domingo, 16 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)


Capa do livro de Jules Roy, "La bataille de Dien Bien Phu", 
Paris, Le Livre de Poche, 1972, 538 pp. ( a 1ª edição é de 1963;
 um dos livros  que o Antoine Ben Oliel nunca leu 
mas por onde perpassa a sua sombra. Um dos maiores 
desastres militares da França colonial e dos seus bravos soldados 
da Legião Estrangeira. Juley Roy é um "pied-noir", 
nascido na Argélia em 1907. Morreu em 2000. Foi militar e resistente
na II Guerra Mundial. Deixou o exérito, em 1953,  em protesto 
contra a guerra da Indochina.

 
A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 

Parte II 

(Luís Graça) *

(Continuação)

Num outro dia, num dos nossos verões passados, apanhei a Rosemarie particularmente bem disposta, a cantarolar um dos fados da Amália, a sua musa inspiradora. Não reconheci de imediato nem a letra nem a música. 

C'est le fado de Paris.  − respondeu-me ela.

(...) O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até o Sena se queixa de pena
Que o Tejo não quis sair de Portugal.

O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até Saint-Germain-des-Prés
Já canta o fado em francês! (…)


Foi uma deixa para falarmos do bistrot do Antoine, que tinha nome português, “O Cantinho da Saudade”… lá na petite ville, a sudeste  de Paris, onde ambos viveram… Foi o seu primeiro trabalho, quando chegou a França em 1967: foi empregada de mesa e de balcão no bistrot que se tornou um local de encontro dos imigrantes portugueses da região, mas também de magrebinos, em especial de antigos combatentes da guerra de Argélia, os harkis… E a partir do momento em que começou a haver “fado ao vivo”, passou a ser também frequentado por alguns franceses, como os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos, que já eram conhecidos do Antoine, do tempo da Argélia.

Enquanto tomávamos café numa esplanada junto à praia, eu puxei a conversa para o Antoine… Queria saber como a Rosemarie conhecera o homem que a levou para França, “a salto”, em 1967,  e que iria mais tarde lançá-la na “vida artística”, como cantora de fado, e depois a dormir com ela… na cama.

É uma outra história, longa e algo rocambolesca, com muitos "claros e escuros", e alguns silêncios que eu tive de respeitar.

A Rosemarie já o conhecia de Chaves. “Vagamente”, garantiu-me ela. “Ainda antes de casar”…Já não podia precisar o ano, nem as circunstâncias, de resto “não era muito boa em datas”. Talvez nalgum baile ou nas festas da cidade. Alguém o terá apresentado à Rosemarie, na altura criada de servir, na cidade:

− Eu dava nas vistas… E ele tirou-me logo a 'fotografia'… Disse-mo dez anos mais tarde, quando me levou para França… Tinha vindo da tropa, usava o cabelo à escovinha, ainda falava um português avec accent… Não lhe achei muita piada, para mais numa terra de magalas que passavam a vida a mandar piropos parvos às raparigas, quando vinham à cidade…

A Rosemarie reparou, isso sim, na extensa cicatriz, com quatro ou cinco centímetros, que o Antoine ostentava no rosto, no maxilar direito, no enfiamento da orelha. Parecia exibi-la com orgulho, apesar do disfarce das patilhas. Vim a saber mais tarde que era a sua “medalha de guerra”, ganha com sangue na Indochina, em  março de 1954, logo no início da batalha de Dien Bien Phu.

O Antoine era de nacionalidade francesa, mas de origem portuguesa, por parte do pai. Este era flaviense e tinha integrado o corpo expedicionário português, o CEP, na I Grande Guerra, como 1º cabo ou sargento, a Rosemarie não sabia precisar o posto.

E por lá ficou, em França, o pai do Antoine, tendo-se tornado francês por casamento. Vivia na região da Île de France. Segundo percebi, foi um dos prisioneiros portugueses da batalha de La Lyz, em abril de 1918. No cativeiro contraiu a tuberculose e escapou, com sorte,  à pneumónica de 1918/19. 

Nunca mais regressou à Pátria, e fez um primeiro casamento, logo que foi libertado. Ficou com uma pequena pensão de guerra, mas cedo enviuvou, não tendo filhos. Até ao final dos anos 20 só se sabe que trabalhou como capataz ou encarregado numa grande quinta que fornecia produtos agrícolas e animais para os mercados abastecedores de Paris.

Foi lá que conheceu a segunda mulher, também francesa, mas de origem judia sefardita, com antepassados em Marrocos. Terão sido, muito provavelmente a avaliar pelo apelido, Ben Oliel, judeus expulsos de Portugal no tempo de Dom Manuel I.

A Rosemarie não sabia grandes pormenores sobre a “árvore genealógica” do Antoine, do lado da mãe, embora usasse o seu nom, o apelido de família. O seu companheiro era uma pessoa muito reservada, muito raramente falando do seu passado, e em especial do tempo da tropa e da guerra.

A Rosemarie não chegou a conhecer a família do Antoine, nem sequer a sua segunda mulher, que morrera onze antes de ela chegar a França. O pai morrera ainda mais cedo, em 1939, na véspera da II Guerra Mundial, não tendo por isso sofrido a vergonha, la honte, da derrota militar da França, cujo território ele estava convencido que era “intransponível” devido à mítica “linha Maginot”… Nem conheceu, felizmente para ele, a amargura da ocupação da sua querida França pelo exército nazi. Tinha quarenta e poucos anos, e deixou 4 filhos órfãos, dos quais três rapazes e uma rapariga.

Em junho de 1940, a família, em pânico, como milhões de outros franceses, fugiu para o sul, refugiando-se em Bordéus, onde sobreviveu, algumas semanas, com as suas escassas economias e parcos haveres.

Com a ajuda do cônsul português de Bordéus (de que a Rosemarie, imperdoavelmente, não sabia o nome, Aristides Sousa Mendes, acrescentei-lhe eu), a família Ben Oliel conseguiu obter um visto que lhe permitiu chegar a Vilar Formoso, sã e salva. O Antoine não tinha ainda 10 anos nessa época mas, ao que parece, terá ficado com recordações bem vivas dessa dramática viagem de comboio, de noite, e do alívio da chegada a Portugal, país de que ele irá gostar muito, até ao fim da vida.

Il aimait trop le Portugal! − jurava a Rosemarie.

A família é, entretanto, separada, a mãe fica com os filhos mais novos. O Antoine e outro irmão mais velho vão para um seminário ou orfanato.

−Tempos difíceis! – comentei eu. 

−Viveram da caridade. Tanto quanto sei, e pelo que o Antoine me contava, e que era muito pouco, a mãe, viúva, sem qualquer contacto com a família do marido, que era de Chaves, estava num lar de freiras, no Porto ou arredores, com o apoio discreto de uma organização judaica.

Com 15 anos, o Antoine, já rapagão, voltou a França, depois da Líberation, para ver em que pé estava o assunto da casa da família… A quinta ( e a casa onde viviam, com mais trabalhadores, franceses e estrangeiros) fora requisitada pelas autoridades militares alemãs, e havia notícias de que tinha sido  alvo de ações de sabotagem por parte da Resistência francesa ou bombardeada pelos Aliados.

Entretanto, o Antoine encantara-se por Chaves onde descobriu, com a ajuda dos padres, alguns parentes da família do pai, incluindo um tio, que era guarda fiscal, e alguns primos, que o ajudaram a ele bem como à mãe e aos irmãos. Ia lá passar férias enquanto esteve no seminário. 

Mas em 1944 terá sido expulso pelos padres por razões que a Rosemarie nunca soube. Desconfiava, isso sim,  que terida sido pelo seu comportamento truculento e até violento, enfim, pela sua maneira de ser e de falar, que “não ficava bem num futuro representante de Deus na terra”.

Fixou-se em Chaves, "deu em malandro" (sic). Já perto do final da guerra, meteu-se numa "troupe" que fazia contrabando fronteiriço, com um dos primos, filho do tio da Guarda Fiscal. Pequeno contrabando, como café e cigarros...

Mas,  logo em finais de 1946, o Antoine  voltou a Chaves e às atividades lucrativas do contrabando. Aprendeu a conhecer aquelas serras e o caminhos dos contrabandistas. Passados uns meses, teve que fugir para França quando um dos elementos do bando foi atingido, na Galiza, pela Guardia Civil. O tio aconselhou-o a ficar por lá uns tempos.

A família Ben Oliel conseguiu reaver a casa que tinha, a sudeste de Paris. Os miúdos voltaram. E por lá cresceram e casaram. A Rosamarie só conhecia os mais novos. O mais velho já tinha, entretanto, emigrado para Buenos Aires e por lá ficou, sem nunca ter regressado a França ou a Portugal. Nem sequer ter dado notícias.

Em França, a vida da família melhorou um pouco com o apoio da Sécurité Sociale, enquanto o país ia recuperando do pesadelo da guerra, da ocupação e da resistência.

Os “30 gloriosos”, o “milagre económico francês”, fizeram também esquecer os conflitos militares nos territoires d’ outre-mer em que a IV República estave mergulhada, a começar pela sangrenta guerra da Indochina e depois a da Argélia.

Sem paradeiro certo, vivendo de biscatagem, o Antoine não resistiu a uma campanha de recrutamento da Legião Estrangeira, fazendo por volta de 1950 um contrato de seis anos. Era menos uma boca a alimentar lá em casa. Por outro lado, tinha frequentes conflitos com a mãe e os irmãos mais novos.

A Rosemarie sabia pouco deste período obscuro da vida do Antoine e não conseguia sequer localizar no mapa a Indochine … e muito menos pronunciar Dien Bien Phu. Desculpava-se que a geografia também não era o seu forte. E quando chegou a França em 1967, no tempo do De Gaulle, já não se falava dessas guerras,

Por outro lado, dizia-me que ele tinha sido paraquedista, o que não correspondia à verdade. Os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos é que me deram informação adicional, mais detalhada e precisa, sobre o passado militar do nosso homem.

Nesse aspeto eles conheciam o Antoine, légionnaire, muito melhor do que a Rosemarie. E confirmaram-me que o Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia não aos paraquedistas mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para  Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. De resto, o Antoine não gostava de voar, tinham vertigens, pelo que nunca teria passado sequer nos testes para paraquedista.

Em finais de 1953 estava na Indochina,  para logo, passados três meses,  em 13 ou 14 de março de 1954  ser ferido gravemente por um estilhaço de obus que lhe desfigurou o rosto.  Teve ainda a sorte de poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressariam do doloroso cativeiro.

−Escapou da morte quase certa, em Dien Bien Phu ou no cativeiro – comentaram os nossos anfitriões, em tom lacónico.

Um ano e tal  depois da convalescença ainda passou pela Algérie. Conseguiu prorrogar o seu contrato por mais uns tempos e ficou por Argel. Aí, sim, terá estado numa base aérea, numa unidade de apoio logístico aos paraquedistas, antes de completar os seis anos de contrato com a Legião Estrangeira.

A doença, e a subsequente morte da mãe, obrigou-o a apressar o regresso a casa, em 1956. E foi, talvez um ano depois, em 1957, tinha a Rosemarie vinte anos, que ele a  conheceu em Chaves.

Os nossos amigos também eram repatriés ou retornados (pieds-noirs, era a expressão injuriosa que se usava em França para designar a população europeia, ou de origem europeia,  que fora obrigada a deixar a Argélia, depois da independência). Professores num colé
gio privado, eram de origem judia, como muitas das profissões liberais a viver e a trabalhar naquela antiga colónia francesa do Magrebe, a “joia da coroa” do império colonial francês: médicos, farmacêuticos, advogados, notários,  professores, agricultires, empresários, etc. A maior parte, de resto, eram já nascidos na Argélia,  há várias gerações. 

Os nossos amigos foram viver para a região da Ilha de França,  logo em 1962, tendo vindo na leva dos cerca de 800 mil repatriés… Por volta de 1966 começaram a frequentar o bistrot do Antoine, de quem eram vizinhos, mas ele nunca ou raramente abria o jogo sobre os seus tempos de legionário. Gostava, isso sim, de falar da Argélia e de Portugal… mas nunca da Indochina. Eram as duas coisas que os aproximavam. De resto, não falavam de política. Nenhum deles gostava de De Gaulle, mas por razões diferentes, que eu também não quis esmiuçar.

O bistrot do Antoine, na petite ville de A…, no Val-de-Marne, era muito popular nesse tempo, sendo o centro da vida social dos imigrantes portugueses que chegavam a França mas também de alguns magrebinos nascidos em França ou com muitos anos de França, incluindo ex-combatentes da guerra da Argélia…

Antigos camaradas de armas do Antoine, que viviam na banlieue  de Paris, também apareciam de vez em quando para saluer les copains, beber um copo em memória dos “bons velhos tempos” e fazer uma jogatana de cartas, refugiando-se numa das “salas reservadas” do estabelecimento.

A Rosemarie tinha uma presença discreta mas assídua no bistrot do Antoine, substituindo-o, nas funções de gerência, sempre que ele se ausentava por mais de um dia. Em boa verdade, não gostava dos amigos do Antoine, do tempo da tropa e da guerra. Sempre os achou "más companhias" do seu patrão. E, quando ele não estava, "apalpalvam-lhe o rabo, os salauds, os sacanas".

A pouco e pouco o Antoine começou a ser conhecido como o “padrinho” dos portugueses da região e ninguém sabia ao certo desde quando e como é que ele começara a sua atividade de “passador”. Levava, no mínimo,  dez contos por cabeça, para atravessar a fronteira. Por vezes a crédito, mas sempre com juros. Começou a trazer muita gente do Norte, "do rio Minho ao Mondego"... 

Respeitavam-no, para não dizer que o temiam. Aos caloteiros não estava com meias medidas: das ameaças passava aos atos e, não raramente, “andava à porrada”. Muitos foram viver para o bidonville de Champigny, e ele procurava ajudá-los a arranjar emprego e a “tratar dos papéis”. Havia redes de recrutadores de mão de obra ilegal, para o bâtiment, os chantiers, a construção e obras públicas. Enfim, tudo isto custava dinheiro, pelo que alguns desgraçados passavam um ano a trabalhar para pagar as dívidas do “salto”… 

De estatura média mas com um “tronco de touro bravo”, era exímio no jogo de pés e cabeça. A cabeçada dele chegou a mandar alguns para o hospital. Não usava armas,  a não ser em “casos extremos”.

Foi sempre bem sucedido nas suas “viagens de passador”, sem percalços de maior. Conseguiu arranjar passaporte português, já que tinha dupla nacionalidade, obtida em finais de 50. Ao que se suspeita, mais do que se sabe, tinha alguns bons contactos, na PIDE,  na Guarda Fiscal, na GNR, na Guardia Civil e na Gendarmerie, o que facilitava as suas deslocações e a passagem da “carga” nas duas fronteiras.

(Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido  materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio,  como légionnaire

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor,  fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)

Guiné 61/74 - P21257: Parabéns a você (1848): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21243: Parabéns a você (1847): Alberto Nascimento, ex-Soldado CAR da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63); Américo Russa, ex-Fur Mil Alimentação do BART 3873 (Guiné, 197274) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo CAR da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)

sábado, 15 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21256: Os nossos seres, saberes e lazeres (406): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Recém-chegado, começo a sentir que o Lima é a veia cava deste povoado que se pode orgulhar de fazer parte do berço da nacionalidade. Aqui estou, em respeitosa memória de um querido amigo nonagenário que me deixou inconsolável com a sua partida. Era um homem de cultura desmesurada, nela cabiam o sebastianismo, as querelas sobre as origens de Cristóvão Colombo, o integralismo lusitano, toda a história do Estado Novo e mais recentemente o espetro das direitas radicais em Portugal, mas também a literatura contemporânea, o surrealismo literário e as suas respetivas Artes Plásticas, o fim da monarquia e toda a questão monárquica desde a morte de D. Manuel II. Foram catorze anos de leituras onde se saltava de Paiva Couceiro para a correspondência entre Mário Cesariny e Maria Helena Vieira da Silva, os jornais do Alto Minho eram um enxame de abelhas, possuo a cátedra da informação, até a necrologia se lia. Fui igualmente seu confidente, e recordo um episódio quase truculento já que o seu espetro de curiosidades abrangia a genealogia e a heráldica. Um dia, numa dessas reuniões de aficionados da genealogia, o Carlos Miguel ouvia um certo Peixoto, não sei se de Penalva do Castelo ou Paredes de Coura, gabava-se de ter familiares já identificados do século XVI, o Carlos Miguel respondeu-lhe que era descendente de D. Afonso Henriques. Embasbacado, o tal Peixoto pediu-lhe o como e o porquê. "Meu caro senhor, o nosso primeiro rei teria, se tivesse, aí uns 40 ou 50 mil portucalenses no território. Há notícia que bastardos eram pelo menos 50, não me venha dizer que não me coube uma pinga de sangue real...". O Peixoto emudeceu. Ultraconservador, não se cansava de elogiar os romances de José Saramago. Era assim que praticava a integridade, não se coibindo, por vezes, de ser truculento, mas sempre se arrependia.
Por isto e por muito mais, estou feliz por ter vindo a Ponte de Lima.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (2)

Mário Beja Santos

Em quantas leituras a Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo apareceu a Ribeira Lima? Não têm conta. Na obra Alto Minho, do professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida, o cântico do lugar é muito poderoso, o que é geografia prevalece: “A mais bucólica e celebrada ribeira portuguesa, a do Lima, a de Diogo Bernardes e António Feijó, tem o seu coração em terras de Ponte. É na área deste concelho que as suas veigas e alvéolos se abrem mais, oferecendo-nos, entre as encostas abruptas da Serra d’Arga e os cumes do Oural, um enorme anfiteatro que o rio drena, axializa e parece não querer deixar”. De facto, há qualquer coisa de magnético, passeia-se na Avenida dos Plátanos, o olhar pode ir até ao fundo, até aos esporões da Serra de Antelas, mas é sempre o Lima a que nos fixamos. Aqui começa a caminhada do dia de hoje, deixa-se para depois o casco histórico, passou a ponte romana e medieval, as torres da Cadeia Velha e de São Paulo, há a esperança de bisbilhotar o Teatro Diogo Bernardes, será imperioso, em homenagem ao meu querido amigo recentemente partido visitar a Biblioteca Municipal e o arquivo, por ora contempla-se a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Guia, de um barroco sóbrio, está fechada, não terei nesta viagem circunstância de admirar os seus belos azulejos. Avança-se então para o Museu dos Terceiros.




Este museu é uma referência na Arte Sacra no norte do país, reabriu em 2008, quem visite Ponte de Lima tem tudo a ganhar com a sua visita. Há o museu e há o jardim, a vila mais antiga de Portugal dá enormes sugestões para a Rota das Camélias, ainda irei encontrar muitas.


O museu encontra-se instalado em duas casas religiosas associadas à Ordem Franciscana: o extinto Convento de Santo António dos Capuchos e o edifício da Ordem Terceira de São Francisco. É indissociável da história de Ponte de Lima pois a parte remanescente do convento foi fundada em finais do século XV por D. Leonel de Lima, alcaide da vila, formada por igreja, por capela da Senhora da Graça e pela sacristia. Riqueza não falta à igreja e até pormenores que assombram. Ora vejam.


A sacristia é de uma enorme exuberância, vem na sequência da igreja da Ordem Terceira, edificada entre 1745-1747, aqui se podem contemplar riquezas em retábulos, púlpitos e sanefas de desenho rococó. É para ver e não esquecer.





O museu foi constituído na década de 1970, com a criação do Instituto Limiano – Museu dos Terceiros. O restauro foi decidido em 2002 e aqui fica uma pálida amostra deste património espetacular.





Ponte de Lima tem a fama e o proveito dos belos jardins, das camélias, azáleas e rododendros, entre outra flora maravilhosa. A Avenida dos Plátanos, oferecendo sombra no verão, contraste de folhas no outono e o seu tapete de folhas caídas ou plátanos nus, sempre majestosos, como agora os vejo, é um dos ícones este mundo florido de jardins, parques e praças, mas também de largos e casas, como iremos ver adiante na Casa de Nossa Senhora da Aurora. Este é o Jardim dos Terceiros, a beijar o Convento de Santo António e dos Terceiros, são uma recuperação, houve estudo que veio permitir uma simulação do provável traçado do antigo jardim. Os jardins conventuais não eram local por onde qualquer um deambulasse, serviam para contemplação e cultivo de plantas medicinais e de temperos. Por isso este jardim que ora percorro organiza-se em espaços de cultivo de plantas medicinais, temos também o jardim dos cheiros e o jardim dos temperos. Está na hora de almoçar, apetece-me um bom caldo verde e uns filetes com aquele arrozinho sem igual que acompanha qualquer prato, depois uma pequena volta pela vila e segue-se para Ponte da Barca.

Jardim dos Terceiros

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21235: Os nossos seres, saberes e lazeres (405): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21255: 16 anos a blogar (15): A Mãe-de-água e as Fontelas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 14 de Agosto de 2020, para nos fala mais uma vez do povo de Trás-os-Montes, seus usos e costumes:


A MÃE-DE-ÁGUA E AS FONTELAS

Francisco Baptista

São sete homens, é meio-dia, de um qualquer dia de Julho, o calor aperta nas serranias transmontanas, abrem as sacas de linho ou estopa e retiram, o pão, o chouriço, o presunto, o toucinho, o frango assado, ovos cozidos ou omeletes, tiram dos bolsos das calças as navalhas de Palaçoulo, já gastas pelo uso, o almoço de cada um que varia entre todos estes produtos, vai começar, debaixo de sobreiros altos que ensombram a "fontela" da água que brota à superfície da terra, com que matarão a sede. Há também algum vinho numa "cabaça" que passará de mão em mão e de boca em boca, para revigorar as forças..

Cinco homens feitos, já todos chefes de família, são tiradores de cortiça, enrijecidos e queimados, pelo trabalho e pela exposição solar, com as mãos calejadas e negras pelo contacto frequente com o "verde" das tábuas de cortiça. O sexto homem, forte e atlético é o patrão, que orienta e ajuda na tiragem da cortiça sempre com a preocupação de que não se estraguem as árvores. O sétimo é um dos filhos dele que tanto poderá ter treze como vinte anos e tem por missão pintar nos sobreiros descortiçados o ano da tiragem e as iniciais do proprietário e transportar às costas a cortiça para as "rodeiras" onde possam ir os carros de vacas. Se tiver energia, curiosidade e habilidade para tal, poderá também subir aos sobreiros e colaborar na tiragem, o mais velho deles tinha. A cortiça para ter uma grossura razoável para ser vendida para as fábricas de Fiães e Lourosa, por lei, tem que ter pelo menos nove anos de crescimento, que qualquer pessoa pode ler nela, pois cada ano faz uma marca.

Nesse tempo, última metade do século passado, havia na aldeia cerca de quinze tiradores de cortiça, poucas aldeias de Trás-os-Montes, teriam tantos. Hoje por causa das alterações climáticas e das secas que tem provocado a morte de milhares de sobreiros, a produção de cortiça é muito menor, porém os tiradores de cortiça muitos filhos ou netos desses, continuam a ser no mesmo número.

A tiragem da cortiça é dos poucos trabalhos agrícolas que ainda não é mecanizável, tal como no passado e não o será no futuro penso eu. Trabalho humano, muito duro, mesmo para retirar as tábuas mais largas do tronco, que sai da terra, requer muita destreza e equilíbrio, quando se sobe aos canos. Usam uma machada própria, por ferramenta principal e uma panca, pau rijo e comprido, em cunha, a que alguns chamavam Vicente, (como se fosse mais um trabalhador) para ajudar. Trabalho de preferência, em grupo, por ser mais rentável e seguro. Antigamente, porque a cortiça era muita, a colheita da aldeia ocupava-lhes todo o tempo, agora que é menor, os novos corticeiros vão a aldeias próximas e percorrem ainda as Beiras e o Ribatejo enquanto o tempo o permite.

Brunhoso persiste em não ficar parado e em tentar sobreviver à desertificação. Há jovens empresários na aldeia que se esforçam tanto nesta como noutras áreas por criar trabalho e rendimento para eles e para os outros A cena do almoço, a que eles chamam merenda, (é a seco, a comida não é cozinhada ao lume) passa-se na Lagariça onde há a maior mancha de sobreiros de Brunhoso. O mais novo terá também por tarefa, transportar água da fontela sempre que os trabalhadores tenham sede.

Depois de alguns dias na Lagariça cenas semelhantes se repetirão na Hortelã, Fonte da Dona, Ferreiros, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Relva, Azinhal, Gaiteiro, Ribeira, Entre-Caminhos, Cova dos Lobos, Escaleiras.

Hortelã 

Lagariça

Bem perto, a um quilómetro, fica a Fonte da Dona, onde os homens almoçavam debaixo de um grande sobreiro. Tanto a água desta fonte como a da Lagariça embora fresca não era muito saborosa, talvez por causa das raízes dos sobreiros ou das folhas que caíam e que muitas vezes apodreciam lá dentro, pois a limpeza era sazonal, quando alguém aparecia.
Do outro lado no "avessedo" é a Hortelã, onde existe a mata mais densa de sobreiros, muitos quilómetros ao redor, lá não há fontes ou fontelas.

Fontela da Fonte da Dona 

Fontela da Lagariça (encoberta) 

Fontela de Juncais, com corcha de cortiça

Uma corcha, mais visivel

Descendo mais um quilómetro na direcção do Sabor existe o sobreiral dos Ferreiros com uma fontela num olival próximo onde havia também uma macieira com boas malapas (maçãs pequenas e saborosas) Quando não havia fontelas tinha que se transportar a água de longe em cabaças, cântaros ou garrafões.

Na Fonte do Junco e no Azinhal, no termo de Remondes, havia quatro sobreirais, os do Azinhal, encravados na grande área de sobreiros e oliveiras, propriedade da Aprígia uma ricaça de Mogadouro. No sobreiral de baixo, quase no limite, havia uma fonte onde a água, muito boa, manava com abundância e ia irrigar hortas e árvores de fruto dessa senhora.

As fontes ou fontelas estavam espalhadas por toda a zona camprestre para tirar a sede a tantos lavradores e trabalhadores da terra que além de grandes caminhadas, muitas vezes a pé, suportavam trabalhos cansativos e duros. Essas fontes normalmente eram pequenas nascentes de água que brotavam do solo e onde desde tempos antigos as pessoas cavavam uma pequena de poça, onde se pudesse beber, de bruços, com o auxílio de uma corcha de cortiça (no Alentejo chamada cocho ou cocharro) ou com as mãos a fazer concha. Quem bebia dumas e doutras sabia distinguir as suas águas pelo sabor, pela frescura, pela doçura, pela salinidade ou outros atributos. Não eram objecto de qualquer análise bacteriana ou outra por parte das entidades públicas. Com a sua experiência e o seu saber, os habitantes da aldeia é que as analisavam e discutiam entre eles as suas qualidades.

À beira de alguns caminhos havia fontelas muito conhecidas, como as de Juncais e Juncaínhos. A mais famosa era a de Juncaínhos pela frescura e doçura da sua água. Dela contava o Sr. João Passarinho o seguinte facto passado nos anos quarenta: Em 1940 foram para Mogadouro várias equipas dos Serviços Cartográficos do Exército para fazer o cadastro geométrico da propriedade rústica de todo o concelho, onde se demoraram durante mais de dois anos. Para Brunhoso foi uma equipa comandada por um tenente, tendo sido o Sr João, então um jovem trabalhador, já bem conhecedor dos prédios rústicos e dos caminhos, contratado para informador e guia. Disse-me ele, repetidas vezes, que o Sr. Tenente só gostava da água de Juncaínhos, e que todos os dias mandava lá o impedido buscá-la. Infelizmente hoje, essa fontela, está coberta por arbustos e silvas, espreitando pelo emaranhado que a cobre, nem água se vê, provavelmente some-se por outro sítio.

O Sr. João Passarinho já morreu há mais de trinta anos, acredito que durante a vida dele a fontela sempre teve boa água ao dispor de todos os caminhantes e que ele a terá limpado muitos vezes. Era um grande homem, de pequena estatura, humilde, trabalhador, que à jeira ou ajudando outros tão necessitados como ele, conheceu palmo a palmo toda a área agrícola da aldeia. O Sr. João Lagoa, outro bom homem, sendo o homem mais rico da aldeia, a quem ele chamava padrinho, seria dos filhos dele, e de metade dos habitante da terra, não terá sido mais feliz do que ele. Penso que ele morreu a sonhar que toda a área agrícola de Brunhoso, de vinte e um quilómetros quadrados onde ele tinha trabalhado quase 80 anos e onde ele tinha uma pequenina parcela se despedia dele.

Depois de um dia de trabalho extenuante não haveria sono mais reparador e gratificante do que o dos trabalhadores da terra. Ao deixarem a vida, no caminho para o sono eterno seriam transportado por campos de searas, hortas, prados, vinhas, freixos, olmos, sobreiros, carrascos, oliveiras, castanheiros e outras árvores, fontes, rios, ribeiros. Vidas tão cumpridas como eles somente terão tido os cientistas e artistas que se empenharam em grandes projetos criativos.

Nesse tempo toda a água que se consumia em Brunhoso, nascia dentro do seu "termo". A nascente que alimentava a aldeia a chamada "Mãe-de-Água" ficava a um quilómetro da aldeia, numa encosta , que subia para o souto dos castanheiros a nordeste. Era uma mina de água construída em tempos antigos por especialistas, que fazia confluir as águas subterrâneas da área, para um depósito, donde depois era canalizada para as quatro "bicas" da aldeia, para a Fontoz nas Fontaínhas e o tanque das Eiras de Baixo para os animais beberem e onde as pessoas podiam também colher água dos canos, antes de cair nos depósitos, nos tanques.


No limite sudoeste a cinco quilómetros da aldeia passava o rio Sabor, que criava nas suas arribas um microclima mais ameno, quase mediterrânico, propício às culturas das oliveiras, das amendoeiras e das figueiras. Criava fantasias de brincadeiras na água entre os mais novos e lindos espelhos de água com paisagens belas pintadas de azul celeste.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P21254: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (17): António Augusto de Brito Lança, natural de Castro Verde, fur mil art, da CART 250, e António de Jesus Marques, natural da Covilhã, sold aux enf, CART 240, que desertaram em 1962, e que são os presumíveis autores do "plano de assalto ao quartel de Varela"









Cartam, dactilografa. em francês, do José Araujo (1933-1992), do Bureau de Dacar, do PAIGC; enviada ao Secretário Geral com  dados sobre três desertores do Exército Português (, António Augusto de Brito Lança, António de Jesus Marques e Augusto Cabrita Paixão),  refugiados em Dacar, e a solicita meios para suportar a viagem até Argel. Tem a data de 17 e fevereiro de 1963.

Citação:
(1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36111 (2020-8-15)

 



Documento, dactilografado,  assinado por António Augusto de Brito Lança com informações sobre o  dispositivo de segurança do aeroporto de Bissalanca. Data: Sábado, 8 de Dezembro de 1962.


Citação:
(1962), "Informações sobre o aeroporto de Bissalanca", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40304 (2020-8-15



"Croquis" do aeroporto de Bissalanca,  em finais de 1962, da autoria de António Augusto de Brito Lança

Citação:
(1962), "Mapa do aeroporto de Bissalanca", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40236 (2020-8-15


 (Com a devia vénia ao portal Casa Comum / Fundação Mário Soares / Arquivo Amílcar Canral)




1. Desertores sempre os houve, em todas as guerras, em todas as épocas... A "nossa" guerra do ultramar / guerra colonial também teve os seus, de um lado e do outro. 

Na Guiné, o PAIGC teve que lidar com este problema, cuja dimensão ninguém é capaz de quantificar. Já aqui temos referido esse problema das deserções do lado da guerrilha (*), se bem que se reconheça que, no interior da Guiné, como no caso do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole (Setor L1), "não havia condições para desertar", sendo "a hierarquia e os outros elementos guerrilheiros (...) muito violentos na repressão" (...). Mais: "o medo também pesava e, admito eu, sequelas das repressões antigas evitavam que tal sucedesse". Em resumo, "os campos estavam extremados e, 'se não és por mim, és contra mim' " (António J. Pereira da Costa)(*).

No seio das NT, também não era fácil desertar, noTO da Guiné, a menos que se estivesse na fronteira (com o Senegal, a norte, não com a Guiné-Conacri cuja governo apoiava abertmente o PAIGC e, portanto, era mais hostil para com as forças armadas portuguesas). É o caso, por exemplo, de 2 militares que terão desertado em 1962, e a quem é atribuída a autoria do "plano de assalto ao Quartel de Varela", elaborado em Dacar, em 4 de janeiro de 1963, 6.ª feira, e dirigido a Amílcar Cabral (1924-1973) por intermédio de José Araújo (1933-1992), responsável do Bureau de Dacar, do PIGC,  os quais que  pertenciam às CART 240 e CART 250, respectivamente, António de Jesus Marques (1.º cabo enfermeiro) e António Augusto de Brito Lança (furriel mil de artilharia) (**)

Apesar da crescente impopularidade da guerra na Guiné, não há muitas deserções de militares portugueses dentro do território. Pode ter havido mais, antes do embarque e por ocasião do gozo de licença de férias. Mas falta-nos números. Já aqui contámos alguns casos. Mas esta questão continua a ser fracturante num blogue como o nosso que é de combatentes (ou ex-combatentes), originando às vezes acessas discussões (***).

2. Como a guerra acabou há muito, e houve uma amnistia, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, relarivamente aos crimes (militars)  inputados aos desetores e refractários,  podemos hoje satisfazer a nossa legítma curiosidade sobre estes nossos antigos camaradas que decidiram, num dado momento da sua vida militar, "dar o salto" para o outro lado da barricada...

Na maior parte dos casos não sabemos (nem nunca saberemos) as razões do seu ato de deserção. E sobre isso podemios tão apenas  especular: das razões "mais nobtes" (como a objeção de consciência à sinpatia política pela causa nacuionalista) às razões "mais mesquinhas" (, como, por exemplo,  as de ordem disciplinar...), cada caso será um caso.

Sabemos a identidade destes  dois desertores portugueses de Varela... O Brito Lança era de Castro Verde, estudante, no liceu de Beja quando foi chamado para a tropa. Tinha a  frequência do 7º ano do liceu... E sabemos, pro consulta a outras fontes na Net, que já morreur.  O Jesus Marques, pot sua vez, era natural da Covilhã, operarário metalúrgico, com a 4ª classe. Não sabemos exatamente quando nem como desertaram. Desertaram individualmente ? Encontraram-se em Dacar ? Entregaram-se às autoridades senegalesas ? Ou foram incertados por forças do PAIGC, ainda antes do início "oficial" da guerra ? Sabemos apenas que ficaram "à guarda" do cabo.verdiano José Araújo (1933-1992), do Bureau de Dacar, do PAIGC.

O "plano de assalto ao quartel de Varela"  era tão infantil que o Amílcar Cabral, que era um homem inteligente, se limitou a mandar arquivá-lo... Pela letra do "croquis" (**), este  só podia ser do António Augusto Brito Lança. Como tambeém era dele o iomforme detalhado sobre o aeroporto de Bissalanca e o seu dispositivo de segurança.

 Há, no máximo, meia dúzia de referências a estes dois nosssos concidadãos, no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Cimun... Tenho a ideia que, para o PAIGC; eram mais um estorvo do que outra coisa: tinha que os hospedar e assegurar a viagem até ao exílio... 

Sendo militares de baixa patente, pouco ou nenuma utilidade tinham para o Amílcar Cabral. . No Arquivo Amílcar Cabral, há uma carta do Jorge Araújo com diligências para os colocar, a estes dois e mais um terceiro, no Brasil...

O Brito Lança e o Jesus Marques devem ter querido pagar a "estadia no hotel" com o fornecimento à gierrilha de algumas "informações militares. Na guerra da Indochina, no tempo dos franceses, também se chegou a usar este truque de envenenar o café (por parte de agentes do Viet-MInh, infiltrados nas tropas francesas)... O Brito Lança deve.se ter inspirado numa história dessas...

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(*) Vd. postes de:

16 de junho de 2018 Guiné 61/74 - P18746: (D)o outro lado do combate (32): As deserções no PAIGC no Sector de Tite ao tempo do BART 2924 (1971-1972) e suas consequências (1) (Jorge Araújo)

17 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18749: (D)o outro lado do combate (33): As deserções no PAIGC no Sector de Tite ao tempo do BART 2924 (1971-1972) e suas consequências (2) (Jorge Araújo)

(**) Vd. poste de 13 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21250: Memórias cruzadas da Região do Cacheu: Plano (macabro) de assalto ao quartel de Varela, proposto por dois desertores das NT a Amílcar Cabral - Janeiro de 1963 (Jorge Araújo)

(***) Últimos postes da série >

4 de novembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16680: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (17): que país terá acolhido o sold básico a aux cozinheiro Manuel Agusto Gomes Miranda ? Talvez a Holanda, em maio de 1970, com o apoio do Comité Angola de Amsterdão (Tino Neves, ex- 1º cabo escriturário, CCS / BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71)

2 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16672: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (16): o caso do soldado básico auxiliar de cozinheiro Miranda (Tino Neves, ex- 1º cabo escriturário da CCS / BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71)


24 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16631: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (14): A maldição de Cancolim e a CCAÇ 3489 que teve dois casos (o capitão e um alferes) de "abandono" (no período de férias) e um de "deserção" para as fileiras do IN, o sold at inf José António Almeida Rodrigues (1950-2016)

17 de março de 2007 > Guiné 63/74 - P1606: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (13): Jorge Cabral

17 de março de 2007 > Guiné 63/74 - P1604: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (12): J. L. Mendes Gomes

16 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1599: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (11): Paulo Salgado

Os primeiros posts da série:

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret

14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho

14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1593: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (8): A. Marques Lopes

15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1596: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (9): Humberto Reis

15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1597: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (10): Idálio Reis

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21253: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (15): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
Impunha-se dar voz à paixão de Annette, como se sente Paulo Guilherme já sabemos, por entreposta pessoa, este português tem vindo a firmar raízes com gente do mesmo ofício, com quem tarimba em reuniões oficiais e também no movimento associativo de consumidores. Tudo faz, a partir de agora, sem se subtrair às obrigações que mantém e manterá em Lisboa, para encontrar abertas que justifiquem a partida para Bruxelas. O correio trocado é esfuziante, uma mescla abençoada de passado, presente e futuro, aqui temos uma declaração de amor e uma confissão de algo que aconteceu num dado momento e que tem a ver com uma fotografia, um comentário de Paulo, coisa estranhíssima, pôs a balançar o coração de Annette. Há que ler a expressão que ela utiliza, o amor tem razões que as palavras explicam, um tanto ao revés do pensamento de Blaise Pascal. A felicidade de Annette desmesura-se, é a sua vez agora de enviar uma carta falando do seu dia-a-dia de intérprete.
Para quem está a acompanhar estas jornadas escaldantes, é bom não perder o episódio seguinte.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (15): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon très adorable Paulo, é a primeira vez que te escrevo desde que descobri o virar da página das nossas vidas, tudo tão espontâneo, como tivesse havido um pousio, um compasso de espera e uma roda da fortuna a desandar para o nosso encontro, a descoberta de duas ilhas solitárias, a despeito dos nossos dois quotidianos em azáfama, para ganhar decentemente a nossa existência e apoiarmos os nossos filhos, na instabilidade das suas carreiras profissionais, e não descarto, no teu caso concreto, os problemas de saúde de um dos teus filhos, que tanto te aflige. Tu enches-me de felicidade, a maravilha que tu sentes, a exultação perante o meu corpo e o que tu chamas a beleza do meu caráter, estonteia-me, mas acredito plenamente em ti.

Foi através de caminhos ínvios, por veredas sem sinalização, que fomos amadurecendo, ganhando confiança, até eu ter tomado a iniciativa de te dizer, sem qualquer pejo, que te amava loucamente, na noite em que pela primeira vez dormimos juntos. Sim, caminhos ínvios, passeios acalorados, outras vezes debaixo da morrinha da chuva, metidos em cafés quando os céus desabavam águas, nesta Bruxelas, acredito piamente, que tu amas de alma e coração. Passeios em Ixelles, Saint-Gilles, Schaerbeek, percorrendo calçadas, visitando exposições, recordo neste momento, como se tivesse sido há uma hora, e eu ainda estivesse a esfregar os pés dos longos passeios no Parque Josaphat, em Laeken, onde tu querias visitar as estufas e rever o Pavilhão Chinês e a Torre Japonesa (confesso-te que para mim estes adereços não passam de meras curiosidades, de um monarca endinheirado, um Leopoldo II, que foi a uma Exposição Universal e comprou adornos exóticos para exibir nos seus territórios), aquele inesquecível almoço em Dinant, vejo-te tão prazenteiro e guloso com a descoberta do frango de estragão, a alegria do cozinheiro a dar-te a receita e a dizer que a confeção só resulta com estragão fresco, comeste a valer e remataste com uma Dame blanche, um café e um Drambuie.

Vezes sem conta, nos dias seguintes àquele benquisto encontro na Rue Froissart, eu me questionei quanto ao teu pedido de abrirmos correspondência, o pretexto para vires a escrever um romance sobre a tua experiência na guerra da Guiné, aceitei o teu argumento, já se tinham passado cerca de três décadas sobre o teu regresso, o campo ficcional era o melhor terreno para enfrentar o que a memória e os documentos que conservaste te permitiam não um mero regresso ao passado mas advertir as gerações futuras. Percebi bem, por múltiplas razões aqui também não se fala da nossa colonização do Congo e de alguns envolvimentos sórdidos, tentativas de obter uma presença neocolonial, tudo isto é muito incómodo para a minha geração, pouco se fala das nossas ingerências e das desgraças que provocámos. E agora que tu sabes do meu amor por ti, como vejo o nosso futuro tão promissor, mesmo sabendo que temos muitos anos pela frente em que não podemos abandonar as nossas profissões, independentemente de nenhum de nós saber onde vamos pôr a âncora para as nossas velhices, quero que saibas que houve um momento que transformou a mera curiosidade numa eclosão afetiva, num transbordo tão forte de uma quase entrega, tudo aconteceu quando me enviaste, sob a forma de epítome, os acontecimentos do renascimento de Missirá, a que atribuis uma quase transcendência no desenvolvimento da tua personalidade, tu mesmo escreveste que aqueles meses de abril a julho de 1969 tinham constituído um repto ímpar, a descoberta da criação, o papel do cuidado e do desvelo pelas vidas que te tinham sido confiadas e pela segurança que te cumpria acautelar, naquele espaço de um destacamento militar, onde viviam tantos civis e aquelas crianças que tanto te preocupavam, umas de barriga inchada, outras portadoras de doença visível, a tua alegria quando conseguiste professor, o protocolo estabelecido com aquelas crianças que lavavam a loiça e que tinham direito a todas as sobras.

Mas, adorable Paulo, foi a fotografia do Jobo e a descrição tão entusiástica da padaria em Missirá que me fez entrar em definitivo naquele mundo tropical que tu não viveste numa mera passagem, a pôr uma cruz nos dias do calendário. Guardei tudo quanto escreveste, e aqui reproduzo:
“Annette, não contive o meu júbilo quando vi o Jobo enfronhado a amassar a farinha com fermento, o esforço que foi encontrar aqueles tijolos, ver nascer o forno, protegê-lo com um resguardo minimamente sólido, em frente do Jobo, que estagiou na padaria de Bambadinca duas semanas, e que veio com uma espécie de certificado de boa aprovação, o olhar que ele nos lança, de triunfo, como soubesse que das suas mãos sairiam pães apetitosos para militares e civis, já que ele também quer ser empreendedor e pediu autorização para nas horas vagas corresponder às solicitações da população civil, pois bem, creio que esta imagem espelha aquilo que chamamos desenvolvimento, civilização, cultura, a interseção de vários arcos temporais, a descoberta de que um bom alimento está ao alcance das nossas mãos e que podemos viver muito melhor. Há momentos, minha inestimável Annette, quando me sinto apoucado, talvez mesmo entristecido quando as coisas não me correm de feição, que venho contemplar os olhos do Jobo, as suas mãos bem firmadas dentro de um cunhete de granadas, e então revigoro-me, aquela caixa, inicialmente portadora de sinais da morte, prepara alimentos, e o Jobo, sem pose estudada, parece dizer-nos que logo acabe aquela malfadada guerra mudará de profissão”.

Algo mudou em mim Paulo, quando li e reli esta tua mensagem sobre a vida, a tua relação com o Outro, e a partir daí clarificou-me o sentimento que eu nutria por ti. Terrível o que me disseste mais tarde, que Jobo Baldé te escrevera de uma terra chamada Galomaro, em 1991, a pedir para o trazeres para Lisboa, que vivia na miséria, e que confiava absolutamente em ti. Fora muito duro teres recebido aquela carta, sentias-te impotente, naquele período em que vivias como cooperante, na maior das expetativas e que culminou na maior das deceções, conseguiras trazer o teu guarda-costas, Cherno Suane, dado o pretexto que sofrera duplo traumatismo craniano naquele acidente da mina anticarro, que tão bem me descreveste.

Na base da sinceridade em que assenta este amor tão pujante, tão inesperado para mim, quando já me preparava, com um certo travo de resignação, em ficar uma avó prestável, tu vieste como Estrela Polar, e não te quero esconder que esta correspondência é verdadeiramente um alívio, também me cabe a responsabilidade de preparar tempos disponíveis para te ir ver a Lisboa, entrar no teu mundo. Uma última confidência: a minha filha Noémie veio visitar-me e ficou muito surpreendida com tanta fotografia e cartas espalhadas, e uma fotografia emoldurada de um desconhecido. Sorriu e disse-me, “Ainda bem que estás a reconstruir algo que mereces, fico feliz se encontraste o companheiro do futuro”. Paulo, escreve-me, parece que vens dentro de duas semanas, não é? Estou a pensar em passarmos uns dias em La Campine, muito perto de Antuérpia, andaríamos de bicicleta, passeios de barco nos canais, podíamos ir aos Países Baixos, se quiseres. Amo-te tanto! Tu fazes parte da Misericórdia de Deus, em que tanto acredito. Do meu coração para ti, Annette.

(continua)

Bóreas, Deus dos ventos do Norte, 1922, escultura do Parque Josaphat, por Joseph Van Hamme

Maison Autrique, a primeira joia do genial arquiteto Victor Horta

Casa de Magritte, em Schaerbeek, Bruxelas

A Torre Japonesa e o Pavilhão Chinês em Laeken, Bruxelas

Dinant, Bélgica

Jobo Baldé, bravo soldado e exímio padeiro de Missirá
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21231: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (14): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21252: Fotos à procura de... uma legenda (129): resta-nos, ao menos, a esperança de que amanhã é outro dia... (Luís Graça)





Lourinhã > Praia da Areia Branca, 13 de agosto de 2020 > O pôr do sol, com uma traineira da pesca de sardinhas a recolher ao porto de Peniche...


Lourinhã > Porto das Barcas > 7 de agosto de 202o > O sol por um fio... Visto da casa "Atira-te ao Mara". da Maria do Céu e do Joaquim Pinto Carvalho, "duques do Cadaval"


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dizem que o mar é monótono. Tirando as tempestades, as marés vivas, as trovoadas, os naufrágios, as batalhas navais... Alô, Berlengas, Cabo Carvoeiro, Peniche, Paimogo, Montoito, Peralta, Atalaia, Porto das Barcas, Ribamar, Porto Dinheiro, Valmitão, Santa Cruz!... Corsários à vista!...

No verão do nosso deconfinamento, cumprimentamo-nos de cotovelo. Num de repente, as mãos impuras. Os rostos tapados. Passam, golfinhos ao largo. Sem sequer me dizerem adeus.

Há quem preferia a pata do dromedário. Ou o pé dos angulados. Eu aguardo pela osteotomia da tíbia. Mas nada resterá dos meus ossos se for incinerado a 900 graus centígrados. Que é a temperatura do fogo do inferno. Há quem prefira ser inumado. Com sorte ainda se salvará uma tíbia. Petrificada. 

Como os dinossauros da Lourinhã, que viveram no tempo em que se ia a pé, daqui a Nova Iorque. Alõ, João Crisóstomo, trago-te sardinhas do Mar do Cerro, do nosso mar. Alô, José Belo, anda daí beber um daiquiri, deixa lá as tuas renas ao cuidado do Estado Providência.  Alô, Jorge Araújo e Maria João, está na hora do chá, que Deus é Grande e o Mar Ainda é Maior.

Tiveram sorte, os dinossauros. A Lourinhã oferecia condições excecionais de fossilização. (Não sei se ainda oferece,  ou é publicidade enganosa ? Mudei de residência a pensar na minha fossilização futura.) Algumas espécies das centenas que existiram, chegaram até nós para contar a história, ou parte dela, deste planeto que eu amo. Uma omoplata, uma tíbia, uma pata.

Bom dia, João, bom dia, Joana, bom dia, Jorge, bom dia José, bom dia Cherno, bom dia Maria, bom dia Tony  & Isabel.  Bom dia, Lisboa, bom dia, Nova Iorque, bom dia Bissau, bom dia, Abu Dhabi, bom dia Macau, bom dia Key West, bom dia, Ponta de Sagres.  Bom dia amigos/as e camaradas. Nunca se sabe o tempo que fará amanhã. Mas resta-nos a esperança de que amanhã será outro dia...

Mas, tu, por que não te calas ? É insuportável o silêncio para a maior parte de nós. Perdemos a arte da meditação e contemplatação. Está tudo nas esplanadas a tirar chapas ao pôr do sol. E a comer choco frito. Ou batatas fritas. 

É como um orgasmo. Os dez minutos de felicidade passam depressa. Como o pôr do sol. Ruidosos, com o mundo todo à sua frente, os adolescentes não têm tempo para "curtir" o pôr do sol. Onde vamos logo à noite ? 

Acho que o mundo devia parar todos os dias para saudar o sol que se despede de nós. Dez minutos de puro silêncio faziam-te bem. De incomunicação total. Os telemóveis e as redes sociais em "black out" total...  Como se fossem os últimos dez minutos que te restassem para respirar. À superfície da terra. 

Luís Graça

PS - Gosto de ver o pôr do sol, daqui, da esplanada do Vigia, na Praia da Areia Branca, ou do "Atira-te ao Mar", a casa dos  "Duques do Cadaval", no Porto das Barcas... Gosto dos amigos que me dizem simplesmente: anda daí ver o pôr do sol, tenho um espumante geladinho no frigorífico.  Não se pode pedir mais aos amigos, neste mês de agosto do nosso desconfinamento,.

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Guiné 61/74 – P21251: Memórias de Gabú (José Saúde) (95): Imagens que nos tocam. O nosso quartel. (José Saúde)

 Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > c. 1973/74 >  Vista aérea do no quartel novo. Foto de Amílcar Ramos.


 


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamegp, Gabu, 1973/74) enviou-nos a seguinte mensagem:


Imagens que nos tocam: o  nosso quartel.

Camaradas, 

Levo até vós a imagem aérea do meu (nosso) quartel (o novo) que se localizava à saída de Gabu na estrada que nos conduzia a Bafatá. O velho situava-se no interior da localidade.  

Este é mais um pequeníssimo texto inserido no meu último livro – Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu –. 

Memórias que todos nós guardaremos no baú das recordações, uma vez todos vestimos o rótulo de antigos combatentes.  


Imagens que nos tocam: O nosso quartel 

por José Saúde


Obrigado, camarada Amílcar Ramos, por este pequeno/grande miminho que trouxeste a público: uma foto do quartel novo de Gabu. Uma imagem que me fez viajar no tempo e recordar o meu, aliás nosso, quartel. Tu, camarada de armas, também por lá passaste. Eras furriel miliciano BAA, estavas alojado em instalações avançadas junto à pista de aviação, mas, lá ias à messe de sargentos “carregar” o estômago.  

E tantos foram os almoços e jantares em que fomos companheiros de mesa. A minha memória teima em refazer imagens desses velhos tempos. Recordar espaços comuns, camaradas que o tempo ousou literalmente afastar e um sem número de aventuras acumuladas em pleno palco da guerrilha. 

“Uma lágrima ao canto do olho” vagueia pelo meu rosto abaixo e já crivado de saudosistas recordações. Olho atentamente a foto e curvo-me perante as lembranças. São, de facto, muitas que se concentram nesta já sexagenária e débil mente. Todavia, aquele horizonte leva-me a um mítico cheiro a África. Apeteceu-me viajar nas ondulantes asas do vento, imaginar-me a envergar o meu camuflado, “viajar” num Unimog, ou a “butes” por um trilho e desbravar aquele inigualável horizonte. 

Na pista alcatroada aterravam e descolavam aviões de maior porte (Noratlas, por exemplo) que obrigava o pessoal a uma proteção mais refinada.

A dimensão que a foto monopoliza, leva-me a outros sensações sentidas no tempo áureo da guerrilha. Aquela estrada para Bafatá!... Ui, tantas colunas que fizemos a terras do Geba e tantas histórias que farão eternamente parte integrante dos nossos baús.  

Depois a grandeza e profundidade daquele mato serrado. Os quilómetros palmilhados pelo interior daquele matagal. O contacto com as tabancas que habitualmente cruzávamos. O dialogar com os homens e as mulheres grandes. Ouvir a criançada quando a nossa chegada à tabanca ocorria. A brincadeira dos macacos, ou um inadvertido toque numa árvore que, entretanto, acolhia um enxame de abelhas e o subsequente delírio da rapaziada. Uma galinha de mato que levantava voo, ou uma gazela apetecível a um tiro que não se dava, por motivos óbvios. Enfim, uma panóplia de recordações que o guerrilheiro nunca esquecerá. Momentos inolvidáveis, sublinho eu.  

Por outro lado, havia os tais momentos sempre de incerteza. Incerteza no trilho; incerteza na picada; incerteza no que estava para lá da densidade do mato; incerteza no momento seguinte; incerteza numa mina que traiçoeiramente tinha sido colocada pelo IN com a finalidade de causar ronco num jovem em plena idade de afirmação e a incerteza numa emboscada. 

Reparo, também, as tabancas à beira da estrada. Revejo o meu quartel. Os aposentos dos oficiais, dos sargentos e do restante pessoal; a porta de armas; o refeitório das praças; as oficinas e  a parada.  

Camarada Amílcar, reforço o meu brigado pela lembrança!   

Um abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. também o poste desta série em:

27 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21201: Memórias de Gabú (José Saúde) (94): Dois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu (José Saúde)