Queridos amigos,
É num ambiente de perplexidade, e num lapso de dias, que Paulo Guilherme é novamente confrontado com manifestações de racismo, em proporções violentas. Demorará muitos anos a perceber qual o fermento daquele ódio escondido, de que ninguém ali fala, na Guiné a ferro e fogo, ouve as mensagens veementes do governador e comandante-chefe que diz que a Guiné é para os guinéus, aqui e acolá apercebe-se que há hostilidades contidas, sabe Deus a que custo. São dois episódios inesperados que aqui se narram, o segundo ficará atamancado até ao jovem oficial partir. Espera-se que tenha sido uma decisão assisada, a História veio alertar, aí por novembro de 1980, que o azeite não se mistura com a água, que há ressentimentos seculares que não se apagam só porque se encontrou um slogan de conveniência para usar como bandeira a unidade Guiné-Cabo Verde. A guerra de Paulo Guilherme está prestes a findar, ele regressará com esta inquietação, e persistiu em estudar o que escondia a cortina de silêncio a tanto rancor camuflado, até lhe descobrir a essência de agruras que demoram muito tempo a sarar.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (78): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Paulo mon adoré, estou ansiosa que venhas, pairo num torvelinho de saudades, não me sai da mente a ideia de que tu vens trabalhar para Bruxelas, não sendo prejudicado no tempo de reforma e de modo algum lesado no montante dos teus rendimentos, compreendo perfeitamente a tua preocupação em ajudar os teus filhos, sobretudo aqueles dois que têm trabalho precário. Percebi ontem, na nossa longa conversação telefónica, que aguardas a marcação da entrevista com o dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos, muito surpreendida fiquei quando ele te anunciou que o acompanharás numa conferência internacional a realizar em Estocolmo sobre os desafios do sindicalismo na vida quotidiana no quadro do alargamento comunitário.
É neste ambiente de expetativa que ao contrário de Penélope vou rendilhando os últimos tempos da tua comissão. Estamos, pois, num dia de chuva diluviana, convidaste o engenheiro da TECNIL para um repasto na messe dos oficiais, o mesmo é dizer em Bambadinca. Até agora, já vão algumas semanas, são conversas rápidas, cumprimentos formais, hostilidade zero, são duas peças na construção de uma estrada que se vai revelar extremamente importante, será um piso alcatroado que unirá uma área significativa do Leste da Guiné, tu garantes a segurança e ele manifesta-se pela sua competência na persecução das obras, não há laivos de intimidade. Quando me enviaste os apontamentos rabiscados do teor da conversa havida enquanto comiam fora de horas um bife com ovo estrelado acompanhado por um bom Vinho do Dão, tudo parecia estar a correr bem, lá fora chovia que Deus dava, até comentaste que nos baixos de Bambadinca já devia estar tudo inundado, descobriram os dois que tinham frequentado os mesmos cineclubes, tertúlias afins e quando chegaram às leituras teceram comentários a diferentes livros que tinham lido, tudo numa atmosfera de aprazimento, o cenário da guerra ficara noutra latitude e longitude.
E pediste para os dois cafés e uísque, estavam ambos nitidamente estimulados por interesses comuns desde os escritores existencialistas, passando pelo teatro de Tennessee Williams, inevitavelmente o cinema de Louis Malle, Visconti, Fellini, David Lean. De supetão, o confrade engenheiro dá guinadas na conversa e pergunta-te com um total descaro se tu tens consciência de que a guerra ainda não foi ganha devido a um conjunto de interesses que lesam a Pátria. Ficaste aturdido, parecias ter recebido uma picada que te impedia o raciocínio, mas lá voltaste ao diálogo lembrando que por uso e costume os militares não apreciavam com os civis os temas da guerra, daí não poderes responder. Ele continua a espicaçar-te, que tivesses à vontade, não havia ali ninguém com o ouvido à escuta, o tom de voz dele acalorava-se, o olhar era penetrante e então, de modo perentório, deu-te a saber que existia uma solução militar para acabar rapidamente com o conflito, os guerrilheiros apercebiam-se da nossa indecisão e carregavam com mais força. Foi a tua vez de redigires, recordando àquele senhor que não medias meças com aqueles que procuravam combater, os teus soldados guineenses eram inequivocamente valorosos. O senhor engenheiro perdeu as estribeiras, os portugueses brancos e estes pretos incapazes da Guiné não tinham fibra, o terrorismo alimenta-se dessa incapacidade, essa falta de vontade para vencer. Procuraste pôr termo à conversa, ele continuou a perorar, e é nisto que te atirou com um argumento que parecia um ferro em brasa, bastavam seis companhias de cabo-verdianos e em escassos meses a peste seria erradicada.
Paulo, meu adorado amor, eu posso imaginar o que te custou escreveres este pedaço das tuas memórias, pedindo-me para pôr em letra de forma, sem tirar uma vírgula, o senhor engenheiro, quando lhe perguntaste como era possível um efetivo de seis companhias bater todo aquele território e afugentar para todo o sempre a guerrilha, ele parecia de cabeça perdida, gesticulava de pé que para todos aqueles guerrilheiros se tinha que adotar uma solução final, tudo morto, fosse qual fosse a idade, com lança-chamas, à granada, com faca de mato, regando com petróleo, ninguém ficaria para contar a história.
Tomei nota do que escreveste no fim do teu texto, estavas hirto, bailava-te no pensamento todos os outros momentos em que viras escancarado um racismo que te era incompreensível, demoraste muitos anos a perceber que a presença cabo-verdiana agudizara o relacionamento, quem chegava vinha para mandar, vigiar e punir, eram parte firme da classe dirigente local, mandantes dos colonos que, regra geral, não possuíam saúde e até cultura como aquela gente do arquipélago. E também só muitos anos mais tarde é que te foi dado perceber como aquela unidade Guiné-Cabo Verde, sempre matraqueada pelo pai fundador do PAIGC, era pouco mais do que uma bola de sabão embora um excelente argumento para atrair cabo-verdianos revolucionários numa guerrilha onde havia bons combatentes, mas falta de quadros. Mas como tu dizes, ainda faltava um último teste, que chegou dias depois, quando, regressado de mais uma coluna ao Xitole, alguém avançou para ti em alvoroço, dizendo-te que tinhas no teu quarto o substituto, pois bem, mais sentado que deitado numa cama estava um jovem cabo-verdiano que te recebeu com um sorriso jovial, por sorte não revelaste o teu estonteamento, conversaram amenamente, pediste licença para te banhar e mudar de roupa, e depois iriam dar uma volta para se conhecerem melhor. É neste entretanto que um dos teus soldados apareceu esbaforido a dizer que o pelotão exigia um encontro urgente com o nosso alfero, era assunto muito sério que não podia ser postergado, enquanto lavavas o corpo ias deitando contas à vida dos graúdos problemas que se avizinhavam.
Como aconteceu, mudaste de farda, lá foste ao encontro dos teus homens, por detrás da escola encontraste gente furibunda, ouviste das boas, tinhas muita prosápia quando falavas no amor àquela terra e àquelas gentes e fazias-te agora substituir por um cabo-verdiano, em toda a Bambadinca já se sabia que tinha chegado mais um encarregado dos colonos brancos para lhes dar porrada, vai falar com o comandante, nem te passe pela cabeça que vais para a tua terra e ficamos entregues a alguém que sempre nos tratou a chicote.
Enquanto eu escrevia estas notas que tu alinhavaste, procurava entender o pesadelo que representava a chegada do teu substituto, como seria possível descalçar a bota. São estes os apontamentos que nestas noites de vigília, enquanto aguardo a chegada do homem mais amado do mundo que muito provavelmente vem tomar conta da minha vida na Rua do Eclipse, vou redigindo, mas sempre com a perceção que esta comissão que tiveste na Guiné se prolongou como um fogo adormecido. Vamos ver adiante se tenho ou não tenho razão. Bisous milles enquanto aguardo o telefonema a anunciar a tua chegada, Annette.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 5 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22689: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória