segunda-feira, 22 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21099: Notas de leitura (1290): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se põe um fim a uma demorada, propositadamente extensa, análise de um trabalho de leitura obrigatória para o investigadores da guerra da Guiné, obra redigida com suficiente clareza e incisão que permita todos os leigos os mais amplos esclarecimentos sobre a vida e obra de Cabral.
Julião Soares Sousa foi justamente premiado pela sua primorosa investigação. Esta edição corrigida e aumentada introduz, em meu entender, um quociente de perplexidade quanto ao maior número de hipóteses de envolvimentos em torno do assassinato. A despeito de documentação fundamental ter desaparecido, estar extraviada ou irremediavelmente perdida, factos são factos, Cabral foi assassinado por guineenses e todas as recriminações dos conjurados iam contra a unidade Guiné-Cabo Verde. É um mistério denso que se presta a imensa especulação. Porém, não se esqueça que em 1980 Nino Vieira, de colaboração íntima com combatentes guineenses e até civis, afastaram os cabo-verdianos e pôs termo a um sonho de Cabral que, comprovadamente, não tinha pés para andar.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (5)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

No aceso da luta de libertação, Cabral é confrontado com um punhado de dossiês escaldantes: as relações com os outros movimentos de libertação têm aspetos agudos, Cabral e Mondlane não têm identidade ideológica, por exemplo; procurou-se o lançamento de ações de guerrilha urbana, foram pouco consequentes mas segundo o líder importantes no plano político e psicológico; caminhou-se para a proclamação do Estado da Guiné e militarmente Cabral desenhou com um conjunto de colaboradores uma ofensiva sobre Guileje que só se concretizará em Maio de 1973; toda a problemática de Cabo Verde é forçada à hibernação, Cabral transfere para as frentes de guerra esses quadros apetrechados que se revelarão determinantes, caso de Pedro Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Agnelo Dantas e Silvino da Luz, entre muitos outros; o ano de 1972 obriga Cabral a deslocações incessantes, embora se julgando amplamente informado do que se passa na guerrilha e em Conacri, acentuam-se as crises internas, é no regresso de uma visita à União Soviética em Novembro de 1972, onde lhe é garantido o apoio com armas modernas, como os mísseis Strela, que Cabral é alertado para a existência de graves problemas em Conacri, o mundo das informações alterara-se, não só a PIDE/DGS conseguira infiltrar informadores ao mais alto nível como dezenas de combatentes reuniam à luz do dia e havia mesmo ideias de refazer o partido, contava-se para isso com combatentes carismáticos como Osvaldo Vieira e com o antigo presidente do partido, Rafael Barbosa.

E assim chegamos ao assassinato, tema que conhece novos desenvolvimentos nesta edição corrigida. Há muitas conjeturas, o autor usa e abusa do consta, do alegadamente, do presume-se. Há versões coincidentes sobre o se passou naquela noite, Ana Cabral a tudo assistiu, ouviu as primeiras discussões, o primeiro disparo quando Cabral não aceitou ser preso, a conversa seguinte em que Cabral propunha uma discussão sobre os problemas de relacionamento entre cabo-verdianos e guineenses, sucederam-se os tiros fatais, os conjurados, seguramente de acordo com o plano previamente traçado, dividiram tarefas, prenderam Aristides Pereira e levaram-no para uma lancha com outros reféns, incluindo a mulher de Cabral; meteram na prisão um elevado número de cabo-verdianos, nem um só guineense, avisaram-nos de que seriam fuzilados ao amanhecer; e foram libertados os membros do complô, todos guineenses, que se encontravam aprisionados, punidos por rebeldia; outros dirigiram-se ao palácio de Sékou Touré, Óscar Oramas, o embaixador cubano assistiu a essa conversa, os conjurados alegaram sempre a fricção insanável entre Guiné e Cabo Verde, o presidente da Guiné Conacri mandou prender os conjurados e pediu apoio naval aos soviéticos para irem buscar Aristides Pereira. Entre as muitas pistas Julião Soares Sousa retoma algumas delas não têm base de sustentação: não há um só documento que comprove qualquer colaboração da Armada Portuguesa; não há um só documento que conduza a qualquer associação entre a PIDE/DGS e os implicados na conjura de Conacri, pelo contrário, nas horas subsequentes em Bissau Spínola deplorará a morte de Cabral, ele não tinha outro interlocutor, e o diretor da PIDE em Bissau envia para o diretor da PIDE em Lisboa um relatório que no todo ou na parte é manifesto da não implicação da polícia política portuguesa nos acontecimentos de 20 de Janeiro de 1973; continua a insistir-se na liderança de Momo Touré no assassinato, este não possuía qualificações, capacidades ou reconhecimento por parte dos altos quadros combatentes, seria, quanto muito, um cabeça de turco a executar um plano pré-combinado, não será de excluir conivências diretas de Nino Vieira e Osvaldo Vieira, que ficaram na sombra. Julião Soares Sousa carreia nova informação, caso do relatório da delegação jugoslava às cerimónias fúnebres de Cabral, ou relatório de Agostinho Neto. E centra-se nas hipóteses de cumplicidades internas e externas centradas em Sékou Touré e nas autoridades portuguesas. Para sermos francos, nada de novo. Trazer à colação a “Operação Albatroz”, bem como a “Operação Safira”, igualmente nada traz de esclarecedor, não há provas concludentes que associem tais iniciativas ao assassinato de Cabral.

As conclusões da obra recapitulam toda a evolução de um pensamento e de uma ação, podem ser encaradas como uma síntese feliz. No entanto, não se percebe o que leva o autor depois de relevar de que não se possui documentação irrefutável que leve ao reconhecimento dos autores morais a escrever que a chave do enigma se encontra na documentação da PIDE/DGS, da Aginter Press e dos Serviços Secretos de Conacri e assevera: “Acreditamos também que algum arquivo privado possa a vir resolver o mistério. Pelo menos pouco a pouco mais dados têm vindo a terreiro, ajudando-nos a reconstruir o puzzle tão complexo. Toda esta documentação sumida poderá esclarecer os meandros em que o assassinato foi orquestrado a partir de Lisboa e a maneira como algumas organizações secretas europeias penetraram o PAIGC com a cumplicidade de guineenses e de elementos da oposição ao regime de Sékou Touré”. Não nos aprece igualmente crível que Spínola tenha abandonado o seu lugar de governador por causa da proclamação unilateral da independência, Spínola sabia que a prazo o desfecho militar lhe era desfavorável, aprovara-se uma retração do dispositivo era o primeiro sinal da derrocada, preferiu ir para Lisboa preparar a derrocada do regime de Caetano, com quem se incompatibilizara.

Ao findar a análise deste importantíssimo documento, reitero a sua importância e a obrigatoriedade da sua leitura, para investigadores e todos os interessados.
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Notas do editor

Postes anteriores de:

1 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

8 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)
e
15 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21078: Notas de leitura (1289): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21098: Parabéns a você (1826): Cor Art Ref António José Pereira da Costa, ex-Alf Mil Art da CART 1692 (Guiné, 1968/69) e ex-Cap Art, CMDT das CARTs 3494 e 3567 (Guiné, 1972/74); João Crisóstomo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439 (Guiné, 1965/67) e Júlio Martins Pereira, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 1439 (Guiné, 1965/67)



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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21091: Parabéns a você (1825): Cherno Baldé, Amigo Grã-Tabanqueiro da Guiné-Bissau, Engenheiro e Gestor de Projectos

domingo, 21 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21097: Tabanca Grande (495): Acácio Fernando da Silva Mares, ex-Fur Mil Inf da 1.ª Comp/BCAÇ 4612/72) (Porto Gole, 1972/74), 809.º Grã-Tabanqueiro da nossa tertúlia

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, Acácio Fernando da Silva Mares, ex-Fur Mil Inf da 1.ª Comp/BCAÇ 4612/72 (Porto Gole, 1972/74), com data de 11 de Junho de 2020:

O meu nome é Acácio Mares, ex-Furriel Mil. NM 18779672.

Pertenci à 1.ª Companhia do BCAÇ 4612/72 que esteve em Porto Gole.

Gostava de ser incluído no grupo da Tabanca Grande.
Abraço 
Acácio Mares




Acácio Mares em Porto Gole

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2. O camarada Acácio Mares foi contactado no sentido de nos enviar algo mais que nos levasse a conhecê-lo melhor do que resultou o envio desta segunda mensagem em 19 de Junho:

1. Recruta no CISMI (Tavira) com destino a Porto Gole;

2. Por lá está estive 3 a 4 meses, sendo nomeado para Delegado de Batalhão em Bissau, substituindo o ex-camarada furriel Salavisa;

3. No regresso trabalhei na Rodoviária Nacional, em Queluz, como responsável de compras e com várias formações acrescidas: - Organização e Gestão de compras na Empresa; - 52.º Curso Básico de Chefia; - Curso de "Comunicação e Relações Humanas para Chefia".

4. Aos 36 anos tive um AVC, com baixa permanente até aos 40, aí fui reformado;

5. Ao recuperar iniciei um novo projecto - Comércio de lenha e carvão, onde desenvolvi durante 10 anos e trespassei o negócio;

6. Ao trespassar o negócio, entrei em parceria com a minha esposa, adquirimos uma nova loja para comério de roupa;

7. Aí dava suporte às duas lojas em termos de acompanhamento e monitorização de aquisição, levantamento e facturação das mesmas;

8. Obtendo este know how, iniciei-me na revenda de roupa para lojas;

9. Trabalhei cerca de 5 anos na revenda de pronto a vestir, e nesta fase estando esta economia a decrescer iniciei em paralelo novo projecto;

10. Em 1999 construí e abri um novo estaleiro dedicado apenas a comércio de lenha;

11. Este projecto iniciou apenas ao fim de semana, comigo em parceria com a minha esposa, com distribuição casa a casa por área residenciais pré definidas e estabelecidas semanalmente;

12. Este projecto durou cerca de 15 anos, tendo expandido paralelamente negócio de carvão;

13. O estaleiro chegou a ter 7 funcionários em full time, com 2 vagons a distribuir e um camião a distribuir carvão para restaurantes;

14. Na fase final e para contabilização de custos/despesas em compras já eram os nossos veículos que iam adquirir e transportar matéria prima;

15. Em 2017 fui vítima de queda de um lance de escadas, da qual resultou um TC sem perda de conhecimento;

16. A partir daí fiquei de baixa e ausente da gestão e em 2018 trespassei o negócio.

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Localização de Porto Gole
© Infogravura do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (Carta da Província da Guiné - 1:500.000)


3. Comentário do editor:

Caro Acácio Mares,

Em primeiro lugar recebe um abraço em nome dos editores e da tertúlia em geral.

Recebemos-te com todo o gosto nesta Tabanca de antigos Combatentes da Guiné. Vais ocupar o lugar número 809 da tertúlia mas podes "sentar-te" onde quiseres porque não temos qualquer tipo de distinção entre nós, seja pelo antigo (ou actual) posto, formação académica, profissão, idade, etc. Por isso nos tratamos por tu.

Muito obrigado pelo teu currículo/história de vida, muito variado e acidentado quanto à saúde. Esperemos que tenhas recuperado tanto quanto possível e gozes a tua reforma porque bem mereces.

Se tiveres algum tempo livre, podes ir enviando algumas das tuas memórias dos tempos vividos em Porto Gole, seja por escrito ou enviando fotos, que tenhas, acompanhadas com as respectivas legendas.

Como pode confirmar, navegando pelos mais de 21.000 postes do nosso Blogue, a nossa missão é deixar algum espólio para memória futura, para que não sejam os outros a contar a nossa história por nós.

Com os votos de que gozes de boa saúde, deixo-te um abraço pessoal
Carlos Vinhal

PS - Do teu batalhão, BCAÇ 4612/2 (Mansoa, 1972/74), tenos mais de 70 referências no nosso blogue. Vê se recomheces alguém, uma boa parte é de malat da CCS e da 3ª Companhia.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21056: Tabanca Grande (494): Edgar Tavares Morais Soares, ex-Fur Mil Op Especiais da CCS/BART 3873 (Bambadinca, 1971/74), 808.º Grã-Tabanqueiro da nossa tertúlia

Guiné 61/74 - P21096: Blogpoesia (682): "Terra negra, Terra negra, seca", "Rostos mascarados" e "Sábios e presunçosos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Terra negra Terra negra, seca.

Escalvada pelo estio gritante.
Nem sequer lagartos, minhocas atrais.
Uma camada de erva queimada te cobre.
Pareces a morte.
Só depois da primavera te vestirás de verde.
Virá o arado. Te desventra.
Ficas exposta.
O sol te emprenha de vida, outra vez.
Cai-te a semente.
E um manto verde reverdece.
Cria fruto.
Muitas espigas. Em cada caule
É o milagre da Natureza que acontece cada ano aos nossos olhos.
Até os cegos o vêm com os da alma…

Ericeira, 14 de Junho de 2020
19h54m
Jlmg

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Rostos mascarados

Eis que, do pé para a mão, se mascararam os rostos, não de vergonha, mas de medo subterrâneo.
Esse sentimento oculto que só rebenta quando o perigo vem e ameaça.
Uma praga ingente grassou na nossa época.
Súbita e inesperada.
Ficará na história das calamidades que avassalaram a humanidade inteira.
Sem distinções.
Não há fortes, fracos ou poderosos que consigam eximir-se.
Só esta cortina simples frente às narinas lhe faz frente tentando impedi-la de entrar.
Uma avalanche de mortos eclodiu, vencendo toda a resistência das medicinas.
Uma humilhação total para a arrogância que, oxalá, irá mudar nossa forma de estar no mundo em convivência…

Ouvindo Zubin Mehta and Khatia Buniatishvili
Mafra, café Castelão, 15 de Junho de 2020
9h38m
Jlmg

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Sábios e presunçosos

Não me revejo nos sábios e presunçosos que pululam por essas praças.
Nem nos inchados que pregam de barriga cheia de gorduras e gulodices.
Nem daqueles opíparos que só aparecem quando a vida lhes corre bem.
Fujo a sete léguas dos pés descalços que, num repente, viraram ricos, ninguém sabe bem como foi.
Prefiro caminhar sozinho.
Trago em mim a marca das distâncias.
Cair no abismo não quero a todo o custo.

Ericeira, 16 de Junho de 2020
13h43m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21076: Blogpoesia (681): "Chave de fendas", "A última noite" e "A primeira noite", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21095: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - Parte I


Foto 1 – Bissum-Naga (Região do Óio) - Tabanca reordenada. (Foto do álbum de Aníbal Magalhães, da CCAÇ 2465, 1969/70), com a devida vénia. - P10427.
Foto 2 – Mansoa (Região do Óio) – Mulheres a lavar. (Foto do álbum de César Dias, do BCAÇ 2885, Mansoa e Mansabá, 1969/71), com a devida vénia. - P3066.

 
O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, indigitado régulo da Tabanca de Almada e da Tabanca dos Emiratos; tem 256 registos no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963-1964
- O CASO DE ENCHEIA -
PARTE I 
 
Mapa da região do Óio, com indicação de alguns dos locais de "memórias cruzadas".
Em todos eles, e em todas as gerações de combatentes, com início em 1963, ocorreram factos marcantes para o resto da vida… (de todas as vidas)… em que alguns não tiveram direito a "viagem" de regresso... lamentavelmente!


1.   - INTRODUÇÃO

Em teoria, e na prática, aceita-se que a documentação histórica expressa-se e manifesta-se de diferentes modos ou formas, onde a sua consulta, análise e divulgação, permitem que ela deixe de estar em silêncio nos arquivos, em vez de ficar por conta do passado, caso não seja usada ou recuperada.

Foi exactamente isso o que aconteceu a mais um documento que recuperámos dos arquivos de Amílcar Cabral (1924-1973), existentes na CasaComum, Fundação Mário Soares, este elaborado por Bebiano Policarpo Cabral d'Almada (Farim; 02.12.1915 / Senegal; 22.07.1970), datado de 15 de Fevereiro de 1964, com o título: «Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné».

As dezanove páginas que dão forma ao corpo deste relatório, na sua globalidade considerado como mais um "estilhaço" da "historiografia" do conflito armado em análise, serão cotejadas com outras fontes bibliográficas com elas relacionadas, por se "encaixarem" no primeiro objectivo da «Tabanca Grande», enquanto espaço de partilha, que é (e continuará a ser): "ajudar os ex-combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra colonial, na Guiné", daí a razão de ser do título escolhido.

Esse grande "puzzle" (ou pequenos "puzzles", se o dividirmos por marcadores) é constituído, passe a imagem metafórica, por um número indeterminado de "peças" desiguais recortadas segundo a dimensão da imagem ou do quadro (temático), onde se verifique o seu encaixe com as restantes, que no presente caso aborda a temática da «actividade operacional desenvolvida na região do Óio-Morés» (de cada um dos lados do combate), durante o período identificado abaixo.

Recordamos que não se pretende fazer o "culto do passado", nem tampouco fazê-lo reviver, pois o primeiro já não existe mais e os seus observadores e actores já não estão disponíveis para outros "ensaios". O que se pretende é, tão só, relembrar que a estrutura deste documento (de todos os documentos anteriores e os que se seguirem), consciente ou inconscientemente, é/são produto do contexto onde foi/foram elaborado/s, ainda que saibamos que não existem documentos inocentes.

2.   - A VIAGEM À REGIÃO DE CASAMANSA E ÀS BASES DO NORTE DA GUINÉ: - MISSÃO ATRIBUÍDA A BEBIANO POLICARPO CABRAL D'ALMADA, EM JANEIRO/FEVEREIRO DE 1964

Um ano depois do início da luta armada, levada à prática por um grupo de guerrilheiros do PAIGC, em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao aquartelamento de Tite, onde se encontrava estacionado o Batalhão de Caçadores 237 [BCAÇ 237], e um mês antes do início do "I Congresso", realizado entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964, em Cassacá (Frente Sul), coube a Bebiano Cabral d'Almada cumprir uma outra "missão", esta reservada, agora, para a Frente Norte.

Bebiano Cabral d'Almada, "braço direito" de Pedro Pires na direcção do "Bureau Político" em Dakar, filial do PAIGC criada a partir de Outubro de 1960, foi incumbido de realizar esta "missão" dividia em duas partes: a 1.ª a ter lugar em território da República do Senegal, na região de Casamansa, entre 11 e 21 de Janeiro de 1964;  e a 2.ª, no interior da Guiné, entre 22 de Janeiro e 05 de Fevereiro de 1964.



Citação: (1964), "Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41387, com a devida vénia.

2.1 - PRIMEIRA PARTE: CIRCUITO NA REGIÃO DE CASAMANSA

A análise do documento referente à primeira parte da viagem será superficial, na medida em que muitos dos assuntos tratados em cada etapa (paragem nos principais locais situados na linha da fronteira Norte da Guiné, onde existiam responsáveis por grupos de militantes do partido), não são relevantes para a presente questão de partida.

Ainda assim, e como mera informação/curiosidade, daremos conta de alguns pormenores desta primeira parte da viagem, tipo "legendas de curta-metragem".

◙ 11-01-1964 (sábado) – Partida de Dakar

Sendo portador do bote que me deve servir para a viagem de deslocação no interior do País [Guiné] e levando em meu poder os respectivos documentos, referentes ao mesmo bote, passados pelo Ministério das Finanças e pela Direcção dos Serviços Aduaneiros da República do Senegal, iniciei nesta data a missão que me foi superiormente incumbida.

◙ 12-01-1964 (domingo) – Reunião em Ziguinchor

Reunião para apuramento de responsabilidades dos factos ocorridos em Ziguinchor, entre os membros do Bureau daquele Comité, com a presença de Lourenço Gomes e todos os membros do referido Bureau composto por Indjaibá Lamine, Malan Nanqui, Djau, Apolinário da Costa e Aniceto Lima da Costa, tendo assistido os camaradas, Samba Djaló, Lassemá Silá e José Évora Ramos. (…)

◙ 13-01-1964 (2.ª feira) – Viagem a Sedhiou

Acompanhado dos camaradas Lourenço Gomes e Yaya Koté, segui nesta data para Sedhiou, tendo logo após a chegada, discutidos com eles, assuntos concernentes à nossa luta e a actos que o camarada Saido Baró tem vindo a praticar, desorganizando todo o trabalho e causando perturbações entre os fulas (…).

◙ 14-01-1964 (3.ª feira) – Viagem a Kolda

Com os camaradas Yaya Koté e Duarte da Mota, segui para Kolda a fim de procurar regularizar a situação dos nossos militantes que o Saldo Baró, fomentando um racismo, tem procurado desmobilizar, incitando-os a não acatarem as instruções do Yaya Koté.

◙ 15-01-1964 (4.ª feira) – Convocação dos responsáveis

Por falta de transporte, não foi possível deslocar-me pessoalmente a Sintchã El Hadje, como era meu desejo, tendo contudo para lá seguido o camarada Yaya Koté. (…)

◙ 16-01-1964 (5.ª feira) – Reunião em Kolda

Nada se fez neste dia digno de menção, aguardando-se somente a chegada dos responsáveis.

◙ 17-01-1964 (6.ª feira) – Reunião

Com o fim de procurarmos uma solução para as divergências surgidas entre o camarada Yaya Koté e os outros responsáveis, reunimo-nos nesta data, com a presença do referido camarada Yaya Koté, e dos outros responsáveis, Maunde Embaló, Boncó e Saido Baró, tendo também ainda assistido o camarada Duarte da Mota. (…)

◙ 18-01-1964 (sábado) – Partida para Ziguinchor

Partida de Koldá para Ziguinchor, escalando Sedhiou, onde não encontrei o camarada Lourenço Gomes, que se deslocara a Samine para preparar a minha viagem a Óio, quer dizer, mandar fazer reconhecimento do caminho e do rio Farim, para efeitos de travessia.

◙ 19 e 20-01-1964 (domingo e 2.ª feira)

Aguardo em Ziguinchor a chegada do camarada Lourenço Gomes, que aqui deixou um recado pedindo para o esperar, a fim de combinarmos melhor a nossa viagem.

◙ 21-01-1964 (3.ª feira) – Partida para Samine

Partida de Ziguinchor, acompanhado dos camaradas Lourenço Gomes e Marcelino Indi, este último encontrava-se em tratamento em Ziguinchor, ferido na base do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira). Já restabelecido,  vai regressar à base.

◙ 22-01-1964 (4.ª feira) – Em Samine - viagem a Sanú

Esperando em Samine o regresso do guia, que foi fazer o reconhecimento do caminho, aproveitei a oportunidade de deslocar-me à povoação de Sanú na fronteira de Barro, acompanhando os camaradas Lourenço Gomes e Biagué, que tinham combinado ali uma reunião para este dia, de acordo com o comerciante António Jamil Sarr, filho de pai libanês e mãe caboverdeana, que nesta fronteira tem desempenhado bons serviços em prol da nossa luta. 

No caminho e já perto daquela povoação, veio ter connosco um portador vindo de Samine, para nos comunicar que o guia já tinha vindo do interior, "trazendo nove feridos evacuados da base de Morés".

# «MC [Memóras Cruzadas]» ▼ A referência a este caso é descrita na bibliografia Oficial, nos seguintes termos: 

"Em 20Jan64, dois Grs Comb da CCAV 567 e duas Sec PCaç 857 (ambas aquarteladas em Binar) bateram a região de Umpabá, armadilhando caminhos. Tendo sido emboscados, reagiram energicamente causando baixas ao In e sofrendo 4 feridos (um dos quais veio a falecer: o fur mil Eurico de Jesus Augusto, natural de São Sebastião da Pedreira, Lisboa)" (Ceca; Vol VI, p.191).

■ Reunião em Sanú

No marco 132, que delimita a fronteira do Senegal com a Guiné, foi efectuada esta reunião, na presença do Chefe daquela povoação de nome Issife Mançal e dos grandes de morança, Dembel Djata, Quebá Mançal, Assià Mané, Beber Mançal, Kussá Djata, Adulai Mançal, Comissere Mançal, Finca Mançal e Infali Mançal, e ainda do responsável do nosso Partido, Poncinho Djata, estando ainda presente Mamadu Biai da povoação de Geba, que esteve preso em Farim, por suspeitas de colaboração com os nacionalistas. 

(…) No mesmo dia passei pela povoação de Sadjuna, onde fotografei o responsável do nosso Partido, Tombom Fati, que ali vive com a sua mulher Imbrunha Sedi, também conhecida por Salimata Sedi e que, desde Bissorã, tem vindo a trabalhar para o nosso Partido.



Foto 3 – Citação: (1963-1973), "Combatentes do PAIGC durante a refeição, base no interior da Guiné", Fundação Mário Soares / DAC – Documentos Amílcar Cabral, Disponível http:http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43222, com a devida vénia.


◙ 23-01-1964 (5.ª feira)

Vindos do interior do nosso País em fuga, passou hoje por Samine um numeroso grupo de habitantes da povoação de Bironque, no Óio, que foi incendiada pelos nossos camaradas, em virtude de ter sido lá instalada, a seu pedido, uma base de tropas coloniais. As tropas foram atacadas pelos nossos guerrilheiros e expulsas.

2.2 - SEGUNDA PARTE: CIRCUITO PELAS BASES DA REGIÃO DO ÓIO

Neste ponto, procuraremos aprofundar cada um dos eventos assinalados, cotejando-os com outras fontes bibliográficas, entre oficiais e particulares.

◙ 24-01-1964 (6.ª feira) – Viagem ao interior da Guiné

Em virtude do camarada Lourenço Gomes ter resolvido seguir para Dakar, não fixando data certa do seu regresso, resolvi arranjar um outro guia para não demorar mais a missão que me foi incumbida. Mandei chamar o Augusto Indam, que imediatamente acedeu a servir de guia, tendo sido marcada a partida para a base Central na noite desse mesmo dia, via Bigene.

Fizeram parte da caravana, além de mim e do guia Augusto Indam, um pequeno grupo de camaradas militantes, constituído por Bela Camará, Marciano Djata, Embatate Bessama, Iaia Seidi, Paulo d'Almada e Quebá Mané, que vão ficar na base. 

De Samine para o rio Farim que atravessámos, gastámos cinco horas. Em virtude da escuridão da noite o guia desorientou-se, perdemos o rumo e tivemos de passar a noite no tarrafe.

◙ 25-01-1964 (sábado)

Só hoje de manhã nos foi possível prosseguir a viagem, devido ao facto que atrás referi, o guia ter-se desorientado, tendo por isso dormido alguns camaradas numa margem e outros noutra.

Chegamos à povoação de Iador, onde fomos recebidos pelos camaradas Infamará Sedi e Imbulo Dafé, que nos conduziu a local seguro no mato, onde almoçámos e descansámos. O citado Infamará Sedi, desde há muito que tem vindo a facilitar aos nossos camaradas a travessia do rio Cacheu. 

Partimos de Iador às seis horas da tarde, altura que assim acharam por mais conveniente para prosseguirmos a viagem, evitando que viessem a surgir dificuldades pelo caminho por parte das autoridades coloniais. Chegámos à povoação de Banculém perto da meia-noite, onde pernoitámos. (…)

◙ 26-01-1964 (domingo)

De manhã e antes de partimos de Banculém, reuni-me com o Chefe e "grandes" da morança, aos quais, em nome do Secretário-Geral do nosso Partido, apresentei cumprimentos. (…) 

Finalmente às 08,30 horas, partimos de Banculém com destino a uma nova base recentemente criada pelo camarada Mamadu Indjai e que ficava no nosso caminho junto à povoação de Maqué. 

Esta base foi criada com o fim de serem defendidas as povoações de Gam-Uale, Canjogude e Maqué, situadas na estrada Bissorã-Olossato, ameaçadas de serem incendiadas pelas tropas coloniais portuguesas. Antes de chegarmos ao local onde está instalada a nova base, passámos pela povoação de Bissajar que visitámos e que fica também próxima da base. (…)

À chegada na base de Maqué, apresentaram-me guardas de honra um grupo de militantes, constituído por dois pelotões, um de raparigas e outro de rapazes, chefiados pelo camarada Quebá Mussá Seidi, que desfilaram perante mim, demonstrando o maior garbo e disciplina, tudo orientado pelo camarada responsável da base, Mamadu Indjai. (…) 

O camarada Mamadu Indjai, disse-me não puder na altura acompanhar-me pessoalmente à sua base principal, em virtude de ir partir para Iador, a fim de preparar uma emboscada a uma vedeta portuguesa que tem estado a fiscalizar ultimamente o rio Cacheu, junto ao porto de Iador, onde atravessei no início da minha vagem.

Parti pelas cinco horas da tarde, tendo chegado a Fajonquito já de noite, pernoitando ali, onde encontrei o camarada António Embaná, que dirige a mesma na ausência do camarada Mamadu Indjai.

◙ 27-01-1964 (2.ª feira)

(…) Pelas 11,45 horas, parti deste acampamento, agora interinamente e na ausência do camarada Mamadu Indjai, chefiado pelo camarada António Embaná, a caminho da base principal em Morés, aonde cheguei pelas 16,20 horas. Não fui encontrar o camarada Osvaldo Vieira, que segundo me informaram, tinha seguido para Cubajal [área de Gampará], onde foi chamado, para além do mais, transportar material para a Zona Norte, que se encontra na base do camarada Rui Djassi [onde morreu em combate em 24Abr64].

◙ 28-01-1964 (3.ª feira)

Neste mesmo dia, e já depois de se encontrar no Morés, na base Central, chegou o camarada Agostinho Silva, mais conhecido por "Gazela", vindo da base de Biambe de que é responsável, com o fim de pedir mais munições ao camarada Osvaldo Vieira, pois tem sofrido constantemente ataques das forças coloniais portuguesas, vindas de Bissorã, Bula, Bissau, Canchungo e Cacheu, escoltadas por aviões de reconhecimento, bombardeiros e jactos. 

Recebeu do Encarregado do Material [Manuel Azevedo], tudo o que requisitou excepto balas para metralhadoras "Pachangas", por não existirem em depósito na altura. Reclamou o mesmo responsável, armas anti-aéreas, em virtude dos insistentes ataques de aviação, pois quanto a ataques terrestres, embora seja sempre atacado por forças superiores às suas, isso não lhe preocupa muito. Disse-me ter trazido quatro comunicados de acções empreendidas, que foram entregues ao camarada Quintino Robalo.

Aproveitei o resto do dia para descansar.

◙ 29-01-1964 (4.ª feira)

Na madrugada deste dia, saí de Morés para Dando, a fim de visitar aquela base, de que é responsável o camarada Leandro Vaz. (…) 
Nesta base, existem 700 militantes, sendo aproximadamente 600 rapazes e 100 raparigas. Acabada a visita da base do camarada Leandro Vaz, visitei em seguida uma nova base recentemente criada, situada a poucos quilómetros de Dando e de que é responsável o camarada Augusto Pique. (…) 

Encontrei ainda naquela base, um prisioneiro de nacionalidade espanhola, de nome Benigno Gonzalez, que comprava peles de lagarto na Guiné, para a firma Samuel Amram & Filhos, que vinha de Mansoa para Bissorã, numa carrinha por ele mesmo conduzida, quando foi atacado por nacionalistas que lhe destruíram a carrinha, retirando primeiramente toda a ferramenta. O mesmo declarou que fugiu para a Guiné, por ter sido chamado para o serviço militar em Espanha, e que para aqui veio, por saber que a mãe que ele não conhecia ainda, se encontrava na nossa Guiné, onde vivera em tempos com o falecido Frederique da Policia. Diz que não quere voltar para a Terra e que prefere ficar em Conacri, se a Direcção assim o entender. Disse ter dois anos na Guiné. 

Ainda neste mesmo dia, chegaram à base Central os camaradas, enfermeiro Maximiano Gama e Irénio Nascimento Lopes, este último vindo a acompanhar o material destinado à base Central, vindo do Sul do País, notícia de que tive conhecimento, quando me encontrava ainda na base do camarada Leandro Vaz [Dando], tendo nessa altura seguido imediatamente para a base Central, o camarada Agostinho Silva "Gazela", para receber material, tendo-lhe sido fornecido dez carabinas "Mauser", algumas minas e balas de "pachanga".

# «MC» ▼ No dia seguinte ao levantamento do material requisitado pelo Cmdt "Gazela" (nome de Guerra de Agostinho Silva), responsável pela base de Biambe, encontramos referência, na bibliografia Oficial, à realização da «Operação Biambiloi» na região do Óio, onde participaram as seguintes forças: "CCAV 567 (aquartelada em Binar), 1 GC/CART 527 (aquartelada em Pelundo), 1 Pel Sap (?), 1 GC/CCAÇ 413 (aquartelada em Mansoa) e 2 GC/CCAÇ 556 (aquartelada em Porto Gole). Durante a operação foram destruídas 11 casas de mato, apreendido muito armamento e documentação". (Ceca; Vol VI, p. 195).

▬ Será que o material e documentos apreendidos se referem ao material levantado na base Central (Morés) pelo Cmdt "Gazela", referido anteriormente?
Não podemos confirmar!

◙ 30-01-1964 (5.ª feira)

Depois de descansar na tarde deste dia, contactei com alguns "grandes" das povoações em redor, que tendo sabido da minha chegada, me vieram cumprimentar e com os quais conversei demoradamente sobre assuntos concernentes à nossa Luta de Libertação Nacional. Nesta mesma data regressei à base Central.

◙ 31-01-1964 (6.ª feira)

Cerca das nove horas da manhã cheguei à base de Mansodé acompanhado do camarada Quintino Robalo. (…) 

Em seguida o camarada Inocêncio Kani agradeceu em nome de todos as palavras proferidas, passando a fazer-me a apresentação dos camaradas, entre eles a camarada responsável das mulheres, Sanú Sedi, e o responsável dos homens Cedi Seidi. Ainda fui também informado pelo camarada Inocêncio Kani, que formou um campo de instrução em Canjajá, perto do rio Cacheu, com a intenção de cortar a fiscalização da vedeta que aí faz serviço de vigilância, impedindo os nossos militantes de atravessarem o rio.

◙ 01-02-1964 (sábado)

Por iniciativa dos camaradas João da Silva e Quintino Robalo, que ficaram encarregados da base de Morés, na ausência do camarada Osvaldo Vieira e ainda do encarregado do depósito de material, munições e outros artigos, camarada Manuel Azevedo, foi-me prestada carinhosa recepção. (…) 

Ainda no período da manhã e a partir das dez horas do mesmo dia, sentimos tiros na direcção da base do camarada Corca Só, em Sansabato, saindo dois pelotões da base Central em seu reforço. 

Mais tarde ouvimos ruído de aviões que passaram por cima da base de Morés em direcção a Sansabato, verificando tratar-se de 2 jactos, 2 bombardeiros e 2 aviões de reconhecimento, que passaram a bombardear e a fazer rajadas de metralhadoras, com grande intensidade. Este combate prolongou-se até às 4,30 horas da tarde, tendo as tropas coloniais sofrido pesadas perdas [?], tendo os mortos e feridos retirados por helicópteros, sendo um deles atingido pelos nossos guerrilheiros. Da nossa parte temos somente a lamentar a morte dos camaradas António Colbert e Armando da Costa.

# «MC» ▼ Encontrámos na bibliografia Oficial uma referência, não aquela que acima é narrada, mas uma outra, relacionada com o rebentamento de uma mina anti-carro accionada por uma viatura na estrada de Bissorã, durante uma coluna da CCAÇ 413 (aquartelada em Mansoa). 

Esta ocorrência causou a explosão do depósito de gasolina da viatura, que ficou destruída, sofrendo as NT 3 feridos graves (dois vieram a falecer: Albano Ferreira Lourenço, natural de São Sebastião da Pedreira, Lisboa, e Joaquim Maria Lopes, natural de Castanheira de Pera. Os seus corpos foram inumados no cemitério de Bissau, campas 675 e 676, respectivamente. (Ceca, Vol VI, p. 195).

◙ 02-02-1964 (domingo)

Vindos do Regulado de Encheia, apresentam-se na base Central os chefes das povoações de Uenkes, Fajá Intumba; de Tinka, Imbunhe Palna; de Cumbulé, Fona Sime; de Untche, Nhatche Emboca; de Quinaqué, Bernardo Sanhá e de Tchombé, Incussa Matché, que vieram avisar que foram chamados para o pagamento do imposto de capitação dentro do prazo de 20 dias, a contar daquela data. Também pediram pelotões armados, para defenderem as populações do regulado de Encheia. 

(…) Em resposta ao pedido de pelotões armados, ficou assente pelos responsáveis interinos da base, que o assunto seria tratado, logo após a chegada do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira), que no seu regresso esperam traga material suficiente para a criação duma base em Encheia.

# «MC» ▼ Quanto ao "pagamento do imposto de capitação" trata-se de uma decisão levada à prática pelo Chefe Administrativo do Posto de Encheia, à data, José Cerqueira Leiras, ex-militar da Companhia de Caçadores 153 (1961-1963), sendo este um dos temas abordados no seu livro «Memórias de um esquecido», edição de autor, 2003… agora lembrado!

A este propósito é importante destacar o facto de José Leiras não ter embarcado com a sua CCAÇ 153, de regresso ao Continente, viagem iniciada em 24 de Julho de 1963, a bordo do N/M «Niassa», tendo passado à disponibilidade em Bissau. É nessa qualidade que decide deslocar-se ao palácio para falar com o Governador Peixoto Correia [António Augusto Peixoto Correia (1913-1988)], pois que já lhe tinha destinado o comando do Posto de Encheia.

Na qualidade de administrador local, inicia a sua missão com o recenseamento das 30 tabancas existentes, cobra impostos, manda efectuar a plantação de dezenas de mangueiros à beira da estrada principal e trata de reparar o posto sanitário. Neste âmbito escreve: 

"Com a mão-de-obra negra, orientei os trabalhos e então construiu-se uma pequena pista que lá pudesse ir uma avioneta levar correio. Pelos trabalhos efectuados, éramos muito queridos lá na terra só que o terrorismo naquela zona começava também a dar sinal de vida e em pouco tempo alastrou". (P16503).

Sobre a importância deste documento histórico, escrito na primeira pessoa pelo seu autor, natural do Alto Minho, já o camarada Beja Santos nos apresentou, no P16503 acima citado, a sua apreciação crítica. Aconselha-se, pois, a sua consulta para uma melhor compreensão do contexto da fase inicial da luta armada, ainda que tenhamos de a ela voltar na segunda parte deste trabalho.

◙ 03-02-1964 (2.ª feira)

Manhã muito cedo parti em visita à base do camarada [Mamadu] Corca Só ansioso de saber o resultado da luta ali travada no [sábado] dia 01Fev64.

Vim a saber que os portugueses pretendiam atacar aquela base de surpresa, mas que felizmente um grupo de nossos militantes, que tinham partido em serviço de ronda, avistou-os numa campada de mancarra, aproximadamente a cem metros da base, e apesar da grande desproporção numérica a nosso desfavor, procuraram a melhor posição possível e abriram fogo, enquanto mandaram um camarada avisar na base o que se passava. Isso deu tempo que se preparasse melhor a defesa, dando tempo a que dois pelotões saídos da base Central fossem em seu socorro, sendo um pelotão comandado pelo camarada António Colbert e o outro pelo camarada Domingos Catumbela, não tendo este último chegado a entrar em luta, preferindo esconder-se.

Conforme fui informado pelo camarada Corca Só, responsável da base, que lamentou vivamente emocionado a perda dos camaradas, António Colbert e Armando da Costa, que morreram como dois verdadeiros heróis, pois o primeiro tendo sido avisado por um mouro, que deveria ser gravemente ferido em combate, não se conformou e alheio a todo o perigo prontificou-se imediatamente a seguir em reforço, corajosamente se expõe à luta e tendo despejado todo um carregador da sua metralhadora, voltou-se para pedir um outro carregador ao seu municiador, mas este fugiu levando as munições, pegou então numa "Mauser" que se encontrava em poder de um outro camarada, e abrigado por detrás do tronco de uma palmeira, continuou a fazer fogo, tendo sido então infelizmente atingido por uma bala inimiga que perfurou o tronco que se encontrava podre e se foi alojar no seu ombro esquerdo, conduzido ainda com vida para a base Central veio a morrer momentos depois. 

O camarada Armando da Costa, que lançava granadas, causando enormes perdas ao inimigo [?], entusiasmado com o calor da luta, levantou-se e avançou destemidamente dando vivas ao PAIGC [?], quando foi atingido por uma bala na garganta que o matou. Morreram como dois grandes heróis, estes bravos companheiros de luta, que em todos os camaradas, deixaram uma imensa saudade e a maior admiração por seus actos de valentia.

Sinceramente emocionado pelo que ouvira, soube que os nossos guerrilheiros da base do camarada Inocêncio Kani (Mansodé) tinham apreendido a ambulância do concessionário Manuel Saad, donde retiraram as malas de correio, encomendas postais, diversas mercadorias e alguns livros de instrução primária, que vão ser distribuídos por diversas bases a fim de serem leccionados aos nossos militantes: Incendiaram em seguida o carro, prendendo quatro professores de adaptação, um auxiliar da campanha antituberculosa e um pedreiro da Administração de Bafatá, cujas guias vão anexas ao presente relatório. 

Na mesma data foi ainda apreendido o camião industrial da aguardente e comerciante, de nome Simões [, seria o Manuel Simões, de Jugudul, (1941-2014) ?], estabelecido em Cutanga, área do Posto Administrativo de Nhacra, que também foi incendiado, tendo sido preso o motorista Alberto Buássi, de raça mancanha, bem como o seu ajudante.

▬ Sobre estas últimas ocorrências, não conseguimos obter informações.

◙ 04-02-1964 (3.ª feira)

De regresso à base de Morés, tive ocasião de visitar o depósito geral de material e de diversos artigos apreendidos pelos nossos guerrilheiros, constatando a existência de muitos artigos de uso corrente, conforme o original do balanço, que me informaram ter sido enviado para a Direcção do Partido em Conacri e que se encontram bem arrumados e devidamente conservados. 

Notei também com agrado a rigorosa conservação das armas e munições, a cargo do referido encarregado do Depósito, camarada Manuel Azevedo, que no desempenho das suas funções tem todo o material muito limpo e em devida ordem, notando-se o melhor controlo e limpeza das armas também distribuídas ao pessoal. 

De tarde chegou-nos a notícia, por um camarada vindo da base de Biambe, da prisão do camarada Rafael Barbosa, que tendo vindo até Nhacra, escondeu-se ali numa casa, cujo proprietário, traiçoeiramente, o foi denunciar às tropas colonialistas. (…)

Notei que a melhor eficácia das acções dos nossos guerrilheiros, se deve à utilização de minas nas estradas, que muitas baixas têm causado aos inimigos, tanto em veículos, material e vidas, e de que resulta verificar-se ultimamente raro movimento de carros, nas estradas sob o controlo dos nossos militantes.

◙ 05-02-1964 (4.ª feira)

Iniciei nesta data a viagem de regresso, acompanhado de dois feridos, um rapaz e uma rapariga, por acidente na limpeza e manejo de armas sendo remetidos para o hospital de Ziguinchor.
Continua…
► Fontes consultadas:

Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.011. Título: Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné. Assunto: Relatório enviado a Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por Bebiano Cabral de Almada, Membro do Bureau de Dakar, sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné Bissau. Data: Sábado, 15 de Fevereiro de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).
Ø  Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde
Jorge Araújo.
21MAI2020
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