segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20095: Notas de leitura (1212): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
A Guiné pode gabar-se de possuir, a partir de Gomes Eanes de Zurara, relatos que foram fundamentais, no seu tempo, para dar a conhecer por toda a Europa os contornos da Costa Africana, os seus povos e as potencialidades que se abriam ao comércio e à divulgação da fé cristã.
André Donelha é contemporâneo de André Álvares de Almada, um dos nomes maiores da literatura de viagens sobre a Guiné, se bem que fique um pouco atrás na comparação, é indispensável a sua leitura por razão da etnografia, etnologia e até da antropologia. Um dado curioso para o leitor de hoje, que esteja desarmado perante a essência do que eram as viagens na época, era a fluidez da descrição de todos estes territórios como se todos eles fossem conectáveis, e há mesmo quem proponha que depois das ilhas atlânticas era para aqui que a Coroa devia mandar gente, tais e tantas eram as maravilhas encontradas.

Um abraço do
Mário


Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1)

Beja Santos

Dando continuidade ao que há de melhor da literatura de viagens na Costa da Guiné, desde o século XV ao século XVII, dirigimos a atenção para um relato que, não podendo competir no brilho da observação da obra de André Álvares de Almada, complementa e enriquece muita informação anterior sobre as paragens entre o rio Senegal e a Serra Leoa. O Almirante Teixeira da Mota trabalhou arduamente neste documento e na investigação sobre o autor. Merece com elementar justiça que destaquemos as suas observações.

O pouco que se sabe acerca de vida de André Donelha é aquilo que consta ou se infere do seu escrito sobre a Guiné. Terá passado a infância em Santiago, e pelo facto pode ser considerado um escritor cabo-verdiano, tal como André Álvares de Almada. Esteve, pelo menos, três vezes na Guiné, o que deve corresponder a outras tantas viagens que fez. Encontrava-se embarcado na armada de António Velho Tinoco, Capitão da cidade da Ribeira Grande, quando da batalha que ele travou, vitoriosamente, contra os Franceses, nas proximidades da Aguada das Naus da Índia, no rio da Serra Leoa, em 1574. Na sua descrição, Donelha diz ter conhecido o rei Beca Caia em S. Domingos, o que poderia ter-se verificado nesta viagem de 1574. Em 1581, Donelha esteve no Bruco, morada do rei de Guinala, a fim de vender dois cavalos, observou então a cerca feita com ossos dos Fulas vencidos aí na grande batalha travada no século XV.

Neste tempo o distrito da Guiné estendia-se do rio Sanaga (Senegal) até à Serra Leoa. A Descrição de Donelha esteve séculos no olvido. Consta dos manuscritos reunidos em volume na Biblioteca da Ajuda: “Neste livro se contêm as primeiras relações do descobrimento da Costa da Guiné, Mina, Cacheu, Angola, Congo, Benguela e outros Reinos e Nações; seus costumes, exercício, e de muitas e admiráveis Árvores, Plantas, Animais, Peixes, Minas de Ouro, Cobre, Cristal, Sal, e outras muitas coisas”.

Donelha viajou na Guiné entre 1574 e 1585, foi contemporâneo de André Álvares de Almada. Convém recordar que a corrente da literatura de viagens esboça-se no século XV mas corre pelo leito mais impetuoso nos séculos XVI e XVII, é aqui que tem o seu auge. Está intimamente relacionada com aquilo que Jaime Cortesão definiu como o “humanismo universalista dos Portugueses”, cujas raízes, segundo ele, mergulham no franciscanismo; o nascimento e os primeiros tempos da ordem franciscana foram acompanhados de uma profunda renovação das ciências geográficas e da literatura de viagens, campos em que os franciscanos se notabilizaram.

Entre os portugueses essa corrente traduz-se já, dos fins do século XV para os começos do século XVI, na coletânea de relatos anónimos recolhidos pelo impressor Valentim Fernandes e no Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira. Contrariando o que se verifica nas restantes obras portuguesas destes tempos relativas à Guiné de Cabo Verde, em que a ordem da exposição é sempre de Norte para Sul, começando por o Senegal, Donelha inicia o seu relato com a Serra Leoa. Neste texto vamo-nos cingir aos capítulos 7, referente ao grande imperador Mandimansa e aos seus principais Farins ou reis Mandingas, no capítulo 8, em que Donelha se ocupa do rio Sanaga, ao Cabo Verde e aos Jalofos, matéria que prossegue no capítulo XIX, em que trata mais especialmente do Grão Jalofo; dá-se depois um salto para o capítulo XIV em que se trata da zona entre o rio Gâmbia e o Rio Grande e dos seus habitantes (Cassangas, Banhuns, Bramos e Beafares).

Almirante Avelino Teixeira da Mota
Teixeira da Mota procede a uma comparação entre André Álvares de Almada e Donelha e diz que Almada é marcadamente mais rico em tudo o que se refere ao comércio, sobretudo na enumeração dos produtos e mercadorias, e bem assim na informação etnográfica, que é sensivelmente mais pormenorizada e mais vasta; note-se, por exemplo, que Donelha não fala nos Felupes, e no tocante a povos tão importantes como os Balantas e os Bijagós apenas deles menciona os nomes. Quanto a animais, Donelha é mais rico pois individualiza 39, enquanto Almada só refere 11. Embora em menor grau, também Donelha leva à palma no respeitante a plantas, pois refere 35 ao passo que Almada indica 29.

No manuscrito que nos chegou de Donelha não há qualquer título, Donelha limita-se, no prólogo, a dizer que fez um “memorial” do que viu e soube no decurso das suas viagens. A palavra memorial não é de uso corrente na época: Almada usa Tratado Breve dos Rios (ou Reinos) da Guiné do Cabo Verde, o padre Manuel Álvares emprega Descrição Geográfica da Província da Serra Leoa, fórmula próxima da Descrição da Costa da Guiné, a que Lemos Coelho recorreu nos seus textos. “Inclinamo-nos, por isso, a escolher um título começado também por descrição”. Dá grande explanação à Serra Leoa. À semelhança de outros viajantes, verifica-se que a Guiné de Cabo Verde se estende entre o rio Senegal e um lugar indeterminado, é um território usualmente dividido em três regiões nos documentos da época: Costa do Jalofo, rios da Guiné e Serra Leoa. Posto este admirável elenco de comentários, demos a palavra a André Donelha.

(Continua)
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Último poste da série de 23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)

domingo, 25 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20094: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte III: O respeito pelos homens que comandei (pp. 27-32)


Évora > Fachada do quartel do antigo Regimento de Infantaria 16, atual sede do Comando da Instrução e Doutrina do Exército


Campo Militar de Santa Margarida >  Tem cerca de quatro quilómetros de comprimento. O Batalhão de Caçadores 3880 esteve aquartelado muito aproximadamente a meio deste complexo militar



Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973. Foi substituído pelo cap  mil inf José António Pouille Nobre Antunes. O cap mil inf Mendonça e Silva ingressou no QP e está hoje reformado como coronel de infantaria.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974: esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(ix) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(x) o ficheiro, em formato, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)


por Fernando de Sousa Ribeiro



O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI (pp. 27-32)


O texto que se segue não é a história da minha vida militar, embora pareça. Ele é, isso sim, a explicação para o imenso respeito que me merecem os homens que tive o privilégio único de comandar. Homens que, no princípio, pareciam ser uma cambada de básicos irrecuperáveis, que ninguém quis e que eram considerados a escória da companhia, mas que acabaram por se tornar nos mais valentes, sacrificados, esforçados e generosos combatentes do mundo: o 2º grupo de combate da Companhia de Caçadores 3535.

Os factos que aqui se relatam são absolutamente verdadeiros, sem qualquer ponta de fantasia. A mim mesmo, quando agora os recordo, eles me parecem incríveis, impossíveis de ter acontecido. Mas aconteceram assim mesmo, tal e qual. Juro por tudo quanto tenho de mais sagrado.

Aquilo que viria a resultar no Batalhão de Caçadores 3880 começou por ser um batalhão de instrução no Regimento de Infantaria 16, em Évora. Nessa altura, na minha qualidade de aspirante, fui encarregado de ministrar a especialidade de apontador de metralhadora, enquanto o aspirante Araújo (que viria a ser alferes na Companhia de Caçadores 3536) deu a de apontador de morteiro médio e os restantes aspirantes operacionais deram a especialidade de atirador de Infantaria.

O pessoal ao qual o Araújo e eu demos instrução tinha como destino as mais diversas companhias mobilizadas para o então Ultramar. Terminada a especialidade, portanto, os nossos instruendos foram para as unidades que superiormente lhes foram atribuídas e nós os dois, Araújo e eu, ficamos apenas com os nossos cabos milicianos e mais ninguém.

Deste modo, no início da constituição do nosso batalhão, eu não conhecia nenhum dos soldados e cabos que vieram a integrar a minha companhia. Os outros três aspirantes da companhia, pelo contrário, conheciam quase todos aqueles homens, porque lhes tinham dado a especialidade de atiradores. Já lhes conheciam os méritos e os deméritos, as qualidades e os defeitos, mas eu não conhecia.

No momento inicial de proceder à distribuição dos homens pelos quatro grupos de combate da companhia, o comandante desta, o então tenente miliciano Lamas da Silva, mandou que o pessoal fizesse uma formatura em linha e ordenou:

— Agora os senhores aspirantes façam o favor de escolher os homens que querem.

Eu tentei objetar, procurando dizer ao Lamas que não estava em condições de fazer uma tal escolha, porque não conhecia aqueles homens, contrariamente ao que sucedia com os outros aspirantes. O Lamas da Silva não me deixou falar, interrompendo-me continuamente e insistindo repetidamente comigo:

— Escolhe! Tens de escolher os homens que queres. Os outros aspirantes já estão a escolher. Tu também tens que escolher. Olha que assim ficas com os piores!…

Quanto mais eu procurava explicar-lhe que não estava nas mesmas condições que os outros aspirantes para poder escolher, mais ele me interrompia:

— Escolhe, já disse! Tens de escolher! Sou eu que te mando!

A dado momento, os outros aspirantes deram por finda a sua escolha, sem que eu tivesse escolhido quem quer que fosse e sem que o comandante da companhia me tivesse dado ouvidos. Disse-me este:

— Estás a ver o resultado? Os outros aspirantes já escolheram e tu acabaste por ficar com os piores. Quer gostes, quer não gostes, vai ser com esses que vais ficar. Foste tu que assim quiseste. E não esperes nenhum tratamento de favor da minha parte.

Já só me limitei a responder:

— Pode ter a certeza absoluta de que nunca lhe irei pedir favor nenhum.

Olhei para os soldados e cabos que me estavam destinados e senti-me desfalecer.

Pensei: «Sou um homem morto! É com este pessoal que eu vou para a guerra? Estou morto. Eu com homens neste estado não vou durar nem uma semana em Angola! Já me estou a imaginar a regressar dentro de um caixão…»

O aspeto dos meus novos subordinados metropolitanos era arrepiante. Não admirava que aqueles homens tivessem sido rejeitados pelos outros aspirantes. Alguns deles pareciam atrasados mentais; outros pareciam sifilíticos ou coisa parecida. Todos eles pareciam completamente impróprios para servirem como combatentes numa guerra. Nem um só se aproveitava. Os meus três excelentes cabos milicianos (Silva, Macedo e Santos) pareciam tão aterrados como eu.

«Isto só a mim! Que mal é que eu fiz para merecer isto?», pensava eu e pensavam, certamente, os cabos milicianos. «O que é que vai ser de nós, na guerra, com homens assim? Isto não pode ser verdade. Eu devo estar a sonhar e isto é um pesadelo». Mas não era pesadelo nenhum. Era a realidade, que eu tinha que enfrentar custasse o que custasse.

Completado o batalhão no que à sua parte europeia dizia respeito, fomos enviados para o Campo Militar de Santa Margarida, onde iríamos aguardar o dia da nossa partida para Angola, o que deveria acontecer dentro de perto de dois meses. Achei que, durante esse tempo, talvez ainda fosse possível fazer algum esforço para melhorar a preparação dos soldados e cabos que me tinham calhado em sorte, mas as coisas não se passaram tal como eu esperava.

Naquele tempo, os batalhões e companhias que estavam aquartelados em Santa Margarida, à espera de embarque para as colónias, eram habitualmente ocupados com uma intensa atividade de preparação para a guerrilha, que era a chamada IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Mas o nosso batalhão estava incompleto e, por isso, não podia receber a IAO em Santa Margarida; só depois, já em Angola, é que poderia recebê-la. Assim, enquanto permaneceu em Santa Margarida, o nosso batalhão não teve qualquer atividade superiormente programada, nem qualquer orçamento atribuído para esse efeito. Apenas lhe foram reservados os alojamentos que ocupou até ao dia do embarque e mais nada.

Nestas condições, ao pessoal do batalhão foi sendo dada uma instruçãozinha de meia-tigela, que tinha como única finalidade mantê-lo ocupado com alguma atividade até ao dia do embarque. Fazia-se alguma ginástica, dava-se uma ou outra lição de tática, faziam-se muitas e longas pausas e gastavam-se muitas e longas horas a fazer ordem unida. Ordem unida, imagine-se! Pôr soldados que vão para uma guerra no mato africano a marchar para a frente e para trás, um-dois-esquerdo-direito, durante horas a fio, não lembrava ao diabo! Quem nos visse, diria que íamos para Angola fazer desfiles em parada diante do inimigo! Eu estava exasperado. O tempo urgia cada vez mais e nós estávamos a desperdiçá-lo com aquelas mariquices!

Resolvi então atuar por minha conta e risco, mandar o batalhão à fava e ser eu sozinho a dar aos meus subordinados a instrução de que eles necessitavam com tanta urgência. Se eu viesse a ser punido por não seguir o programa determinado pelo comando do batalhão, pouco me importava. Eu ia para a guerra, pior não me poderia acontecer.

Foi por acaso que descobri uma maneira de levar os meus homens para fora do Campo Militar, para a charneca vizinha, onde lhes poderia ensinar tática militar sem sofrer interferências dos meus superiores hierárquicos. Descobri também que poderia usar a carreira de tiro do Campo, onde o meu pessoal poderia gastar algumas das muitas munições excedentárias que, como vim também a descobrir, havia na arrecadação de material de guerra.

Afastados assim os possíveis obstáculos à minha decisão de ministrar uma espécie de IAO privativa aos meus subordinados, passei a pôr diariamente em prática um programa de atividades, que incluía muita preparação física, muito tiro e, sobretudo, muita tática de guerrilha. Devidamente apoiado pelos meus excelentes cabos milicianos, procurei ensinar-lhes tudo quanto eu próprio tinha aprendido em Mafra.

Aquelas semanas em Santa Margarida foram muito duras para mim. Muitas e muitas vezes me senti profundamente desanimado e com vontade de desistir, pois dificilmente eu conseguia vislumbrar algum progresso na preparação militar dos meus homens. Quando vim gozar os dias de licença que era costume dar, pouco tempo antes do embarque, aos militares que estavam mobilizados para a guerra, ao abrigo das chamadas Normas de Nomeação e de Apoio às Províncias Ultramarinas (NNAPU), sentia-me profundamente deprimido, quase à beira do desespero. Todo o esforço despendido naquela corrida contra o tempo me parecia ter sido inútil.

Mas quando regressei a Santa Margarida no fim da licença e voltei a encontrar os meus subordinados, eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi só após aqueles dez dias de ausência que eu me apercebi, com grande espanto meu, que eles tinham mesmo evoluído, e até de forma verdadeiramente espetacular. Pareceram-me mais aprumados do que os outros, mais rijos do que os outros e mais confiantes do que os outros. Os "sifilíticos" e os "atrasados mentais" de outrora já não existiam mais. «Tenho homens!», pensei, espantado com tão grande transformação. «Como é possível que eu não me tenha apercebido deste milagre antes? Tenho homens!»

De entre os meus subordinados, o soldado Francisco António Danado 
Vaqueirinho [, foto à direita,]  foi o que maior transformação sofreu em Santa Margarida. Ao princípio, parecia um deficiente mental irrecuperável. Depois da licença ao abrigo das normas, nem sequer o reconheci. Tinha-se tornado vivo e esperto como poucos. Ainda hoje me pergunto como foi possível não me ter apercebido da sua evolução.


Um dia, ainda em Santa Margarida, os aspirantes das três companhias operacionais do batalhão, incluindo eu próprio, tomaram em conjunto uma resolução que iria pautar a sua conduta ao longo de toda a sua estadia em Angola. Foi uma resolução tomada espontaneamente e não de forma organizada, mas que valeu como um juramento, em que cada um de nós ficou como testemunha e como futuro juiz dos restantes. Uns perante os outros, tomamos então a seguinte resolução:

«Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Não sabemos sequer se estaremos no lado certo ou no lado errado da guerra. Só em Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos ou não no lado certo, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, iremos procurar agir sempre dentro dos limites morais que a nossa consciência nos impuser. Talvez esta seja uma tarefa impossível de cumprir no meio de uma guerra, não sabemos, mas pelo menos iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para agir de acordo com a nossa consciência, custe o que custar. CUSTE O QUE CUSTAR».

Quando embarquei no avião da Força Aérea com destino a Angola, juntamente com a parte europeia da minha companhia, eu sentia-me fortalecido com a resolução tomada, que estava disposto a cumprir. O mesmo se passava com os outros alferes.

(Continua, "O respeito pelos homens que comandei", pp. 33-42)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

1 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)

12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)

Guiné 61/74 - P20093: Convívios (905): XVIII Encontro do pessoal do Hospital Militar de Bissau, HM 241 (1964/74): Tomar, 5 de outubro de 2019 (Manuel Freitas, ex-1.º cabo escriturário, 1968/70)




Guiné > Bissau > HM 241: facjada do edifício e crachá da unidade. 

Fotos: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Viseu > 5 de outubro de 2013 > XIV Encontro do Pessoal do HM 241, Bissau

Foto (e legenda): © Manuel Freitas (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Manuel Freitas (ex-1.º Cabo Escriturário do HM 241, Bissau, 1968/70; é técnico de seguros, em Espinho e Vila Nova de Gaia:

Data: 20 de agosto de 2019, 12h29


Assunto: 18.º convívio do pessoal do HM 241


Amigo Luís,

A exemplo de anos anteriores, pedia-te o favor de publicares o anuncio  do nosso encontro em Tomar.

A carta que anexo é um exemplar para aqueles que marcaram presença no  ano anterior.

Este ano, a pedido de vários que me telefonaram, vamos estender um pouco mais nos anos, ou seja, abrimos aos que cumpriram a sua comissão entre  1964 e 1974.

Agradecido pela habitual boa atenção,

Um grande abraço,

Manuel Freitas

Freitas-Mediação de Seguros, Lda

ESPINHO
Telefone: 227 31 29 86
Fax: 227 31 97 89
Telemóvel: 96 30 65 065

SÃO FÉLIX DA MARINHA
Telefone: 22 753 42 68
Fax: 22 753 00 89
Telemóvel: 96 30 65 054



18º Convívio do pessoal do HM 241, Bissau, 1964/74 

Data: 5 de outubro de 2019

Local: Cidade de Tomar

Caríssimo:

Mais um ano volvido e aqui estou para dar notícias esperando que te encontres a usufruir da saúde necessária para a tua boa qualidade de vida.

Este ano vamos para Tomar, cidade dos templários, que nos vai acolher no próximo dia 5 de Outubro.

Vamos encontrar uma cidade bonita onde os peixes do Nabão irão vergar-se à nossa passagem.

A concentração será a partir das 11 horas no bar do parque, de toldes vermelhos, com entrada, creio que única, junto a uma Mó (roda) local onde a malta se vai encontrar para aquele abraço de reencontro anual.

Iremos depois para o Restaurante AZUL TERRACE, lugar de Calçadas, situado na estrada nacional,  ali mesmo à entrada da localidade, onde juntaremos o útil ao agradável, confraternizar e alimentar-nos o que, na nossa idade, é uma necessidade e um conforto.

Como sempre acontece, gosto de ir ao local e de entre três hipóteses, optei por este por ser um espaço muito agradável, com as entradas a serem servidas num local aprazível.

Para além das entradas, boas, temos:

(i) Bacalhau à Primavera

(ii) Carne de Porco à alentejana (há alternativa no caso de não apreciarem)

(iii) Bufet de sobremesas e café

(iv) Vinhos, cerveja e sumos

(v) Bolo Alusivo ao ato e espumante.

O custo será de 22,00€.

Para a rapaziada do norte temos o autocarro, a sair, junto à Estação de S. Bento, às 08h00, sendo o custo dividido por todos.

Vou voltar a pedir... não se esqueçam de dar noticias, com tempo, para eu avisar o Restaurante do número de pessoas. Não custa nada facilitar-me a vida, vamos lá.

Os meus contactos mantém-se: 


telemóvel: 964498832 
e email: manuel.freitas@equicontas.com

Até às vossas notícias,

Grande abraço,

Manuel Freitas

Anexo - Lista de habituais convivas:

ALBERTO MARTINS PEREIRA DINIS
AMÉRICO MANUEL DA SILVA CORREIA
AMÉRICO OLIVEIRA JARRAIS

AMÍLCAR MOTA RIBEIRO PEREIRA
ANTÓNIO ABEL MATOS COLUMBANO
ANTÓNIO BRINCA JUSTINO
ANTÓNIO MALHEIRO
ANTÓNIO RAMALHO DA SILVA RODRIGUES
ANTÓNIO RIBEIRO AMORIM
ANTÓNIO SANTOS DUARTE ALMEIDA
ARMINDO ENCARNAÇÃO RODRIGUES DA SILVA
ARNALDO LEITE TEIXEIRA

CARLOS ALBERTO BRAVO PEREIRA
CASIMIRO VIEIRA DA SILVA
CELESTINO SOUSA VIEGAS RIBEIRO

DOMINGOS DA SILVA FARIA

FRANCISCO AVELINO FERREIRA
FRANCISCO ALVES COELHO RIBAS
FERNANDO FRANCISCO SANTANA
FERNANDO TAVARES ZACARIAS
FRANCISCO JOSÉ VITORINO GUALDINO

HILÁRIO RIBEIRO MOREIRA

ISRAEL MATOS DIAS

JAIME FERREIRA TAVARES
JOÃO BARROS GERTRUDES
JOAQUIM SÁ FERREIRA
JOAQUIM DOS SANTOS LAGOA
JOSÉ LUÍS NORTON DIAS SANTOS
JOSÉ MATEUS CALISTO DAS NEVES

MANUEL FERNANDO CORREIA ALMEIDA
MANUEL RESENDE SOARES
MANUEL SANTOS ALVES
MANUEL TOMAS RODRIGUES DE FREITAS
MÁRIO ENCARNAÇÃO SANTOS

NELSON MIGUEL MAGALHÃES

SERAFIM FERREIRA VAZ DA SILVA

VICTOR (LOURINHÃ)
VIRGOLINO MARTINS MADEIRA

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Guiné 61/74 - P20092: Parabéns a você (1672): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor:

Último poste da série de 24 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20089: Parabéns a você (1671): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

sábado, 24 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20091: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (13): Hoje faz anos, 73, o António Fernando Marques... Porque recordar é viver duas vezes, e blogar é três... Relembramos o fatídico dia, 13/1/1971, em que o PAIGC nos quis mandar para os anjinhos... O meu querido Marquês, sem acento circunflexo, tem filhos, netos, amigos e camaradas que o adoram... E o Mário Mendes, morto de morte matada 16 meses depois... será que alguém ainda o recorda na sua terra natal? (Luís Graça)


Guiné > Região de Bafatá  > Setor L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72) > Janeiro de 1971 > Cemitério de viaturas de Bambadinca... O estado em que ficou o "burrinho", o Unimog 411, conduzido pelo sold cond auto, da CCAÇ 12, António Manuel Soares, que teve morte imediata.

Nhabijões era um grande aglomerado populacional, de maioria balanta, com parentes no "mato", e que era considerada sob "duplo controlo"... A dispersão das diversas tabancas (1 mandinga e 4 balantas: Cau, Bulobate, Dedinca e Imbumbe), sua proximidade ao Rio Geba, fazendo ponto de cambança para a margem direita (Mato Cão, Cuor...) e as duas grandes bolanhas (um delas a de Samba Silate, uma enorme tabanca destruída e abandonada no início da guerra), foram motivos invocados para começar a construir, a partir de novembro de 1969, um dos maiores reordenamentos da Guiné no tempo de Spínola. A aposta era também a conquista da população, fugida no mato e sob controlo do PAIGG, vivendo ao longo da margem direita do Rio Corubal (desde a Ponta do Inglês até Mina / Fiofioli).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. (Editada e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. O António Fernando Marques, empresário, reformado, natural de Abrantes, residente em Cascais, nosso grã-tabanqueiro, faz hoje 73 anos... 

Foi meu camarada de infortúnio, era fur mil at inf, pertencia como eu à CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Vivemos no mesmo quarto, fizemos muitas operações juntos. É um amigo que muito prezo.Chamava-lhe, por brincadeira, o "Marquês sem acento circunflexo".

Esteve 17 dias em estado de coma, no HM 241, e 2 anos hospitalizado, em Bissau e em Lisboa, em 1971/72... Penitencio-me de nunca o ter ido ver ao Anexo do Hospital da Estrela, em Campolide, durante anos perdemos o contacto!... Voltei a revê-lo em 1994, no 1.º encontro do pessoal de Bambadinca, em Fão, Esposende. O nosso blogue ajudou-o a reconstituir esses 17 dias que passou no inferno, um presente envenenado do comandante do PAIGC, Mário Mendes (que morreria mais tarde de morte matada, em 1972, sem completar as 28 luas).  Trágica ironia: foi morto pelos mesmos homens, os do nosso 4.º Gr Comb / CCAÇ 12, a quem calhou uma das minas A/C mandadas pôr por ele, à porta do reordenamento de Nhabijões. Se fosse vivo, diria, em conversa connosco, em Bissau, com a voz de guineense: "Mas... guerra era guerra!"... "Pois é, Mário, sempre e em toda a parte, guerra é guerra!"...

Ele, Marques,  acha que me deve a vida, a mim, e eu, Henriques,  estou-lhe grato pelas mesmas razões. Afinal, se  estou vivo, é porque, suprema ironia,  eu ia no "lugar do morto"... Fui eu que o levei, num correria louca, até ao heliporto de Bambadinca... No lugar dele, não sei se teria sobrevivido... Além disso, ele teve um extraordinário anjo da guarda, de nome... Gina! (*)

Um minuto antes da fatídica mina A/C que nos ia mandando para os anjinhos, disputávamos amigavelmente o "lugar do morto", ou seja, discutíamos sobre quem ia à frente, na GMC, ao lado do condutor... Depois da habitual cantilena, "vais tu, vou eu, vais tu"... ele foi para trás, e eu sentei-me à frente... Azar o dele, sorte a minha: ele ia justamente por cima da dupla roda da GMC do lado direito, que fez accionar a maldita mina... Em 13 de janeiro de 1971, aos 20 meses de Guiné. Aqui fica, em sua homenagem, o filme dos acontecimentos (**).

Recordar é viver duas vezes, e blogar é três (***).

Recordo que foi o  comandante Mário Mendes, em pessoa,  e com o sapador do  seu bigrupo,  que nos pôs essas duas minas A/C, à saída do reordenamento de Nhabijões, acionadas por viaturas nossas em 13/1/1971...  Para o Marques a guerra iria durar mais 2 anos, no calvário dos hospitais... Por sorte, esse não foi o meu dia de azar: ia à frente, o Marques ia atrás, em cima da viatura com 2 secções... Eu estava na altura no 4.º Gr Combate, o mesmo que nos vingaria, matando o  Mário Mendes num duelo fatal, em pleno mato... Um ajuste de contas, a lembrar os filmes do faroeste da nossa infância... 16 meses depois, já eu estava há muito na metrópole!... O Marques está vivo, e tem filhos, netos e amigos que lhe dão hoje os parabéns por estar vivo e de boa saúde... O Mário Mendes, que lhe rouba 17 dias de hoje (em que o Marques esteve em coma), já não está entre os vivos... Será que tem alguém, na sua Guiné natal, que se recorde dele ? (****).


História da CCAÇ 12 (1969/71) > (19) Janeiro de 1971: 1 morto de 6 feridos graves aos 20 meses

O dia 13 seria uma data fatídica para as NT, e em especial para a CCAÇ 12 cujos quadros metropolitanos estavam prestes a terminar a sua comissão de serviço em terras da Guiné. Eis o filme dos acontecimentos:


Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Da esquerda para a direita, os ex-furriéis milicianos António F. Marques e Luís M. Graça Henriques, da CCAÇ 12 (1969/71), em amena conversa ou talvez disputando amigavelmente o "lugar do morto" (que era ao lado do condutor).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. (Editada: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

(i) às 5.45h o 1º Gr Comb detectou, durante a batida à região de Ponta Coli [, subsetor do Xime,] vestígios dum grupo IN de 20 elementos vindos em acção de reconhecimento aos trabalhos da TECNIL na estrada Bambadinca-Xime e locais de instalação das NT;

(ii) às 11.25h, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, uma viatura tipo Unimog 411, conduzida pelo sold comd auto Manuel da  Costa Soares, da CCAÇ 12, que ia buscar, a Bambadinca, a 2ª refeição para o pessoal daquele destacamento, accionou uma mina A/C;

(iii) o condutor teve morte instantânea: ficaram gravemente feridos um oficial (CCS / BART 2917), o alf mil Luís sapador Luís R. Moreira, um sargento,  o fur mil Joaquim Fernandes (CCAÇ 12) e uma praça (CCS / BART 2917);

(iv) imediatamente alertadas as NT em Bambadinca, o Gr Comb de intervenção (4º, CCAÇ 12) recebeu a missão de seguir para o local a fim de fazer o reconhecimento da zona, enquanto outras forças acorriam a socorrer os sinistrados.

Ao chegar junto da viatura minada, o cmdt do 4° Gr Comb, o alf mil cav José António G. Rodrigues, [, já falecido, depois do regresso a Portugal, era funcionário da Segurança Social, em Lisboa] deixou duas praças a fazer a deteção, na estrada e imediações, de outros possíveis engenhos explosivos, no que foram apoiados por alguns elementos do destacamento de Nhabijões, seguindo depois uma pista de peugadas recentes, detectadas nas proximidades, e que se dirigiam para a orla da mata.

Aqui, a 50 metros da estrada, atrás duma árvore incrustada num baga-baga, encontraram-se vestígios muito recentes. Seguindo os rastos através da mata, foi dar-se à antiga tabanca de Imbumbe, um dos cinco núcleos populacionais de Nhabijões, entretanto transferidos para o reordenamento, mas nas proximidades do reordenamento, em Bolubate, aqueles passaram a confundir-se com os do pessoal que trabalhava na bolanha.

Regressado ao local das viaturas, o Gr Comb pelas 13.30h recebeu ordens para recolher, tendo o pessoal tomado lugar no Unimog e na GMC em que tinha vindo. Esta última [onde vinham as secções, comandadas pelos fur mil António Fernando Marques e Luís M. Graça Henriques], entretanto, ao fazer inversão de marcha, e tendo saído fora da estrada com o rodado traseiro, accionaria uma outra mina A/C colocada na berma, a 10 metros da anterior, e que não havia sido detetada pelos picadores.

Em resultado de terem sido projectados, ficaram gravemente feridos o fur mil Marques e os sold Quecuta, Sherifo, Tenen e Ussumane, todos do 4º Gr Comb / CCAÇ 12.

Sofreram escoriações e traumatismos de menor grau o alf mil Rodrigues, o sold trms Pereira e os sold Cherno e Samba.
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P20090: Os nossos seres, saberes e lazeres (349): Tavira, a encruzilhada de civilizações (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Era o embaraço da escolha, tal a oferta farfalhuda de núcleos museológicos, de ermidas, igrejas e exposições. Vir a Tavira e não pôr o nariz no Palácio da Galeria é como ir a Roma e não visitar os museus do Vaticano. O Palácio da Galeria/Museu Municipal de Tavira tem valor excecional, no subsolo temos vestígios da presença fenícia, depois há as molduras góticas, o edifício está moldado pela moderna estética renascentista. Nele habitaram os Aragão de Sousa, família nobre ligada à defesa das praças lusas do Norte de África, durante o século XVI, estas praças muito contribuíram para momentos áureos de Tavira. Há depois os elementos barrocos, está preservada a Galeria Quinhentista. Palácio recuperado e adaptado para fins culturais em 2001, é aqui que venho visitar mestre Almada Negreiros e daqui o viandante irá partir, bem consolado, percorrendo o centro de Tavira à beira rio, dia de sorte, culminou com um poente mediterrânico.
É assim a vida, a surpresa com que não se contava na viagem.

Um abraço do
Mário


Tavira, a encruzilhada de civilizações (2)

Beja Santos

Entra-se no Museu Municipal de Tavira/Palácio da Galeria para ver a mulher representada por Almada Negreiros, nada menos nada mais do que 55 obras, desenhos e pintura, a larga maioria pertencentes ao acervo da coleção moderna do Museu Calouste Gulbenkian, bem assim como excertos da sua obra literária e textos publicados nos jornais e revistas da época. A exposição visa mostrar a representação da mulher com um “olhar moderno”.




A curadora da exposição prestou declarações a uma agência noticiosa ao tempo da exposição tendo dito que “o olhar sobre a mulher ao longo da história da arte ocidental é um olhar masculino e aqui também não fugimos a essa regra. Estamos a falar de um homem que olha a mulher, que a retrata e que a torna objecto da sua pintura, do seu desenho ou da sua obra literária”. A curadora lembrou que Almada foi “um artista que abraçou a modernidade, que quis ser moderno acima de tudo, representou uma mulher emancipada”. E, mais adiante: “As mulheres já não são só objectos de contemplação ou representadas como passivas na obra dele, vamos sistematicamente encontrar mulheres activas, mulheres desportivas – sobre as quais aliás ele escreve também –, mulheres bailarinas, cantoras, e que não estão em nenhuma posição necessariamente subalterna, pelo menos não são mostradas dessa forma e isso, mostrá-las de maneira diferente, era também sinal de modernidade”.




Almada Negreiros (1893-1970) viveu as primeiras décadas do século XX – período a que pertencem as obras expostas, enalteceu nos seus trabalhos este fenómeno da emancipação da mulher, por vezes associada a uma certa libertação de costumes e a uma vida boémia dos chamados anos loucos de 1920.

Um óleo célebre de Almada em que se representa com a sua mulher, a pintora Sarah Afonso.



Exposição magnífica, se é necessário adjetivar o que tão impressivas imagens oferecem ao leitor. Tavira tem presença fenícia, muçulmana, vestígios medievais, tem marcas do tardo-gótico e de um majestoso barroco, isto para já não falar de palácios e habitações solarengas de grande porte, algumas delas flanqueando o Rio Gilão, a caminho da Ria Formosa. Vamos passear, há um pôr do sol magnífico que espera por nós.





É fascinante descer do Palácio da Galeria até chegar aqui, onde o Rio Gibão vai abraçar a Ria Formosa, o viandante é um sortudo, com o dia e a hora, um poente magnífico no dia cálido, apetece caminhar mais para ganhar apetite para um jantar de peixe. E depois preparar, entre estes cheiros de maresia o dia de amanhã, o último em Tavira, mas sempre com uma enorme vontade de regressar.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20067: Os nossos seres, saberes e lazeres (348): Tavira, a encruzilhada de civilizações (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20089: Parabéns a você (1671): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20086: Parabéns a você (1670): Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689 (Guiné, 1967/69)

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20088: Manuscrito(s) (Luís Graça) (169): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte I - O rio Grande...



Lourinhã > c. 1940 > Ponte sobre o Rio Grande, na avenida de António José de Almeida... Foto (ou coleção) de Francisco Fernandes. Cortesia da página no Facebook Lourinhã noutros tempos, mantida pela ADL - Associação para o Desenvolvimento da Lourinhã.



Manuscrito(s) (Luís Graça) Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares > 

Parte I: O rio Grande



Da serra, azul, de Montejunto às dunas da Praia da Areia Branca,  corria o rio, Grande, da tua infância.  Era grande só de nome,  era grande à tua escala, quando eras menino e moço,  e nele brincavas, apanhando enguias, com o teu pai...

Lembras-te ?  Usavam um velho chapéu de chuva, preto, esburacado, como se fosse um camaroeiro.

Só era verdadeiramente grande quando violento,galgando casas e campos,  o rio, Grande, da tua infância.

Até Deus ficava isolado na igreja do convento,  Deus, os presos da cadeia comarcã e a mestre escola e as bancas de peixe e hortaliça do mercado municipal e o matadouro e o quartel dos bombeiros.


Nos dias de inundações e enxurradas,  fazia se gazeta à escola, à catequese e à missa, e era uma festa para os putos. Tomara que chova três dias sem parar!, cantarolava a miudagem em coro...

Lembras-te como era larga a foz do rio e grandes as férias grandes de verão, uma eternidade, duravam enquanto durasse o pião.

E havia uma ponte de madeira, com as Berlengas, ao largo, e o cabo Carvoeiro, ao fundo, e, mais longe ainda, onde o sol se punha, o mar, medonho, revolto, dos teus avoengos,  desaparecidos entre as brumas da memória das Índias e dos Brasis, e o cacimbo matinal das bolanhas das Guinés.

Talvez houvesse, também, senhoras de chapéu alto,  magras, elegantes, citadinas, lisboetas, passeando em barcos a remos e fumando, imagina!,  cigarros de boquilha.  Já não te lembras dos barqueiros, passados todos estes anos. Mas devia haver barqueiros, no rio, Grande, da tua infância, como no rio Sena, em Paris,  e nos quadros do Renoir.

Dizem que os vivos voltam sempre ao local do crime onde nasceram e viveram. Mas um dia o tsunami do esquecimento  irá varrer a tua praia, as tuas dunas, o teu rio, o adro do recreio da tua escola, a tua rede neuronal, o teu álbum de fotografias, amarelecidas, dos rios  Geba e do Corubal, e os lugares da infância onde tu poderias ter sido feliz.

Mas quem sabe se foste feliz ou se poderias tê-lo sido ? Felizmente que não há escalas de medição da felicidade, válidas e fiáveis, e esse exercício é uma pura inutilidade,  o das palavras cruzadas da felicidade.

Dizia-se que o rio, Grande, da tua infância era navegável no tempo dos fenícios, romanos, visigodos, mouros e francos, mas não era rio, era braço de mar, indomável, braço armado do terrível poder de ditar as leis da vida e da morte, de fecundar a terra, de lavrar o mar, de povoar os vales e os cabeços, e de semear os cemitérios.

Nasceste a ouvir o mar, o barulho do mar e dos moinhos de vento que te deixaram os árabes, dizem uns, ou os flamengos, dizem outros, não sei o que está inscrito no teu ADN, mas se Deus te marcou é porque algum defeito te achou.

Batizaram-te cristão, na pia da igreja, gótica, do castelo, que foi românica,  e como antes terá sido mesquita mourisca ou capela visigótica, e, muito antes ainda, templo romano ou anta, dólmen, menir.

Perdeste-te, por amores e guerras, no caminho sul de Santiago e chamaram Grande ao rio da tua infância.

Em noites de pavor palúdico, na Guiné, imaginavas-te numa piroga louca, à deriva, pelo rio Grande de Buba das tuas geografias emocionais.

Nascia, pensavas tu, em Montejunto o rio, Grande, da tua infância,  e era azul a serra, vista do mar.  Mas tu nunca soubeste, em menino, o que ficava por detrás do horizonte. Por detrás de uma serra ficava outra serra, explicava-te a senhora professora de geografia, da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu.

Era curto o horizonte dos meninos da tua rua, a rua do Castelo que terminava no cemitério, o terminal da morte. Nunca foste, na camioneta do João Henriques, espreitar o que ficava por detrás da serra de Montejunto.  De um lado o mar, que era muito maior que o pobre rio, Grande, da tua infância; e do outro a silhueta, azul, da serra, pontuada de moinhos brancos.

Que afinal não era tão alta, a serra, como tu a vias da torre de menagem dos teus castelos de brincar às guerras de mouros e cristãos. Ou quando ias pescar enguias no rio, Grande, da tua infância.

Hoje sabes que já não há enguias no teu rio e que tudo é à escala  do nosso infinitamente pequeno e humano. E que só Alá, dizem, é grande.

Lourinhã, 10 de maio de 2015. Revisto.

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)

Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Seria de toda a conveniência que aqui se vazassem comentários dos confrades que participaram ou que acompanharam de perto a Operação Tridente. A história da Unidade, a do BCAV 490, gentilmente emprestada pelo Carlos Silva, é muito parcimoniosa, remete para um anexo que não tenho. Há o "Tarrafo", de Armor Pires Mota, há este documento que ora se apresenta, temos o depoimento do António Heliodoro, a que se irá fazer referência, apareceu no volume Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da Guerra Colonial, de Nuno Tiago Pinto, A Esfera dos Livros, 2011. Apelo, pois, a contributos que possam constituir o outro lado do espelho que é a poesia do Santos Andrade.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (20)

Beja Santos

“Morreram dois fuzileiros
muitos rapazes atingidos
precisamente noutra altura
Baía e Ameixa foram feridos.

Foi antes do meio-dia
que os fuzileiros foram ao mato
onde houve o grande contacto,
que com o fogo se estremecia,
lutando com valentia
foram feridos muitos companheiros.
Os bandidos traiçoeiros
deviam ser degolados.
Por causa desses malvados
morreram dois fuzileiros.

Quando o ataque principiou,
daquilo já se esperava,
a retirar obrigava
a força que os enfrentou.
Feridos às costas se carregou
havendo muito gemido.
O helicóptero foi pedido
levando os feridos para Bissau.
Entre Cauane e S. Nicolau
muitos rapazes foram atingidos.

Quando um caça patrulhava,
os bandidos fogo faziam
até que o atingiam
e no chão se despedaçava.
Tudo se incendiava:
gasolina, óleos e pintura.
O piloto sofreu amargura,
ao ficar todo queimado
e foi este caso passado
precisamente noutra altura.

Em S. Nicolau quiseram
resistir dois pelotões.
Como noutras ocasiões
avançar nunca puderam.
Muita rajada lhes deram.
Aquilo foi um castigo,
devido a tantos inimigos
retiraram do matagal,
mas na retirada, às 9 e tal,
Baía e Ameixa foram feridos.”

********************

Em 2019, a editora QuidNovi deu à estampa um conjunto de volumes sobre a guerra colonial. O quinto volume destacava a Operação Tridente, desenhada no maior sigilo. Os comandantes das unidades envolvidas no ataque apenas foram informados de todos os planos escassos dias antes do embarque. Os próprios oficias subalternos só souberam da ordem e do objetivo militar na véspera do Dia D. Foram 71 dias o tempo da operação. Ao fim de 48 dias de combates, as tropas portuguesas intercetaram um estafeta com uma carta de Nino Vieira, escrita à máquina e destinada a dois importantes chefes de guerrilha, Rui Djassi e Domingos Ramos, eram a prosa de aflição, Nino precisava de reforços, e concluía: “Tenho encontrado uma situação muito grave. As tropas estão aumentando cada vez mais as suas forças, tanto como terrestres, aviação e também por meios marítimos. Camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem guerrilheiros aí, já estamos a contar com a baixa de 23 camaradas durante todos estes dias dos ataques”.

Vejamos o essencial deste texto sobre a Operação Tridente, tal como consta neste quinto volume das Edições QuidNovi. Na véspera do ataque, a artilharia portuguesa instalada em Caiar flagelou sem descanso toda a região norte das ilhas de Caiar, Como e Catunco. Os guerrilheiros acreditavam que esse seria o local de desembarque. Enganaram-se. As forças envolvidas na Operação tomaram as ilhas de assalto pelo lado sul. Os desembarques decorreram sem um único tiro. O Dia D, 15 de janeiro de 1964, precisamente às 8.30 horas, os fuzileiros especiais pisaram a zona de combate: o destacamento 7, comandado pelo Primeiro-Tenente Ribeiro Pacheco desembarcou num ponto da ilha Caiar enquanto o destacamento 8, sob as ordens do Primeiro-Tenente Alpoim Calvão chegava a um outro local na ilha do Como. A missão destes fuzileiros era estabelecer cabeças de praia que permitissem o desembarque das companhias de cavalaria, que vinham em três agrupamentos. O agrupamento A, comandado pelo Major Romeiras, tinha ordens para seguir imediatamente para a tabanca de Caiar. O agrupamento B, sob o comando do Capitão Ferreira, tem por objetivo Cauane, aqui se darão os primeiros combates, as tropas portuguesas atacam com fogo morteiro ao mesmo tempo que a Força Aérea bombardeia. A primeira baixa é um T6 abatido pelos guerrilheiros. O comandante do DFE8, Alpoim Calvão, toma uma decisão arriscada: à cabeça de um grupo de fuzileiros entra na mata densa e começa a desalojar a guerrilha. O agrupamento C está sob o comando do Capitão Anselmo, sobe o rio de Catunco, tomam Catunco Papel e Catunco Balanta sem oposição da guerrilha. O agrupamento D, sob o comando do Primeiro-Tenente Faria de Carvalho desembarca na costa leste de Catunco, nas margens do rio Cumbijã. O comandante da Operação Tridente está ainda a bordo da fragata Nuno Tristão. Concluída a primeira fase da Operação, as unidades ocupam posições de combate, inicia-se a segunda fase que se prolongou até ao dia 24, nas ilhas de Caiar, Como e Catunco combate-se violentamente, fazem-se batidas, são feitos alguns prisioneiros, na ilha do Como as forças do PAIGC flagelam severamente, em Catunco não se encontram guerrilheiros mas foram descobertos depósitos de arroz e muito gado. Estamos já na terceira fase, o Tenente-Coronel Cavaleiro desceu ao terreno, as tropas de cavalaria, os fuzileiros especiais, o grupo de comandos, o pelotão de paraquedistas estão todos em ação.


Vejamos o relato dos acontecimentos como são descritos neste livro:
“Os portugueses conseguiram integrar-se progressivamente na mata, pelo sul, pelo norte e pelo lado oeste. A artilharia e a Força Aérea bombardeavam à noite pontos suspeitos na mata. Os militares localizaram e destruíram dois grandes acampamentos das forças do PAIGC. Foram arrasadas as tabancas de Cauane, S. Nicolau, Curcó, Cassaca, Samane, Uncomené, Cachida e Cachil. O mais violento dos combates, na mata de Cassaca, decorreu entre as seis da manhã até às quatro da tarde.
A 24 de Março, ao fim de 71 dias de operação, o Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro podia cantar vitória. Os grupos de guerrilha, incapazes de susterem os ataques portugueses, estavam em fuga. Foram arrasadas praticamente todas as tabancas das ilhas de Caiar, Como e Catunco”.

As forças portuguesas regressam ao continente, é decidido criar um destacamento em Cachil. O bardo irá depois falar-nos de Farim. Por ora, vamos continuar a desfiar a sua lírica em pleno Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20074: Notas de leitura (1210): A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo, Grupo de Pesquisa Sobre a Descolonização Portuguesa; Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1979 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20086: Parabéns a você (1670): Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689 (Guiné, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20083: Parabéns a você (1669): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Guiné, 1969/71)

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 22 de abril de 2017 > Frente à igreja do convento de Santo António (finais do séc. XVI), com a sua torre sineira e o relógio (que esteve muitos anos avariado),  uma réplica de "Stegosaurus" (7 m de comprimento, 3,4 de altura)... Este e outros dinossauros da Lourinhã evoluiram  no Jurássico  Superior (c. 150 milhões de anos).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Cadaval > Vilar > Vila Nova > Serra de Montejunto > 20 de agosto de 2015 > O belíssimo  moínho do Miguel Nobre, no alto da serra... Dizem que é que é "o mais alto" da península ibérica, dos moinhos ainda a funcionar.

Daqui tem-se uma vista fantástica sobre o mundo, ou pelo menos sobre o meu/nosso oeste estremenho, do rio Tejo à serra de Sintra, o oceano Atlântico, as praias de Torres Vedras, Lourinhã, Peniche,  as Berlengas, a Serra dos Candeeiros... Está-se mais perto do céu e eu, da minha infância onde havia muitos moinhos e cabeços. Mas o mais fascinante é o moinho, o moinho de Aviz, e o seu dono, sem esquecer naturalmente a serra de Montejunto e os seus miradouros. O moinho, que ostenta o símbolo Aviz nas suas velas, estava em ruínas há uns anos atrás,  foi reconstruído e é hoje uma beleza de se ver... Tudo somado, ficou-lhe em cerca de 200 mil euros, o preço na altura de um bom apartamento em Lisboa... Infelizmente, mais recentemente o Miguel teve um AVC... Está recuperar e a lutar contra o infortúnio. O amor aos moinhos de vento tem-no ajudado a superar este problema de saúde. Um grande abraço para ele e para os meus amigos do Cadaval, Céu e Joaquim Pinto Carvalho,  que lá me levaram.

 Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]

Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]

91. O chiqueiro, o quinteiro, o curral, mais as galinhas, os pintos, os perus, os coelhos, os patos, os gansos, a coquicha, a galinha pedrês não-a-mates-nem-a-dês, a retrete de madeira, na casa dos teus tios do Nadrupe, as batatas comidas em comum, numa travessa que tinha um cavalinho ao meio, e que ainda não era o cavalo da GNR, louça de Sacavém, barata, para o povo, o terceiro estado, o mísero estado.

E nada de alvoraçá-lo, sangrai-o e sangrai-o e, se morrer, enterrai-o.

92. O vinho dava de comer a um milhão de camponeses que eram todos os habitantes da tua aldeia.

Lembras-te de vomitar a ceia, em dia de matança do porco, quando o teu pai chegou, à noitinha, de motorizada, a anunciar a vinda de mais um herdeiro, o terceiro, era menina e chamava-se… Inha.


93. Se havia uma idade da inocência era quando se subia à portentosa figueira da ti Elvira e do ti Manel da Quinta, da Quinta do Bolardo, e se partia a cabeça, e se descobria o sangue, não o de Cristo, mas o teu sangue, que não era frio e azul, era espesso, quente e vermelho.

Faziam inocentes tropelias, brincavam aos índios & cobóis no meio da vinha do Senhor, tomavam banho, nus, nas tinas de fazer o vinho, os meninos do campo e da cidade, da vila e da aldeia, e dormiam com primas mamalhudas em camas de ferro e colchões de palha e travesseiros de barbas de milho.


94. Até um dia em que no calendário deixou de haver o domingo à tarde, e o cão a uivar na vinha vindimada do Senhor, morreu o ti Silvano, de morte súbita, assim de repente, em plena força da vida, sem tempo para chamar nem o médico nem o padre, muita saúde, que Deus não dava tudo!, ameaçava o coadjutor do padre vigário, e confirmava o facultativo, o doutor das Beiras, que veio casar com a menina rica da tua aldeia.

95. Lembras-te dos gritos lancinantes das mulheres, das tias, das primas, da tua mãe, o último adeus, o muro rente do cemitério, as campas rasas dos fiéis defuntos, as cruzes de latão, as flores murchas, o talhão dos anjinhos que iam para o purgatório!... Tu, sem deitares um lágrima, siderado, colado ao chão!

Ainda não havia flores de plástico, nem muito menos sabias tu o que era a morte, só a do porco, e Deus era pai, infinitamente misericordioso, e o padre vigário (que sucedeu ao que te batizara na igreja do Castelo,) tinha para tudo uma explicação, até para o absurdo da vida e da morte dos pobres de Cristo, da morte dos tios queridos em plena força da vida, ou para a dor das pobres crianças inocentes, e que nem batizadas tiveram tempo de ser, a não ser talvez pela parteira aparadeira, a verdade é que tu nunca mais foste capaz de lá ir à noite brincar, para o adro da igreja do Castelo, ao lado ao cemitério, que bastava o sinistro pio da coruja, no alto da torre sineira, e os fogos fátuos de verão, para o sangue nas veias te gelar!


96. Deixou de haver domingo à tarde, e a inexplicável magia da infância, bordaram-te o enxoval, as meninas da rua do Clube, uma rua abaixo da tua, aos serões, as meninas do ti Louçã, que era pintor de portas e janelas, tetos, paredes e tabuletas, as meninas costureirinhas, tuas vizinhas, meteram-te na camioneta dos Capristanos, nunca soubeste quem, com destino ao seminário de Santarém, antigo palácio real, medieval e depois colégio dos jesuítas, tu e o teu baú, terrivelmente sozinho ante os dilemas da fé, da vida, da carne, do pecado, da morte, da ressurreição e do esplendor da vida eterna, amén!, ali especado, aterrorizado, num corredor pavorosamente alto e comprido, mais alto e mais comprido do que a tua rua dos Valados, e as paredes cobertas de retratos de reis e rainhas e de azulejos com contavam histórias que só podiam da ser da bela vida que levavam os reis e as rainhas, entre caçadas e danças palacianas.

97. Lá atrás ficava o mar, a Atalaia e o Mont’oito, a P’ralta, a Areia Branca, o Porto das Barcas e os casais de Porto Dinheiro e a Ribamar dos teus antepassados Maçaricos, e os fantasmas dos corsários que infestavam a costa, assaltavam, roubavam, violavam, matavam, queimavam, faziam reféns, para trás ficava o relógio, sonolento, da torre da igreja matriz, a vinha vindimada do Senhor, o piar da coruja, os fogos fátuos, os terrores do inferno e da castração, e os sardões que se apanhavam com anzol e pedaços de pão embebidos em leite na parede do cemitério, restos da antiga muralha do castelo que fora alcáçova e antes castro ou dólmen ou promontório.

E a história era isso: sedimentos e sedimentos sobrepostos, o pouco que restava da passagem de tantos povos que se matavam e enterravam uns aos outros.

98. E as primeiras beatas fumadas às escondidas, e os putos todos em fila a mijar contra a parede do cemitério, e a medir o tamanho das pilas, e os primeiros nomes das putas da tua terra, segregados ao ouvido pelos mais velhos, o "Frasco do Veneno", que era teu primo, em segundo grau, e que há emigrar, sem retorno, para o Brasil, e que te ensinou todas as asneiras do teu vocabulário de carroceiro, cada uma custando-te depois muitos valentes puxões de orelhas da tua mãe, e um ror de rosários, avé-marias, padre-nossos, e salvé-rainhas, pesado castigo do teu confessor.

99. E o moinho do T’chico Moleiro e os ventos que sopravam nas velas e nas cabaças, numa sinfonia agoirenta, e a amante do moleiro que vigiava os putos que lhe iam roubar as pêras, as uvas e as ameixas, o terror e a magia, enfim, das pequenas e grandes coisas da vida quando já se tem dez anos feitos, a 4ª classe e o exame de admissão ao liceu.

100. Levaste contigo a tela do Brugel , o Velho, como se fora uma cruz, pesada, tê-la-ás perdido para sempre quando te sentiste estrangeiro como o Camus, na tua própria terra. 


Ou então, deixa-me adivinhar: enterraste-a, definitivamente, na guerra, lá nas bolanhas ou na florestas-galeria da Guiné, entre os mais pobres dos pobres, os teus camponeses fulas pretos da Guiné.

Ou talvez nem isso: nunca te libertarás dela, dessa tela da infância, um caleidoscópio cheio de pictogramas, a não ser talvez através do exorcismo da memória e da escrita.

Fim


Lourinhã, 10/11/2005. Revisto.


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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)

21 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)