terça-feira, 17 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4041: O Spínola que eu conheci (4): Mansoa, 17 de Março de 1970, com o Ministro do Ultramar (Jorge Picado)

1. Mensagem do Jorge Picado, Engenheiro Agrónomo, na vida civil, reformado, residente em Aveiro; na vida militar, ex-Cap Mil (CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, CART 2732, Mansabá e CAOP 1, Teixeira Pinto, (1970/72):


Caros Amigos, Luís, Briote e Vinhal

Neste dia quente e soalheiro, que mais parece ser no pino de verão e não ainda de inverno, ao consultar os apontamentos verifiquei, que comemorava anos em que tinha conhecido pessoalmente o então General Spínola.

Aí vai a nota descritiva do facto, que julgo possa ter algum interesse, não por o ter conhecido, mas pelo que dele ouvi e me deixou meio "apalermado" então.
Como sempre deixo ao vosso critério o que fazer da notícia.
Abraços para todos os camaradas.
Jorge Picado


2. O Spínola que eu conheci (*) > Terça-feira, 17 de Março de 1970

Passam hoje 39 anos desde aquela longínqua terça-feira em que conheci finalmente o tão famoso, naquele tempo, Governador-Geral e Comandante-Chefe do CTI da Guiné.

Durante aqueles primeiros 22 dias de Mansoa já tinha ouvido falar, por diversas vezes, nesta personalidade, por aqueles que contavam quer boas quer menos boas histórias dele, tratando-o pelos mais diversos nomes. General Spínola, Com-Chefe, Governador, Caco Baldé ou simplesmente Caco e até Cavalo Branco, que era o indicativo, creio, de quando se deslocava de helicóptero.

Pois nesse dia, da semana e mês, realizou-se a visita a Mansoa de Suas Excelências, o Ministro do Ultramar, Dr. Silva Cunha (**) e o GG, Gen António de Spínola. Aquele, de visita ao CTIG, para observar e conhecer in loco os êxitos da aplicação das medidas militares e políticas determinadas nas Directivas do Com-Chefe, traduzidas no consagrado slogan “UMA GUINÉ MELHOR” deslocou-se a vários locais, incluindo também a sede do BCaç 2885, Mansoa, onde lhe foi preparado um “Banho de multidão” condigno.

Toda a “sociedade civil nativa”, daquelas redondezas (reordenamentos) foi mobilizada para vir receber e saudar o Homem Grande do Puto, mostrando ao mesmo tempo como “adoravam” o que o famoso Caco Baldé fazia para bem daquele Povo.

Dada a minha situação privilegiada, forças da CCaç dispersas, não tive que alinhar nas medidas de segurança adoptadas, como outros camaradas tiveram de fazer, no mato em patrulhamento ou emboscados para salvaguardar alguma desagradável surpresa do IN. As Altas Individualidades estavam ali para receber cumprimentos e manifestações de regozijo, mas não daquelas que o IN costumava fazer.

Consta da HU – História da Unidade, CAP II:

“Em 17MAR70, recebido o reforço de 2 GComb do Batalhão de BISSAU, são adoptadas mediadas especiais de segurança durante a visita de Sua Ex.ª o Ministro do Ultramar ao Concelho de MANSOA”.

É curiosa esta simples menção, pois nem se dignam indicar a companhia do GG e Com-Chefe. Seria usual?

Portanto fui apenas um digno observador, que devo ter feito parte dos que estiveram perfilados ao lado, enquanto se prestavam as honras militares devidas e, talvez, os cumprimentos da praxe. Pude assistir e ouvir os discursos respectivos, especialmente o do Com-Chefe e é por isso que redijo esta pequena nota.

Eis a razão desta minha evocação.

A certa altura do discurso, ouço, com espanto meu, o General dizer algo que, face a não ter presente a esta distância as palavras exactas, resumo em “se estar a viver um momento especial e já não faltar muito para o fim da guerra”!!!

Estava há 22 dias, como disse, em Mansoa, rodeado dos meus medos sobre o que me iria acontecer e eis que me apontam a perspectiva da guerra estar prestes a terminar?

Sinceramente, não percebi onde queria chegar com tais palavras. Para mim tudo aquilo não passava de mera propaganda. Pensei com os meus botões, afinal seria normal que estando a falar, não só para as POPs, mas também para os militares e na presença dum Ministro, tentasse exercer a sua APSICO, afim de levantar a moral dos soldados e convencer os gentios.

Mas não foram precisos muitos dias, para compreender tais afirmações. Trinta e quatro dias depois o sonho desmoronou-se. A 20 de Abril a noticia correu célere. Tinham sido mortos os 3 Majores e o Alferes Miliciano, na estrada para Jolmete. Era no seu trabalho que se alicerçava a crença do General.

Nota: A páginas 590 da publicação Guerra Colonial: Angola, Guiné, Moçambique , de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, editada pelo Diário de Noticias, escreve-se:

“1970.04 Referência, num discurso em Mansoa, feito por Spínola diante do Ministro do Ultramar, Silva Cunha, ao facto de a Guiné estar a viver um grande momento, por se aproximar o fim da guerra.”

Esta citação está incorrectamente datada, pois foi no dia que agora indico e não num dia indeterminado de Abril.

E já agora, antes de terminar e por mera coincidência: No mesmo dia e mês, 17MAR, mas do ano seguinte tenho a seguinte inscrição no mesmo intervalo da agenda: “Mansoa-Mansabá, 0700. Visita SEXA GG à estrada." (***)

Trocando por miúdos: Estava em 1971 na CART 2732 e tinha ido a Bissau em DO no dia 15. A 16 segui de Bissau para Mansoa de camioneta (?!) e a 17 apanhei uma coluna de Mansoa para Mansabá que saiu às 7 da manhã. Nesse dia o General Spínola visitou as obras na estrada Mansabá-Farim. Sobre este acontecimento talvez os amigos Carlos Vinhal ou Vítor Junqueiro possam esclarecer melhor.

Um abraço do Mansoa ao Cacheu do
Jorge Picado
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série (O Spínola que eu conheci):

1 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3953: O Spínola que eu conheci (3): Um homem de carácter (Jorge Félix)

24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3935: O Spínola que eu conheci (2): O artigo da Visão e o meu direito à indignação (Vasco da Gama)

24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3929: O Spínola que eu conheci (1): Antes que me chamem spinolista... (Vasco da Gama)


(**) Joaquim Moreira da Silva Cunha nasceu em 1920. Começou como por secretário do Ministro das Colónias em 1944, num dos governos de Salazar, iniciando assim uma carreira que o levaria a subsecretário de Estado do Ultramar, em 1962, e depois a ministro, em Março de 1965 (cargo que ocupará até finais de 193).

(...) "Sempre ligado às questões coloniais, foi professor da antiga Escola Superior Colonial, dirigente da Mocidade Portuguesa para o Ultramar, vogal do Conselho Ultramarino, procurador à Câmara Corporativa e subsecretário de Estado da Administração Ultramarina (Dezembro de 1962)".

Como ministro do Ultramar durante oito anos (1965-1973), é destacar a sua fidelidade e entusiasmona na defesa da política ultramarina do então Governo de Salazar e depoia de Marcelo Caetani. Participou na revisão constitucional de 1971, foi o impulsionador do mega-projecto de construção de Cahora Bassa, em Moçambique, apoiou a tentativa de Costa Gomes de aliciar Jonas Savimbi para fazer face ao avanço do MPLA no Leste de Angola, tal como apoiou a política de Spínola ("Por uma Guiné Melhor").

Já em plena crise desencadeada pelo Movimento dos Capitães, substituiu o general Sá Viana Rebelo na pasta da Defesa, em finais de 1973.

Fonte: Adapt de Guerra Colonial, dir. Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Lisboa, Editorial Notícias, 2000.


Natural de Santo Tirso, licenciou-se em Direito, em 1943, pela Faculdade de Direito da Universidade Lisboa. Doutorou-se tembém em Dierito, pela mesma Universidade, com uma tese sobre "O Sistema Português de Política Indígena. Subsídios para o seu estudo", hoje considerada uma obra de referência para quem quiser conhecer as perspectivas de reestruturação e evolução do sistema colonial no pós-Segunda Guerra Mundial.

(...) "Até à tomada de cargos de direcção no Ministério do Ultramar - -, realiza um percurso académico e político que tem como principais coordenadas: a actividade docente no ensino superior (cadeiras de Direito e Administração Colonial na Faculdade de Direito de Lisboa, no Instituto do Serviço Colonial e na Escola Superior Colonial - escola que se encontra na origem do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina) e o desempenho de funções no Centro Universitário da Mocidade Portuguesa de Lisboa, no Conselho Ultramarino e em várias comissões e associações científicas de índole colonialista.

"No que respeita à actividade governativa, integra o grupo de condutores da última fase da política colonial portuguesa, cabendo-lhe maior protagonismo no período de agudização da guerra de África e de execução dos últimos planos de fomento ultramarino.

"Atendendo à produção legislativa, às iniciativas do Ministério e à sua produção discursiva da época [vd Memória de África > Publicações de Silva Cunha] , podemos sugerir que a sua actuação é coordenada: em primeiro lugar, pela intensificação progressiva do 'esforço de guerra' nos planos militar, propagandístico, orçamental e de fomento das vias de comunicação, mas também no que toca à maior eficácia do sistema de repressão policial (que se inicia com o encerramento da Casa dos Estudantes do Império, em 1965, prossegue, por exemplo, com o Plano Geral de Contra-Subversão e termina com as remodelações dos Conselhos Provinciais de Segurança, em Setembro de 1973); em segundo lugar, pelas medidas tendentes a regulamentar e a dar execução às reformas de 1961-64, designadamente nos sectores do desenvolvimento económico e das infra-estruturas produtivas, da educação, da saúde e da assistência social" (...).

Fonte: Dicionário de História do Estado Novo, 2 vols, dir. Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito, Venda Nova, Bertrand Editora, 1996.

[Em linha] [Consult. 17 de Março de 2009] Guerra Colonial: 1961-1974.

(***) O Jorge Picado só chegou à fala com Spínola numa outra visita, já no destacamento de Cuti, no Natal desse ano (1970):

Vd. poste de 31 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3687: O meu Natal no mato (20): Visita de Natal do COMCHEFE a Cutia (Jorge Picado)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4040: Quando o apreço se transforma em apresso, por causa das pressas (Luís Faria)

1. Mensagem de Luís Faria(*), ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 11 de Março de 2009:

Amigo Vinhal

Mais um pouco de trabalho para que te mantenhas em forma!

Era para ser um comentário a um comentário, mas resolvi mandar-to para publicação, se assim o achares.

Um abraço
Luis Faria

PS: - Se puder ser publicado hoje, fica em sintonia com o Poste comentado. Obrigado


CONSIDERAÇõES
Relendo agora, o meu comentário ao Poste 4007(**), reparo que escrevi APRESSO e não APREÇO, como devia no caso.

“Se entra lixo... sai lixo”, diz o Luís Graça e bem, no comentário a esse mesmo Poste.

Também acho que devemos ter um pouco mais de cuidado com os pequenos grandes "lixos" que possamos enviar (os "lixos" de que fala), contribuindo um pouco para a poupança de tempo e de cabeça dos nossos incansáveis Timoneiros a quem não damos descanso.

Um abraço e um obrigado ao LUIS, VINHAL e BRIOTE

A grande parte de "lixo maior" também é reciclável, mas como já constatámos, a Tabanca encarrega-se de o reciclar, “rapidamente e em força”.

Também há o não reciclável e esse tem de ser, a meu ver incinerado à nascença (antes de contaminar), pelos Timoneiros desta BARCA-TABANCA se por eles detectados, como também já tem acontecido.

Caso consigam passar o crivo, cada vez e ainda bem, há mais remadores e “Olheiros” atentos que se encarregam de à pazada e à gadanhada o meter no incinerador, como também já aconteceu.

Não quero acabar sem deixar também um abraço de apreço aos vários e assíduos COMENTADORES - J. Picado, Mexia, M. Fitas - e o seu grande Cumbijã -, J.Dinis, A. Pinto, A.H. Matos, António G. Matos, T. Mendonça , M. Ribeiro, H. Sousa e tantos outros que com a sua atitude interventiva contribuem e em muito para a vivacidade do nosso Blogue, para além de incentivarem também as participações no mesmo, em especial àqueles que possam pensar que, por não receberem comentários, os seus dizeres têm pouco ou nenhum interesse para os restantes Tertulianos e daí se coibirem de expressar as suas estórias, que a meu ver têm sempre interesse, já que são vivências pessoais/colectivas que ajudam a compor o “puzzle” intrincado desses anos de guerra na Guiné.

Não me levem a mal os Editores o apelar também ao Pessoal da Marinha, F. Aérea que alarguem e aumentem os vôos e milhas náuticas, recrutem mais pessoal, trazendo-nos mais e novos contributos que fazem falta à consolidação do dito “puzzle”.

Já vai longo o texto, era para ser um comentário ao segundo comentário do Luís Graça no dito Poste 4007 (já 4007 postes!!). Não sei porquê, mando-o para o Vinhal para publicar, se achar.

A todos, um outro Abraço e desculpem a intromissão.
Luís Faria


2. Comentário de CV

Peço-te desculpa Luís Faria por só hoje publicar este teu comentário, mas só agora reparei que pretendias que isto fosse para o ar no próprio dia 11.

Na verdade atravessei duas semanas em que a minha vida particular me afastou do Blogue. Já pedi desculpa ao Luís Graça. Agora estendo o mesmo pedido ao resto da tertúlia, principalmente aos meus clientes, que viram os seus trabalhos publicados com algum atraso.

Como disse em outras ocasiões, uma das nossas funções, ao editar, é filtrar uma ou outra gralha, quando as detectamos, pois nós próprios também damos os nossos pontapés na gramática. Não se diz que a língua portuguesa é muito traiçoeira?

Claro que os comentários ficam à responsabilidade de quem os faz, tanto na ortografia como no sentido que dão ao texto.

Luís, tens razão quanto à necessidade de pluridade dos interventores no Blogue. Temos muita tropa macaca, mas precisamos de muita Força Aérea e muita Marinha. Esta última Arma não estará muito representada, neste momento, mas da FA temos já uns quantos tertulianos activos e, cereja no bolo, tivemos há pouco tempo a adesão da nossa querida camarada Giselda, representante daquela classe tão pequenina, mas tão importante, que é a das nossas Enfermeiras Pára-quedistas.

Portanto, camaradas da Marinha, Força Aérea e do Exército, apareçam e venham conversar connosco para ajudarem a construír o puzzle da guerra da Guiné.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4031: As abelhinhas nossas amigas (4): Desculpem qualquer coisinha (Luís Faria)

(**) Vd. poste de 10 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4007: Blogoterapia (95): Há mais vida no alfabeto da guerra, para lá dos G: Guileje, Gadamael, Gandembel, Guidaje... (António Matos)

Guiné 63/74 - P4039: O Prémio: Sirvam , em nome da Pátria, uma bica quente a estes rapazes!, dizia o Gen Spínola... (Joaquim Peixoto)

Guiné > Zona Leste > Sare Bacar > CCAÇ 3414 (1971/73) > O Fernando Ribeiro, de pé, ao lado do seu amigo Joaquim Peixoto (hoje professor do ensino básico, em Penafiel). Morreu em Julho de 1973, na estrad de Binta-Faria, já no final da sua comissão.

"Algum tempo depois de regressarmos da Guiné, fizemos um almoço em Coimbra e fomos depositar um ramo de flores no cemitério em Condeixa. Haveria muito a dizer deste amigo que nos deixou tão cedo. Envio também uma fotografia em que estou com ele. (O Fernando está de pé.) Chamo-me Joaquim Carlos Peixoto, vivo em Penafiel, sou Professor do 1º Ciclo do ensino básico" (JP).

Foto: © Joaquim Peixoto (2007). Direitos reservados

1.Mensagem do Joaquim Carlos Peixoto, de Penafiel:


Amigo Luis:

Se vires que há algum interesse neste artigo, gostava que o publicasses.
Já escrevi para aí, mas o endereço era outro.
Agora tenho um novo mail.
Um grande abraço para todos
Joaquim Carlos Peixoto



2. O prémio que nunca me deram...
por Joaquim Peixoto

Amigo Luís Graça:

Há [dois] anos escrevi um artigo para este blogue (*), e em boa hora o fiz, porque através dele já fui contactado por vários camaradas da Guiné, dos quais já pensava ter perdido o contacto.

Frequentemente leio os assuntos publicados e tenho uma grande vontade de também escrever.Mas, ou por falta de tempo ou por preguiça vou adiando…

Agora resolvi escrever. Se achares oportuno, publica-o.

Identifico-me:

Joaquim Carlos Peixoto (59 anos ); Professor do 1º Ciclo, a exercer funções em Penafiel.

Já deixei de utilizar o mail antigo:
joaquim.peixotomegamail.pt

[Revisão / fixação do texto: L.G.]


O PRÉMIO

1970 - De um jovem, quase adolescente, com um nome próprio...

... vivendo no seio de uma família, um ser humano, (como tinha aprendido o que era um ser humano desde os bancos da escola primária) passei de uma hora para a outra (sem que tivesse consciência de todo do que me estava a acontecer) a fazer parte de um número, um número frio e sem identidade.

Autómato... Maria vai com as outras... o caminho é este que te mandam seguir. Não perguntes, não reajas, não penses, segue em frente… o teu caminho é defender a Pátria. Mas, no escuro do subconsciente perguntava:
- Como vou defendê-la?O que me irá acontecer? Porque tenho de abandonar a minha família.. e fazê-la sofrer? O que vou fazer? Onde guardo os meus sonhos de menino?Quando voltarei ? …Ou não voltarei?

Perguntas e mais perguntas e sempre perguntas que não tinham e não havia resposta .
- Carne para canhão - ouvia-se, de longe a longe, esta frase.

O quê ? Eu ? Eu, era um ser humano que tinha ilusões, sonhos, desejos, sentimentos, gostos… Eu era aquilo ?

Não havia tempo para pensar. O tempo era de agir, obedecer e seguir o caminho indicado.

A roupa escolhida por mim ou pela minha mãe, passou a ser igual à de todos os outros, tratada e arranjada por mim.

As botas, essas - pesadas e desconfortáveis - tinham de andar sempre um brinquinho .

Fazer a recruta. Tirar a especialidade (atirador de infantaria). Tirar curso de minas e armadilhas. Ida para os Açores formar Companhia.


1971 – Chega o dia do embarque.

Para um sítio desconhecido, uma terra com usos e costumes totalmente diferentes. Uma terra que nos embriagava com tanto calor e humidade. ERA A GUINÉ. Uma terra onde havia guerra. Guerra a sério, não um simples jogo de cow boys. Era a doer,… era desesperante. Eu, como todos os outros, confrontado com um ataque, reagia, atacando.

Sofri muito... Vi morrer amigos (**). Saudades. Pergunto:
- Combatíamos por instinto? Porque nos haviam ensinado? Porque queríamos defender a Pátria? Porque nos queríamos defender a nós? Porquê ?

HOJE, passados trinta e seis anos, pergunto:
- PORQUÊ ?

Alguém lúcido e com as ideias bem ordenadas poderá responder-me?

A minha juventude, como a de tantos milhares de camaradas, foi passada entre tiros, medo, mato, vivências terríveis, desilusões, sonhos desfeitos…

Alguém, de vez em quando, dava-nos uma esperança, dizendo que ao regressarmos teríamos a recompensa, o tempo de tropa contaria a dobrar para efeitos de reforma, seríamos reconhecidos pelo contributo que estávamos a dar à Pátria, teríamos orgulho de ser portugueses, a consciência confortada com o dever cumprido.

Um General, muito conhecido, fiel aos seus compromissos, honrando a farda que usava, dizia-nos muitas vezes e passo a citar:
- Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'!

Que ilusão !!! Que desespero !!!

Quem se lembra de nós ? Quem nos estende uma mão de reconhecimento? Que falta de memória !!!

Ao regressar da guerra, ao confrontar-me com a realidade, dura e crua, o que vi, o que senti? O que recebi?

Quando pedia uma bica, não a recebia, nem quente, nem fria. Simplesmente não ma serviam.

Verifiquei que ninguém me reconhecia, nem queriam saber o que tinha feito pela Pátria. Recebi incompreensão, falta de emprego (Os empregos eram para outros) no pós-25 de Abril.

Senti uma tremenda desilusão, um vazio que doía, doía e se transformava, aos poucos, numa frieza que eu não queria.

Queria constituir família. Onde estava a recompensa do dever cumprido? Que era feito das promessas?

Como a minha namorada era Professora Primária (como ainda hoje gosta de ser chamada), incentivou-me a tirar o curso de Professor. Em boa hora o fiz, porque foi sempre muito gratificante trabalhar com crianças. Profissão que abracei com gosto e profissionalismo. Ao longo destes 30 anos de trabalho, raras foram as faltas e sempre por motivos justificados.

A vida foi mudando, o regime político alterou-se, o nível de vida subiu, mas as marcas, o pesadelo, os traumas, o estigma de guerra, esse continua implacável dentro das mais profundas entranhas.

A vida foi pouco a pouco tomando o seu rumo e com este ou aquele projecto de vida, com este ou aquele sonho em melhorar cada vez mais as condições, essas marcas de guerra foram-se camuflando e cada vez mais ténuas foram quase passadas ao esquecimento.

Eis se não quando, por magia ou brincadeira do destino, tudo desaba sobre os ombros e tudo que parecia adormecido vivo e em chamas, prostrando-nos a uma apatia tal que a força para lutar escapa-se-nos pelos dedos, qual água gélida de um glacial a derreter…

Não há mais força, não há mais sonhos…

As leis mudaram, o tempo de tropa já não conta para o regime especial a que os Professores Primários tinham direito. Esse tempo conta só para o regime geral.

E então, tudo o que passei, tudo o que dei à Pátria, todo o meu contributo que prestei com o meu serviço militar só serviu para ser injustiçado ?

Mas que erro cometi em ser Professor Primário só depois de ter cumprido o serviço militar? Que culpa tenho eu em ter ido cumprir esse serviço? Onde se encontra a justiça deste país?

Porque tantos Professores, por não terem cumprido o serviço militar e não irem para o Ultramar, muito mais novos do que eu, já estão aposentados?

Eu, que defendi a Pátria na zona mais perigosa das nossas colónias- a Guiné; que não tive logo emprego quando cheguei porque eram todos ocupados pelos retornados (o que não tenho nada contra eles); que tirei um curso para poder viver e trabalhei sempre com o maior profissionalismo, não me posso aposentar se não aos 65 anos?!...

Que justiça é esta que em iguais condições de trabalho dão a aposentação aos mais novos que tiveram a possibilidade de tirarem o curso mais cedo, que não sabem o que é deixar família, que não sabem o que é uma guerra, que não defenderam a Pátria em detrimento daqueles que, pelo menos 5 anos , como eu, me desfiz de sonhos, que vivi horrores e por esses horrores tirei o curso mais tarde, tenho o PRÉMIO de trabalhar ainda mais !!!...

Vejo muitos dos meus amigos professores a aposentarem-se aos 52 ou 55 anos.Não chegou o que já fiz pelo meu país?

Senhor General Spínola, onde quer que esteja, ilumine os nossos governantes dizendo-lhes:
- Sirvam um café quente a estes ex-combatentes pois estiveram na Guiné...

Joaquim Peixoto

3. Comentário de L.G.:

Pois é, camarada Peixoto, dois anos (tu dizias 'alguns', mas são só dois, o que não deixa de ser muito tempo, era uma comissão em África, dias e dias, noites e noites, semanas e semanas, meses e meses, que nunca esqueceremos, uns pior passados do que outros, com sangue, suor e lágrimas, com muita camaradagem e amaizade, também...).
Mas a verdade é que, desde Maio de 2007, passaste a fazer parte da nossa Tabanca Grande, pudeste reencontrar velhos camaradas da tua CCAÇ 3414, tiveste oportunidade de ler os nossos escritos - já lá vão cerca de 2300 a mais, desde esse dia em que nos contaste a história do teu malogrado amigo e camarada Fernando Ribeiro...

Pois é, a tua/nossa Pátria não foi Mátria, foi Madrasta, para ti, para todos nós, para toda uam geração de portugueses quye combateu em África... Como eu percebo a tua amargura, quando te referes ironicamente ao Prémio que os valorosos e generosos combatentes de África era pressuposto virem a receber, no regresso, depois de cumprido galhardamente o seu dever... No mínimo, o reconhecimento do sacrifício da sua juventude (e em muitos casos da sua vida), por parte dos seus compatriotas, da sociedade e do Estado, do regime democrático instaurado a seguir ao 25 de Abril...
Mas, não, esqueceram-te, arquivaram-te, arrumaram-te a um canto, ao canto das velharias e dos anacronismos da História... Os ex-combatentes são sempre uma pedra no sapato para as novas elites dirigentes, as que assinam a paz antiga e preparam os cenários das novas guerras...

Como entendo a tua ironia, ao citares o General Spínola, uma das suas frases que o tornaram tão popular entre as nossas tropas da Guiné:

"Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'"

Não sei se a frase é apócrifa, mas tu deves tê-la ouvido... Podia ser tão sincera como demagógica, mas a verdade é que tinha o seu efeito emocional: no mínimo, fazia bem ao ego, à auto-estima, de milhares de homens que regressavam das bolanhas, das picadas e das matas da Guiné, amargurados, uns, 'apanhados do clima', outros...

Automaticamente fez-me lembar esse grande poema do Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, que tu, como professor, e homem nortenho, deves conhecer, e bem. Permite-me que o reproduza aqui, socorrendo-me, com a devida vénia, do Arquivo Pessoa, disponível em linha:

Álvaro de Campos
DOBRADA À MODA DO PORTO


Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


(s.d. In: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).- 310).

Pois é, Peixoto, serviram-nos o amor da Pátria frio, como dobrada fria, quando a dobrada é sempre quente, à moda do Porto, da Cidade Invicta... E nem direito tiveste/tivemos a um cimbalino, quente... Em Lisboa, diz-se uma bica, e eu peço-a sempre... escaldada.

Olha, o único consolo que te posso dar é que gostei do teu 'regresso' e do tom intimista da tua mensagem... Daqui para a frente não tens desculpas, sejam as da perguiça ou da timidez: o nosso blogue, em Penafiel, está à distância de um clique...Um Alfa Bravo. Luís
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 22 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)

(**) Sobre o Fernando Ribeiro, vd. postes de:

24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)

25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Mil Atirador Fernando Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P4038: Fauna & flora (19): Também os babuínos dizem Nós na pidi paz, ka misti guerra (Joana Silva)

1. Mensagem, de 5 de Março, da Maria Joana Ferreira Silva (*), membro da nossa Tabanca Grande, amiga da Guiné-Bissau, aluna de doutoramento da Universidade de Cardiff (Reino Unido).... [ Está a desenvolver um projecto de doutoramento no campo da genética do babuíno da Guiné, mais conhecido pelos bissau-guineenses por macaco Kom]:


Caro Sr. Doutor Luís Graça,

Envio a compilação dos testemunhos postados no blogue. Sei que talvez a altura não será a melhor (a Guiné está em observação por outros motivos) e entendo se a publicação deste meu contributo for demorada.

Queria agradecer-lhe toda a ajuda dispensada e mais uma vez desculpar-me pelo desaparecimento momentâneo. A avaliação por aqui ainda não terminou, mas pude respirar nas ultimas semanas!

Em anexo envio uma fotografia da manifestação de paz que assisti em Novembro de 2008.

Os meus melhores cumprimentos,

Joana Silva



2. Fauna & flora (19) > Também os babuínos dizem Nós na pidi paz, ka misti guerra
por Joana Silva


Caros bloguistas,

Nesta semana fatídica da história recente da Guiné-Bissau, em que este país apareceu nos noticiários das principais agencias noticiosas mundiais (foi um dos principais assuntos da Skynews aqui no Reino Unido), escrevo para vos agradecer toda a ajuda e empenho dos vossos testemunhos.

Devo dizer que me senti imensamente triste ver a Guiné-Bissau nas televisões pelos piores motivos possíveis (aqui foi descrito como um narco-estado, em que num fim de semana, dois principais líderes do país foram assassinados...). Com enorme angústia tentei explicar aos meus colegas ingleses e galeses a simpatia e gosto pela vida do povo guineense mas é complicado entender, quando nunca se visitou a Guiné e quando as poucas notícias que vêm são deste teor de violência.

Voltando ao assunto que me traz aqui. A vossa participação foi entusiasmante e, apesar alguns de vocês contribuírem com pequenas histórias que julgaram não ter relevância cientifica, todos os contributos foram úteis para a reconstrução da história dos babuínos da Guiné na Guiné-Bissau. Fico-vos imensamente grata!

Resumindo a minha compilação dos vossos testemunhos:

(a) Os babuínos eram vistos como “sentinelas” da presença de pessoas no mato. As suas vocalizações advertiam a presença de tropas inimigas e a presença dos babuínos chegaram a dar algum conforto a alguns combatentes.

(b) A carne de babuíno não era consumida com regularidade pelas tropas portuguesas. Todavia alguns bloguistas confessaram que consumiram babuíno: i) por escassez de recursos; ii) para experimentar; iii) por não saberem do que se tratava.

(c) As crias de babuíno, juntamente com outras espécies de primatas, foram mantidas como “mascotes” dos regimentos. O que não cheguei a perceber era se essas crias eram “encomendadas” ou órfãs, resultantes de caçadas a animais adultos. De qualquer forma, eram tratadas com estimação pelos combatentes (assim demonstram as fotografias que enviaram).

(d) As tropas do PAIGC consumiam a carne de babuíno com frequência.

(e) O consumo de carne de babuíno aumentou na capital , [Bissau,] depois dos anos 80.

Os vossos testemunhos coincidem com os testemunhos dos meus entrevistados na Guiné, o que torna a história ainda mais interessante. Segundo eles:

(f) Os babuínos estiveram sempre presentes na península de Cantanhez;

(g) Os grupos sociais começaram a diminuir depois dos anos 80;

(h) As tropas portuguesas não comiam carne de babuíno (muitos deles até referiram que as tropas portuguesas gostavam muito de porco do mato);

(i) O decréscimo (a partir dos anos 80) do número de babuínos deu-se devido à guerra (minas), caça intensiva pelas tropas do PAIGC, comercialização da carne em Bissau, armas mais baratas e fome generalizada;

(j) Durante o período de guerra, as tropas portuguesas compravam crias de babuínos mas não a sua carne. Ao contrário, as tropas do PAIGC caçavam e consumiam babuínos. (Sendo que os babuínos estiveram sempre presente no mato, os seus grupos eram grandes e as suas vocalizações advertiam a presença dos seus grupos sociais, faz sentido que as tropas do PAIGC utilizassem os babuínos como “ração de combate”.)

Houve ainda uma explicação alternativa para a presença ininterrupta dos babuínos: que utilizavam zonas de cultivo deixadas pelas populações obrigadas a deixar as suas aldeias. Do ponto de vista de um babuíno faz todo o sentido, já que eles são considerados oportunistas. A fome generalizada referida terá a ver com 3 anos de seca na década de 80, que provavelmente terá afectado a produção de arroz.

Devo acrescentar que achei particularmente interessante os contributos fotográficos que enviaram:

- Fiquei curiosa com os machos com pelo branco observados e fotografados pelo bloguista Joaquim Mexia Alves. Nunca vi babuínos com esse aspecto antes e estou ansiosa por amostrar no leste (e ver as diferenças físicas reflectidas em diferenças genéticas).

- Os "chapéus" feitos com peles de babuínos fazem parte de um ritual Balanta chamado "o Fanado". Não sei ainda a relevância de se usar peles de babuínos neste ritual (ou se se podem ser usados outros animais) mas este ritual simboliza a passagem à fase de adulto nesta etnia.

- As fotografias do leopardo (do bloguista José Brás) e do "irã cego" (do bloguista Mário Fitas) são fenomenais.

- As fotografias dos babuínos e dos seus curadores são espectaculares!

Devo deslocar-me à Guiné em breve (se a situação política assim o permitir). Caso desejem mandar mantenha (ou alguma encomenda) para algum amigo, tenho todo o gosto em poder ajudar.

Fico ainda a dever a cartografia das presenças dos babuínos indicadas pelos bloguistas. Será concluída em breve.

Em anexo envio uma fotografia da manifestação de paz que assisti em Novembro do ano passado, no dia seguinte ao atentado a Nino Vieira. A multidão gritava “Nós na pidi paz, ka misti guerra”. Mais actual que nunca.

Texto e fotos: © Joana Silva (2009). Direitos reservados
___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

Vd. último poste desta série > 13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3883: Fauna & flora (18): Um macaquinho principiante na arte do furto (José Brás)

domingo, 15 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4037: Blogpoesia (31): Quando eu era menino e moço... (Manuel Maia)

1. O Manuel Maia, em Cafal Balanta, no Cantanhez, em princípios de 1973 (à esquerda) (*)... Num raide, feito essa altura a uma aldeia controlada pelo PAIGC, ele trouxe cartas e uma manual escolar (à direita)...

A poesia que hoje dele publicamos não tem, aparentemente, qualquer relação com a Guiné, o Cantanhez, a guerra. Mas na guerra que fizémos, na Guiné do nosso tempo, também havia meninos, de um lado e de outro, e muitos deles conheceram a guerra e os seus horrores.

Também andámos na escola, em finais dos anos cinquenta... E todos temos, dessa época, boas e más recordações: o bibe, a ardósia, o pião, as caricas, a fisga, os berlindes, a menina dos cinco olhinhos, Deus, Pátria e a Família, as poesias do Afonso Lopes Vieira, o Cavaleiro Andante, as histórias aos quadradinhos, as primeiras emissões da RTP, o leite em pó e o queijo da Caritas Americana, as primeiras vacinas em massa...

Em 1961 começava a guerra em África... Muitos vivemos a adolescência com maus pressentimentos: começávamos a ver os nossos irmãos e vizinhos, mais velhos a seguir para África: Angola, depois Guiné, depois Moçambique... E antes de isso, a Índia... A guerra aí estava, muito longe e muito perto... Insidiosa... Será que tivemos tempo para brincar, para jogar ao pião, para lutar aos índíos e cobóis, em suma, para sermos meninos ? (LG)

Fotos e poema: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados


MENINICE (**)
por Manuel Maia

Vivência era de Outono,
o calendário o dizia,
mas... o sol raiava
como se fôra Verão...
Na cama deixara o sono,
na pressa de ver o dia
sorriso aberto espelhava
enorme satisfação...

Às costas, pasta coçada
dum castanho cabedal,
levava o conhecimento
que lhe faltava aprender.
Trazia a alça rasgada,
vergada ao peso brutal,
e o couro, com puimento,
carecia de coser...

Derreado logo a pousa
e...parte a lousa
onde devia escrever.
E agora, vão-lhe bater?

Tantos anos já lá vão
(mais de cinquenta passaram...)
recordo com emoção
as imagens que ficaram.
Primeiro dia de escola
calça curta, camisola...
os bolsos com dois piões
co´a faniqueira enrolada,
e um saquinho de botões,
dúzia e meia, bem contada...
Junto aos livros, a merenda
era um pão com goiabada.
Do Brasil viera a prenda,
goiaba já enlatada...
Éramos trinta talvez,
ou será que um quarteirão?
Da minha rua só três
eu, o Manel e o João...

Há anos, sem ter certeza,
sentei-os à mesma mesa
quase todos ... e falaram...
o pedreiro e o lavrador
o engenheiro e o doutor,
estou certo todos gostaram...



__________

Notas de L. G.:

(*) Vd. postes de:

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3886: Tabanca Grande (118): Manuel Maia, ex-Fur Mil, o poeta épico da 2ª Companhia do BCAÇ 4610/72, o Camões do Cantanhez

14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3890: Tabanca Grande (119): Apresentação de Manuel Maia ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

9 de Março de 2009> Guiné 63/74 - P4004: Memória dos lugares (18): Cafine, no Cantanhez, ocupada pela 2ª CCAÇ / BCAÇ 4610 (Manuel Maia)


(**) Vd. último poste esta série > 9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3858: Blogpoesia (30): Em Cutima, tabanca fula... (José Brás / Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P4036: Documentos (7): PAIGC: Cartas (1): Meu querido pai, Ansumane Camará... (Umaru Camará / Manuel Maia)

Guiné > Região de Tombali > Cantanhez> Cafal Balanta > 2ª CCAÇ / BCAÇ 4610 (1972/74)> O Manuel Maia, um turista no seu exótico bungalow... do Cantanhez

Foto: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados



Imagens digitalizadas: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados

1. Reproduzimos acima duas cartas que foram apreendidas, aquando de uma "operação para lá da bolanha de Cafal/Balanta", no Cantanhez, já em 1973.

Foi o Manuel Maia, ex-Fur Mil, membro da Tabanca de Matosinhos que as fez chegar até nós, em 24 de Fevereiro último. Diz ele que uma está "escrita em árabe enquanto a outra está em crioulo". Na realidade, não se trata do idioma árabe (que poucos guineenses sabiam, na época da luta armada), mas sim de um idioma local (provavelmente mandinga ou beafada), arabizado...

Em relação à segunda carta, não se pode dizer que seja redigida em crioulo, será mais justo dizer que é em português. É uma carta (terna) de um jovem militante do PAIGC, Umaru Camará, que está a trabalhar na base de Kandiafara (ou Candjafara), na Guiné-Conacri, aparentemente em tarefas de apoio (administrativo ou logístico), antes de seguir para a região do Gabu, frente leste...

O destinatário é seu pai, Ansumane Camará, um apelido tipicamente mandinga. É seguramente gente escolarizada. Há um outro irmão, mais velho, no PAIGC, Laminá Camará. Não se sabe onde vive a família: Bafatá ? Gabú ? Conacri ? Cantanhez ? Provavelmente, Cantanhez, onde a carta foi encontrada pelas NT, três anos e meio depois de ter sida redigida...

A carta (uma página) está escrita em papel quadriculado, e o seu autor revela uma boa caligrafia. Pormenor que me chamou a atenção: o nosso jovem, que trata o pai com muita deferência (estamos numa sociedade patriarcal), não se esquece de mandar cumprimentos para a Mãe, Djassi, de seu apelido...

Em resumo: os homens que os portugueses combatiam, os famigerados turras, também tinham pai, mãe e irmãos, como eles... E também tinham saudades de casa, como os tugas...

Tentativa de fixação e revisão do texto: L.G.

27-9-69, PAIGC, Candjafara

Querido meu pai , Ansumane Camará, apresento-lhe, a seguir, os máximos cumprimentos, fraternais e combativos.

Meu pai, antes de começar a falar-lhe, vou pedir ao Senhor Deus (?), para que aumenta em sete vezes mais a saúde para a família da minha casa.

Meu pai, hoje é pena, eu que estava debaixo das tuas ordens, que nunca, nunca pensava que ia estar longe de ti, durante dois, três ou mais anos (…), mas se virmos bem, tudo isso é por causa da luta pelo progresso do nosso povo de Guiné e Cabo Verde.

Meu pai, vou-lhe pedindo sempre crescimento (?) na nossa vida. Eu não sei falar muito mas tu sabes (?) que estamos aqui, eu com o meu irmão grande Laminá Camará. É pena dois irmãos estarmos o mesmo trabalho. Eu agora trabalho como civil. É um trabalho de louco (?), não é coisa separada as em conjunto (?) [Parte rasurada].

Meu pai deve arranjar jeito sobre a nossa causa (…) Eu durmo todas as noites. Sobre a nossa vida, pai, eu fico aqui em Candjafara. (…) Ainda estamos sempre bem mas a direcção do Partido diz-me o que vou fazer. Só três meses depois é que vou regressar ao Gabu, frente leste.

Mas antes de isso, queria ver-te, pai (?), só isso, não tenho mais oportunidade de falar muito.

Abraço para a família de casa, cumprimentos para a Mãe Lisca (?) Djassi. Sou eu, Umaru Camará (?).

Guiné 63/74 - P4035: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (8): Amigo Paiva, confirmas que fomos vítimas de ameaças e pressões (Manuel Reis)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 3 de Março de 2008 > Fotos tiradas em Guileje, no meu regresso a Bissau. Visita a Guileje e ao Cantanhez (1, 2 e 3 de Março de 2008), no âmbito do Seminário Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008). Restos arqueológicos da antiga tabanca e aquartelamento de Guileje, local destinado a um futuro museu. (LG)

Fotos: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > Abril de 1973 > CCAV 8350 (1972/73), Piratas de Guileje > O Alf Mil Reis junto ao monumento erigido à memória do Alf Lourenço, dos Piratas de Guileje, morto em 5 de Abril de 1973, na explosão de uma armadilha. Segundo nos conta o J. Casimiro Carvalho, "um dia, o alferes Lourenço, a manusear uma granada duma armadilha , e rodeado de militares - eu estava emboscado com o meu grupo -, a mesma explodiu-lhe na mão, tendo-o morto instantaneamente. Ficou sem meia cabeça e o abdómen aberto. Eu, já no quartel, ao ajudar a pegar no cadáver, este praticamente partiu-se em dois… Que dor!... Chorei como nunca, e isto foi o prenúncio do que nos esperava" (*)

Foto: © Manuel Reis (2009). Direitos reservados

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Fotografama de "As Duas Faces da Guerra", de Diana Andringa e Flora Gomes (Portugal, 2007).

Foto: Cortesia de DocLisboa 2007

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Finais de 1995 > Foto tirada pelo Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, cujo Fiat G-91 foi abatido em 25 de Março de 1973 por um míssil Strela sob os céus de Guileje) . O Miguel integrou a comitiva da SIC que fez filmagens en Guileje, em finais de 1995. Nessa comitiva, chefiada pelo jornalista José Manuel Saraiva, iam os seguintes antigos militares portugueses, para além do Miguel Pessoa: o Coutinho e Lima, ex-major, comandante do COP 5, a antiga enfermeira pára-quedista Giselda Antunes (actual esposa do Cor Pil Av Miguel Pessoa), o Ten Cor Pára-quedista João Bessa (na altura, em Novembro de 1969 comandava, como capitão, uma subunidade de pára-quedistas, do BCP 12, que emboscou e capturou o Cap Cubano Pedro Peralta) e ainda o Dr. Manuel Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, a unidade de quadrícula que retirou de Guileje em 22 de Maio de 1973).

Foto: © Miguel Pessoa (2009). Diretos reservados

1. Mensagem de Manuel Reis (Ex-Alf Mil, CCAV 8350, Guileje, 1972/73) para o Artur Paiva (Ex-Fur Mil Art, Pel Art 15, Guileje, 1972/73) (**):

Caro Amigo Paiva :

Há bastante tempo que tencionava comunicar contigo, pois senti da tua parte a necessidade de encontrar alguém que tivesse partilhado contigo momentos vividos em Guileje e Gadamael.

Não o fiz há mais tempo, porque verifiquei que os nossos camaradas do blogue estavam a ficar saturados da abordagem do tema Guileje/Gadamael (***).

Para mim é um tema gasto, gostaria mais de ler as estórias relatadas por outros camaradas e que eu desconhecia completamente. Torna-se, no entanto, difícil lê-las sem que apareça uma piada, uma insinuação e até alguma discriminação para os que estiveram em Guileje (Há os de Guileje e os outros que começam por G…). (****)

Gostei imenso da tua mensagem, pela clareza, rigor e coragem. É um retrato fiel do que sucedeu e confirma os relatos dos outros camaradas. Tiveste a coragem de falar nas ameaças de que fostes alvo durante o trajecto para Cacine e as pressões a que lá foram submetidos. Até agora ninguém falara nisso.

A CCAV 8350 reúne, todos os anos, em convívio, nos princípios de Junho (*****). Será esse o melhor momento para reveres os teus camaradas. O Alf Mil Art de que falas é o Pinto dos Santos, já falecido.

De mim talvez te recordes dos encontros que tivemos em Lamego. Naquela altura estavas de regresso de Moçambique e eu era professor de Matemática no antigo Liceu. A tua tia era, aliás, minha colega. Lembras-te?

Mantém o contacto.

Um abraço amigo.

Manuel Reis

2. Comentário de L.G.:

Manuel, querido camarada: Gostaria que te sentisses sempre confortável na nossa Tabanca Grande. Nem tu, nem ninguém da CCAV 8350 e de outras sub-unidades, que passou pelo inferno de Guileje e/ou Gadamael, se deve sentir desconfortável, no seio dos restantes camaradas que andaram por outras paragens... Todos nós somos solidários uns com os outros, quer tenhamos estado na ilha do Como em 1964, em na retirada de Madina do Boé em 1969 ou na reocupação do Cantanhez em 1973... Ninguém deve ter tratamento de privilégio. Aos editores compete gerir, com sentido de equidade e de equilíbrio, este afluxo (enorme) de histórias e de memórias dos nossos anos de brasa na Guiné (1963/74).

Estou contigo, no sentido em que também eu gostaria de ter mais notícias do Paiva (que nunca mais apareceu) e de outros camaradas que passaram as duras provas de Guileje e/ou Gadamael em Maio, Junho e Julho de 1973... Não tenhas dúvidas que todos serão bem vindos e bem recebidos na nossa Tabanca Grande.

Um Alfa Bravo. Luís
____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

(**) 27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

(***) Vd. postes da série Dossiê Guieje / Gadamael 1973:

24 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3789: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (2): Esclarecimento adicional de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

25 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3790: Dossiê Guileje / Gadamael (3): "Um precedente grave" (Diário, Mansoa, 28 de Maio de 1973) ... (António Graça de Abreu)

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

29 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3816: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (5): Strellado nos céus de Guileje, em 25 de Março de 1973 (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav)

1 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3982: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (7): Ferreira da Silva, ex-Capitão Comando, novo comandante do COP 5 a partir de 31/5/1973

(****) Vd. poste de 10 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4007: Blogoterapia (95): Há mais vida no alfabeto da guerra, para lá dos G: Guileje, Gadamael, Gandembel, Guidaje... (António Matos)

(*****) Vd.- poste de 16 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2949: Convívios (67): Pessoal da CCAV 8350, no dia 7 de Junho de 2008, na Trofa (J.Casimiro Carvalho/E.Magalhães Ribeiro)

Guiné 63/74 - P4034: De regresso a Mampatá (Zé Manel Lopes) (2): Do Trópico de Câncer à Mauritânia



Imagens do Saará Ocidental, a caminho da Guiné-Bissau, depois de passar o Cabo Bojador e o Trópico de Câncer...

Fotos: © José Manuel Lopes (2009). Direitos reservados.


1. Continuação da publicação do diário de bordo do nosso camarada e amigo José Manuel Lopes, ex- Fur Mil, CART 6250, > CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (Mampatá 1972/74) (*)


23 de Fevereiro de 2009, domingo:

Partida pela manhã, após visita ao Cabo Bojador, pois quem o quiser passar terá de o fazer para além da dor. Não foi o caso e a viagem prosseguia com agrado de todos. E lá seguimos numa estrada paralela ao Atlântico, do outro lado o deserto, aqui e ali com muitos camelos. Uma vegetação muito pobre, que comem as cabras e bois que vimos pelo caminho? Um aspecto muito negativo, a quantidade de lixo que se encontra nas bermas da estrada.

Passamos Dakla e em seguida cruzamos o Trópico de Câncer, justamente quando passavamos ao lado de Elargoub. Por aí o almoço, atum, enchidos e queijo.

Às 17,51 horas o tormento de passar mais uma fronteira, estávamos a chegar à Mauritânia. Do lado de Marrocos carimbo aqui, carimbo ali, carimbo acolá. Torna a carimbar e esperar, que tempo e paciência têm de sobra estes Marroquinos. E que levas ai? Vinho não pode ser!!! É proibido tem que ficar tudo cá.

Porra! é para nosso consumo, a nossa religião permite e eu até nem sou religioso, caraças. Pode , não pode, fica, não fica, bem podem passar, mas não podes deixar uma garrafa, alguns de nós também gostam. Bem, fica lá com duas.

Eis a terra de ninguém, o espaço que separa as fronteiras de Marrocos e Mauritânia. Indescritível pedra, buraco, pedra, buraco vão conseguir passar a Toyota e o Mercedes? E não é que passam. Diz o Carvalho, vem para aqui estes vaidosos, como se viessem para o Dakar de jipes artilhados e o Leça e o Pires dão-lhes uma lição com carros normalíssimos.

Na parte da Mauritânia repete-se o ritual anterior, carimbo mais carimbo, tempo de espera sem fim, olho em frente e vejo um forte antigo, tiro uma foto e sou detido, confiscam-me a máquina. Mais conversa fiada, depois de muito argumento e paciência, acabam por apagar as fotos e devolver a máquina, era uma instalação militar, dizem eles, de muito interesse estratégico. Mas eu não sou nem gosto da CIA nem KGB. Tudo bem, mas nada de fotos. Seguimos para Nouadhibou onde vamos jantar e dormir.

Percorridos 781 Kms

Mauritânia > Imagens já do dia 24 de Fevereiro... Os inevitáveis (e exóticos) camelos, a autenticar a veracidade (e o exotismo) das fotos, tiradas pelo Zé Manel... (que, como ele próprio nos confessou, é um fotógrafo de ocasião, levou uma máquina digital, com pouca memória, não tendo tirado mais do que centena e meia de chapas; o que vale, diz ele, é o nosso Silvério Lobo, mecânico reformado, que fez uma boa reportagem fotográfica desta aventura).

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4033: De regresso a Mampatá (Zé Manel Lopes) (1): Da Tabanca de Matosinhos ao Cabo Bojador

Guiné 63/74 - P4033: De regresso a Mampatá (Zé Manel Lopes) (1): Da Tabanca de Matosinhos ao Cabo Bojador

Matosinhos > 19 de Fevereiro de 2009 > Na garagem do Silvério Lobo, arruma-se resto da tralha que irá no jipe do Nina (ex-Fur Mec Auto, da CART 6250)... Na foto, vê-se em primeiro plano o Carvalho (ex-Fur Mil Enf) e em segundo pplano, o Nina (de costas) e o Lobo (que esteve em Aldeia Formosa).


Coimbra > 20 de Fevereiro de 2009 > Prontos para a grande aventura... 7 viaturas e 22 elementos...

Espanha > 21 de Fevereiro de 2009 > Em Tarifa, onde se apanha o ferry boat que faz a ligação com Tânger...

Fotos: © José Manuel Lopes (2009). Direitos reservados.


1. Início da publicação do diário de bordo do nosso camarada e amigo José Manuel Lopes, ex- Fur Mil, CART 6250, > CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (Mampatá 1972/74)


19 de Fevereiro de 2009, 5ª feira:

Sai da Covilhã Francisco José Rebelo Pereira Nina, conduzindo um jipe Ford Maverick, em direcção à Régua onde pelas 17 horas se junta ao José Manuel de Melo Alves Lopes. De seguida partem para Matosinhos onde se juntam ao António Carvalho e Silvério Lobo.

Chegaram por volta das 19 horas e na garagem do Lobo carregam o carro com o material que vão levar até à Guiné. Roupas, sapatos material escolar, etc., que irão distribuir nos locais onde estiveram em 1972-74 .

Percorridos de Covilhã-Matosinhos 300 Kms


20 de Fevereiro de 2009, 6ª feira:

Pelas 6,30 horas seguem 4 carros com 13 elementos da Tabanca de Matosinhos para Coimbra, onde se juntarão a mais 3 viaturas com mais 9 companheiros de viagem, elementos da Associação Humanitária Memórias e Gentes, que organizou esta Expedição Humanitária à Guiné Bissau.

Na frente já seguiu um contentor por via marítima com diverso material. Em Coimbra, após uma conferência de imprensa na Praça da Portagemem, em que estiveram presentes o Governador Civil e o Presidente da Câmara , reinicia-se esta aventura, inédita para alguns, enquanto para outros é mais uma viagem à Guiné, terra que marcou bem fundo na suas almas. Pois não é fácil fazer uma viagem destas.

Saída de Coimbra pelas 11 horas, em Grândola faz-se uma paragem para um ligeiro almoço de leitão, acompanhado com cerveja e vinho branco. Aí vamos nós mais confortados e animados até ao Algarve, a todo o gás, pois era nossa intenção apanhar o barco em Tarifa ainda hoje e dormir já em Marrocos. Chegamos tarde, não foi possível apanhar o Ferry e tivemos de pernoitar em Tarifa, no “Hostal las Margaritas”.

Percorridos 1.058 Kms

Marrocos > 21 de Fevereiro de 2oo9 > Paragem em Kanitra, onde 'pôr combustível'... O Fernando, em segundo plano, de avental...

21 de Fevereiro de 2009, sábado:

Logo pela manha há que partir, pois a jornada vai ser longa de Tanger até Agadir. Pela hora do almoço estávamos em Kanitra, onde o incansável Fernando prepara umas deliciosas fêveras e salsichas com pão, acompanhadas de vinho tinto que o Xico Allen comprou a um amigo do Douro, mas que, cá para nós, não era grande pinga. Bom, bom, era o branco do dia anterior.

Às 15,55 estamos de partida e pelas 16,30 um polícia marroquino manda-nos parar. Segundo ele íamos a 70 Kms/hora e o limite era de 60. São muito rigorosos em Marrocos. Argumentamos que deveria haver uma tolerância e que a nossa velocidade era quase normal , a tolerância é de 10%, ou seja, 66 estava dentro do limite, setenta não, havia que pagar a multa.
- Oh monsieur gendarme... nós vamos numa missão humanitária e estamos com uma certa pressa de o fazer...

O guarda olha para a porta do jipe onde seguia o autocolante da Associação, abre um grande sorriso e deseja-nos boa viagem. Em Ovalidia metemos gasóleo e em passamos em Safi pelas 20,58 horas. Logo depois chegamos a Agadir.

Percorridos 940 Kms.



Marrocos > 22 de Fevereiro de 2009 > Imagens do deserto, para lá de Agadir, já no Saará Ocidental (O fotógrafo não mandou legendas...)

Antes de partir de Agadir, há que atestar os carros, gasóleo a 7,64 Dirhams, asneira pois mais ao sul, apesar do País ser o mesmo, passa a ser a 4,70 Dirham (1 Euro = c. 11 Dirhams). São 8,30 horas iniciamos mais uma etapa, as crianças acenam com simpatia, as pessoas são afáveis e olham curiosas a nossa caravana.

74 Km após a partida um Nissan avaria, mas no grupo vão três experientes mecânicos, o Lobo, o Leça e o Nina, homens da ferrugem aquando da comissão na Guiné. Resolvido o problema, recomeça a viagem. Passamos Tiznit, Tan Tan, e começam os controles do exército, mais um em Layonne, outro no Cabo Bojador onde vamos dormir, depois de um jantar de peixe que estava delicioso, acompanhado de vinho branco.

Percorridos 838 Kms.

(Continua)

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3884: Poemário do José Manuel (26): O regresso a Mampatá, 35 anos depois...

sábado, 14 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4032: Blogoterapia (97): Pois.. Juvenal Amado, Assim não falamos na primeira pessoa (José Brás)

1. Mensagem de José Brás(1), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 13 de Março de 2009:

Luís

Este texto, sai assim, a saber a barroco, porque me saiu quase inteiro imediatamente depois de ler o do Juvenal Amado(2).

Só publicarás se entenderes que vale a pena ou pode (podes?) “entregá-lo apenas e pessoalmente ao destinatário.

Um abraço
José Brás



Pois

Pois!

Quem me dera poder nesta palavra só, pequena, circular e cheia de som, quem me dera nela apenas, sem necessidade sequer de uma sílaba mais, de uma intenção, de um gesto, de um olhar, quem me dera poder nela dizer tudo o que me enche depois de te ler, Juvenal.

Mas não posso. Não posso, pronto, não sou capaz.

Não somos capazes.

Passámos séculos às voltas com a necessidade de justificar grandezas e misérias. De buscar razões e fins. De penetrar a essência.

Construímos a ideia de Deus, inventámos os caminhos para lhe chegar e gastámos os pés em vão.

Criámos espelhos e estilhaçámo-los na raiva da imagem reflectida.

Despedaçámo-nos em cada vez que descobrimos o quase como limite.

Mil vezes nos erguemos com a última esperança, mil vezes recuperámos o folgo no repicar dos sinos.

E agora?

Sim, e agora?

Agora, somos o quê?

Somos o quê, se nem conseguimos meter toda a alma numa palavra e nos perdemos em muitas para dizer o que nem uma, sequer, deveria ser necessária. Um olhar, um gesto da mão, sei lá, seriam suficientes para garantir a fraternidade.

Vês?

Para te dizer que as lágrimas me enchem os olhos lendo-te, as voltas que já dei à palavra.

E não é a palavra. Não são as palavras que usas, a música que me trazes nelas, a linear vontade de dizê-las, que me animam.

São as memórias que carregas, o testemunho do que viste e a certeza de que não poderia eu deixar de as sentir, se as sentiste tu e as trazes agora sem queixumes, como quem diz apenas, era assim, o que é que querem.

E o problema do eu, do tu, do nós, quem o resolve?

Eles não são eles, apenas, perdidos no redemoinho da confusão com que misturamos tempos, lugares, o verbo e os sujeitos.

Diremos, prestando contas…

Cego sou, e surdo, porque passas tão perto e não te vejo, nem oiço, fazendo o teu caminho no poema de Machado, prolongamento apenas de ti próprio.

Mas gente como tu, se não me enganas, devolve-me a esperança, a certeza que uma chispa qualquer, seja onde for, poderá trazer o fogo que há milénios perseguimos.

Gente como tu é que mantém querendo continuar.

Também tu, como eu, te sentes melhor pensando homem em vez de IN, te agrada mais falar de braço que de aço. Em Alcobaça, no Alentejo, na Guiné,

Um pequeno senão, apenas.

Assim… não falamos na primeira pessoa.


Obrigado e um abraço.
José Brás


2. Comentário de CV

Quem sou eu para, perante dois textos tão bonitos, tão tocantes, tecer qualquer comentário.

Quero só aproveitar este espaçozinho para agradecer a estes dois camaradas por escreverm tão bem e por saberem despertar em nós sentimentos tão bonitos que quase nos fazem roçar a lágrima. Sim porque não é mariqiquice um homem comover-se. E a nossa idade já nos permite deixar transparecer todas as manifestações da alma.

Obrigado Juvenal Amado pela tua homenagem à(s) mulher(es)

Obrigado José Brás. Este teu texto não podia ficar só no conhecimento do Juvenal Amado. Tivemos que o partilhar com toda a Tabanca e com os demais leitores do nosso Blogue.
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(1) Vd. poste de 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3972: Blogoterapia (93): O que é difícil é ficar calado (José Brás)

(2) Vd. poste de 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4027: As nossas mulheres (8): A uma mãe, a todas as mães, a todas as mulheres da nossa vida (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 10 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4009: Blogoterapia (96): Não chorarei a morte do Nino (Zeca Macedo, ex - 2º Ten DFE 21, Cacine, 1973/74)

Guiné 63/74 - P4031: As abelhinhas, nossas amigas (4): Desculpem qualquer coisinha (Luís Faria)

1. Mensagem de Luís Faria(*), ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 11 de Março de 2009:

Caro Vinhal

Que estejas bem de saúde
Segue uma estoria, a 6.ª com escrita um tanto esquisita!
Espero que a aceites e publiques

Grande abraço
Luis Faria


As abelhinhas
(desculpem alguma coisinha)

Só uma vez vi um Caterpiller fazer um pião e foi na Guiné e foi entre Teixeira Pinto e Cacheu e que se chamava Capó e em que saí com o meu Grupo e ia a fazer segurança à dita máquina na abertura de um trilho na mata e às tantas viu-se uma colmeia e estava cheínha de abelhaços bravos e o condutor parou e meteu uma rede na cabeça e uma protecção no corpo e disse que o fumo do escape da máquina as ia enraivecer e arrancou e nós da segurança dividimo-nos em três partes e duas entraram na mata pelas laterais e uma ficou atrás da escavadora e paramos e a máquina avançou e o fumo enraiveceu as putas meigas que deram em cima do condutor e a máquina fez um pião e o condutor ficou que nem um Cristo e as cabronas das abelhinhas não satisfeitas deram em cima do pessoal que ia atrás da escavadora e onde eu estava e TODO esse pessoal deu às de vila-diogo e largaram as armas e a merda e o mijo e eu por já estar treinado do Puto fiquei quedo com dezenas delas a andarem-me na cabeça e em tudo menos nos tomates e eu só berrava ao povo para pararem e se manterem imóveis e não adiantou nada e flecharam até ao acampamento de Capó e lá fiquei sem uma beliscadura e sozinho na mata e acompanhado por um monte de G3 e até aparecer o pessoal das laterais estava acagaçado e a zona era bera e já não havia abelhinhas pois perseguiram o pessoal fujão e ferraram-lhes p'ra cara… e o condutor foi evacuado para Bissau e a cabeça dele era uma bola tipo nìvea (perdoem) pelo tamanho e julgo que acabou (espero que não) por falecer e eu fiquei todo Quilhado por toda a gente se pirar e deixarem-me abandonado na mata e isso não se fazia e passei-lhes um sermão dos antigos e responderam que a culpa era das abelhinhas e se fossem Turras não teria acontecido e eu percebi e já estou farto de escrever tantos eee que não prefazem uma centésima parte do avelhame desembestado e ainda por cima sem pontos nem vírgulas para que quem consegue ler e chegar ao fim sinta uma ínfima parte da dificuldade respiratória que senti nessa altura

A quem conseguiu ler e interpretar este episódio real, sem desfalecimentos, os meus PARABÉNS, pois prova que ainda tem muitos anos pela frente!

Um abraço à Tertúlia
Luis Faria
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4020: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (11): Bula, foguetões e confusões no abrigo

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2009 >
Guiné 63/74 - P4018: As abelhinhas, nossas amigas (3): As lassas e os Lassas: a colmeia-armadilha, a morte do 2º Srgt Madeira... (Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P4030: Convívios (101): III Encontro dos ex-combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, dia 7 de Março de 2008 (Carlos Vinhal)

1. No passado dia 7 de Março de 2009, em Matosinhos, ocorreu o 3.º Encontro dos ex-combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, o qual teve mais de 100 participantes.

A concentração ocorreu em frente do edifício da Câmara Municipal e a foto de família foi tirada na escadaria de acesso à Biblioteca Municipal Florbela Espanca, local único onde foi possível acomodar tanta gente.

O almoço servido no Salão de Festas do Restaurante Mauritânia e foi presidido pelo senhor Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, Dr. Guilherme Pinto, e pelo senhor General Carlos Azeredo. Ambos aceitaram amavelmente o nosso convite para estarem presentes, o que muito nos honrou.

No início do almoço tomou a palavra o nosso camarada Ribeiro Agostinho, o principal impulsionador destes encontros, que agradeceu a presença dos ex-combatentes e em especial as presenças das duas individualidades convidadas.

Seguidamente o Presidente da Autarquia tomou a palavra para agradecer o convite, salientando a união e a capacidade de iniciativa dos ex-combatentes da Guiné, que se faz notar na organização e participação nestes eventos. Prometeu para muito breve um Memorial em honra dos 68 militares do Concelho, falecidos nos três teatros de operações da Guerra do Ultramar, a figurar junto ao Tanatório da Matosinhos já em fase de conclusão.

Por último e por imposição dos presentes, falou o senhor General Carlos Azeredo, que na qualidade de militar, dedicou aos presentes palavras sentidas, realçando o sacrifício a que todos fomos sujeitos, em nome da Bandeira de Portugal, defendendo o que na altura era considerado território nacional. Prometeu nunca mais deixar de estar presente nos nossos Encontros.

Seguiu-se o repasto e longos momentos de convívio.

A meio da tarde, o jornalista senhor Joaquim Queirós, fundador e Director do Jornal Matosinhos Hoje, que gentilmente colabora na organização dos nossos Encontros, dando a indispensável publicidade aos mesmos no seu prestigiado Jornal, compareceu no Salão especialmente para trocar impressões com o senhor General Carlos Azeredo. A conversa foi longa e animada com recordações dos bons velhos tempos.

Para terminar o dia, houve o habitual momento de fado.

A Câmara mandou executar uma medalha comemorativa deste 3.º Encontro e ofertou um exemplar a cada um dos participantes.

Do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e/ou da Tabanca de Matosinhos estiveram presentes, se a memória não me falha neste momento, Albano Costa, Eduardo Magalhães Ribeiro, Álvaro Basto, Joaquim Almeida (Custóias), Silva e esposa, e este vosso camarada.

Tive ainda o grato prazer de conhecer o camarada Fernando Santos que escreve com o nome de Fernando Cartola, autor do romance a que deu o título "Metro Quadrado", do qual falaremos noutro poste. Convidei-o a visitar o nosso Blogue e a aderir à nossa Tabanca Grande. Embora disponha de pouco tempo livre, prometeu aparecer.

Ficam algumas fotos do Encontro.

Foto de família com todos os participantes no 3.º Encontro dos ex-combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, tirada na escadaria de acesso à Biblioteca Municipal Florbela Espanca

Mesa da presidência. Ribeiro Agostinho, fala aos presentes, agradecendo a presença de todos.

O senhor General Carlos Azeredo no uso da palavra, ouvido atentamente pelo Dr. Guilherme Pinto.

O senhor General Carlos Azeredo e o Combatente Ribeiro Agostinho

Exemplar da medalha comemorativa deste 3.º Encontro, oferecida pela Câmara Municipal de Matosinhos a todos os participantes

Maqueta do aquartelamento de Bula de autoria do nosso camarada José Oliveira (Mestre Zé Cartaxo), exposta na Sala, alvo de alguma curiosidade por parte dos que por lá passaram

José Oliveira (Mestre Zé Cartaxo), Fernando Silva (que tem sempre uma lembrança para os camaradas participantes nos Encontros) e Carlos Vinhal que tem a função de secretariar os Encontros

Camaradas Albano Costa, Álvaro Basto e Silva (Tabanca de Matosinhos) acompanhado de sua esposa, única senhora presente no Salão

Tradicional e habitual momento de Fado

Bolo comemorativo deste 3.º Encontro onde se viam, a Bandeira de Portugal, o Brasão do Concelho de Matosinhos e o mapa da Guiné-Bissau, país africano que jamais esqueceremos

Fotos: © Ribeiro Agostinho, Albano Costa e Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados

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Notas de CV:

Vd. postes do I e II Encontros de:

7 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1570: Almoço-convívio de camaradas de Matosinhos (Albano Costa / Carlos Vinhal)
e
18 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2772: Convívios (54): II Encontro de ex-Combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, 12 de Abril de 2008 (Carlos Vinhal)

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4026: Convívios (99): CCS, CCAÇ 2366 e 2367/BCAÇ 2845, a realizar em Maio de 2009 (Albino Silva)

Guiné 63/74 - P4029: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (6): O anjo da guarda do Zé de Guidaje (Giselda Pessoa)

Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Guidaje > Em 6 de Abril de 1973, o DO 27 em que seguia a enfermeira pára-quedista Giselda Antunes, com um ferido grave, de Guidaje para o Hospital Militar de Bissau, foi ele próprio vítima do disparo de um míssil terra-ar Strela, tendo sido obrigado a aterrar de emergência em Bigene... Foi um dia trágico, esse, para a FAP e o resto das nossas tropas.

Foto: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados


1. Mensagem do Miguel Pessoa, em nome de Giselda Pessoa, Srgt Enf Pára-quedista

Caro Luís

Como já tens um texto meu por publicar (o da ejecção no Guileje), mando-te agora um da Giselda, acerca de uma evacuação no Guidaje. Não é má vontade nossa... Acontece que, pelos vistos, estes sítios davam-nos bastante trabalho... Espero que o nosso companheiro António Matos (Poste 4007) não fique desagradado com esta nossa insistência, mas não é por mal... Para compensar, de aqui a uns dias mando um sobre o Cacine - sempre é um bocadinho ao lado do Guileje...
Abraço. Miguel


2. As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (*) >

O ZÉ DO GUIDAJE


Há quase dois anos tive a oportunidade de ser contactada pelo Zé, um velho conhecido da Guiné.

Tudo começou com um artigo publicado num jornal sobre um ex-piloto da Força Aérea na Guiné, o então Ten Miguel Pessoa, artigo esse em que era referido o facto de ele ter casado com uma ex-enfermeira pára-quedista, Giselda - eu. Contava-se também a minha ida atribulada ao Guidaje no dia em que outros aviões foram abatidos pelos mísseis Strela. Com esses dados em mão, o Zé iniciou a busca de um contacto telefónico e, tendo-o conseguido, foi-lhe fácil chegar à fala comigo.

Soube assim que o Zé era um ex-militar que tinha cumprido uma comissão de serviço na Guiné, mais concretamente no Guidaje, de onde tinha sido evacuado em 6 de Abril de 1973, e que procurava confirmar se tinha sido eu a enfermeira que tinha feito essa evacuação.

6 de Abril é uma data que está fortemente marcada na minha memória e não preciso de vasculhar papéis para saber o que sucedeu nesse dia. Dois aviões foram abatidos, um terceiro desapareceu, perderam-se três pilotos e um enfermeiro da Força Aérea, dois oficiais e um sargento do Exército, um milícia local do Guidaje. E o avião em que eu seguia para uma evacuação no Guidage quase foi abatido. Tudo isto já tem sido referido em vários sítios, até neste blogue (**).

O que não se sabe, e este telefonema veio relembrá-lo, é que o dia 6 de Abril começou para mim com uma deslocação ao aquartelamento de Guidaje, logo às primeiras horas da manhã, a fim de evacuar um militar do Exército gravemente ferido. E o mais curioso - e tocante - é que esse militar, descobria-o agora, era o Zé, o homem que estava ao telefone.

Naturalmente, tivemos uma interessante conversa, embora limitada pelo próprio meio utilizado. Mas ficou-me a ideia de poder vir a falar pessoalmente com ele, no futuro. Essa oportunidade surgiu há cerca de um ano, quando fui contactada por um responsável por uma produtora de trabalhos para o Canal História (***). Pretendia essa produtora fazer uma reportagem sobre as enfermeiras pára-quedistas em Portugal, pedindo o contributo das ex-enfermeiras para prestarem depoimentos sobre as suas experiências pessoais.

Para além de me disponibilizar para essa entrevista, lembrei-me de propor igualmente que o Zé fosse convidado a participar nessas gravações, pois certamente o seu testemunho seria interessante. Dado que concordaram, acabei por ter a oportunidade de me encontrar com o Zé em Lisboa, no decorrer dessas gravações.

O que eu me lembro, o que ele me disse e o que ficou gravado podem resumir-se, de uma forma simples, no seguinte:

O Zé encontrava-se a trabalhar na construção de um telhado de um edifício, no exterior, quando repentinamente o quartel é alvejado pelo PAIGC. Estando a descoberto naquele momento, tenta procurar um abrigo, mas quando ali chega verifica que o abrigo está cheio, principalmente com gente da população. Não tendo possibilidade de se proteger completamente, fica à entrada, meio a descoberto. Ouve de repente uma explosão muito próxima, de uma granada ou morteiro, e nesse instante sente um impacto no corpo. Leva as mãos ao corpo e retira-as cheias de sangue.

Após um período de semi-inconsciência, lembra-se de ter aberto os olhos e ver uma senhora com uma T-shirt branca e calças de camuflado, não sabendo se tinha morrido e se era o seu anjo da guarda que ali estava. Recorda ainda a evacuação no DO-27 para a BA 12 e o transporte para o Hospital. Refere-me ainda ter a plena consciência de que hoje não estaria aqui se não tivesse sido evacuado naquele momento.

Afastando a hipótese do anjo da guarda, devo concordar com ele no restante. O Zé teve a oportunidade de utilizar o único avião que nesse dia conseguiu ter êxito na evacuação de feridos do Guidaje. A gravidade do seu estado não aconselhava de modo nenhum a sua permanência no aquartelamento. O avião, em que pouco tempo depois regressei ao local, acabou por ter de aterrar de emergência em Bigene, depois de alvejado por um Strela, e não poderia tê-lo evacuado. O avião que substituiu este na missão, embora tendo aterrado no Guidaje e descolado com um ferido a bordo, desapareceu após a descolagem, nunca mais se sabendo nada do avião e das pessoas que lá seguiam. Se o Zé tivesse seguido também nesse avião, seria hoje mais uma baixa a lamentar.

O Zé deve a sua vida em grande parte à sorte, embora possa ter tido uma pequena ajuda de alguém que, não sendo anjo da guarda, estava ali precisamente para o apoiar.

Giselda Pessoa (****)

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 8 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3999: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (5): Justamente recordadas no Dia Internacional da Mulher

(**) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3859: FAP (6): A introdução do míssil russo SAM-7 Strela no CTIG ( J. Pinto Ferreira / Miguel Pessoa)

(...) 5. Em 6 de Abril de 1973, agora no Norte do território da Guiné, a fortuna foi ainda mais madrasta para o Grupo Operacional 1201 da Guiné. Nesse dia, muito cedo, um DO-27 pilotado pelo Furriel Baltazar da Silva partiu de Bissalanca para uma missão de apoio a um sector de Batalhão, a norte do rio Cacheu. Numa das movimentações, transportando um médico e um sargento de Bigene para Guidaje, o avião não chegou ao destino.

Tendo-se perdido o contacto com aquele avião, de Bissalanca descolaram meios aéreos para tentar localizá-lo e, quase em simultâneo, descolou outro DO-27 incumbido de proceder a uma evacuação sanitária pedida pelo aquartelamento do Guidaje. O avião era pilotado pelo Fur Carvalho e levava a bordo a enfermeira pára-quedista Giselda Antunes.

Também este avião não chegaria ao seu destino: alvejado por
um míssil Strela, que o não alcançou por muito pouco, os comandos
do DO-27 ficaram tão danificados pela acção da onda de choque, que teve de regressar à base de origem. [Giselda Antunes e Miguel Pessoa vieram a casar mais tarde, tornando-se, com toda a probabilidade, num casal único em todo o mundo: ambos foram alvejados por mísseis terra-ar Strela, e escaparam os dois à morte.]

Entretanto, para substituir o avião danificado partiu de Bissalanca outro DO-27, pilotado pelo Fur António Carvalho Ferreira.

Tendo embarcado em Bigene o Major Mariz, comandante do Batalhão ali estacionado, este avião aterrou por fim em Guidaje, donde descolou mais tarde com quatro pessoas a bordo: o piloto, o major, um militar ferido e um enfermeiro para o assistir durante a viagem para Bissau. Apenas se sabe que, dadas as características da pista, descolou para norte, entrando por território do Senegal. Nunca mais foi visto!

O primeiro DO-27 desaparecido acabou por ser localizado algures no mato, entre Bigene e Guidaje. Transportado de imediato para o local em helicópteros, um pelotão de pára-quedistas limitou-se a constatar a morte dos quatro ocupantes. Nessa altura, voando na área em protecção da acção terrestre, o T-6 do major Mantovani foi abatido por outro míssil Strela, tendo o piloto morrido na queda do aparelho.

Manuel dos Santos, o homem que chefiara o grupo do PAIGC enviado à União Soviética para aprender a operar os mísseis, e que então acumulava as funções de comissário político da Frente Norte com as de comandante dos mísseis em todo o território, podia dar-se por satisfeito: naquelas poucas semanas do primeiro semestre de 1973, os seus homens desferiram um duro golpe na capacidade operacional do inimigo. (...)


(***) Em Agosto de 2007, o The History Channel [ O Canal História, ] exibiu um documentário dedicado à história destas mulheres intitulado "Entre o Céu e o Inferno - As Enfermeiras Pára-quedistas"... No You Tube > Terraweb podem ser visionados os 6 seis vídeos correspondentes a esta reportagem.

Enfermeiras Pára-quedistas - Parte 1/6 (9' 18'')

Enfermeiras Pára-quedistas - Parte 2/6 (9' 18'')

Enfermeiras Pára-quedistas -Parte 3/6 (8' 57'')

Enfermeiras Pára-quedistas Parte 4/6 (8' 56'')

Enfermeiras Pára-quedistas - Parte 5/6 (6' 39'')

Enfermeiras Pára-quedistas - Parte 6/6 (3' 41'')

Vd. também Wikipédia > Enfermeiras Pára-Quedistas


(****) Sobre a grafia Guidaje/Guidage (a Giselda escreve, como toda a gente... Guidage):

Vd. poste de 29 de Abril de 2008 >Guiné 63/74 - P2800: Em bom português nos entendemos (1): Guidaje e não Guidage (Luís Graça / Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa)