Cópia de nota de punição (dois dias de prisão simples) fixada, em 18 de Fevereiro de 1969, pelo tenente-coronel Hélio Felgas, comandante do Agrupamento de Bafatá, ao Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, por durante a visita do Comandante-Chefe "ter apresentado o seu aquartelamento em fracas condições de defesa e em deplorável estado de limpeza, arrumação e asseio".
Cópia da nota de punição do comandante do BCAÇ 2852, tenente-coronel Pamplona Corte-Real, com data de 4 de Agosto de 1969, em que se diz: "Sua Excia. o Comandante Militar (...) considerou em parte procedente o recurso apresentado pelo Sr. Alferes Miliciano Mário António Gonçalves Beja dos Santos, do Pel Caç Nat 52, mantendo o castigo e reformando a redacção do mesmo que passa a ser seguinte: (...) por tendo-lhe sido chamada a atenção para as deficientes condições de defesa e limpeza existentes no seu aquartelamento, não ter dedicado o máximo do seu interesse à resolução de tais problemas"...
Fotos dos documentos originais: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Texto enviado em 23 de Janeiro de 2007. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.
Quando a marinha de comércio chegou a Missirá
por Beja Santos
Desta vez, o Comandante de Bafatá [, tenente-coronel Hélio Felgas,]não me estendeu a mão, manteve a postura rígida como se estivesse a avisar-me que os sinais de tempestade estavam na sala, o tornado iminente.
- Você é uma grande decepção. Acredito nas informações que me chegaram sobre a sua mentalidade, mas comanda sem pensar na ordem que um aquartelamento deve ter, nas regras de segurança, a começar pela solidez dos abrigos. O Comandante-Chefe e eu iremos a Missirá brevemente. Ou há mudanças ou puno-o. Cabe a si dar um sinal do que pretende.
Entendi não replicar, houvera já conversa sobre as fragilidades de Missirá e Finete, era inaceitável que a conversa descambasse de novo para as cascas de batata ou as cabaças da população civil deixadas temporariamente ao abandono. Ouvi-o sem pestanejar, sempre perfilado, perguntei-lhe se pretendia dizer mais alguma coisa, fiz a continência e retirei-me. Como diz a letra do fado, "Tinha o destino traçado" e poucas ilusões sobre a justiça plena dos homens do mando.
Operação a Madina/Belel: 'Em caso algum aceito que venhas de mãos vazias'
Regressei a Bambadinca, onde me esperava um amargo de boca e me estava reservada uma uma grata surpresa. O Major das operações convocara-me para falarmos da Operação Anda Cá.
- Desculpa, ó Beja, vou descrever tudo sem pormenores, para já. Teremos dois destacamentos que partirão de Missirá. Qualquer coisa como sete grupos de combate. Estão definidos dois objectivos, um pressupõe que se chegue a outro. Tu segues à frente de um e ordenas a formação de uma coluna que vai à frente do outro destacamento. Acho melhor tu ires a Quebá Jilã e descer para Madina; o outro destacamento segue por Sinchã Corubal até Madina. Apostamos na destruição das bases de Madina e dos suportes da população civil. Em nenhuma circunstância aceitamos que venham de mãos vazias. O inimigo está lá, destruam-no.
Observei que esta explicação prévia me era útil mas seguramente haveria uma exposição aos respectivos Comandantes de Companhia, antes de partirem para Missirá. Garantiu-me que sim, o que não veio a acontecer, com as consequências lamentáveis que aqui se descreverão. Começara a aprender que há um fosso monumental entre o trabalho preparatório feito num gabinete com uma ventoinha e o pisar a lama, o capim e os obstáculos naturais do mato, onde não há coincidência entre o que diz a carta e a posição real ocupada pelas forças rebeldes. Senti uma premonição, uma quase corrente fria de um desastre anunciado, mas nada exteriorizei, ficando sempre com a esperança de que seria convocado para uma reunião preparatória.
E deste encontro na sala de operações fui até ao gabinete do Capitão Eugénio Baptista Neves, o Comandante da CCS, que já nos visitara em Missirá e Finete e aprovara um plano de renovação dos abrigos. Mal cheguei, ele pegou na boina, entrámos no jipe e descemos para o cais de Bambadinca. Parou junto de uma arrecadação, abriu a porta e disse-me:
- Acabaram as suas aflições com as lamas do Geba, os Unimog atascados na bolanha de Finete, os transportes de comida e munições à cabeça. Receba saudações da Armada!
E findo este discurso, fez saltar uma enorme lona que escondia a surpresa que me reservava: um Sintex reluzente, com um motor lá dentro. A comoção foi grande mas as perplexidades eram também grandes e comecei a disparar perguntas: o Sintex fica à guarda de quem? O condutor é de Bambadinca ou Missirá? Sou responsável pela segurança ida e volta? Quem escolhe o cais de desembarque, perto de Missirá? O Capitão Baptista Neves encolheu os ombros e despachou-me com a seguinte sentença:
- A partir de agora, para o melhor e para o pior, o Sintex está à sua carga, organize os itinerários, monte as seguranças que quiser, transporte no Sintex o que quiser, mas não me peça mais nada.
Agradeci, pedi para deixar o Sintex na arrecadação até consultar os meus colaboradores. Após a ida ao depósito de materiais de construção civil, feitas as compras de géneros, cambámos o Geba e tive a primeira reunião em Finete com Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Para quem lê este relato, é conveniente recordar que a partir de Bambadinca o rio Geba estava formalmente interdito. O Geba parece um intestino delgado, uma tripa que vai meandrar em direcção a Bafatá; entre o Cuor, Joladu e Ganado, o rio atravessa bolanhas extensas mas há pontos onde os rebeldes podem atacar qualquer embarcação.
Foi por falta de condições de segurança que os barcos civis e as lanchas militares deixaram de ali navegar. Ora a proposta que nos faziam era sair do cais de Bambadinca avançando pela extensa bolanha entre Finete e Ponta Nova/Santa Helena, subindo em frente a Mero, passando por Boa Esperança e Gã Gémeos pelo menos até Gã Joaquim. No mínimo, 8 Km de viagem. A pergunta que lhes pus é se tínhamos condições da milícia de Finete, mediante combinação prévia do dia e da hora, patrulhar e emboscar junto das margens do Geba pelo menos até ao palmeiral de Boa Esperança. O factor surpresa era decisivo para não haver passagem de informações das populações de Santa Helena e Mero às gentes de Madina/Belel. Garantiram-me que sim, com duas secções, uma bazuca e vários apontadores de dilagrama, a segurança seria assegurada.
Segui para Missirá, onde decorreu uma conversa do mesmo tipo com o Casanova e o Pires. As vantagens eram inegáveis: sobretudo na época das chuvas, tínhamos o abastecimento sempre comprometido; chegáramos mesmo a ser abastecidos por um helicóptero; no caso de uma flagelação prolongada, abastecermos de munições com as viaturas avariadas era uma hipótese de tortura; o principal óbice era montar segurança conjugadamente com Finete. O melhor seria ouvir a opinião de Malã e Quebá Soncó, mas também do caçador Cibo Indjai e de Sadibi Camará, um soldado que conhecia a região da aldeia do Cuor a palmo. Foi uma longa mas proveitosa conversa.
Todos se inclinavam para aproveitarmos as condições naturais de Gã Joaquim, onde o ponteiro que ali vivera deixara um embarcadoro para o transporte da mancarra e o óleo de palma. Além disso, Gã Joaquim era terra firme a partir de Caranquecunda, quase não havendo necessidade de montar segurança, dado tratar-se de terreno aberto. E até nova apreciação do caso, convidou-se o recém-chegado condutor Mário Perdigão (o Xabregas) para assumir o volante do Sintex. Para desfazer equívocos sobre a segurança, tornei público que seguiria no barco na viagem inaugural. Tínhamos, aliás, uma carga valiosa para transportar: um novo equipamento de seis chuveiros, oferta do batalhão de engenharia. Como na manhã seguinte, ao raiar da aurora, tínhamos de montar segurança em Mato de Cão, acordámos nas regras de segurança da viagem. Na ausência de rádios para comunicarmos entre as patrulhas de segurança de Missirá e Finete, foi aceite que três tiros seria o sinal da presença de rebeldes e o regresso do Sintex a um ponte de abrigo, um tiro daria a saber às patrulhas que se tinha chegado a Gã Joaquim e que assim findava a vigilância do Geba, com regresso a quartéis.
Era um dia maravilhoso, sem nuvens, águas barrentas e gente a lavrar as bolanhas. Os curiosos seguiam a operação do Sintex ser lançado à água, com uma orientação imprevista. Quem viera de Mato de Cão até Bambadinca seguia agora para Finete e daqui para Missirá onde tropa refrescada partia para gã Joaquim e para o patrulhamento de segurança até Gã Gémeos. E quando o Sintex se lançou triunfal em direcção a Gã Vicente já os milícias de Finete percorriam a bolanha como anjos da guarda.
É a primeira vez que atravesso o Geba, a uma hora tal que parece que vou passear para Bafatá. O Sintex leva Comandante e vigilante mais uma armação esplendorosa de bidões que vão alterar a nossa qualidade de vida. Durante anos sonhei voltar a fazer este percurso que não deixa de ser arrepiante quando o tarrafe liga directamente com a floresta densa, neste ou naquele ponto onde é possível uma roquetada de RPG2 não deixar pedra sobre pedra. Os nossos abastecimentos irão mudar, o Sintex acabou com muita desdita, obrigou-nos a patrulhar intensamente a região, as próprias colunas rebeldes foram confrontadas com novo obstáculo. O que era imprevísivel aconteceu: o ermo de Missirá, um esporão lançado das matas do Cuor para o Oio passara a ser abastecido pela "marinha de comércio" num impensável Geba navegável.
Em conversa com Queta Baldé em torno destas viagens até Gã Joaquim, ele que tem tudo arquivado na memória recordou-me um facto doloroso: "Foi em Gã Joaquim que o Cibo Indjai morreu num acidente. Em 1971, o Cibo que queria continuar a caçar no Cuor pediu a transferência para o Pelotão de Caçadores Nativos 54, que nos ficou a substituir em Missirá. Exactamente quando chegou o Sintex, um soldado escorregou e a arma disparou-se. Cibo teve morte imediata".
A vida em Missirá prossegue, com aulas, pequenas obras, patrulhamentos nocturnos e de novo as duas viaturas avariadas o que obrigava ao feito épico de rolar bidões cheios de água da fonte de Cancumba até ao aquartelamento. Nas vésperas da Anda Cá, Finete teve boas notícias: chegaram um morteiro e uma bazuca, o que introduziu alguma capacidade de resposta já que até então quando a gente de Madina vinha de noite roubar o arroz cultivado nas bolanhas de Finete não era possível dissuadir os ladrões.
Quando Spínola e Felgas regressarem a Missirá prontos a desancar-me as três fieiras de arame farpado estão renovadas, concluido o depósito de combustíveis, substituidos os cibes dos pontões de Caraquecunda e Cansonco. Conversei com David Payne, depois com o Reis e por último com o Pimbas. Logo a seguir à operação Fado Hilário partirei para Bissau para ser operado. O Reis garantiu-me que não irá armadilhar arbitrariamente todos os acessos, aceita ficar 15 dias em Missirá. Ele não sabe o que o espera...
A exaustão física começa a ser uma realidade que eu não sei controlar, com a época das chuvas chegamos a ir duas vezes no mesmo dia a Mato de Cão. Com gente doente e com o plano de férias a funcionar, chego a ir a Mato de Cão com 20 homens. A 20 de Fevereiro sou chamado a Bambadinca onde me dão a conhecer o teor da minha punição. A reunião prévia da Anda Cá é completamente atamancada. Pela primeira vez, e dolorosamente, interrogo-me se estes oficiais que nos comandam não estão contaminados por um vírus autodestruidor.
Os Sete Septetos, do Ruy Cinatti
Caminhando cada vez mais, tenho o meu joelho arrasado e sinto a cabeça incapaz de altos voos. Mas preciso de encontros afectuosos, saborear a comunicação de gente muito amiga. Leio (isto é, releio pela milésima vez) os Sete Septetos, talvez o mais importante livro de poesia do Ruy Cinatti. Conheci a obra em manuscrito, quando ele me recebeu na Travessa da Palmeira nº12, 3º dto, entre a Praça das Flores e o Princípe Real, com uma vista frondosa sobre Santa Catarina e o Tejo. O pretexto tinha sido ir pedir-lhe um poema para o jornal O Encontro, da Juventude Universitária Católica, à semelhança do que tinha feito com o Ruy Belo e a Sophia de Mello Breyner. Recordo aquela sala de estar pejada de obras de arte timorenses, com o poeta em transe a ler a sua poesia decorrente de uma aventura espiritual que o marcava e que eu agora, ali em Missirá, rememorava a declamação:
Paz comigo próprio. Paz
que não me contente. Paz
armada ou pacífica, mas paz
que não me iluda. Paz
mítica ou revelada. Paz
que me contagie ou paz
entre mim e os outros. Paz
que me não compare. Paz
activa, humilde. Paz
que me encha as mãos
e não conspurque. Paz
vocativa: semente, fruto. Paz
na alma. Paz
de Deus que me enamora
só de Deus enamorado.
Capa do livro de poesia de Ruy Cinatti, editado em 1967, por Guimarães Editores.
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Toda esta elegia me apazigua, me transporta até Lisboa, aos amigos. O Cinatti irá apoiar-me muito. Todo o seu correio desapareceu até Março. Mas belos poemas, o seu estímulo e conforto ficarão guardados nalgumas folhas que aqui serão desveladas. Procuro também leituras breves e menos comprometedoras, que me distraiam ou façam esquecer que a partir de agora não voltarei a ter férias até ao fim da comissão, numa altura em que recebo correspondência de entes queridos treçando armas e cuspindo fogo. Sim, estou exausto, abrem-se frentes de combate de dimensão incalculável, sinto-me a adornar, moral e psicologicamente. Porventura não tivesse eu os desafios inóspitos de Missirá e Finete e teria caído em melancolia profunda.
Capa do romance de Frank Gruber.
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Aí, as leituras menos comprometedoras foram refrigério. Por exemplo, livros como O Relógio Falante, de Frank Gruber, da prodigiosa Colecção Vampiro. Gruber cirou uma parelha espantosa para os tempos da Depressão, Jonnhy Fletcher e Sam Cragg, o primeiro um cerebral espaventoso e cheio de lábia na venda de livros, o segundo um gigantão que demonstra em público que ter um físico de Sansão pode ser obra da persistência. O livro fala de um coleccionador de relógios que à hora da morte prega uma partida a credores e descendentes, introduzindo um disco num relógio que dá as horas e que poderá revelar o segredo onde está guardada a fortuna que ele iludiu de todos. Peripécia após peripécia, Fletcher vai juntando as peças do puzzle, denuncia o homicida e desvenda o segredo da fortuna escondida. Que bem me soube a companhia de Frank Gruber antes de partir para Mato de Cão!
Vem aí a roda da fortuna com a Anda Cá e, mais amenamente, o Fado Hilário. Depois vou vestir a farda nº 2, o que não acontece há seis meses. E Cherno Suane pega numa mala onde levo os meus haveres mais prementes e acompanha-me até à urgência do Hospital Militar Bissau, o HM 241. Vale a pena contar.
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. último post > 8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Aí, as leituras menos comprometedoras foram refrigério. Por exemplo, livros como O Relógio Falante, de Frank Gruber, da prodigiosa Colecção Vampiro. Gruber cirou uma parelha espantosa para os tempos da Depressão, Jonnhy Fletcher e Sam Cragg, o primeiro um cerebral espaventoso e cheio de lábia na venda de livros, o segundo um gigantão que demonstra em público que ter um físico de Sansão pode ser obra da persistência. O livro fala de um coleccionador de relógios que à hora da morte prega uma partida a credores e descendentes, introduzindo um disco num relógio que dá as horas e que poderá revelar o segredo onde está guardada a fortuna que ele iludiu de todos. Peripécia após peripécia, Fletcher vai juntando as peças do puzzle, denuncia o homicida e desvenda o segredo da fortuna escondida. Que bem me soube a companhia de Frank Gruber antes de partir para Mato de Cão!
Vem aí a roda da fortuna com a Anda Cá e, mais amenamente, o Fado Hilário. Depois vou vestir a farda nº 2, o que não acontece há seis meses. E Cherno Suane pega numa mala onde levo os meus haveres mais prementes e acompanha-me até à urgência do Hospital Militar Bissau, o HM 241. Vale a pena contar.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. último post > 8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã