Guiné > Zona Leste > REgião de Bafatá Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)
Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3). A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.
De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) (onde ficavao quarto do alf mil médico Arsénio Puim) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).
Em frente ao edifício em U, um poco mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14).
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). Ver o resto das legendas aqui.
Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
porque tu mereces tudo! (1ª parte)
por Luís Graça
Luís Graça, Contuboel, junho de 1969 |
Não sabemos ao certo por quem, se o bispo castrense (que era brigadeiro) ou a
hierarquia militar (personificada no Comando-Chefe, os generais Arnaldo Schulz,
em 1968, e António Spínola, em 1971,
respetivamente), com a inevitável “mãozinha” da polícia política ...
Eu diria antes que foram dois erros de
"casting" (sem que isto nada tenha de ofensivo para com os
visados)...
Um deles é o padre Mário de Oliveira,
que será sempre, até morrer, o padre Mário da Lixa... Foi capelão, por escassos
meses, do BCAÇ 1912 (que esteve sediado
em Mansoa, 1967/69)...
Mário de Oliveira |
O outro caso de um capelão "expulso" das fileiras do exército português foi o açoriano Arsénio
Puim (que deixou, de resto, o sacerdócio em finais dos anos 70): foi capelão,
por um ano, do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). E é sobre ele que eu quero
falar, a pedido de um dos seus filhos, o mais novo, o Miguel Puim, economista. E o pretexto são
os seus 84 aninhos de vida (*)…
(1) A imagem que eu tenho do Arsénio
Puim é a da
serenidade.
Na Guiné podia confundir-se com reserva
e até timidez, hipoteticamente associada
Na Guiné podia confundir-se com reserva
e até timidez, hipoteticamente associada
à sua origem insular e à sua condição
sacerdotal. Mas havia ali, também,
sacerdotal. Mas havia ali, também,
na sua maneira de ser e estar,
algo da bonomia açoriana.
Arsénio Puim |
O Puim foi dos primeiros açorianos que eu conheci. E foi um lídimo representante do melhor que o
povo açoriano tem, a começar pelo seu amor à liberdade, à verdade e à justiça. Mas
não me lembro de alguma vez ter falado com ele da sua vida pessoal ou dos seus
Açores.
"En passant", havia companhias madeirenses e açorianas, no
TO da Guiné, unidades homogéneas na sua composição: as praças eram "ilhéus", em
geral enquadradas por "contimentais". Por razões, dizia-se, que eram de
natureza "economicista", mas eu sempre desconfiei que o exército sabia que o "terroir", o chão, a geografia, o "caldo de cultura", também talhava os homens de maneira diferente,
do mesmo modo que produzia diferentes vinhos,
com diferente "corpo e alma" … Sim, porque os vinhos também têm alma...
Curiosamente, o Puim não fazia gala da sua
condição de açoriano, nos seus contactos com a população civil.
(2) Afinal, o alferes miliciano
capelão Puim era mais
capelão
do que militar. Era, aliás,
o
mais civil, o mais paisano,
de todos nós.
Nunca o vi armado, nas colunas
logísticas, quando se deslocava, com frequência, entre a sede do batalhão, em Bambadinca, e as
unidades de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole) e os seus diversos
destacamentos (Enxalé, Missirá, Ponte dos Fulas)…
Ou quando se deslocava a
Bafatá, o único ponto do interior onde havia um cheirinho de civilização e onde
ia confraternizar com os missionários italianos do PIME (o Pontifício Instituto para
as Missões Exteriores).
Mesmo fardado, via-se que não fora talhado para a
tropa. E muito menos para a guerra, com o seu cortejo de violência(s), que
atingia(m) tanto os combatentes como as
opulações de um lado e do outro.
opulações de um lado e do outro.
Tínhamos uma certa deferência para com
os médicos e os capelães, se bem que capelão militar fora ele o único que eu conheci. Confesso que não me lembro, em Bambadinca, do meu primo Horácio Fernandes (o seu bisavó e a minha bisavó, do clã Maçarico, nascidos por volta de 1860,em Ribamar, Lourinhã, eram irmãos)...
Havia falta de médicos
e capelães, no teatro de operações da Guiné. Mas os médicos, ao que parece,
faziam mais falta, tanto no mato como no Hospital Militar de Bissau, o HM 241 (que,
feliz e infelizmente ao mesmo tempo, foi um a grande escola para os jovens médicos
mobilizados para a Guiné).
À época, havia já em curso um
tendência para a descristianização da
juventude portuguesa, ou pelo menos, um crescente desapego de práticas
religiosas como o ir à missa. O Puim
tinha consciência disso e sabia que o seu papel de “padre da Igreja no
Exército” “não era fácil nem isenta de
contradições numa situação de guerra”.
(3) Quando regressei a casa,
em março de 1971, ele
ainda lá
ficaria dois escassos meses,
em “imbecilburgo”, como eu chamava
à
nossa pobre Bambadinca,
mas já com bilhete marcado
para a metrópole.
Walther P38, de fabrico alemão. Cortesia de Wkimedia Commons |
Era uma questão de oportunidade, dizia-se à boca pequena. Também teria ele a sua “noite das facas longas”, como os pobres cães vadios que um dia abatemos um a um, com tiros da tenebrosa Walther da Wehrmacht nazi, em correrias loucas na parada, porque não nos deixavam dormir, aos operacionais de Bambadinca...
Só nos voltámos a ver, eu e o Puim, 38 anos depois, em 24 de maio de 2009, na casa dos seus filhos, na altura estudantes universitários, um no Técnico, outra na Nova. E confirmei essa impressão inicial: continuava a ser um homem calmo, sereno, sábio, sem uma única ruga de rancor ou amargura, muito menos, ódio, pelos seus "inimigos" (, uma palavra que nunca lhe ouvi).
Já não era padre, em 2009, ou melhor, era pai de dois rapazes e profissional de saúde, era enfermeiro, em Ponta Delgada.
(4) Na época, em 1970/71,
altura em que convivemos
em Bambadinca, ele tinha
altura em que convivemos
em Bambadinca, ele tinha
já dez anos a mais do que nós,
e portanto, outra
maturidade.
Antes de vir para a Guiné,
enquanto se formava o batalhão,
esteve
na Serra do Pilar,
no RAP2 - Regimento de
Artilharia Pesada 2,
em Vila Nova de Gaia.
em Vila Nova de Gaia.
E aí houve uma função de capelania que o marcou: empilhavam-se os
caixões, vindos do ultramar, com os restos mortais de militares naturais do
Norte.
Nessa altura, ele realizou mais de 60
cerimónias religiosas, por todo o Norte, acompanhando os nossos camaradas mortos
até à sua última morada, confortando o padre local, as famílias e as
comunidades locais, num ambiente de grande consternação e comoção.
Ainda em 2009, confessou-me, não
conseguia esquecer essas emoções fortíssimas de dor e de luto, o odor
característico dos féretros que vinham, teoricamente, chumbados, hermeticamente
fechados, mas alguns apresentavam fissuras, ruturas, e exalavam um cheiro
enjoativo, empilhados na grande sacristia, mal iluminada, da igreja do Pilar
“Foram mais de 60 funerais que fiz
nestes três meses - 2 ou 3 deles apenas as caixas dos ossos - nas mais diversas
e recônditas aldeias do norte de Portugal. Um sacrifício dramático da nossa
juventude, merecedor de muito respeito e dignidade, mas que não podia deixar de
fazer pensar qualquer pessoa” – escreveria mais tarde, num os postes da sua
série "Memórias de um alferes capelão", publicada no blogue.
(5) Nesse longo fim de semana,
falámos várias
vezes ao telefone
e encontrámo-nos uma vez…
Era um domingo.
Ele explicou-me
como é que chegara a capelão… Disse-me que fora contra a sua vontade, mas teve
que obedecer a uma ordem do seu bispo, como
acontecia em todas as dioceses... A capelania militar era uma forma cínica
mas airosa dos bispos se livrarem, por uns tempos, dos seus padres mais
incómodos… Recorde-se que o ambiente já era do pós-Concílio Vaticano II...
Dado o seu nome à Cúria Castrense, veio parar ao Continente. Na Academia Militar, ali à Rua Gomes Freire, em Lisboa, vai frequentar o 3º curso de capelães militares, entre 22 de setembro e 25 de outubro de 1969... O total de participantes foi de 59… O Mário de Oliveira tinha frequentado o 1º e seguira para a Guiné, ao serviço do BCAÇ 1912.
“Tirado à sorte” (sic), coube ao Puim o BART 2917 e a Guiné...
Esse 3º curso de capelania militar não foi, contudo, pacífico: ao que parece, terá havido “contestação do sistema” por parte de alguns capelães... No fundo, angústia e perplexidade sobre o papel do padre no seio das forças armadas, em plena guerra colonial, cuja legitimidade já era posta em causa por alguns…
E essa contestação terá sido liderada pelos açorianos, entre eles o Arsénio Puim, um homem que de resto, enquanto cidadão e como cristão, nunca escondera que lutava pela liberdade e pela justiça... Não altura, ele não me falou que tinha já ficha na PIDE/DGS, por ter apoiado a candidatura da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, nos Açores, donde constava, entre outros, o nome do então cap Melo Antunes, casado com uma açoriana. (Não chegaria a apresentar-se a escrutínio, por oposição da hierarquia militar à presença do seu nome.)
Podia-se ter ficha na polícia política
pela simples suspeita de se ser do "reviralho", da "oposição" ou "contra a situação". E, para mais, um padre, um
pastor de almas, numa época em que a Igreja começava a apresentar fissuras no
seu bloco de apoio ao regime e à guerra colonial. Ser catalogado de "católico
progressista" começava a ser perigoso, ou no mínimo suspeito, e como tal inconveniente…
(6) Dei-lhe, ao Puim, nesse domingo,
um longo e
sentido abraço,
retomando um contacto
de há quase 4 décadas atrás...
Capela de Bambadinca, em segundo plano. Foto de Benjamim Durães (2010) |
E depois havia a segregação
socioespacial própria da tropa: ambos vivíamos (quero dizer, eu às vezes
dormia…),no edifício do comando de Bambadinca, em U, mas separados: ele na ala
dos oficiais, nós na ala dos sargentos… Ele entrava no bar de sargentos, eu nunca pus os pés na messe de oficiais, nem por bons nem por maus motivos.
Não posso, por isso, testemunhar a
importância do seu papel na assistência religiosa e no apoio psicológico, moral
e espiritual aos militares do setor L1
(Bambadinca). Sei que esse papel foi-lhe requerido em momentos difíceis do
batalhão como, por exemplo, na sequência da Operação Abencerragem Candente, no
subsetor do Xime, em que perdemos 6 camaradas, e 9 foram gravemente feridos, em 26 de
novembro de 1970. O Puim ajudou os camaradas do Xime, da CART 2715, a fazer o
luto. Mas essa companhia nunca mais foi a mesma, a começar pelo jovem capitão,
O Vitor Amaro dos Santos.
(7) Sei que era uma pessoa querida
entre os homens
do batalhão
e subunidades adidas (como era
o caso da minha africana CCAÇ 12),
com uma presença discreta
mas frequente nos quartéis
do mato.
CCAÇ 12, 2º Gr Comb, c. 1969/70.
Foto de Humberto Reis (2006)
|
O ambiente do mal afamado bar de
sargentos de Bambadinca (que às vezes era extensiva ao “Bataclã” de Bambadinca,
fora do arame farpado…) não deveria ser
muito do agrado do comando do batalhão. Mas tinha que nos gramar, aos operacinais da CCAÇ 12, porque éramos nós (e os Pel Caç Nat 52 e 63), quem lhes defendia as costas e fazia os "roncos"... De qualquer modo, o Puim não era de noitadas
nem muito menos de tainadas, pautando o seu comportamento por um padrão de
isenção, frugalidade, imparcialidade, austeridade e até de pudor.
(Continua)
____________
Nota do editor:
(*)Último poste da série > 9 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20955: (In)citações (149): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte V: lembranças do capelão do BART 2917 (Beja Santos)