Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 29 de novembro de 2020
Guiné 61/74 - P21592: Blogpoesia (707): "Hecatombe de estrelas", "A Criação" e "A sobriedade dos gestos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728
Hecatombe de estrelas
Hecatombe de estrelas,
perdidas pelo universo,
deambulam penadas,
curtindo e penando suas penas.
Uma reabilião entre elas,
Pôs fim ao estado de paz e felicidade
Que lhes brindara o Criador.
Grassa nelas a angústia e o desespero.
Nunca mais verão céu.
Se lhe apagou a luz.
Viajam negras.
Perdidas.
Secaram-lhes todas as cores.
Passam e ninguém as vê.
Ficarão assim, eternamente.
Berlim, 24 de Novembro de 2020
8h52m
Jlmg
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A Criação
Criar é amar. Cada ser é um acto de amor.
Por isso, existe este universo, imenso e esplendoroso.
Das galáxias em altar.
Desta Terra onde viaja a humanidade.
Utilizando-a como um navio no mar alteroso da vida.
Ao seu serviço, pronto e total.
Desde os tempos das cavernas.
Quando o homem vestia sua nudez,
Com a pele de animais.
Para chegar à modernidade,
Com maus tratos de toda a ordem.
Desvirtuando-lhe o clima.
Com experiências atómicas
E as mixórdias da poluição.
Tudo, pela sua voragem irracional.
Do ter e do poder.
Por isso, advêm as hecatombes.
Os dilúvios e tsunamis.
Até que um dia, O Criador, cansado, a lançará, com sua ira,
No deserto da inexistência.
Berlim, 25 de Novembro de 2020
8h54m
Jlmg
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A sobriedade dos gestos
Com toucados e vestes arrojadas,
Não germina a sobriedade.
Virtude vital
Onde a vida cresce e frutifica.
Ser belo só por si,
É ociosidade.
Onde cresce o erro e se manifesta a frustação.
Ser feliz só para si,
Também não é bem.
A felicidade só surge da partilha desinteressada.
Dar só para alardear,
É terreno da vaidade.
Ostentação e vacuidade.
Jardim de cactos.
Onde crescem os espinhos e a tentação.
A fonte de todos os vícios e também do mal.
Para isso, a vida nada vale.
Berlim, 27 de Novembro de 2020
9h58m
Jlmg
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21567: Blogpoesia (706): "Pedra a pedra", "Onde mora a alegria?" e "Rude e rústica", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728
Guiné 61/74 - P21591: Bombolom XXIX (Paulo Salgado): "Dezasseis anos depois", um poema meu, que li em Santarém, no encontro anual da CCAV 2721, em Abril de 1986, onde esteve presente no final do almoço o Salgueiro Maia (1944-1992)
Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier":
Assunto . Um poema
Meu caro Luís Graça,
Meus Caros Editores,
Junto um poema que fiz em Abril de 1986. Li-o em Santarém no encontro anual da minha Companhia - CCAV 2721.
Peço-vos o favor - se for publicado no nosso Blogue - de atender à separação das estrofes. Obrigado.
Um abraço a todos.
E votos de resistência.
Paulo Salgado
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
As
viaturas lançando poeira vermelha.
O cigarro
fumado à sombra do mangueiro.
As
crianças atraídas pela nova gente.
Os
velhinhos dizendo chacota e piada.
As casas
cobertas de capim.
O arame
farpado rodeando o imenso terreiro.
Mulheres
e homens de olhar indiferente.
As casas
comerciais antigas.
As
casernas os abrigos
as valas
Os postos
de sentinela o longe mirando
O rio
correndo ao fundo pelos matagais
A
floresta e a bolanha de grandeza nunca vistas
Os
carreiros por entre matas serpenteando
- Pedaços
de Abril de setenta
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Mansoa,
Bissau, o Pidgiguiti cais
da luta
sangrenta de operários e arrais
lá onde
acostou o “Carvalho Araújo”,
(com nome
do bravo marujo)
trazendo
no seio carne para canhão.
A viagem
foi lenta e segura.
Levar a
bom porto tal gentalha
(que a
guerra há tanto tempo dura)
p’ra
alimentar de novo a fornalha.
Cada qual
chorando os entes queridos,
alguns,
do porão, lançando vómitos repetidos,
outros,
amigos, conversando na amura.
Mar alto,
mar de calma,
muitos
companheiros nunca olharam,
mas
outros antanho navegaram,
fosse Zarco
ou Tristão, Nola ou Gama,
aqueles
que sonharam com impérios
(se tais
sonhos, loucos, ousaram)
de Lisboa
até à Oceânia
vivos,
agora, lançariam vitupérios
à
desordem, à guerra, à infâmia
que de
guerras tantas sofreram.
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Olossato,
Cansambo, Canicó,
Cansonco,
Fajonquito, Nemanacó,
Amina
Dala, Canjaja, Morés,
Iracunda,
Bissancage, Maqué,
e outra
belas tabancas,
de fulas,
mandigas, balantas
mil
etnias desta Guiné.
Destruídas,
arrasadas, queimadas,
incultas,
nuas, abandonadas,
terras
que deram fruto e vida
agora
chão fratricida.
Irmãos de
raça ou de cor
lutando
no lado de lá
com armas
deitando fogo.
As voltas
que a vida dá.
Já não se
saboreiam cajus,
já não se
cultivam bolanhas
nem se
colhe o bom feijão
apenas se
ouve o obus
e se
contam as façanhas
de cada
guarnição
Quem
imagina um passeio
rio acima
de canoa
ou viagem
a Mansoa
Bafatá ou
Farim?
Não
passará de anseio,
quem
pensa coisa assim?
Mancebo
quer casar
bajuda
formosa, nubente.
Como
podem eles folgar
ao som do
batuque dançar
e
amarem-se no palmar
se a
pobreza está presente?
Mistério
este incompreendido
por deus.
lá no
alto dos céus
bem por
cima dos poilões
ele não
vela
não vê o
que se passa na Terra.
Terra
Negra
Terra
Dura
Obscura
em que os
homens são caminheiros
de
estradas cortadas
esbarrando
no arame farpado.
Com as
mãos sangrando
aos seus
deuses gritando:
Acabaram-se
os sonhos?
Acabou-se
o amor?
Não
vedes, ó deuses,
as
crianças de olhar parado e triste?
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Troaram
metralhadoras
e
cantaram “costureirinhas”
pelo
tarrafo lá ao fundo
e pelo
rio atá à foz.
E a nossa
voz
é um
grito profundo
Quantos
padeceram
a doença
e o sofrimento
da fome e
da solidão!
Quantos
se picaram
e se
vergastaram
pelo
movimento
dos
corpos suados!
Tristeza
no coração.
Tapámos
os olhos para não ver
o sangue
escorrendo nas carnes feridas.
Tapámos
os ouvidos para não ouvir
os ais
lancinantes de desesperança
que
brotavam das bucas sujas,
cheias de
terra.
Nos dedos
escorre a morte a dor o suor.
Os olhos
choram companheiros
sem
sorte.
Nós
queremos erguer
a
bandeira branca
e cantar
e ouvir
canções
contra a injustiça
contra as
trevas
contra a
infâmia maldita
que
lançaram sobre o nosso destino.
Anos de
setenta
de
surpresas e desventuras ,
de guerra
e de paz,
de ódio e
de amor,
de
carnificina e fraternidade.
Tantos
anos já passaram
desde
aquelas horas
à chuva
ao calor
ao
cansaço
ao
sofrimento…
Dezasseis anos passaram
depois de
tantos homens
e tantas
mulheres
e tantas
crianças
morrerem
sofrerem
no mato
na
bolanha
na
tabanca ardida
incendiada
violada.
Dezasseis
anos passaram
cheias de
mortes,
anónimas,
algumas concretas próximas desesperantes
vivas.
Dezasseis
anos já passaram.
A nossa
memória
paira na
poeira do tempo
e da
história .
Não
esqueceremos
o
capitão,
o
Sebastião
a Kadi
mulher
e os
homens e mulheres
que na
guerra se encontraram.
Tantos
anos depois
não
esqueceremos.
Anos de
Abril de setenta
sonhando
com Abril próximo
Abril sem
ódio e sem guerra.
Com paz e
fraternidade
na nossa
terra.
Paulo
Salgado
Abril de 1986
(nas vésperas do encontro da nossa Companhia – CCAV 2721,
em Santarém).
Nota do editor:
Último poste da série > 27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21587: Bombolom XXVIII (Paulo Salgado): Saudação e participação
sábado, 28 de novembro de 2020
Guiné 61/74 - P21590: Em busca de... (309): Camaradas e amigos do ex-fur mil cav Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho, EREC 2641 (Bula, 1970/72) (Ana Pinho, filha)
Foto nº 3 > Guiné > Região de Cacheu > Bula > EREC 2641 > O Valdemar Cardoso camarada e amigo do fur cav fur cav Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho. Alguém saberá do seu paradeiro ?
Fotos (e legendas): © Ana Pinho (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complememtar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Boa tarde, Luís,
respondendo ao teu apelo e da Ana (*), deixo-vos aqui algumas informações que, caso a Ana possa fornecer mais elementos do pai, como aliás sugeres, talvez possam ir mais longe, embora sempre condicionados pelo tempo que já passou.
Passando a responder. O ERec 2641-2ª Fase foi a que fomos render. Esta segunda fase esteve em sobreposição com o ERec 3432-1ª Fase, pelo que o pai da Ana pode, eventualmente, ser reconhecido por camaradas dessa fase do meu esquadrão. Eu ainda estive algumas semanas com eles, mas não tenho qualquer lembrança do nome.
Nas fotos que vejo no teu blogue identifico as seguintes, mas nenhuma corresponde à minha fase:
n.º 6 > vista da caserna dos praças
n.º 8 > Fur Crayon Gonçalves (ERec 3432-1.ª Fase)
n.º 10 > Fur Gomes (ERec 3432-1.ª Fase)
No meu blogue tenho fotos de Encontros realizados ao longo dos anos onde estão muitos elementos dessa primeira fase e em função de novas informações poderemos tentar outras abordagens.
Pode também a Ana consultar o blogue https://bula-e-rec-aml-2454.webnode.pt/#! que menciona o ERec 2641. Eu já dei uma vista de olhos, mas não encontrei referência ao nome do pai. Outra hipótese para poder ter mais elementos será a consulta da história da unidade: Caixa n.º 85-2.ª Div/4.ª Sec do AHM (Arquivo Histórico Militar) .
Por último deixo igualmente uma palavra de apreço ao gesto da Ana. Pena que não seja seguido por outros descendentes de quem tem que viver com mágoa dos tempos em que deveria ter podido viver apenas os sonhos de juventude.
Dá notícias. Saúde. Abraço.
José Ramos
2. Mensagem da Ana Pinho, filha do nosso camarada Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho:
Data - 28 nov 2020 15:07 (há 2 horas)
Luís Graça e José Ramos:
Boa tarde aos dois,
Primeiramente gostava de agradecer pela vossa ajuda (*) e desculpar-me se errar em algum termo técnico, pois sou leiga em matéria de assuntos militares.
O meu pai é de São João da Madeira e vive atualmente em Fornos, Santa Maria da Feira. Nunca foi a nenhum convívio, pelo que percebi.
O "operador de transmissões" a que se refere [no poste anterior desta série é o meu pai dentro da Panhard [. Vd. Foto nº 2, acima]
Vou tentar digitalizar o resto das fotografias. Estão todas em bom estado porque o meu pai sempre gostou muito de fotografia e estimou-as bem.
Obrigada mais uma vez,
Ana
3. Ficha de unidade > Esquadrão de Reconhecimento nº 2641
Identificação ERec 2641
Unidade Mob: RC 7 - Lisboa
Crndt: Cap Cav António Manuel Pinto Ferreira Gomes | Cap Cav Rúben de Almeida Mendes Domingues
Partida: Embarque em 15Nov69 (l ª fase) e 08Ago70 (2ª fase); desembarque em 20Nov69 (1ª fase) e 17Ago70 (2ª fase)
Regresso: Embarque em 030ut71 (1ª fase) e 24Jun72 (2ª fase)
Síntese da Actividade Operacional
Em 21Nov69, a 1ª fase seguiu para Bula, a fim de se integrar no ERec 2454, em substituição do PelAML 2024, o qual havia sido considerado a 1ª fase do ERec 2454.
Em 19Ago70, substituíu o ERec 2454, enquadrando então a 1ª fase do antecedente integrada neste, como subunidade de reserva móvel de intervenção do sector, tendo sido colocado em Bula, ficando integrado nas forças do BCav 2868 e depois do BCaç 2928.
Um pelotão foi destacado para Nhamate, na zona de acção do BCaç 2861 e depois do BCaç 2927 e que, após reformulação dos limites dos sectores, em 01Fev71, passou também à dependência do BCaç 2928.
Após ter destacado, em 300ut70, um pelotão para Mansabá em reforço do BCaç 2885 e depois do COP 6, foi colocado, em 22Nov70, em Mansabá, em reforço do COP 6, a fim de colaborar na segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mansabá-Farim e das colunas de transporte de materiais, mantendo opelotão de Nhamate e ficando outro pelotão em Bula.
Em 25Abr71, regressou a Bula, voltando à dependência do BCaç 2928.
A partir de 09Abr71, cedeu, entretanto, um pelotão ao CAOP 1, o qual se instalou em Bachile para execução de patrulhamentos e escoltas a colunas de reabastecimento e para colaborar na segurança e protecção dos trabalhos de asfaltagem da estrada Bachile-Cacheu, até 22Fev72.
A partir de 07Set71, integrou nos seus efectivos a 1ª fase do ERec 3432, então chegado para rendição da lª fase da subunidade. Em 16Mai72, destacou um pelotão para reforço do BCaç 3832, o qual se instalou em Mansoa e, temporariamente, em Jugudul.
Em 18Jun72, foi substituído pelo ERec 3432, tendo recolhido seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
Observações: Tem História da Unidade (Caixa nº 87 - 2.a Div/d." Sec, do AHM).
Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), 558/559._______________
(*) Vd. poste anterior da série > 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21588: Em busca de... (308): Camaradas do meu pai, Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, do EREC 2641 (Bula, 1970/72), que infelizmente teve um AVC em 2008 e perdeu a fala (Ana Pinho, filha)
Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (425): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
A vida é assim, mexemos num dossiê que tem na capa Bruxelas e aparece-nos um caderno com largas dezenas de páginas referentes a uma viagem à República Democrática Alemã, no início de fevereiro de 1987, nem por sombras eu podia adivinhar que dentro em breve, no meu televisor doméstico, eu ia ver manifestações do muro, este escavacado, os berlinenses a passar de um lado para o outro, a queda de um regime sem sangue, seguir-se-á a reunificação, tudo ao contrário do que me era dito pelos anfitriões, aquele socialismo científico parecia fadado à eternidade.
Neste dia, o que me encheu as medidas, foi o Museu de Pérgamo, como é evidente não desgostei do trabalho aprimorado para erguer das cinzas o Bairro Nicolau e creio que um dia irei partir para as estrelinhas sem ter decifrado o que é que as autoridades alemãs orientais esperavam de mim, das suas mensagens políticas, de um acolhimento bem amável e de um programa cultural inexcedível. Foi assim, limito-me a transcrever dados essenciais de um caderno, continuo intrigado, na primeira página escrevi que no domingo vou ser recebido por um arquiteto em Potsdam, o Sr. Globisch, isto deve ser uma questão da idade, lembro-me de Potsdam, se acaso me encontrei com o Sr. Globisch, já está tudo na nuvem.
Um abraço do
Mário
Na RDA, em fevereiro de 1987 (5)
Mário Beja Santos
Saímos junto da Catedral de Berlim, tenho à minha direita a fachada da Galeria Nacional, atravessamos uma ponte com motivos escultóricos altamente militaristas, avançamos para a ilha dos museus. O prato-forte deste espaço museológico é o chamado Museu de Pérgamo, é o monumento mais valioso e procurado que ali se alberga. Para surpresa de Petra Petersen, depois de ver o desdobrável do museu e a localização dos espaços, e da manifesta ênfase dada às peças mais procuradas, peço para ir ao terceiro andar ver as fotografias de toda a aventura arqueológica alemã no Próximo Oriente, no território turco, inclusive nas ilhas da Ásia Menor. As expedições arqueológicas alemãs não eram inocentes. A política de Berlim era favorável a alianças sólidas com o império turco-otomano, pretendia-se acesso ao Mediterrâneo Oriental, às matérias-primas, sonhava-se com o caminho-de-ferro Berlim-Bagdade. Apostou-se forte na arqueologia, ali estava um acervo fotográfico a mostrar escavações e o fulgor dos seus resultados. Os turcos desprezavam os gregos, os seus monumentos estavam sempre prontos para vender. E não houve qualquer dificuldade na compra do Altar de Pérgamo nem nas fabulosas Portas de Istar, um dos monumentos mais impressionantes de uma civilização perdida.
Descemos ao museu e os deslumbramentos sucedem-se, a fachada do Mercado de Mileto impressiona pela dimensão, pela harmonia das proporções, por nos deixar supor a elevação desta cultura. Como tinha pedido antecipadamente em Lisboa para visitar o Altar de Pérgamo, por ali movimentei entre aquelas lutas mitológicas de gigantes, nada tinha visto nem nada verei ao longo da vida que provoque tão grande impressão, é uma organização única do aparato escultórico, tudo agenciado para que aquela obra-prima feita de pedra, mesmo com lacunas, nos deixe em estado de choque. E depois Babilónia, perguntei-me qual o grau de conservação e restauro para que aquele cromatismo quase faiscante parece ter sido feito ontem.
Foram muitas emoções no dia de hoje, irei esta noite à Ópera de Berlim, na Unter den Linden, ver o bailado clássico Ondina, interpretações inolvidáveis e a surpresa da música de Hans Werner Henze, numa boa interpretação orquestral. Está previsto um dia em cheio, logo de manhã de novo no Bairro Nicolau, o arquiteto Viktor Schlichte não me deixa regressar a Lisboa sem eu saber perfeitamente o que fez e como fez, a partir das cinzas. A última recordação que ainda conservo é que quando saí da Ópera fui até à porta de Bradenburgo, antes de entrar no espetáculo ainda contemplei a bela peça que é a escultura de Frederico da Prússia. Mas a Porta de Bradenburgo enche-me de lembranças, percorro a Praça de Paris, vi inúmeras fotografias desta Berlim reduzida a escombros, ali perto, espetral, está o edifício do Parlamento, percorrei a Unter den Linden que tem à sua esquerda edifícios mastodônticos, como a Embaixada da União Soviética, fico ali a contemplar a fronteira da Guerra Fria, aquela porta que escapou às bombas, e mostra triunfante a quadriga da Vitória.
Vou pelo meu próprio pé até à igreja românica do Bairro Nicolau, o arquiteto não me dá tréguas, conta como fez uma ligação entre aquele bairro, a área da Câmara Municipal, como organizou toda aquela arquitetura que consegue ligar harmonicamente o passado ou o presente, com o Spree ali ao lado. Estudou a fundo a história da velha basílica românica que está em estreita ligação com a fundação de Berlim, é uma “igreja-salão”. Num trabalho de reedificação aproveitaram-se fotografias de um arquivo da Prússia. O discurso deste arquiteto entusiasta dirige-se agora para a construção do bairro, como aproveitou o que terá sido um tribunal medieval, como se reconstruiu um palácio rococó. Na zona do bairro havia o restaurante mais velho de Berlim, que foi destruído durante um bombardeamento de 1943. Já saímos da igreja do Bairro Nicolau e andamos à volta do casario, 850 apartamentos, restaurantes, lojas de todo o tipo, salas de exposições e galerias de arte. Para a sua contextualização urbanística o arquiteto pôde contar com estátuas que estavam depositadas em museus, ferros forjados, inúmeros indícios do passado ficaram cravados nesta nova urbanização. A brincar, tínhamos começado às oito e meia da manhã, aproximávamo-nos das onze horas, ia ser de novo recebido no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e por alguém que eu já conhecia, o embaixador Vogel. Guardo no meu bloco de notas a conversa havida a meio da manhã de 6 de fevereiro de 1987. Eu não suspeitava mas ia receber informação sobre os apoios da RDA aos povos africanos, infelizmente não é o apoio que o Governo da RDA desejava, havia o condicionalismo da corrida aos armamentos. E fiquei a saber que os países do Tratado de Varsóvia apresentaram no início de 1986 um programa detalhado para a retoma da confiança e transferência de meios para os países subdesenvolvidos. E a lição continuou, a URSS não realiza há ano e meio um só teste nuclear, na expetativa de que os EUA aceitem a moratória nuclear, fico a saber que não aceitaram, fizeram entretanto vinte testes nucleares, querem forçar a URSS a gastar fortunas na corrida aos armamentos. E há a aposta na desestabilização, é o caso de Angola, de que as tropas cubanas são o obstáculo principal para a independência da Namíbia. Voltamos às questões africanas, limito-me a ouvir. A diplomacia portuguesa devia contribuir para que não houvesse ingerências nestes novos países independentes. Os fogos de guerra civil em Moçambique depauperam os recursos do país, os rebeldes matam os cooperantes. A RDA ajuda as organizações das mulheres comunistas, promove também a cooperação na saúde, no desporto e no comércio externo, formam os quadros africanos, a RDA construiu um complexo industrial têxtil em Moçambique, o seu custo foi suportado por um comité de solidariedade. Uma granja agrícola na região do Niassa foi destruída pela Renamo. A RDA foi forçada a retirar os seus especialistas do complexo têxtil de Mocuba. A RDA gostaria de colaborar conjuntamente com Portugal no desenvolvimento económico de Moçambique.
Findou a sessão, o embaixador despediu-se, é hora do almoço, Petra avisa-me que durante a tarde haverá nova sessão informativa, no mesmo local, e depois uma surpresa cultural. Suspiro, resignado mas Petra alegra-me, eu pedira-lhe para comer uma chucrute tradicional, com mostarda forte.
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21565: Os nossos seres, saberes e lazeres (424): Na RDA, em fevereiro de 1987 (4) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P21588: Em busca de... (308): Camaradas do meu pai, Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, do EREC 2641 (Bula, 1970/72), que infelizmente teve um AVC em 2008 e perdeu a fala (Ana Pinho, filha)
Data - domingo, 22/11, 14:47
Boa tarde,
O meu nome é Ana Pinho e o meu pai, Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, fez parte do Esquadrão de Reconhecimento [EREC] 2641. Trouxe com ele montes de fotografias que acho que deviam de ser partilhadas.
Neste momento o meu pai já não está nos seus melhores dias e deixou de falar desde 2008. (Teve um AVC que lhe provocou a perda da fala.) Portanto, é muito difícil identificar as pessoas nas fotografias. Mas sei que ele gostaria de saber o paradeiro dos seus colegas.
Deixo aqui algumas provas. Se achar que é de seu interesse, tenho todo o gosto em digitalizá-las a todas.
O meu pai é o que se encontra dentro da Panhard [Foto nº 1].
Obrigada e fico a aguardar resposta,
Ana Pinho
(*) Vd. poste de 20 de setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1091: Memórias de Mansabá (5): O terrível ataque ao aquartelamento em 12 de Novembro de 1970 (Carlos Vinhal)
(**) Último poste da série > 14 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21448: Em busca de... (307): Camaradas do Celestino Augusto Patrício Madeira, ex-fur mil, CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835 (Bissau, Mejo, Gandembel, Guileje, Gadamael, Ganturé, 1968/69) (Rui Pedro Madeira e Silva, neto)
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Guiné 61/74 - P21587: Bombolom XXVIII (Paulo Salgado): Saudação e participação
Meu Caro Luís Graça,
Meus Caros Coeditores,
O meu Bombolom
Era devida a lembrança do Padre Macedo. Ocorreu-me trazer esta memória ao nosso Blogue na sequência do que foi escrito acerca de clérigos que serviram na Guiné. E já após a independência. Devo trazer a terreiro que pude consultar várias obras que abordam a presença em Cabo Verde e Costa Africana até ao Golfo da Guiné de clérigos ao longo dos séculos. Aliás, ficcionei, numa das minhas "Crónicas de Guiné – Crónicas de Guerra e Amor" – a existência simultaneamente atribulada e feliz do Frei Cipriano, que, em Cacheu, se introduziu na população, e converteu, e penou… Agradeço a fotografia que encima o meu texto sobre o grande Padre Macedo.[1]
Em tempo de pandemia, procuro estar atento ao que se passa, e ler, ler, e escrever. Ajuda a combater este bitcho carêto que nos faz emburacar e isolar…
Escrevi "A Revolta dos Animais" – um livro que se dirige aos jovens e não apenas. Nele procurei colocar os animais (seus representantes por eles escolhidos) a dialogar entre si e com os deuses gregos, reunidos na Acrópole. Para, de seguida, de forma ordeira mas firme, se dirigirem à ONU para apresentar as suas reivindicações… Mais não digo.
A capa e contracapa do livro vai junto (ver anexo). O livro tem a apresentação de Tiago Rodrigues (Director do Teatro Nacional D. Maria II), meu Amigo e filho de um grande meu Amigo, o Rogério Rodrigues (ver abaixo). E tem a ilustração pro bono da grande pintora Josete Fernandes, natural de Cedães, Mirandela, onde vive e tem o seu ateliê, e onde é possível apreciar a sua riquíssima e vastíssima obra.
Ofereci o livro à Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, minha Terra. O objectivo é distribuí-lo pelos jovens do Agrupamento de Escolas Dr. Ramiro Salgado.
Quero registar outra iniciativa: a minha mulher, a Maria da Conceição, atreveu-se a fazer a fotobiografia da presença do seu soldadinho na Guiné – anos de 70-72. Para os meus netos saberem o que foi a guerra colonial e como o avô a passou, e como tanta gente sofreu, lá e cá, durante treze anos. Não é tempo para esquecer, como não se esquecem as invasões francesas, as guerras mundiais, os descobrimentos…o bom e o mau…
Outras iniciativas estão na calha. Delas falarei mais tarde.
Aproveito para dar os parabéns aos magníficos textos dos camaradas escreventes neste Blogue. Recordo, sem esquecer outros, o Hélder, o Beja Santos, os poetas, o José Martins, o Abel Santos.
Aos bloguistas e seus Familiares, desejo saúde e resiliência (lá, na guerra colonial, utilizávamos a expressão resistência…).
Um abraço.
A partir de Torre de Moncorvo.
Paulo Salgado
25.11.2020
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Notas do editor:
[1] . Vd poste de 24 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21579: (In)citações (172): Frei Francisco Macedo (1924-2006), um madeirense, homem de Igreja e de Cultura, profundamente ligado à história contemporânea da Guiné-Bissau (Paulo Salgado, ex-alf mil op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)
Último poste da série de 23 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21475: Bombolom XXVII (Paulo Salgado): Drogas na Guerra Colonial - Um comentário e uma história