1. Extracto de um poste do Victor Tavares, natural de Águeda, onde é presidente de junta da freguesia de Recardães, sua terra natal. Foi 1º cabo pára-quedista, da CCP 121 /BCP 12 (Guiné, 1972/74).
Justifica-se a reprodução deste excerto: o Victor dá-nos aqui o retrato do abandono e da humilhação, a que foram sujeitos, em C
acine, os militares que, sob as ordens do Comandante do COP 5, major Coutinho e Lima, abandondaram Guileje, em 22 de Maio de 1973, chegando a Gadamael, também fortemente atacada pelo PAIGC, a seguir a Guileje, e salva pelos pára-quedistas e a Marinha -, refugiando-se depois em Cacine. (LG)
Estórias de Guilele (10): Gadamel Porto, o outro inferno a sul
por Victor Tavares
Depois de regressada do inferno de Guidaje (2), a Companhia de Caçadores Pára-quedista (CCP) 121 encontrava-se estacionada em Bissalanca [, na Base Aérea nº 12], gozando um curto período de descanso, após a desgastante acção que tivera no norte da província.
Daí o Comando Chefe entender que os 4 a 5 dias de descanso concedidos já eram demais e ser necessário o reforço das nossas tropas aquarteladas em Gadamael por se encontrarem em grandes dificuldades. Acaba, por isso, por dar ordens para rumarmos a Gadamael, para onde partimos a 12 de Junho de 1973.
Partindo de Bissau em LDG [Lancha de Desembarque Grande] com destino a Cacine, onde chegámos a meio da tarde deste mesmo dia. Como a lancha que nos transportava, não conseguia atracar ao cais por falta de fundo, fomos fazendo o transbordo por várias vezes em LDM [Lanchas de Desembarque Médias] para aquela localidade.
Foi então, logo na primeira abordagem da lancha, que me apercebi que na mesma estava um indivíduo que pela cara me pareceu familiar. No entanto, como o mesmo se encontrava vestido à civil calções, camisa aos quadradinhos toda colorida e sandálias de plástico transparente - pensei ser porventura algum civil que andaria por ali no meio da tropa, o que seria natural e podia eu estar errado.
Depois de toda a tropa estar desembarcada, indicaram-nos o local onde iríamos ficar, num terreno frente ao quartel de Cacine. Instalámo-nos e de seguida fomos dar uma volta pelas redondezas, até que no regresso deparo com a mesma criatura, sentada no cais com ar triste e pensativo, típico da pessoa a quem a vida não corre bem. Eu vinha acompanhado do paraquedista Vela, meu conterrâneo – e hoje meu compadre. Perguntei-lhe:
- Ouve lá, aquele tipo ali não é nosso conterrâneo?
Responde ele:
- Sei lá, pá, isto é só homens.
"Gadamael ?!...Vocês vão lá morrer todos!"
Por ali estivemos na conversa mais algum tempo, até que tomei a iniciativa de me dirigir ao fulano uma vez que ele continuava no mesmo sítio. Acercando-me dele, perguntei-lhe:
-Diz-me lá, camarada, por acaso tu não és de Águeda ?
Responde-me ele:
- Sou.
E pergunta-me de seguida:
- E você, não é de Recardães?
Digo-lhe que sim, cumprimentamo-nos e vai daí perguntei-lhe o que é que ele estava ali a fazer, porque de militar não tinha nada. Respondeu-me que não sabia o que estava ali a fazer, de uma forma triste e ao mesmo tempo em tom desesperado e desanimado.
Entretanto com o desenrolar da conversa, ele perguntou o que estávamos ali a fazer, eu respondi que na madrugada seguinte íamos para Gadamael Porto... Qual não é o meu espanto quando ele põe as mãos à cabeça, desesperado e desorientado, e me diz:
- Não vão, porque vocês morrem lá todos!
Tentei acalmá-lo, dizendo-lhe para estar descansado que nada de grave ia acontecer, pedi-lhe para me contar o que se passava, vai daí, começa ele a relatar o que tinha passado em Guileje e Gadamael até chegar a Cacine. Na verdade depois de o ouvir, não me restaram dúvidas que ele tinha mais do que sobejas razões para estar no estado psicológico aterrador em que se encontrava .
Os militares portugueses que abandonaram Guileje, foram tratados como desertores e traidores à Pátria
Entretanto, informa-me da sua situação militar daquele momento tal como a de outros camaradas que abandonaram Guileje. Neste grupo estava também outro meu conterrâneo, que o primeiro foi chamar, vindo este a confirmar tudo.
O que mais me chocou foi a forma desumana como estes militares foram tratados, depois da sua chegada a Cacine, sendo considerados como desertores e cobardes, quando, em meu entender, se alguém tinha que assumir a responsabilidade dessa situação, seriam os seus superiores e nunca por nunca os soldados.
Estes homens foram humilhados por muitos dos nossos superiores - que eram uns grandes heróis de secretária! -, foram proibidos de entrar no aquartelamento, não lhes davam alimentação, o que comiam era nas Tabancas junto com a população. As primeiras refeições quentes que já há longos dias não tomavam, foram feitas por estes dois homens juntamente com os pára-quedistas, porque o solicitei junto do meu Comandante de Companhia, Capitão Pára-quedista Almeida Martins – hoje tenente general na reserva - ao qual apresentei os dois camaradas do exército que lhe contaram tudo por que passaram.
Os dois desgraçados de Guileje eram meu conterrâneos: o Carlos e o Victor Correia
Solicitei ao meu comandante para eles fazerem as refeições junto com o nosso pessoal, prontificando-me eu a pagar as suas diárias, se fosse necessário. Ele autorizou os mesmos a fazerem as refeições connosco enquanto não tivessem a sua situação resolvida e a nossa cozinha que dava apoio ao Bigrupo que estava de reserva, ali se mantivesse.
O meu comandante expôs o problema destes homens ao comandante do aquartelamento do exército, solicitando que o mesmo fosse resolvido com o máximo de brevidade uma vez que a situação não era nada dignificante para a instituição militar.
É de salientar que estes dois homens já não escreviam aos seus familiares há mais de um mês, porque não tinham nada com que o fazer. Fui eu que lhes dei aerogramas para o fazerem e os obriguei a escrever, porque o seu moral estava de rastos e a vida daqueles militares já não fazia sentido. Dormiam debaixo dos avançados das Tabancas enrolados em mantas de cor verde, não tendo mais nada para vestir a não ser o camuflado.
Estes meus dois conterrâneos que atrás refiro eram o Carlos (que infelizmente já faleceu, natural do lugar de Perrães, Oliveira do Bairro) e o Victor Correia (de Aguada de Baixo, Águeda, e que hoje sofre imenso de stresse pós-traumático de guerra)(3).
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Notas dos editores:
(1) Vd. poste de 19 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)
(2) Vd. postes de:
25 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
9 de Novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida
(3) Estes camaradas devem ter pertencido à CCAV 8350 (ou a sub-unidades adidas, como o Pel Art, do Alf Mil Pinto dos Santos). Os
Piratas de Guileje foram os últimos deixar Guileje, por ordem do comandante do COP 5, o então major Coutinho e Lima (4). A esta unidade pertencia o nosso querido amigo e camarada, o ex-Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, membro da nossa tertúlia:
Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) (Magalhães Ribeiro).
Recorde-se que, de 18 a 22 de Maio de 1973, o
aquartelamento de Guileje foi cercado pelas forças do PAIGC (Op Amílcar Cabral),
obrigando as NT (CCAV 8350, 1972/73 e outras), a abandoná-lo, juntamente com cerca de 600 civis (3)
A Companhia Independente de Cavalaria 8350/72 foi a unidade de quadrícula de Guileje entre Outubro de 1972 e Maio de 1973. Viu morrer em combate nove dos seus homens, entre algumas dezenas de feridos.
Foi seu Comandante o Cap Mil Abel dos Santos Quelhas Quintas, o qual escreveu numa carta dirigida ao Senhor Chefe do Estado Maior do Exército, sobre o Furriel Miliciano de Operações Especiais José Casimiro Pereira Carvalho, com o seguinte teor (data omissa ou desconhecida):
"Exmo Senhor Chefe do Estado Maior do Exército:
"Por, quando Comandante da Companhia Independente da Cavalaria 8350, em serviço na Guiné entre 1972 e 1973, sedeada em Guileje, ter sido ferido em Gadamael, nunca me foi possível propor uma homenagem pública ao Furriel de Operações Especiais Casimiro Carvalho.
(...)"Quando fui ferido, foi este homem que me ajudou a deslocar para junto do Rio Cacine, pois eu mal me podia movimentar, deslocando-se em seguida debaixo de intenso fogo de morteiros e outra armas que, neste momento, não sei especificar, para conseguir um depósito de gasolina de forma a poder fazer movimentar a embarcação em que me evacuou para Cacine, como também outros militares que nesse momento já se encontravam junto ao pequeno cais.
"Nas reuniões anuais da nossa Companhia muitos falam dos actos de bravura deste furriel, desde, debaixo de fogo, conduzindo uma Berliet se deslocar aos paióis para municiar não só as bocas de fogo de artilharia, como para os morteiros, fazer ainda parte duma patrulha onde morreram vários militares ficando ele e outro a aguentar a situação, até serem socorridos, e ter sido ferido, evacuado para Cacine, o que não invalidou que passados poucos dias se tenha oferecido para voltar para junto dos camaradas no verdadeiro inferno em Gadamael" (...).Vd. ainda os seguintes postes:
18 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'24 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!14 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira13 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento25 de Abril de 2007 >
Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G9125 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)27 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)(4) O major de artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima era então, desde 21 de Janeiro de 1973, o comandante do COP 5, tendo sido ele a tomar a decisão da retirada de Guileje, em 22 de Maio de 1973, cercado por três corpos do exército do PAIGC (três baterias de artilharia: uma de canhões sem recuo; outra de morteiros; e outra de foguetões 122 mm, ou graad, também conhecidos como
jactos do povo).
Vd. postes de:
27 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)3 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2502: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (14): Enquadramento histórico (II): o significado da queda de Guileje23 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2673: Uma semana memorável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (10): Guiledje: Homenagem ao Coronel Coutinho e Lima23 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2677: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (1): Comandante do COP 5, com 3 comissões no CTIG23 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2678: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (2): A dolorosa decisão da retirada de Guileje (...) "A Operação de retirada foi organizada da seguinte maneira: em primeiro escalão, saiu o Sr. Comandante da CCAÇ 4743 (GADAMAEL) com os seus dois grupos de combate, seguidos de parte da população; em segundo escalão, o Sr. Comandante da CCAV 8350 (GUILEJE), com a sua Companhia, milícia e restante população; em último lugar, o pessoal militar sobrante, incluindo os elementos do Comando do COP 5, tendo sido eu o último a sair do quartel" (...).
Segundo informação (oral) do Coronel de Artilharia, na reforma, Coutinho e Lima, agora prezado membro da nossa Tabanca Grande, a coluna militar que deixou Guileje, era constituída por: (i) 2 grupos de combate da CCAÇ 4743 (unidade de quadrícula de Gadamael); (ii) CCAV 8350, (unidade de quadrícula de Guileje); (iii) Pelotão de Artilharia, comandado pelo Al Mil Pinto dos Santos (já falecido); (iv) Pel Cav Reconhecimento Fox (reduzido, havendo apenas duas Fox), além do (v) pelotão de milícias local...
Ele disse-me que não havia nenhum Pel Mort, sendo o Mort 10.7 e os 2 Mort 81, operados por pessoal dos
Piratas de Guileje. Esta unidade (a CCAV 8350) era constituída sobretudo por "pessoal do Norte" e esteve depois em Bissau, em recuperação. Em Abril de 1974 estava afecta ao sector de Quebo (Aldeia Formosa), em dois destacamentos: Cumbijã e Colibuía.