnáveis. E destas tentativas intimidantes da aviação militar, surge a 28 de Julho mais um dos casos inesperados, e que seria o primeiro a acontecer na Província nestas circunstâncias.
Neste dia, parte da Companhia tinha ido montar protecção a uma coluna de reabastecimentos, de modo que em Gandembel restavam apenas 2 grupos − o meu e o do Pelotão de Caçadores Nativos.
Ouve-se, vindo de longe e dos lados da fronteira, uns estampidos de metralhadora pesada. E passados alguns momentos, um soldado chama-me a atenção que se notava uma chama na cauda de um dos Fiats. Prontamente, via rádio, deu-se conhecimento ao piloto.
E vejo nos céus, o avião a fazer uma curva acentuada, direccionando-se para o lado da fronteira. E quando a aeronave, já com chamas bem visíveis, passava sobre Gandembel, distingue-se um pára-quedas que se ejecta do mesmo, e que vem a cair cerca de 3 a 4 centenas de metros a sul do aquartelamento, com o Fiat a despedaçar-se em parte incerta, mas muito próximo da fronteira. Um documento oficial, refere que o piloto era um tenente-coronel, de nome Costa Campos.
Aparentemente, o local da queda, não oferecia perigos para o seu resgate, desde que se conhecessem os locais das armadilhas em volta do arame farpado.
Procurei de imediato arranjar um grupo com metade dos efectivos disponíveis, e então fomos ao encontro do piloto. Escondido num arbusto, estava o homem sem distinção da sua patente, e despojado da sua pistola de cintura [mais tarde foi encontrada, e julgo que era uma Walther].
Já vínhamos a caminho do aquartelamento, e algumas aeronaves com helicópteros e T-6 o sobrevoava, pelo que, franqueada a entrada, logo um dos helicópteros aterrava para o levar rumo a Bissau.
Perícia e sangue-frio do piloto do Fiat abatido
O abate desta aeronave teve uma certa repercussão a nível da Província, e muito certamente reforçou os ânimos dos combatentes locais do PAIGC. Contudo, não deixarei de notar, que a probabilidade de uma bala anti-aérea, em acertar num desses supersónicos Fiats, era ínfima. Mas, o que é inegável, é que o avião se perdeu, e a perícia do piloto também foi notável para a integridade da sua própria pessoa, pois se tivesse caído em local fora do nosso horizonte de referência (não mais de 2 Km), não dispunha de condições para ir à sua procura. E muito provavelmente, o piloto seria capturado pelo inimigo.
4 de Agosto de 1968: 4 mortos e 2 feridos graves, numa coluna logística
Sempre esta dualidade da sorte e do azar, que nos espreitava na leveza de cada duro momento. E eis que desponta o malfadado dia 4 de Agosto, da forma mais aziaga para a Companhia, como resultado de uma famigerada coluna provinda de Aldeia Formosa, e que reportarei no capítulo das colunas de reabastecimento.
A Companhia perde por morte num único dia, 4 dos seus elementos: o furriel Abel Simões, de Carapêtos, concelho de Montemor-o-Velho; dos soldados António Moreira e Eduardo Pacheco, ambos do concelho de Paços de Ferreira e respectivamente das freguesias de Seroa e Frazão, e de Manuel Pacheco, de Lousa, concelho de Castelo Branco. Há também mais 2 feridos graves, com evacuação para Lisboa.
E este dia, o mais funesto de todos, delimita este meu segundo capítulo sobre o pesadelo de Gandembel/Ponte Balana.
E Changue-Iaia, que há uma quinzena antes, já nos tinha roubado a presença do alferes Francisco Trindade, gravemente ferido nos membros inferiores pelo accionamento de uma mina anti-pessoal, ficaria a perdurar muito tempo em cada um de nós, e aqui, muito contundentemente criou-se um clima de vazio e de insegurança, a deixar chagas profundas e traumáticas, muitas das quais se mostravam renitentes em sarar. E os dias sequentes, mostram um conjunto de homens em desespero, à beira da queda no precipício.
E neste mesmo dia, Spínola lançou a única oportunidade que lhe restava, onde poderia colher resultados positivos, e que só passaria pela vinda de tropa de elite para entrar mata adentro, de forma a domar o inimigo. Era urgente haver tropa operacional, que muito para além do arame farpado de Gandembel, fosse à sua procura e o enfrentasse, coarctando-lhe os seus intentos, as suas veleidades.
Mas já tinha passado tanto tempo, que não se perspectivava ser muito fácil pôr em prática esta estratégia, pelo que haveria que, doravante, se obter um melhor apoio logístico, em especial na componente alimentar, a fim de Gandembel se transfigurar e de conseguir maior sossego.
Mas, tal estratégia viria a ter resultados positivos?
E para todos vocês, um até breve.
Um abraço do Idálio Reis.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. último post da série > 23 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço