segunda-feira, 15 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado


Foto do 1.º Cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim
In: "Os eternos esquecidos". Almada, Trafaria, Junta da Freguesia da Trafariam, 2009. p.127


Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); 
coeditor do blogue desde março de 2018



ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974) - ACTUALIZAÇÃO
O CASO DO 1.º CABO HENRIQUE MANUEL DA CONCEIÇÃO JOAQUIM, DO BENG 447, AFOGADO EM 31JUL1974 NA ILHA DA CARAVELA
(CORPO NÃO RECUPERADO) 



Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1969 > Militares da CCS do BCAÇ 2856, atravessando um afluente do Rio Geba, durante uma operação de reconhecimento. In: Lugar do Real , com a devida vénia.


1. INTRODUÇÃO

No âmbito do projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974) (*), deixei expresso no primeiro fragmento – P11979 – que os resultados entretanto apurados, através da consulta a fontes oficiais, poderiam vir a ser alterados em função de outros casos particulares, "estranhos" ou "não considerados" no domínio institucional.

Cabe neste cenário a situação do 1.º Cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, militar pertencente ao Batalhão de Engenharia [447], sedeado em Bissau, com a especialidade de Pedreiro, que viria a morrer afogado em 31 de Julho de 1974, 4.ª feira, na Ilha da Caravela, Arquipélago dos Bijagós, cujo corpo não foi recuperado. 

Como este episódio ocorreu no CTIG, ainda que depois do "25Abr74", no período de retracção das nossas Unidades no terreno, porque não consta a morte (por afogamento) do camarada Henrique Manuel Joaquim no número de baixas oficiais do Exército?
O que terá acontecido?
Entretanto, a informação que abaixo de reproduz, e que serviu para estruturar a presente narrativa, faz parte do livro editado, em Setembro de 2009, pela Junta de Freguesia da Trafaria, pertencente ao Município de Almada, no qual constam pequenas biografias de militares, nascidos ou residentes naquela Freguesia, que estiveram nos diferentes "Teatros de Operações", como é o exemplo do camarada Henrique Manuel Joaquim.


Esta colectânea nasceu, como sucedeu noutros contextos, da conversa informal entre camaradas, ex-combatentes, onde vieram à "baila" histórias vividas por cada um, nas ex-Províncias Ultramarinas onde efectuaram o respectivo serviço militar.

No caso em análise, foi eleita uma Comissão, constituída por: Alfredo Pisco (CCaç 2321; Moçambique); António Oliveira Bentes (1946-2007 - CCav (?); Guiné): Euclides Soares (BA 12; Guiné); Ezequiel Pais (CArt 2521; Guiné); Ilídio Pinheiro (CArt 698; Angola - pesquisa e análise); João Freitas (BCP 31; Moçambique - coordenação gráfica); José Manuel Martins (AgEng; Moçambique) e Manuel Fernandes (PInt 2161; Angola).

Dessa conversa inicial e informal "começou a nascer a ideia, ainda que sem consistência, de fazer algo para homenagear todos esses bravos militares, apenas lembrados por familiares e amigos, (e eternamente esquecidos por todos os governantes) alguns dos quais, infelizmente, desaparecidos nessas terras longínquas.  Ao fim de muito trabalho e muitas pesquisas, foi-nos possível reunir todos os dados para começarmos a pensar na possibilidade de compor um livro". 

Este livro, publicado em Setembro de 2009 [, imagem da capa a seguir], "é uma homenagem a todos os militares falecidos em combate, e os que felizmente ainda vivem, nascidos ou a habitar na Trafaria há mais de dez anos" [na data em que a ideia foi aprovada].
Quem tiver conhecimento deste triste episódio, faça o favor de comunicar. Obrigado!


Capa do livro, editado em  Setembro de 2009, pela Junta de Freguesia da Trafaria, pertencente ao Município de Almada. Referência bibliográfica na PorBase: Os eternos esquecidos / comis. Alfredo Pisco... [et al.] ; colab. Câmara Municipal de Almada... [et al.]. - [Trafaria : s.n.], 2009 ([Charneca da Caparica] : Jorge Fernandes). - 173, [3] p. : il. ; 30 cm


Imagem de satélite do Arquipélago dos Bijagós, com a situação geográfica da Ilha da Caravela e Bissau, e da sua relação entre si.


2. OS DADOS DO "ENSAIO" ACTUALIZADOS (*)

- QUADROS ESTATÍSTICOS

Em função da alteração dos resultados anteriormente divulgados, organizados em quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, tomei a iniciativa de os corrigir, apresentando, de imediato, a respectiva actualização [gráficos e quadros], levando em consideração os objectivos que cada contexto encerra.



Quadro 1 e Gráfico 1 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974), e que constituíram a população deste estudo, é de 145. Verifica-se, ainda, que desse total, 113 (77.9%) eram soldados; 23 (15.9%) 1.ºs cabos; 7 (4.8%) furriéis; 1 (0.7%) 2.º sargento e 1 (0.7%) major. 




Quadro 2 e Gráfico 2 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 64 (44.1%). Verifica-se, também, que desse total, 48 (75.0%) eram soldados; 11 (17.2%) 1.ºs cabos; 4 (6.2%) furriéis e 1 (1.6%) 2.º sargento. 




Quadro 3 e Gráfico 3 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 64 (44.1% do total). Quanto aos corpos não recuperados, verifica-se que a CCaç 1790, com 26 (40.6%) casos, e a CCaç 2405, com 19 (29.7%) casos, foram as Unidades Militares que contabilizaram maior número, sendo estes consequência do acidente da «Jangada de Ché-Che» em que elementos das duas Companhias de Caçadores estiveram envolvidos. Segue-se o Pel Mort 980, com 3 corpos não recuperados, no Rio Cacheu, na «Operação Panóplia", e a CArt 3494, com dois, no Rio Geba (Xime), durante uma missão, não cumprida, a Mato Cão, situado na margem direita desse rio. Das 17 Unidades Militares que não conseguiram recuperar os corpos dos seus naufragados, 12 (18.8%) tiveram apenas um caso.



Quadro 4 e Gráfico 4 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "ano das mortes por afogamento", "corpos não recuperados" e "corpos recuperados". O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. No final foram contabilizados cento e quarenta e cinco náufragos. Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes ultrapassou a dezena de casos, com destaque para o ano de 1969, onde os números ultrapassaram a meia centena, em consequência do «desastre da Jangada do Ché-Ché». Para esses valores globais muito contribuíram os "acidentes" nos rios da Guiné - Cacheu, Corubal e Geba.

Nota:

Para efeitos de comparação estatística devem ser consultados os P19679; P19710; P19788 e P19822 (*).

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
05Jul2019.
___________

Nota do editor:

Vd. postes anteriores:

15 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)

Guiné 61/74 - P19981: Em bom português nos entendemos (22): nas grandes ocasiões, como o nosso léxico pode ser tão.. pequeno!

I. Com a devida vénia à Carla Marques e ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:


Uma lista para feitos desportivos incríveis:
para relatores turvados pela emoção


por Carla Marques |  14 jul. 2019 187

Incrível! A seleção portuguesa sagrou-se campeã do mundo em hóquei em patins. Um feito incrível que já não tinha lugar há 16 anos! E para este acontecimento incrível contribuiu, e muito – senão decisivamente...– a incrível exibição do guarda-redes Ângelo Girão. Uma atuação tão incrível que deixou o relator do jogo sem palavras, ou melhor, sem adjetivos, isto é, semoutros adjetivos… como ele foi repetindo ao longo da transmissão na RTP 1.

«Incrível!», «Isto é incrível!», «Este guarda-redes é incrível!», «Uma exibição incrível!»… para, a certa altura, concluir: «Eu não tenho palavras!» Ainda arriscou qualificativo estratósférico, mas, face ao incrível, nenhuma outra palavra tomou a dianteira.

Sabemos que as emoções fortes podem turvar os pensamentos e também reduzir drasticamente o léxico da narração. Especialmente se uma locução em direto envolve uma vitória tão excitante como a ocorrida em Barcelona. Para prevenir eventualidades futuras, aqui fica uma lista de incríveis adjetivos de que qualquer relator em semelhantes circunstâncias – seja na televisão ou na rádio – pode lançar mão para descrever uma prestação desportiva de primeira água, ou melhor, incrível: extraordinário, assombroso, notável, estupendo, fantástico, espantoso, fenomenal, sensacional, excecional, fabuloso, brilhante, inesquecível…
Enfim, uma lista para feitos incríveis!


Sobre a autora, Carla Marques (, foto à esquerda). (i) doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do estudo do texto argumentativo oral); (ii) investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); (iii) autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; (iv) formadora de professores; (v) professora do ensino básico e secundário; (vi) consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

II.  A palavra "incrível" no dicionário:

incrível | adj. 2 g. | s. m.

in·crí·vel

adjectivo de dois géneros

1. Que não pode ser acreditado; em que não se pode acreditar.

2. Extraordinário.

3. Que custa a acreditar.

substantivo masculino

4. O que não se pode crer.

Superlativo: incredibilíssimo.

Palavras relacionadas:
incredível, incredibilíssimo, incrivelmente, inconcebível, inimaginável, inopinado, mirabolante.

"incrível", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/incr%C3%ADvel [consultado em 15-07-2019].
________________

Nota do editor:

Último poste da série > 26 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19921: Em bom português nos entendemos (21): quem chama "fula-preto" a quem ? (Luís Graça / Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P19980: 15 anos a blogar desde 23/4/2004 (11): quando os "artilheiros" davam lições aos "infantes", habituados a comer e a calar... (C. Martins, alf mil art, cmdt do 23º Pel Art, Gadamael, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 >  A saída do obus 14, de noite. Foto espetacular do  ex-alf mil médico Amaral Bernardo, membro da nossa Tabanca Grande desde Fevereiro de 2007.

Foto (e legenda): © Amaral Bernardo (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A propósito de "infantes" e de "artilheiros" (*)... 

O C. Martins - nosso leitor e camarada, mais conhecido por ter sido o "último artilheiro de Gadamael" , alf mil art, comandante do 23º  Pel Art, que acabará por (con)fundir-se com o 15, mas também médico, hoje, no Portugal profundo, periférico, - não faz parte formalmente da nossa Tabanca Grande (TG), por razões alegadamente deontológicas, éticas e profissionais,  que eu entendo e respeito. Isto quer dizer que: (i) nunca pediu para aderir à TG; (ii) nunca aceitou o meu convite para ingressar na TG; (iii) nunca se apresentou ao "pessoal da caserna", como mandam as NEP do blogue; (iv) nem nunca enviou as duas fotos da praxe; (v) nem muito menos gosta que a gente lhe mostre a cara ou o use o seu nome profissional.. Mesmo assim tem 27 referências no nosso blogue.

Em contrapartida, é (ou foi) leitor assíduo, fã do nosso blogue, comentador quase diário, há alguns anos atrás, dos nossos postes, e frequentador dos nossos encontros nacionais (, já não foi aos dois últimos, o de 2018, por razões imprevistas de saúde...). É um profundo conhecer da Guiné,  onde depois da independendência fez voluntário como médico de uma ONG, enfim, é um verdadeiro amigo do povo guineense... Tem, além disso - e excecionalmente - uma série feita com os seus comentários neste blogue...

Já em tempos lhe transmitimos que tínhamos saudades das suas "lições de artilharia para os infantes", da sua boa disposição, do seu sentido de humor de caserna, da sua saudável irreverência, enfim, dos seus comentários, por vezes desconcertantes,  mas sempre certeiros, ou não fosse ele um artilheiro e, para mais, o último artilheiro de Gadamael!...Sabemos que alguns não lhe perdoaavam esse pequeno detalhe do seu currículo, mas a verdade é que alguém tinha que fechar a porta da guerra... E em Gadamael coube-lhe a ele, que nem sequer foi voluntário para a tropa, era dirigente estudantil quando foi apanhado pela "ramona"...

Será sempre aqui lembrado como um bom contador de histórias, com grande  sentido de humor, e muitas memórias da tropa, da guerra e da paz, que ele se dignou partilhar connosco, seus camaradas da Guiné...  Enfim, um "bravo da Guiné"!

Esta história que (re)publicamos a seguir,  é uma verdadeira lição de um "artilheiro", para os pobres coitados ds "infantes" que já cá, na metrópole, nos quartéis de Norte a Sul, comiam e calavam... Já nessa altura perguntavamos aqui: foi a tropa uma escola de virtudes ? Quero eu dizer, a tropa do nosso tempo... Aprendia-se lá só coisas de artilharia, infantaria, cavalaria, transmissões ? Mas também valores como os da justiça, equidade, liberdade, integridade, honestidade, coragem moral, patriotismo ?...

Espero que o C. Martins nos leia (ainda) e se sinta honrado com a republicação desta história  que é também uma forma singela de o associarmos às  discretíssimas comemorações dos quinze anos do blogue de todos nós (**)... Não sei se ele já se reformou, se sim (, mesmo que médico nunca arrume o estetoscópio e dispa a bata), acho que está na altura de ele entrar por aí adentro, na nossa Tabanca Grande, de mãos nos bolsos, a assobiar e dizer: - Rapaziada, finalmente cheguei!

2. Lições de artilharia para os infantes > Quando a gente nem sempre come e cala...

por C. Martins (***)

Este tema é muito interessante: Relação entre comandantes e comandados e vice-versa. Atitudes, justiça, injustiça, abuso de poder, capacidade de liderança ou não, coesão ou espírito de corpo. Todos nós tivemos casos, independentemente da categoria ou posto hierárquico. 

A propósito de rancho... Lembro-me de um caso passado num regimento de uma cidade alentejana. O oficial de dia fez um levantamento de rancho !!!!.

Este tinha por hábito não se limitar a provar a comidinha da bandeja, mas verificar as pesagens dos géneros segundo as NEP. Era vitela à jardineira: tanto de ervilhas, cenouras, batatas e a carne da dita.
Iniciado o repasto, que a bem da verdade o pessoal comia com sofreguidão, o dito oficial, olhando de soslaio para pratos e travessas repara que havia ervilhas, cenouras, grande quantidade de batatas e, surpresa, a carne praticamente tinha-se evaporado!.

- NINGUÉM COME MAIS, CAR...!!! - berra o gajo com um galãozito transversal no ombro, e enceta uma corrida frenética até à cozinha onde se depara com grandes nacos de carne sobre a bancada.

Transtornado, enfia uma cabeçada no 1º sargento vago-mestre ou lá o que era:
- Você está preso, seu f... da p...!. E estão todos presos, seus cabr...f...das p..., bandidos, gatunos! ...

Mais calmo, tenta contactar o comandante que não estava, o 2.º também não... Bem, a alternativa era o contacto com o QG da região militar. Atende o oficial de dia da respectiva:

- ... Fez o quê ?!! Você já desgraçou a sua vida!

Nesse dia almoçou-se só às cinco da tarde.

O sorja f... da p... tinha por hábito gamar a carne e outros géneros que vendia a talhos e estabelecimentos civis, com a conivência dum cabo RD... Os outros elementos da cozinha eram ameaçados para se calarem. A justiça militar atuou com penas exemplares... O aspiranteco teve um elogio verbal e foi mobilizado para o CTIG.

Qualquer coincidência com a realidade não foi mera ficção.

C. Martins

______________

Notas do editor:



Guiné 61/74 - P19979: Notas de leitura (1198): “Estratégias de Vivência e de Sobrevivência em Contextos de Crise: Os Mancanhas na Cidade de Bissau”, por Mamadú Jao; Nota de Rodapé Edições, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Na esteira de um conjunto de estudos que interrogam as capacidades de vivência e sobrevivência em meio rural e urbano perante a ausência do Estado e a degradação das condições de vida, Mamadú Jao, um antropólogo que foi Diretor do INEP e que trabalha presentemente para Fundo das Nações Unidas para a População questiona a etnia Mancanha e as suas estratégias de vivência e de sobrevivência, oferece-nos um estudo onde fica claramente realçado o papel da mulher na coesão socioeconómica dos agregados familiares.
O Estado é frágil, é incapaz de cuidar dos seus mais necessitados, é nestas estratégias de sobrevivência que reside a perdurabilidade dos valores da Nação.

Um abraço do
Mário


Resistir à crise em Bissau: as estratégias dos Mancanhas (2) 

Beja Santos

“Estratégias de Vivência e de Sobrevivência em Contextos de Crise: Os Mancanhas na Cidade de Bissau”, por Mamadú Jao, Nota de Rodapé Edições, 2015, corresponde a um estudo de uma etnia e de uma etnicidade confrontando um processo social dentro de um Estado frágil e num tempo em que se fala de globalização e desenvolvimento global – afinal, há organizações civis de sociedades que asseguram aquilo em onde o Estado e as promessas globais estão ausentes.

Já se apresentou a Guiné-Bissau, a problemática do desenvolvimento e a história do povo Mancanha. Vamos agora observar a sua organização económica e crenças e o funcionamento das sociétés Mancanhas em Bissau (recorde-se que sociétés é sinónimo de organizações de base comunitária).

A estrutura social Mancanha é baseada nos escalões etários e na linhagem. Têm uma organização política do tipo vertical, com um régulo no vértice, seus colaboradores, chefes de tabanca e o resto da população. Em Mancanha Nasí é o régulo, tem como principal função velar pelo bem-estar do povo, ele é o primeiro a iniciar o corte de palha para a cobertura das habitações, recorre-se a ele para exercer justiça e os mais necessitados contam com a sua benevolência para a resolução de diferentes problemas sociais. Os Mancanhas vivem maioritariamente de uma economia de subsistência, dispõem de uma agricultura do tipo itinerante e outra do tipo intensivo. São animistas. Na Guiné-Bissau coexistem diversas crenças e práticas religiosas, os Mancanhas cabem nas chamadas religiões tradicionais. Há investigadores que centram a área cultural Mancanha na região do Cacheu, para o autor, o Chão dos Manjacos na província Norte da Guiné-Bissau engloba também os Papéis, e por isso prefere chamar-lhe Chão Brâme, o que significa que abarca Manjacos, Mancanhas e Papéis, os três grupos étnicos que partilham uma base cultural comum. Qual o ponto fulcral das crenças Mancanhas? O autor responde:  
“ As forças sobrenaturais, as únicas detentoras de habilidades de fazer o bem e o mal, não agem se não a pedido de um outro homem. Esta maneira de encarar a vida dos homens constitui a principal ideia força que orienta a vida dos elementos que hoje se identificam com o grupo étnico Mancanha”.
Mamadú Jao explana os ritos, os cultos, os diferentes intervenientes, descreve o espiritismo, o choro e o toca-choro (momento cerimonial animista para se celebrar quando morre algum familiar).

No seu trabalho, Mamadú Jao destaca o programa de ajustamento estrutural como o momento de viragem para a expansão do setor informal. Este programa chegou à Guiné ainda nos anos 1980, teve como consequência a degradação das condições de vida das populações, grande desemprego, reduções drásticas dos salários. Por exemplo, um estudo sobre a situação de consumo das famílias em Bissau, realizado em 1991, indicava que 55% das famílias em Bissau consumia, em média, uma refeição e meia por dia. Um outro estudo, realizado em 2008, sobre a égide da UNICEF, indicava que 17% dos cerca de 743 inquiridos em todo o território nacional só consumia uma refeição por dia e 49% duas refeições. Houve que encontrar alternativas para a sobrevivência: mulheres bideiras, solidariedade de grupos paroquiais ligados às igrejas, entre outras. É neste ponto que o autor nos dá o ambiente de negócio e a fileira de alguns produtos comercializados. Há dois sistemas mercantis: o tipo de entreposto, baseado nos comerciantes proprietários de empresas formalizadas; e o sistema multivalente, composto por pequenos empresários. A economia transacionada gravita à volta do caju, arroz, produtos florestais, oleaginosas, peixe, frutas e vegetais. Estes sistemas têm deficiências, e é nestas frestas que se dá a expansão do setor informal.

Citando o investigador Philip Havik, recorda-se que os povos pré-coloniais já tinham sistemas de troca e intercâmbio, comércio de longa distância, comércio do tipo entreposto e até setor informal. Este setor é hoje muito vasto, no mercado de Badim encontram-se comerciantes a vender cosméticos e artigos de beleza, têxteis, produtos alimentares de toda a natureza. O autor dá atenção às bideiras:
“Bideira deriva de bida, vocábulo em crioulo da Guiné que, por sua vez, deriva do vocábulo português vida. Bideira designa mulher que vende algo para ganhar a vida”.
E quem são as bideiras? São originárias de meio urbano, originárias do Norte e Leste. E o autor esclarece:  
“A maior presença das mulheres pertencentes às etnias do Norte e Leste no mercado explicava pela longa tradição de emigração masculina destas regiões, situação que faz com que as mulheres assumam, pelo menos temporariamente, a responsabilidade do sustento da família. No essencial as bideiras ocupam-se do escoamento de produtos de produção local das zonas de produção para Bissau. A venda de arroz em caneca, em lugares fixos, representa o maior negócio para os produtos importados”.
É no comércio de comida que ganha relevo a verdadeira estratégia de sobrevivência para um número considerável de famílias: “Peixe, frutas, sobretudo”.

Mamadú Jao descreve as fontes de financiamento do setor informal e entra no coração do seu estudo: as sociétés Mancanhas em Bissau, detalha a vida Mancanha nos bairros Belém, Luanda e Calequir, comenta a composição étnica, os escalões etários e as ocupações profissionais. E aproveita para discretear os equívocos à volta do conceito de desenvolvimento:  
“Alguns estudiosos acusam a África de recusar o desenvolvimento, não se dando conta que o problema reside no próprio modelo de desenvolvimento proposto aos africanos. Em nosso entender, o interesse em estudar a natureza das subculturas resultantes do choque dos valores externos com os valores locais. Este tipo de estudos é importante sobretudo porque pode contribuir para o aprofundamento dos conhecimentos sobre a natureza das relações entre o tradicional e o moderno na África contemporânea”.
Ao longo deste estudo Mamadú Jao apercebeu-se da coexistência de elementos de tradição cultural dos Mancanhas com elementos das instituições do tipo moderno. Desenvolve um modo de funcionamento das sociétés Mancanhas, as relações de poder no interior das mesmas, os domínios de intervenção e as diferentes estratégias.

Nas conclusões, o antropólogo releva que a cultura Mancanha tem uma ampla abertura aos elementos de outras etnias, dada a sua natureza sincretista, as sociétés aposta na diversificação de atividades mas a sua sobrevivência passa pela dispersão (emigração) e por ações de solidariedade entre a cidade e o campo. A parte positiva das sociétés é a de contribuírem para o reforço da coesão interna dos seus membros e de dinamizar as relações de ajuda mútua nos momentos de dificuldade.
____________

Notas do editor

Poste anterior de 8 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19958: Notas de leitura (1194): “Estratégias de Vivência e de Sobrevivência em Contextos de Crise: Os Mancanhas na Cidade de Bissau”, por Mamadú Jao; Nota de Rodapé Edições, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19972: Notas de leitura (1197): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (14) (Mário Beja Santos)

domingo, 14 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19978: Blogpoesia (628): "Na minha rua...'", "Rachmaninov" e "Reflexões minhas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Na minha rua...

Na minha rua, pela manhãzinha, há pouco movimento.
Há quem faça caminhadas.
Sós ou com seus canitos.
Um a um se ouvem os estores correrem.
Para a luz entrar.
Pelos fios dos telefones se vêem poisados passaritos, cantarolando as melodias que lhes deu a Natureza.
É hora de júbilo.
Um novo dia começa.
A vida é curta.
Há que a aproveitar.
Na cozinha, o leite já ferve e cheira a café.
Doce rotina de cada dia.
Que a paz nos vai permitindo.
Um a um, vão saindo os carros das garagens.
Para a luta do pão de cada dia.
A miudagem vai para a escola de sacola às costas.
O sol avança céu acima, quando o há.
As ramagens e sebes dos jardins se agitam com a brisa mansa que vem do mar.
Cada um vai para o seu percurso.
Se acendem os computadores.
Se registam os pensamentos que vêm à mente
E se dá larga à preciosa liberdade...

Mafra, 10 de Julho de 2019
8h19m - dia cinzento
Jlmg

********************

Rachmaninov

Oiço de novo Rachmaninov, sem cansar. Concerto nº 3.
Fogoso. Supremo.
Enquanto lá fora, um passarito debica o chão. Até parece ao mesmo ritmo.
É a harmonia da natureza.
Envolvidos na mesma energia.
Passam por nós as suas ondas.
Por vezes dolente. Quase em pranto. Outras sentido. Outras raivoso de revolta.
Estrebucham suas notas. Em espasmos quase incontidos.
Que se passaria no espírito do autor ao conceber este poema?
A pianista jovem, bem adestrada, vê-se aflita para o segurar.
O piano range desensofrido.
O matraquear dos dedos sobre as teclas faz-se quase invisível.
Nem todos os bons pianistas conseguem arrostar este concerto.
Arrepiante. Quase uma hora de forno aceso.
Nos arrasa de emoção...

Ouvindo Yuja Wang plays Rachmaninov's Piano Concerto No. 3
Bar 7Momentos, arredores de Mafra,
12 de Julho de 2019
11h11m
Já choveu
Jlmg

********************

Reflexões minhas

Já avancei na idade, mais do que esperava.
Subi onde posso ver ao longe,
o passado e o presente.
Uma sensação de engano.
Sobre as razões da vida.
Lutar para a vencer é ilusório.
Nos apetrechamos com os melhores utensílios.
Por bom preço.
Apostamos neles a maior parte das nossas forças.
Convencidos de que, depois, se vai saborear os frutos das nossas penas.
Acumula-se riqueza e sabedoria.
Entra-se na reforma, quando se tem, e, depois duma euforia de vitória, nos quedamos desarmados com a perda das nossas forças.
O dia a dia torna-se uma caminhada célere para o fim.
Afinal, para quê o nosso castelo de ilusões?
Pensávamos que era só nosso.
Se esvai, e nada detém essa sujeição.
Felizmente, cedo cheguei à conclusão de devia apostar no que vem depois do fim.
Ainda bem...

Ouvindo a mejor música de piano y violin triste relajante y romantica
Mafra, 13 de Julho de 2019
12h43m
Jlmg
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19954: Blogpoesia (627): "Manhã de Domingo no 'Polo Norte'", "Chuva de adversidades" e "Caderno diário", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19977: Dando a mão à palmatória (31): o A. Marques Lopes, coronel DFA, reformado, um dos históricos da Tabanca Grande, não é atirador de artilharia mas... de infantaria. Pedido de desculpa ao próprio e aos demais "infantes"...


Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos ... atiradores de infantaria !

Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira, à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita. 

 Os quatro são membros da nossa Tabanca Grande, o que, salvo erro, é caso único: a CART 1690 é a única a "fazer o pleno" em matéria de alferes milicianos, inscritos formalmente na lista dos amigos e camaradas da Guiné, que se sentam à sombra do nosso poilão.


Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de A. Marques Lopes, um dos "históricos" da Tabanca Grande: coronel inf, DFA, na situção de reforma, foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), era membro, em 2005, da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A), e é em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça,  do Sousa de Castro e do Humberto Reis; entrou para a nossa tertúlia em 14/5/2005; é autor de "Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), autobiografia escrita sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que conta a história de António Aiveca; tem 242 referências no nosso blogue: 

Data: sábado, 13/07/2019 à(s) 11:33

Assunto: correcção

Caríssimo amigo Luís Graça

Tenho lido, sempre que se referem a mim, que sou de Artilharia. Calculo que será porque estive na CART1690. Mas não sou, sou, sim, de Infantaria.

Estive na EPI no chamado 1º Ciclo do COM, era, digamos, a recruta. Depois dele,  os chamados cadetes eram enviados para a Escola Prática de Artilharia (EPA), em Vendas Novas, para a Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém. Havia alguns que iam para Lamego para os Comandos, alguns para Santa Margarida para paraquedistas e outros, os felizardos com cunhas, para a Administração Militar. 

E aqueles (no meu curso, foi a maioria) que continuavam em Mafra, na EPI,  para tirar a especialidade de Atiradores de Infantaria, e outros, menos, que tiraram de Armas Pesadas ou de Reconhecimento de Infantaria. Era o chamado 2º Ciclo do COM. 

No meu caso estive sempre em Mafra, tive em ambos os Ciclos (foram cerca de 6 meses) o mesmo instrutor, o então tenente Chung Su-sing (actualmente Coronel Comando reformado, infelizmente agora sofrendo de alzheimer). E saí de lá com a especialidade de Atirador de Infantaria.

O que sucedia é que cada Arma, durante a guerra colonial, era encarregada de formar companhias para actuarem no terreno. Os comandantes dessas companhias tinham de ser, obviamente, da Arma, mas os alferes não. Foi o caso da CART1690: o capitão Guimarães era de Artilharia mas os quatro alferes eram de Infantaria.

Não há problema nenhum, é claro, mas penso que de futuro será melhor pôr como é: que eu sou de infantaria.

Abraço

ML

____________

Nota do editor:

sábado, 13 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19976: Os nossos seres, saberes e lazeres (340): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O viandante hesitou se deveria começar a manhã num local icónico, jamais aqui referido, o Centro Belga da Banda-Desenhada, a Bélgica é uma das principais potências mundiais desta arte, foi em 1929 que apareceu Tintin, mais tarde Edgard Jacobs com Blake and Mortimer, Willy Vandersteen com Bob e Bobette, o jornal Spirou, etc. Fica para a próxima.
Decidiu-se a contemplação da Grand-Place que permite a visita ao edifício camarário, muito belo e a Maison du Roi com património valiosíssimo. Dali seguiu-se para Namur, um almoço aconchegado, com vitualhas típicas, esplêndidos queijos e um Bordéus insuperável, toca de passear pela floresta, a pôr a escrita em dia, a lembrar outras férias, outros passeios, muitas exposições em comum com a adorada Nelly Alter.
Era um dia social, meteu visita a casa de uma grande amiga em Anderlecht, houve uma sessão de histórias para duas crianças, que maravilha. E amanhã volta-se ao parque do Cinquentenário, é imperioso rever um recheio soberbo que não se visita há mais de 10 anos.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (5)

Beja Santos

O viandante caminha para a Grand-Place, estamos no coração histórico de Bruxelas, um dos mais belos conjuntos arquitetónicos de toda a Europa, haja a opinião que houver de Bruxelas como destino turístico excelente. Aí pelos séculos XIII e XIV a praça era constituída por casas patrícias, então apareceu o edifício municipal com a sua extraordinária torre, aos poucos as diferentes corporações destronaram as casas patrícias e surgiram edifícios de prestígio emblemáticos. O bombardeamento francês de 1695 destruiu quase completamente este primeiro complexo. Posteriormente, deu-se a renovação do edifício da Câmara Municipal, das casas das corporações com toda a sua riqueza e variedade das fachadas barrocas, douradas e com esculturas, encimadas pelos diferentes emblemas das corporações. A praça é de uma grande homogeneidade, e o seu equilíbrio também é devido à correção da escala, ao próprio contraponto entre o edifício municipal com a flecha de 96 metros onde está a estátua de S. Miguel contrapondo com a Maison du Roi, que alberga o Museu da Cidade de Bruxelas e as suas preciosidades em pintura, escultura, ourivesaria e outras artes decorativas. É uma fruição interminável, sempre que pode o viandante aqui anda a contemplar, e quarenta anos depois há segredos que se revelam.





Quem diz Grand-Place diz Gare Centrale, lugar que para o viandante é sinónimo de comboio até Namur, uma grande amiga organizou almoço e passeata. Toca de a homenagear, o viandante conhece este quadro de uma pintora russa, Veneza ao Luar, contempla-o com satisfação, põem-se à mesa, conversa-se imenso, há imensos projetos a desfiar, promessas de viagens, e depois partem, vão deambular por florestas, a Valónia é um portento de maciços verdes.




Regresso de Namur, à noitinha viandante e amigos encontram-se em Anderlecht, um dos bairros mais populosos de Bruxelas, nova visita, a dona da casa tem dois meninos que amam histórias de encantar, impossível não reter a imagem de André Cornerotte a falar de duendes, estrelas e raios de luz que perpassam pelas florestas, as duas crianças escutam-no atentamente, a avó não se intromete, tal o poder encantatório de tudo quanto para ali se narra em voz ciciante e gesticulação bem a propósito. E o viandante olhou para a luz e igualmente se deslumbrou com os efeitos óticos, toca de os registar. Mais um dia feliz em Bruxelas, amanhã regressa-se ao Parque do Cinquentenário.





O Parque do Cinquentenário é um sinal da velha opulência graças aos senhores do Congo: monumento e zona de respiração citadina, trinta hectares na forma de um pentágono, com os edifícios da Comissão Europeia e do Parlamento bem perto, é por aqui que amanhã o viandante deambulará, visita a um museu, passeio pelos jardins, depois.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 6 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19952: Os nossos seres, saberes e lazeres (337): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19975: Os nossos seres, saberes e lazeres (339): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XI: A grande muralha, Pequim, 2 de julho de 1980

Guiné 61/74 - P19975: Os nossos seres, saberes e lazeres (339): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XI: A grande muralha, Pequim, 2 de julho de 1980


China > Jinshanling > A Grande Muralha da China, património mundial da humanidade. Foto de Severin.stalder (2013). Cortesia de Wikipedia.



 
1. Mensagem de António Graça de Abreu:

Data: quinta, 27/06/2019 à(s) 21:37

Assunto: Meu caro Luís, para eventual publicação no blogue. Não tem a ver com a nossa Guiné, mas será interessante. Abraço.


Mais um excerto do "diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983", do nosso camarada do António [José] Graça de Abreu. (*)

[ Nota biográfica: (i) viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; (ii) foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras; (iii) na altura, ainda era, segundo julgamos saber, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduíno Gomes), alegadamente o único reconhecido pela República Popular da China; (iv) ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74); (v)membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 240 referências; (vi) compulsivo viajante, tem "morança" em Cascais; (vii) é um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo; (viii) nasceu no Porto em 1947; (ix) é  casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro.]



Pequim, 2 de Julho de 1980 (**)



"Do parapeito, meio desmoronado da Grande Muralha, arrancámos um pesado tijolo. Carregámos com ele até Badaling e conservá-lo-emos como a mais preciosa relíquia de toda a nossa peregrinação pelo mundo."[1]

Estas palavras foram escritas em Outubro de 1887 pelo Conde de Arnoso, um dos raríssimos portugueses a viajar pela China na segunda metade do séc. XIX. De regresso a Lisboa, via Paris, Bernardo Pindela, o conde de Arnoso trouxe uma cabaia chinesa que ofereceu ao seu amigo Eça de Queirós, e um tijolo da Muralha da China que levou para sua casa.

Em Maio de 1980, o governo chinês fez publicar um decreto-lei onde se diz: "A remoção de tijolos, terra ou pedras da Grande Muralha, sob que pretexto for, está sujeita a pesada multa ou pena de prisão."

Quase cem anos depois da história do tijolo do nosso conde de Arnoso, a China parece apostada em não deixar que se cometam mais atentados contra o seu património cultural. Recentemente, li na imprensa chinesa uma acusação contra uma determinada unidade militar que, estacionada junto da Grande Muralha, não hesitou e foi lá buscar pedra, já cortada, para construir o seu quartel. 


Ao longo dos séculos, esta fabulosa construção que se estende por seis mil quilómetros, tem visto alguns dos seus sectores serem esventrados e destruídos. Todavia, não tem sido apenas a Muralha a sofrer as consequências da insensastez ds homens. Ruínas arqueológicas, templos, pagodes, palácios antiquíssimos foram deixados muitas vezes ao abandono ou transformados em arrecadações de cereais, mesmo em casas de habitação.

A China tem 45 séculos de história ininterrupta que se estende por 24 dinastias, o património arquitectónico e cultural é extraordinário, mas a incúria e a ignorância chinesa quanto à sua própria História são também muito grandes. Refiro-me sobretudo aos camponeses e a gente do campo, são 800 milhões de almas. Um voluntarismo e utilitarismo extremo na vida de todos os dias tem levado, muitas vezes, os chineses a ignorarem os valores do seu passado.

No início dos anos sessenta, a muralha que rodeava a cidade de Pequim foi literalmente arrasada, em nome do progresso, da abertura de novas avenidas e da construção da rede do metropolitano. Hoje são os próprios chineses a reconhecer que se foi longe demais ao acabar-se com a muralha construída no início do século XV, que dava à capital da China um cunho de cidade medieval, raríssima no mundo. 


Na mesma altura, no plano geral de alargamento das ruas de Pequim, foi decidido cortar a meio a "cidade redonda", no parque Beihai. Trata-se de um fabuloso conjunto arquitectónico, com pequenos pavilhões e pagodes, uma ponte em mármore entre dois belos lagos, tudo isto construído a partir do século XIII. Zhou Enlai, que era primeiro-ministro, soube do sacrilégio que ia ser cometido e opõs-se terminantemente. A "cidade redonda" salvou-se e a nova avenida acabou por circundá-la.

Durante a Revolução Cultural, o ímpeto revolucionário dos guardas vermelhos, em nome da "destruição de um passado feudal", não poupou templos, igrejas, bibliotecas. Muitas vezes foi necessária a intervenção do exército para se impedir o vandalismo desenfreado. Hoje, restaura-se o antiquíssimo património construído, procuram-se cicatrizar as feridas do passado, embora algumas já não tenham cura.

Os ocidentais também são responsáveis por muita da delapidação do património cultural chinês, antes de 1949. Em Guilin, província de Guangxi, vi, há dois anos atrás, várias grutas antigas com centenas e centenas de estátuas de budas esculpidas na pedra. De muitas delas, restava apenas o lugar, tinham sido cuidadosamente cortadas da pedra, embaladas e transportadas para os Estados Unidos da América. 


Coisas deste género, aconteceram no passado um pouco por toda a China. Os museus de Nova Iorque, Paris ou Londres, ou as colecções particulares, estão cheias de valiosíssimas peças chinesas.

O que vale é o facto do património arquitectónico e artístico da China ser quase inesgotável, ser capaz de resistir a muitos dos atentados, antigos e recentes. De qualquer modo, o nosso Conde de Arnoso, se pudesse voltar hoje à China, já não regressaria certamente a Lisboa com um tijolo da Grande Muralha.[2] 

___________

[1] Conde de Arnoso, Jornadas pelo Mundo, Porto, Magalhães e Moniz Editores, 1895, pag.366


[2] No "Diário de Notícias", de 13.07.1980

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19932: Os nossos seres, saberes e lazeres (335): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte X: Pequim, 5 de dezembro de 1977, visita a uma unidade militar

(**) Último poste da série >  8 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19957: Os nossos seres, saberes e lazeres (338): em louvor da tradicional batatada de peixe seco da Marquiteira, Lourinhã (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19974: Parabéns a você (1653): António Tavares, ex-Fur Mil SAM do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72) e Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2658 (Guiné, 1970/71)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de Julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19970: Parabéns a você (1652): António Dâmaso, SargMor Paraquedista Ref das CCP 122 e 123/BCP 12 (Guiné)

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19973: Memórias de Gabú (José Saúde) (85): "Exército" de abelhas (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

As minhas memórias de Gabu 

A mata e os seus mistérios
“Exército” de abelhas

Num esmiuçar de imagens que nos transportam aos tempos da guerra, viajo por terras de Gabu e recordo aquelas horas passadas no mato em que o perigo espreitava e o pessoal era, num outro prisma, também fustigado por um “exército” de abelhas que não davam tréguas ao mais resistente combatente.

Caminhando à toa e sempre pensando no IN que poderia “andar ali perto”, ainda que por outro lado a mensagem passada assentasse basicamente por não descuidar os princípios que a guerrilha impunha, a mata escondia mistérios que muito surpreendia o previdente caminhante.

O habitual camuflado que transportávamos no corpo no interior declarava-se, também, como uma peça fundamental que nós não dispensávamos perante as adversidades que a dureza do matagal envolto em segredos impunha a cada momento.

Procuro o significado de camuflado, melhor, recorro à definição do verbo camuflar, sendo a resposta que aquele usual fardamento era um investimento para “disfarçar ou encobrir” as nossas presenças perante a minuciosa miragem de um IN sempre atento às movimentações das nossas tropas.

Hoje, traga-vos como recordação os austeros momentos em que os enxames de abelhas colocavam o pessoal num autentico frenesim. Sabeis, por certo, que as suas picadas não eram, e nem tão-pouco o são, “coisa” meiga de aguentar, logo as suas surpreendentes “emboscadas” impunham respeito.

Resguardadas em refinadas “trincheiras” de defesa, espreitavam o inimigo que, naquele caso, se julgava imune a eventuais ciladas destes laboriosos “bicharocos”, uma vez que depois de incomodadas soltavam os seus ferrões em direção a um prossuposto adversário que se via completamente desorientado face ao mordaz ataque do tão nefasto e émulo “opositor”.

Este pequeno introito esbarra numa situação em que assisti a um “ataque” de abelhas na região de Gabu. Íamos no mato, há um camarada que inadvertidamente tocou numa árvore e num repente tínhamos em cima de nós um batalhão destes perniciosos “bichos”.  

Os zumbidos eram assustadores, houve camaradas com o ferrão destes maliciosos “insetos” cravados na pele, a malta correu desalmadamente por tudo o que era sítio, existiu, evidentemente, uma momentânea dispersão, seguindo-se o toque a reunir mas com os olhos bem abertos não fosse o diabo tece-las.

Após reunir as tropas a malta comentou o sucedido, houve quem se divertisse com a marosca e outros queixosos pelo então infeliz ataque. Tudo, porém, se enquadrava com o teor do terreno pisado. 

Nas minhas memórias de Gabu guardo, religiosamente, situações em que também fui um agente que interveio nas mais diversificadas situações, sendo que os meus neurónios, não adormecidos, ainda conseguem relatar nacos de um passado distante mas sempre atuais e essencialmente de acordo com as lembranças de todos os meus caríssimos camaradas. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

29 DE JUNHO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19930: Memórias de Gabú (José Saúde) (84): Rapaz franzino, de reposta fácil e acertada. O Dias e sua rebeldia. (José Saúde)

Guiné 61/74 - P19972: Notas de leitura (1197): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (14) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Santos Andrade nunca escondeu que não procurava fazer poesia mas simplesmente narrar ou fazer crónica. Estou a tomá-lo a sério, em breve a história do BCAV 490, que o nosso confrade Carlos Silva tão amavelmente me emprestou, virá à baila, será companhia até final do relato.
Na batalha do Como serão convocados Armor Pires Mota e Alpoim Calvão, temos textos de altíssima qualidade. Por essa altura, se acaso este modo de abordar as coisas for aliciante para a nossa sala de conversa, já muita gente entrou em cena, com depoimentos, fotografias, comentários alusivos à crónica do nosso bardo. Oxalá que assim seja, tanto pelo dever de memória como pelo vigor da recordação dos vivos, que aqui estamos a homenagear.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (14)

Beja Santos

“A missão continuou
sofrendo-se grande emboscada.
A Companhia do Ventura
foi muitas vezes atacada.

A 3.ª Companhia
à meia-noite saiu
e de manhã cedo se viu
um bando cheio de rebeldia.
O Moita fogo fazia
e um terrorista tombou
uma arma lhe apanhou
e os enfermeiros dele trataram
e como prisioneiro o levaram.
A missão continuou.

Por um carreiro tudo caminhava
e chegou-se a uma povoação
que só tinha habitação
quando a noite chegava.
De dia só quem lá estava
era uma velha de pele enrugada.
Foi por nós interrogada,
mas pouco descobriu,
e para a mata connosco seguiu,
sofrendo-se grande emboscada.

Na mata o ataque se deu
às 3 horas do dia.
Houve 11 feridos na Cavalaria,
incluindo o que morreu.
O Joaquim da Costa muito sofreu
precisamente nesta altura.
Também sofreu muita amargura
o amigo José Revez
pois atacada em Morés
a Companhia do Ventura.

Não tinham água para beber
e já havia poucas munições.
Por intermédio das transmissões
veio a avioneta abastecer
onde trouxe também comer
porque não tínhamos nada.
Uma coisa tão amargurada
não esperavam de passar.
E a 489 com azar
foi muitas vezes atacada.”

********************

O bardo não esconde as agruras da vida operacional, ora encetada, o Morés era o osso mais duro de roer. E viaja a recordação para outro livro de Cristóvão de Aguiar, de nome “Ciclone de Setembro”, com primeira edição em dezembro de 1985, três partes com títulos saborosos: "Terra de Ventos"; "Os Ventos da Guerra" e "O Futuro de Ventos". Obra da qual mais tarde o escritor açoriano irá buscar o barro para o livro “Braço Tatuado”.
Logo um texto de enorme ferocidade, tem a ver com o drama de um guia prisioneiro:
“O prisioneiro está sentado num abatis. Continua algemado e assim ficará para todo o sempre. Guarda-o o soldado Capitão Castelar. Segura-lhe a ponta da corda amarrada à cintura. Daqui a pouco vai morrer. A este nem lhe dão tempo sequer de regressar ao aquartelamento.
O furriel enfermeiro, criatura a quem a guerra apurou os sentimentos humanitários, e outros, lembrou-se de ir dar de comer ao guia algemado. Leva-lhe o comer à boca. Tem a ração de combate aberta sobre um corpo decepado. Volta-se, tira uma garfada de atum, corta um pedacito de bolacha, e deposita tudo na boca do prisioneiro. À ilharga do indígena, o soldado-sentinela não está gostando da brincadeira. Nota-se-lhe o enfado na cara. E a revolta. Sempre que o enfermeiro se volta para se fornecer de alimento, aproveita o soldado a ocasião para calcar os pés do indígena com as botifarras, às vezes com a coronha da G3. Da boca do guia nem um ai se ouve, sorri apenas.
Vejo a cena, vou-me aproximando. Continua o soldado, mesmo verificado que o encaro com acinte e raiva, pisando os pés do prisioneiro. Estão já em sangue. O furriel, embebido no que está fazendo, não dá por nada. Ao abeirar-me da sentinela, não em contenho e dou-lhe uma funda bofetada. Tenta ripostar-me. Não lhe dou tempo e prego-lhe outra ainda mais rija e ameaço-o com a Parabellum: Se continuas a fazer tal filhadaputice, ponho-te em sangue, meu cabrão nojento.
Ele nem tentou reagir, mas disse-me: O meu alferes é tão turra como ele, se não o fosse, não me tinha batido, ameaçado com a Parabellum e escarrado na cara; é por causa deles e de outros como ele que andamos neste martírio; o meu alferes vai-me pagar”.

É nestas andanças que o horror muda de figura, aqueles militares ficam horrorizados com a tragédia que houve na frente da coluna:
“De súbito, um forte estrondo na direcção em que seguiram as duas viaturas. O nosso Capitão Farias fica lívido e ordena-me: Ó Mendonça, siga você com o seu grupo de combate nas respectivas viaturas e veja-me o que sucedeu. Arranco com o meu pelotão, vamos todos sem pinga de sangue, em silêncio. Nunca mais se escutou qualquer outro rebentamento nem tiroteio de resposta. Os Unimogs voam aos solavancos pela picada adiante. Ao longe, muito ao longe, principiamos a divisar as duas viaturas. Estão imobilizadas. Cada vez nos vamos aproximando mais. Alguns soldados descem dos Unimogs em andamento. Querem, à fina força, ser os primeiros a chegar ao pé das outras viaturas para darem a notícia. E ela vem de imediato: Meu alferes, estão todos mortos na primeira viatura; na segunda não há ninguém, nem rasto de sangue, foram, com toda a certeza, todos apanhados à unha e levados pelos turras.
Tenho a bússola dos sentidos desorientada. Não sei para que lado me hei-de virar. Os mortos já não precisam de auxílio, estão como hão-de ir. O pior são os outros, os da viatura rebocada. Será que fugiram? Será que foram feitos prisioneiros? Os pensamentos atravessam-me a cabeça em farrapos.
Todo eu sou aliás um farrapo. Chega o capitão com o resto da coluna. Vem pálido mas aprumado. Desce do jipão e vai de imediato espreitar os estragos. Após curta vistoria, vira-se para mim e ordena: Alferes Mendonça, nomeie meia dúzia de voluntários para ir para dentro da viatura dos mortos; quero os cadáveres alinhados no estrado da carroçaria. 
Chegámos a Piche à boca da noite. Os outros dez já lá estavam há muito. Fizeram cerca de vinte quilómetros em pouco mais de hora e meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura. O Pombal, soldado condutor da segunda viatura, foi o primeiro a lá chegar. Ao entrar dentro do arame farpado que rodeava o aquartelamento de Piche, caiu redondo no meio do chão. E só deu acordo de si muito depois de termos lá chegado”.

É a hora da despedida de Cristóvão de Aguiar, com outra recordação deste mesmo livro, uma consideração bem difundida sobre as atribuídas valentias do soldado português, sabemos bem o porquê de tal exaltação, uma forma de anfetamina que procurava resultados, e que alguns deu:
“Em campanha, disse-me um dia o segundo-comandante do Batalhão, o nosso soldado é o melhor do mundo. Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele. Veja, nosso alferes, quem são as pessoas que se abalam por problemas psicológicos e têm, na sua maioria, de ser evacuados para a psiquiatria: alguns furriéis milicianos e uma chusma de oficiais do quadro complementar, sobretudo os provenientes das universidades, abarrotados de filosofices políticas e antipatrióticas. O mesmo já não acontece, por exemplo, aos graduados vindos da Academia e dos seminários. Esses são compenetrados de dever e resignação, habituados à dureza e à disciplina da vida, formados no amor à Pátria. Mas é no nosso soldado, bronco e simples, que se encontra o nosso melhor material humano e logístico. Vê na tropa um súbito céu de fartura. Por isso, nosso alferes, nunca viu nenhum soldadinho sofrendo da caixa dos pirolitos. Logo que se lhe dê vinho, rancho e correio a tempo e horas, nada o derrubará”.

O bardo fez recruta e especialidade, que formou Batalhão e rumou para a Guiné, conta as horas difíceis vividas em Bissorã e nos arredores, afinal há temíveis emboscadas, mas nada comparado com o que dentro de alguns meses irá ficar conhecido pelo nome da Batalha do Como.

(continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 5 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19969: Notas de leitura (1196): "SE SENTES NÃO HESITES", por Manuel Clemente; alma dos livros, 2019 (Mário Migueis da Silva)