quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18904: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (108): O Carlos Silvério, nosso futuro grã-tabanqueiro... n.º 783... Encontrei-o na Lourinhã e ele contou-me o seu... "segredo" ... Também me disse que morou em Bissau, na rua do "Chez Toi", quando lá esteve, casado, com a Zita, em 1972/73...


Oeiras > Algés  > 35.º almoço-convívio da Tabanca da Linha > 18 de janeiro de 2018 >  "O Carlos Silvério, meu amigo, camarada, vizinho e conterrâneo... Veio com a Zita. O casal é lourinhanense... 'Periquitos', na Tabanca da Linha. Ele, furriel miliciano,  da CCAV 3378, andou pelo Olossato e por Brá, antes de a gente fechar as portas da guerra, entre abril de 1971 e março de 1973. A Zita esteve com ele em Bissau... Já o convidei meia dúzia de vezes para se sentar à sombra do nosso poilão... Mas ele diz que prefere o sol... Lugares ao sol..., não temos na Tabanca Grande, só à sombra... Espero que ele ainda entre ao 7.º convite... Ficou a ponderar: parece que o problema é a foto... fardada. Enfim, temos que compreender e respeitar quem tem alergias às fardas" (*)...

Foto: © Manuel Resende (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Encontrei, este domingo passado, o meu amigo e camarada Carlos Silvério (**). Tinha vindo à missa da tarde, aqui na igreja da Lourinhã. Perguntei-lhe pela saúde da sua esposa Zita,  bem como  pelo padre Batalha, prior da freguesia de Ribamar onde ele mora (, e que é um grande amigo da Guiné-Bissau)... Um vai passando melhor, a outra, lá vai lidando (mal) com os seus problemas de coluna... Bem diz o povo: "Até aos quarenta bem eu passo, depois dos quarenta, ai a minha perna, ai o meu braço!"...

Como não podia deixar de ser, sempre que o reencontro, voltei a perguntar-lhe, pela enésima vez, quando é que ele tem pronta (leia-se: digitalizada...) a tal foto do tempo da tropa ou da guerra... Garantiu-me que sim, que a foto já está digitalizada pela sua filha e só ainda não a mandou porque está à espera do nº... 783 para formalmente pedir a inscrição no blogue...

Porquê este "fétiche", esta obsessão com o n.º 783?... Nós só vamos no n.º 776 (***). Faltam, portanto, 7 números para chegarmos ao 783, altura em que ele se quer inscrever... Em boa verdade, e ao ritmo de entrada de novos membros da Tabanca Grande, só daqui a dois ou três meses é que ele nos dará a honra da sua presença, sentando-se então à sombra do nosso poilão...

Ele já tinha feito essa confidência ao nosso coeditor Carlos Vinhal. E, respeitando a sua vontade, vamos ter mesmo que honrar seu pedido. Que é uma ordem, tratando-se de uma camarada da Guiné, e para mais filha da Lourinhã... Vamos então reservar esse número, o 783, para ele.

Vamos lá explicar melhor, para que não se pense que é um capricho dele... O 783 era o seu número de soldado-instruendo na recruta, em Santarém. Acabada a recruta, e quando ele se preparava para ir uns dias de férias, andava a passear com a sua Zita nas ruas de Santarém, quando passa rente a um major de cavalaria... Distraído com a namorada, mal deu conta dos galões amarelos do oficial superior que lhe fez a tangente... Mas ainda foi a tempo de se virar e de lhe bater a pala... O major continuou o seu caminho, mas, matreiro ou sacana, foi dar uma volta e, logo mais à frenre,  virou em sentido contrário  para o apanhar de frente. O Carlos desta vez não foi apanhado desprevenido e fez-lhe, corretamente, a devida continência... Mas o senhor oficial estava mesmo determinado em lixá-lo. Tirou-lhe o número (o 783) por causa da desatenção anterior.

Resultado: quando o Carlos Silvério chegou ao quartel, já tinha a participação do major... Enquanto o  resto do pessoal (cerca de 400)  foi gozar unsmerecidos  dias de licença em casa, o Carlos ficou de castigo no quartel... Seguindo depois diretamente, de Santarém para Tavira,  para o CISMI, numa penosa viagem de comboio que levou toda a noite, ...

Compreensivelmente, o Carlos Silvério "ficou com um pó" aos oficiais de cavalaria, em geral, e aos majores, em particular, nunca mais se esquecendo do seu azarento n.º 783 da recruta em Santarém. Ele é primo do tenente general reformado Jorge Manuel Silvério, nascido em Ribamar, em 1945, e já lhe contou em tempos esta peripécia que o deixou desgostoso em relação à instituição militar...

Está, pois,  explicado o "mistério" do n.º 783... e o desejo de só entrar para a Tabanca Grande depois do n.º 782...

2. Também me disse que gostou muito de ler a minha "short story" sobre o "Chez Toi" (****). Ele morava em Bissau, depois de vir do Olossato, com a Zita, já casado, justamente na rua do "Chez Toi"... Já não se lembra do nome da rua, só sabe que ia dar à  messe dos sargentos da Força Aérea (*****).

De resto, era complicado sair e entrar, numa rua "mal afamada" como aquela, sobretudo de noite, para uma jovem branca, casada, como era o caso da Zita.

Ficamos a saber, pelo depoimento do Carlos Silvério, que o "Chez Toi" existia (ou ainda existia) em 1973/74... Ele e a Zita costumavam ir ao Pelicano jantar e também comer ostras numa casa ali perto.. Eram 25 pesos uma travessa... Também costumavam comprar camarão, acabado de apanhar no Rio Geba, às vendedeiras locais que por ali passavam...

Boa noite, Carlos, fica registado o teu pedido e é hoje divulgado o teu desejo de seres o nosso grã-tabanqueiro n.º 783... Esperemos que, rapidamente, apareçam seis camaradas ou amigos da Guiné para perfazermos o teu número. Fica aqui a nossa promessa: o 783 fica reservado para ti!...

Um beijinho para a Zita, com votos de rápidas melhoras.
Um alfabravo para ti.

(LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 22 de janeiro de  2018  > Guiné 61/74 - P18241: Convívios (839): 35º almoço-convívio da Tabanca da Linha, Algés, 18/1/2018 - As fotos do Manuel Resende - Parte II: Tudo gente magnífica... "Caras novas", com destaque para o pessoal da CART 1689, camaradas dos escritores Alberto Branquinho e José Ferreira da Silva

(**)  Último poste da série > 15 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17474: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca ... é Grande (108): Na Lourinhã, fui encontrar o ex-1º cabo at inf Alfredo Ferreira, natural da Murteira, Cadaval, que foi o padeiro da CCAÇ 2382 (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, 1968/70)... e que depois da peluda se tornou um industrial de panificação de sucesso, com a sua empresa na Vermelha (Luís Graça)

(***) Vd. poste de 2 de agosto de 2018 >  Guiné 61/74 - P18891: Tabanca Grande (466): Manuel Gonçalves, ex-alf mil manutenção, CCS / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73; ex-aluno dos Pupilos do Exército, transmontano, vive em Carcavelos, Cascais. Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 776.

(****) Vd. poste de  4 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18895: Estórias de Bissau (18): Uma noite no Chez Toi: o furriel Car…rasco, meu anjo da guarda... (Luís Graça)

(*****) Segundo o nosso amigo Nelson Herbert,  jornalista guineense  que para a América, era aí que ele e os putos seus amigos brincavam com o seu "primeiro carro de rolamentos", utiliziando para o efeito o "declive que ia dos serviços metereológicos/Boite Cabaret Chez Toi... no cimo da então nossa rua, Engenheiro Sá Carneiro [, subsecretário de Estado das Colónias, que visitou a Guiné em 1947, ao tempo do Sarmento Rodrigue]"...  Essa rua era "a mesma da Praça Honório Barreto, do Hotel Portugal, do Café Universal, do Restaurante ou Pensão Ronda... já agora que ia dar ao cemitério, passando lateralmente pelo hospital" e indo dar "à messe dos Sargentos [da Força Aérea]"...

Guiné 61/74 - P18903: Parabéns a você (1476): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18894: Parabéns a você (1475): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico-Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira (ex- Alf Mil Inf da CCAÇ 1420 - Guiné 1965/67 e Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 - Guiné 1970/72)

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18902: Vídeos de guerra (16): O FIAT G-91 na Força Aérea Portuguesa, um filme da Defesa Nacional (Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista de MMA da BA 12)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Santos (ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12, Bissalanca, 1967/69), com data de 1 de Agosto de 2018:

Caro amigo e camarada Carlos Vinhal
Desejando que saúde e qualidade de vida te acompanhem sempre a ti e a todos os teus, envio-te este vídeo que considero de grande interesse e relevância, não só para a Força Aérea Portuguesa, mas para todos os combatentes da nossa guerra em África.
Retratam e contam episódios de guerra não só do Fiat G-91, mas também de todas as outras aeronaves que apoiaram as nossas Forças Terrestres e Navais em todos os teatros de actividade em que estivemos envolvidos entre 1961 e 1974, na Guiné, Moçambique e Angola.
Particularmente singular o facto de que numa das sequências do vídeo, em 1968/1969, me revejo em acção na Linha da Frente da BA12 - Bissalanca em apoio de missão ao saudoso Capitão Pil./Av Amílcar Barbosa de saída para uma missão de bombardeamento e posteriormente após a aterragem, após cumprimento da missão.

A todos, combatentes de Terra, Mar e Ar, particularmente aos camaradas da Guiné, o meu grande abraço de amizade.

Abraço,
Mário Santos



O Fiat G-91 na Força Aérea Portuguesa
Com a devida vénia a Defesa Nacional
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18342: Vídeos de guerra (15): "Guerre en Guinée" (ORTF, 1969, 13' 50'): o governo português suportou o custo das viagens e estadia de todos os elementos da equipa do programa "Point Contrepoint", da televisão pública francesa, durante cerca de um mês... Eu assisti à montagem do filme e trouxe, de Paris, cópia para o Marcelo Caetano... Quando viu a cena da emboscada, disse-me: "Temos que acabar com esta guerra" (Manuel Domingues)

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2018

Queridos amigos,
Era tempo de se consagrar a devida homenagem à obra ímpar da literatura da guerra colonial. Possui, passe a expressão, uma organização sinfónica, tem andamento empolgante, frenético, parece que troam metais e a percussão, perfilam-se muitos dos homens daquela Companhia, e aos poucos o leitor toma nota que está ali Portugal inteiro; Há um andamento para conhecermos o meio, com uma lanceta cirúrgica o destacamento de M é visitado na sua amplitude e apercebemo-nos que a guerra mudara de natureza, aquele comandante que dá pelo nome de Tio Abílio será substituído por um austero burocrata que só quer resultados. E no fim, num tremendo halali, seremos enfronhados naquela operação Nó Górdio que terá mudado o sentido da guerra, a farronca da vitória deu lugar a uma inesperada disseminação da FRELIMO até ao centro de Moçambique.
Consumara-se o nó cego.
É com a maior satisfação que aqui vou vasculhar o primeiro clássico da literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


Nó Cego, a obra maior de toda a literatura da guerra colonial (1)

Beja Santos

Uma arquitetura narrativa avassaladora, parágrafos cortantes, imagens originais, uma cadência verdadeiramente sinfónica de lentos, rápidos, moderados, adágios, tornaram esta obra, publicada inicialmente em 1982, no documento literário indiscutivelmente mais significativo de toda a literatura da guerra colonial: Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2018.

Logo, a ironia, com um ressaibo de mofa, uma advertência para melhor compreender certas estratégias de cinismo, farronca e desmedida ignorância brandidas por uma certa hierarquia militar:
“Esta é uma obra de ficção. Factos, pessoas e situações narradas não aconteceram nem existiram, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Pormenores eventualmente chocantes dizem respeito a outras gentes e a tempos em que a guerra era suja, mas povoada por humanos combatentes, com forças e fraquezas, dúvidas e certezas, sabedorias e ignorâncias; a real verdade foi outra, vejam-se as fotografias e leiam-se os discursos da época, limpas e gloriosas acções representadas por magníficos heróis!”.

E qual escriba penitente na sua obscuridade, zomba da fama, da farronca e dos panteões da gloríola:
“O autor é pacato e gordo, cai-lhe o cabelo e escreve de noite com os óculos na ponta do nariz, não apresenta nenhum sinal visível que o indicie como particularmente dotado para esta arte de escrever. Por si, garante, a pátria não verá aumentar a galeria dos ilustres e não ganhará feriado em data de morte ou de centenário”.

Estamos no Planalto dos Macondes, aí por finais de 1969, o leitor entra direto numa operação de uma Companhia de Comandos, por sinal a primeira operação em Moçambique. Tropa bem preparada mas inexperiente, salvo o capitão que já andara em tal labuta como oficial subalterno e o furriel Passos que se oferecera como voluntário para uma segunda comissão nas tropas especiais.
Dá-se uma pincelada no ambiente:
“Na mata das zonas ravinadas do Planalto dos Macondes, o terreno um pouco mais húmido alimentava uma vegetação densa e difícil de transpor. Cada homem via à sua frente apenas os vultos de dois ou três que o precediam e sentia os passos dos que o seguiam. Naquela fornalha do auge da época seca, onde não corria uma aragem, eles e uns mosquitos pequenos que se metiam pelos olhos, pela boca, pelo nariz, como se fossem cegos, pareciam ser os únicos seres vivos”.
O silêncio é sepulcral, e, súbito, um estrondo, há feridos, o capitão dá ordens, e vem a primeira fotografia do capitão:
“Seco de carnes e de rosto de feições regulares, inspirava confiança, apesar de ser quase da mesma idade dos homens que comandava. Mantinha uma distância de reserva entre si e eles que alguns confundiam com arrogância. Por vezes, os seus gestos pareciam displicentes, mas ajudavam a criar uma aura de consideração e de invulnerabilidade à sua volta.”

O soldado Pedro perdera um pé, o capitão tranquiliza-o, chama-se o helicóptero, segue-se o calvário da espera, as transmissões estão empancadas. Ouve-se tiroteio, depois de muita tensão avizinha-se um helicóptero. Vão aparecendo nomes de soldados: o Torrão, fora pastor no Alentejo; Tino, um soldado moreno, atarracado, de nariz afilado e cabelo luzidio; Brandão, o especialista de transmissões da Companhia; Vergas, intermediário de putas e chulos, nascido no Bairro Alto. Na arquitetura da narrativa há sempre tempo para vir ao passado deste homens que estão nesta primeira operação em Moçambique, começa-se pelo capitão e o seu ambiente familiar, agora os soldados Comandos fazem uma pausa para comer, fala-se do guia Evaristo, é um homem condenado. Recomeça a progressão, é a vez de conhecermos um pouco o passado do Tino, não muito longe, enquanto se progride naquela mata densa, ouvem-se gritos e rugidos, depois a mata acabou repentinamente “como uma muralha de castelo caída a pique, e surgiu um terreno limpo, com palhotas debaixo das árvores por entre as quais ziguezagueavam vultos em fuga”.
Ataca-se quem ali vive, há quem corte apêndices auditivos com facas de mato, à distância os guerrilheiros reagem à morteirada, irá morrer o Preguiça:
“À medida que os camaradas se aproximavam, distinguiu quatro deles caminhando lentamente, segurando pelas pontas um pano de tenda carregado como uma trouxa informe ensopada em sangue. O Lopes espreitou para a abertura negra formada por quatro vértices de pano de lona sem perceber imediatamente que aquela massa de sangue e tripas era o resto do que fora um corpo.
Sem uma palavra, os homens de olhos vazios e os lábios brancos de suor depositaram no trilho seco a sua carga. As moscas zumbiram em busca de uma refeição de sangue, sem que eles fizessem um gesto. O alferes Lencastre, branco como a cal, fez um gesto com o queixo para os homens do furriel Freixo substituírem os que transportavam o morto.
- Quem era? – perguntou serenamente o Lopes.
- O Preguiça, a granada caiu-lhe mesmo em cima, não deu um ai – respondeu o outro como se falasse sozinho.”

O cabo enfermeiro tratava os outros feridos e o autor dá-nos oportunidade de saber quem é este homem, de onde veio, foi estudante nas Belas Artes. A aviação bombardeou a posição dos guerrilheiros, a Companhia atravessa o vale, sobe-se a encosta do planalto, faz-se pausa, depois recomeça a marcha, a meio da manhã veio o helicóptero que levou o morto e os feridos e deixou jerricãs de água, o guia Maconde fala sobre o resto da construção do antigo posto de água número nove:
“ – Pessoal do planalto não tinha água, ia procurar longe, longe mesmo, ao rio Muera, demorava quase um dia as mulheres ir e vir. Tugas da administração prometeram dar água a maconde, mas quando fez posto era preciso meter moeda de quinhenta para ter uma lata e maconde não tinha dinheiro, trabalhava na machamba e tinha sede. Água não compra, água vem no rio, vem do céu, Deus dá. Maconde pensou que não era direito pagar, começou a fazer barulho, a fazer banja com homens grandes, um dia veio governador de Pemba, Porto Amélia, veio tropa, matou gente e começou a guerra. Já não lembra, era menininho, sabe de ouvir contar…”.

Ficamos também na posse de dados curriculares dos alferes Lourenço e Lencastre. Finda a operação, volta-se a M em coluna motorizada, viaja-se à máxima velocidade possível para não dar tempo aos guerrilheiros de colocarem novas minas.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)

domingo, 5 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18899: Blogues da nossa blogosfera (98): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (17): Palavras e poesia

Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


BOTÃO-FLOR DA PRIMEIRA FOLHA VERDE

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Há uma mulher de alvor azul
com um fio de azeite nos lábios finos
e uma gota de água no canto dos olhos secos.
Os lábios foram carnudos e vermelhos de sangue
e os olhos eram verdes como o sol
quando o sol era verde.
Tem o rosto sumido na sombra
descaída ao longo dos braços
como vela despregada de navegar.
Outrora
o mar encapelado brilhava nos seus olhos
cobrindo de espuma branca as alamedas do desejo.
Havia uma cidade entre os lábios
envolta em lagos de montanha
com peixes verdes voando entre os pinheiros.
Não havia pombas brancas
caídas no chão da cidade morta.
Nas ruínas da ilusão
um edifício muito alto se erguia
nas paredes do deserto
e rompia o céu de nuvens negras.
No vão da noite que acolhe os sonhos
o botão-flor da primeira folha verde
inverteu a vida entre o real e o imaginário
nas dobras do tempo em universal dilema.
Há uma mulher de alvor azul
com um fio de azeite nos lábios roxos
e uma gota de água gelada no canto dos olhos
mas cedo se fez tarde a madrugada
sem tempo para morrer
na vida de um poema.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18877: Blogues da nossa blogosfera (97): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (16): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18898: Blogpoesia (578): "Sombras...", "Minha sonda..." e "Laçadas falsas...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Sombras...

Acendam-se todas as luzes e se apaguem as sombras negras que toldam o nosso mundo.
Brilhe o poder em esplendor nas mãos de gente capaz e bem formada.
Chova a riqueza nas casas pobres que perderam a saúde e não a encontram.
Uma vaga de paz inunde os países martirizados pela guerra atroz de que não são autores.
Se destruam todos os castelos do capital que escraviza o mundo a favor duma minoria desumana.
Venha enfim a paz e a concórdia na base firme da fraternidade universal...

ouvindo concerto n.º 2 de Rachmaninoff por Khatia Buniatishvilli
Mafra, 3 de Agosto de 2018
8h1m
Jlmg

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Minha sonda...

Andou perdida no universo a minha sonda.
Poisou à minha porta como um fiel amigo abandonado.
Fui ver-lhe a caixa preta.
Perscrutar-lhe os seus registos.
Estou atónito.
Durante esta vida inteira,
seguiu meus passos sobre esta terra.
Ali estavam nítidas as minhas brincadeiras de criança.
Quando a inocência ainda reinava.
As descobertas todas que fui fazendo.
No meu corpo e minha alma.
Para quê as diferenças?
Afinal, nem todos somos iguais.
O porquê dos pais.
Depois a escola.
Primeiro salto nas aventuras.
Tantos feitios diferentes do meu.
A melhor forma de viver com eles.
Aprender a contar e ler.
Quando se abriu o mundo.
Muito maior que o pequeno terreiro das brincadeiras.
As disputas por ser melhor.
Faziam doer.
E aquele casarão estranho onde se ditava a missa e rezava a Deus...
Que queriam dizer?
E, por aí fora. Até ao dia de ontem.
Em que meu filho partiu um dedo.
Irei concentrar-me, por dentro dela e decifrar tudo
até ao meu derradeiro dia...

Bar "Os sete momentos" , Mafra 2 de Agosto de 2018
10h2m
Jlmg

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Laçadas falsas...

Passo meu tempo a desatar laçadas como quem raspa raspadinhas.
Um engodo.
Todas brancas.
Não há como saber bem o chão onde se pisa os pés.
Ninguém apanha em falso um precavido.
Dos desatentos gosta o carteirista.
Caminhar com a cabeça a pino é remédio santo
para quem quer caír.
Tantos males seriam evitados se, na cabeça, houvesse tino.
Mas, há sempre tempo para corrigir, enquanto há tempo...

Bar "O caracol", arredores de Mafra
30 de Julho de 2018
10h49m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18876: Blogpoesia (577): "Os sintomas", "Minh'alma leve..." e "Minhas ideias...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18897: Estórias avulsas (91): "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... Lembranças da praia de Mil Fontes, onde passei as férias de agosto de 1983 a 1999... (Valdemar Queiroz)


Portugal > Odemira > Vila Nova de Mil Fontes >  Praia  de Mil Fontes > Pertence à freguesia do mesmo nome, concelho de Odemira, distrito de Beja, situando-se na margem norte da foz do rio Mira. Encontra-se inserida no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. (Vd. Wikipédia)


Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Valdemar Queiroz  [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70):

Data: 3 de agosto de 2018 às 22:09
Assunto: Tempos de Férias


Como estamos em tempos de férias e haver sempre recordações desses tempos, cá vai uma estória passada em Vila Nova de Milfontes.

Passei férias em Milfontes de 1983 a 1999, empre no mês de Agosto.

Em 1983, Vila Nova de Milfontes era uma pequena povoação, só com as ruas principais alcatroadas.  Uma pasmaceira, como os seus habitantes diziam. Havia poucos habitantes e pouca actividade para se arranjar trabalho. Uma pequena actividade piscatória e pouco mais. No verão sempre apareciam alguns banhistas, principalmente os que se dedicavam ao campismo selvagem. Havia dois ou três restaurantes e o mercado tinha poucos produtos para venda. Fora o campismo, acampava-se em todo o lado, modalidade de que eu nunca fui grande amante.

Havia já alguma oferta de casas para aluguer. Alugava-se o mês inteiro, os donos iam viver para anexos ou vice versa, havia anexos com melhores condições que as casas, e ainda nos ofereciam polvos, fruta e batata doce. Havia grande dificuldade em lá chegar, a não ser com carro próprio, só havia uma carreira de manhã e à tarde entre Milfontes - Sines e julgo que para o Cercal.

Para se ter uma ideia da pasmaceira, em Maio de 1983 fui lá para arranjar e marcar alojamento para as férias desse ano e desde quase a entrada da povoação até ao farol no limite e junto à praia apenas me cruzei com duas pessoas.

Mas, partir de 1984 e com a rede de Expressos RN, de Lisboa à Zambujeira do Mar, tudo começou a mudar.

Agora cá vai a estória. Eu, para ser bem tratado,  tinha por hábito dizer "depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... e quando fui com o meu amigo Fanã beber um medronho a um cafezinho, junto da barbacã do Castelo, disse para o empregado: "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal".

Talvez por usar cabelo curto, bigode e sobrolho carregado o homem serviu-nos
e garantiu: "Wste é do melhor,  bebam outro que este pago eu". Notei que no dia a seguir era olhado/cumprimentado por gente lá da terra, duma maneira diferente..

Ao jantar fui como habitualmente ao mesmo Restaurante / Taberna, no Rossio, que tinha que se ir cedo para arranjar lugar e peixe grelhado. Quando não é o meu espanto,  o empregado, marido da filha do dono da casa, disse que tinha mesa reservada para mim.

Conversa pra lá, conversa pra cá, o empregado disse-me que já tinha concorrido prá Polícia mas por causa da vista foi reprovado (usava uns óculos com lentes fundo de garrafa). "Pois é, por causa da vista",  disse-lhe eu. "Mas o meu capitão é que podia dar um jeitinho",  disse ele. "Espere lá, primeiro não sou capitão e segundo não tenho nada com a Polícia". Ele não desarmou: "Mas é da Guarda Fiscal e quando andam à paisana dizem todos o mesmo para não serem conhecidos".  Retorqui: "É, pá, desculpe mas está a fazer uma grande confusão"...  Paguei e fui dar uma volta.

No outro dia dirigi-me ao Posto da Guarda Fiscal, que ainda funcionava como tal, e expliquei ao Cabo o que se estava a passar. O homem olhou bem para mim: "Pois,  e deixe que lhe diga...parece mesmo!"...
Julgo que o Cabo andou ou mandou dizer a toda a gente que eu não era nada capitão, mas mesmo assim não me safei e durante mais uns bons anos notava que havia alguns homens da terra dizendo uns para os outros: "Lá vem o capitão  que arranja trabalho na Guarda Fiscal".

Boas Férias
Valdemar Queiroz

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sábado, 4 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18896: Os nossos seres, saberes e lazeres (278): De Aix-en-Provence até Marselha (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Um dia em cheio, Nîmes tem muitíssimo para ver, desde a Roma das Gálias à arquitetura contemporânea e mesmo à arquitetura do século XIX e do início do século XX é vistosa, por aqui andou a indústria das sedas e a região é opulenta em vinha, o seu produto final corre o mundo inteiro. É nítido o afã em concorrer a Património da Humanidade, as obras não param no anfiteatro, no que resta das muralhas, no castelo. Ali bem perto, em Pont du Gard, está o mais espetacular aqueduto romano já classificado pela UNESCO. É nítido que a cidade não quer ficar atrás.

Um abraço do
Mário


De Aix-en-Provence até Marselha (10)

Beja Santos

Nova etapa: Nîmes, aqui se arriba pela manhãzinha, sai-se da estação de caminho-de-ferro e dá-se de chofre com esta avenida sumptuosa, este original regato de água, as árvores à espera da primavera. Vem-se a Nîmes porque há as arenas, a famosíssima Casa Quadrada, os jardins e imensos vestígios da era romana. Mas nada de ilusões, Nîmes é muito mais que um depósito do passado, sente-se rapidamente que se reabilita e produz arquitetura nova.



Vamos bisbilhotar a Roma das Gálias, quando Nîmes se tornou colónia de direito romano, teve o seu apogeu no século II d.C., tudo andou bem até que a chegada dos Visigodos pôs termo à sua prosperidade. O viandante não sabia e guardou a referência de que no século XVII Nîmes ganhou reputação pelas manufaturas dos têxteis. E aqui surgiu um tecido, o Denim, que nós conhecemos pela sua utilização mundial nas calças de ganga. Importava-se algodão e índigo, para lhe dar cor, a sarja de Nîmes ganhou fama pela sua resistência, tinham nascido os blue jeans, no século XIX Levi Strauss lançou as calças que hoje são dos indicadores da globalização. O anfiteatro ou arenas conta-se entre os maiores da Gália Romana, 133 metros de comprimento e 101 de largura, uma fachada com 21 metros de altura, com dois níveis, cada um com 60 arcos e no interior podem sentar-se 20 mil espectadores, naquele tempo a atração empolgante eram as corridas de carros, os combates de animais e os gladiadores. Quem vem de Arles tem motivos para não andar de boca aberta mas reconheça-se o esplendor destas arenas, o viandante veio encontrar obras de reabilitação, Nîmes pretende candidatar-se a Património Mundial da Humanidade – e tem razões para isso.


Este edifício moderno, depois de um concurso muito disputado, revela-se em diálogo perfeito com o anfiteatro romano, é um projeto de Elisabeth e de Christian de Portzamparc, está envolvido por uma fachada de vidro translúcido, o edifício parece que levita e ondula face à verticalidade dos arcos e à massa imponentes do anfiteatro. É aqui que irá funcionar o Museu da Romanidade, seguramente um património arrojado a juntar à candidatura da UNESCO.


Este edifício lembra um transatlântico em chapa metálica, ferro e vidro, mas atenção são dois longos edifícios paralelos, o engenho e arte passou pelo desafio de ganhar espaço e dar conforto e luz em cada um dos seus 114 apartamentos sociais. Edifício premiado, e com razão.


O século XIX teve os seus rasgos de esplendor em Nîmes com a indústria da seda só que a concorrência vinda de Lyon foi brutal, Nîmes procurou recuperar com o setor vitivinícola, que marcou uma nova era de prosperidade, aqui ficam imagens alusivas a esse período.



Depois do anfiteatro, a Casa Quadrada é a segunda maior atração da presença romana nas Gálias em Nîmes. É impressionante, foi construída sobre um alto pódio, o templo dominava o fórum da cidade antiga, estava encravado no centro da vida pública. É uma construção do século I d.C., mas o seu nome de Casa Quadrada foi dado no século XVI. Foi dedicado a dois filhos adotivos do Imperador Augusto, Caius e Lucius César. É o único templo do mundo antigo completamente conservado. Bastava esta referência para a impressão que provoca, mas há mais: a harmonia das proporções, a elegância das colunas até aos capitéis coríntios, a finura da sua decoração. Foi alvo de um enorme restauro de 2006 a 2010. É um dos grandes trunfos para a candidatura à UNESCO.



O viandante percorre agora os Jardins da Fonte, uma criação do século XVIII, estamos num dos primeiros jardins públicos da Europa. Aspeto curioso, respeita o plano do santuário antigo organizado à volta da fonte que existia desde os fins do século I a.C. Tem o traçado de um jardim à francesa decorado de vasos e estátuas de mármore ou pedra.


Mesmo ao lado destes jardins, temos os restos do Templo de Diana, considerado o monumento mais romântico de Nîmes, estaria associado ao santuário imperial, mas é desconhecida a sua função exata.



O viandante, se dispusesse de mais tempo, iria bisbilhotar o Museu das Belas-Artes ou o Museu da Arte Contemporânea, ainda quer ir esta tarde a Pont du Gard, a seguir parte para Marselha, mas não resiste à curiosidade de pôr um pé na Catedral, foi mal sucedido, está tudo em obras, limita-se a dar este pormenor da fachada e da torre, a fazer fé no que diz o Michelin e uma brochura turística, o friso superior é considerado como uma obra-prima da escultura românica do Midi da França. Aspeto curioso, os motivos do frontão e da cornija são folhas de acanto ou cabeça de leão, inspirados na Casa Quadrada. Foi uma bela visita a Nîmes, o tempo aqueceu, o viandante tem agora uns bons quilómetros de autocarro até Pont du Gard. Espera ter coisas para contar.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18874: Os nossos seres, saberes e lazeres (277): De Aix-en-Provence até Marselha (9) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18895: Estórias de Bissau (18): Uma noite no Chez Toi: o furriel Car…rasco, meu anjo da guarda... (Luís Graça)

Luís Graça,
Bambadinca, c. 1970/71
Estórias de Bissau > 

Uma noite no Chez Toi: o furriel Car…rasco, meu anjo da guarda...

por Luís Graça

[ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]



Conheci-o no "Chez Toi", em Bissau. Ou melhor, reconheci-o, de Tavira, do CISMI, onde ambos estávamos a tirar a especialidade de armas pesadas de infantaria. Pertencíamos, ambos, à Companhia de Instrução, e ao pelotão do tenente Esteves (o tal que  nos tratava com mimos: “Rapazes, vocês são a fina flor da Nação”… e a gente repetia  "... a flor do entulho",  a rebolar-se na merda do mercado do gado bovino ou no lodo das salinas de Tavira). (*)

Ele era o matulão do furriel Carvalho, transmontano, com ar de durão, mas que gaguejava ligeiramente…. Voltaríamos a encontrarmo-nos, mais tarde, muitos anos depois… Só então me confidenciou que tinha a alcunha de Car…rasco, por ter dado o tiro de misericórdia a um balanta do PAIGC que se esvaía em sangue, sem pernas, depois de uma bazucada em cheio,  no decurso de uma operação (**)…

Em Bissau, eu estava hospedado no "Chez Toi", naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como “boite”. Tinha um nome chique, em francês, "Chez Toi" ( "em tua casa"). Mas eu nunca me senti em casa, nos dois ou três dias em que lá dormi...

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de carne de fêmea, branca, o "Chez Toi" devia ter um especial encanto que eu não conseguia descortinar… Mas eu também caí na esparrela de lá ir parar… Devia trazer-nos algumas reminiscências do “bas fond” de Lisboa, que o resto era paisagem no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato…Nesse tempo ainda era o francês de praia a língua da cultura dominante da noite…

De facto, não sei como lá fui parar, ao "Chez Toi"… Publicidade enganosa, decerto. Mas para o caso não interessa. Andei dois ou três dias “desenfiado” em Bissau, antecipando o gozo do início das férias na Metrópole. Aguardava o avião da TAP para Lisboa. Eram as primeiras férias pagas da minha vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado, o patacão da guerra … (Devo dizer que não tive problemas de consciência nem devolvi, à Pátria, o “dinheiro, sujo, de mercenário”, saudação a que tive direito à chegada, num dos primeiros grafitos que me lembro de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa, onde, se não me engano, funcionava uma merda da tropa ligada ao recrutamento… Ainda não havia grafitos em Lisboa, como há hoje, mas alguém pintara, com pincel grosso e tinta de parede, vermelha de sangue, o slogan provocatório: “Mais vale, em Paris, operário, do que na guerra, mercenário”… Era um óbvio apelo à deserção,)

Estávamos em plena época das chuvas, em junho ou julho de 1970, já não me recordo bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E eu deixava para trás um ano de intensa actividade operacional. Nessa noite fui dar uma volta ao “bas fond”, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, falava francês, ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o “vachement bête”, ou “emmerder”, “copain”, “copine”, “salut”… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris, que nos chegava tarde, a Lisboa e  a Bissau, ao nosso pequeno Vietname). Mas o “bas fonds” em Bissau era, para a tropa-macaca, o Pilão. E um dos atos de "heroísmo"  da malta do mato, desenfiada em Bissau, era dormir uma noite inteira no Pilão… Sem guarad-costas nem arma,,,, Enfim, pura bravata, provocação ou leviandade!...

Por azar, no “Chez Toio”, logo na primeira noite, alguém arrombou a porta do meu quarto, forçou o cadeado da mala de cartão e fanou-me uma Dimple que no mercado local representava um salário um salário e meio de um lavandeira ano mato… Duas ou três garrafas de uísque, velho, era toda a riqueza que eu levaria a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionava comprar no Taufik Saad.

Nessa mesma noite, tive uma conversa (deveras desagradável) com o gordo do gerente do “Chez Toi”, sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa. As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, "papel do Biombo", se não me engano, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a nós, a mim e mais o meu parceiro do Pilão, em azeda discussão com o gerente. E aí, às tantas, o clima começou a ficar propício à pancadaria e ao linchamento. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.

Eu e o sacana do gerente já tínhamos chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum buraco no chão para se enfiar. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de asneiras e provocações racistas:
- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para o Spínola lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que eu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado. Tive então a infeliz ideia de responder à sua provocação:
- O camarada vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com…

O tipo não me deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça de garras afiadas, direitinhas à minha carótidas… Foi a primeira (e única) cena de porrada, a sério, em que eu me vi envolvido na tropa e no teatro de operações da Guiné, com luta corpo a corpo… De facto, nunca tinha sentido o "inimigo" tão perto, olhos nos olhos, as unhas enfiadas no meu pobre pescoço…

Providencialmente foi nessa altura que ele apareceu, fardado, o meu anjo da guarda... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-me daquela situação de embaraço e apuro... Escusado será dizer que o meu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar até ao Geba e apanhar o ar mais fresco da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando me dei conta eram duas e tal da manhã…

Ele, o meu salvador, que por sinal também estava hospedado no "Chez Toi", era nem mais nem menos do que o meu camarada de pelotão, de Tavira, com quem eu de resto ainda tinha umas velhas contas por saldar… Furriel Carvalho, lembrei-me do nome... Estava numa compamhia lá para os lados de Quínara, depois de ter passado pelo leste, região de Gabu, se não erro... Resumidamente, aqui a vai a minha versão dessa história que me estava atravessada e que remontava a 1968, em Tavira, e que depois fiquei a rememorar durante o resto da noite no “Chez Toi”…

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da nossa instrução, dada pelo famoso tenente Esteves, levei dele uns socos valentes nos queixos. Eu tinha adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperava que o meu parceiro, com mais cabedal do que eu, 12 cm mais alto do que eu, entrasse no jogo do faz de conta… Mas qual quê!... Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar… por ter chumbado nos testes psicotécnicos ou, mais provavelmente, por ter sido ultrapassado por um gajo com cunha.

Devo confessar que, depois desse dia, fiquei-lhe com um pó dos diabos!... Não tinha, pois,  grandes razões para me lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabei por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as nossas duas companhias para a Guiné (ou ele ia em rendição individual, já não me recordo).

Como nunca fui um gajo de ressentimentos, fui buscar uma das garrafas de uísque que ainda sobravam da mala de cartão arrombada e lá ficámos à conversa, até de madrugada, contando as nossas peripécias de heróis da Pátria… Sei que no dia seguinte o gerente do “Chez Toi” mandou-me consertar a mala e repor a garrafa roubada… Honra lhe seja feita.  
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Notas do editor:

(*) Vd. a série Estórias de Bissau (com 17 postes até agora publicados, entre novembro de 2006 e dezembro de 2008):

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

6 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa) 


Sobre a série Galeria dos meus heróis, vd postes anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P168: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)

13 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P18894: Parabéns a você (1475): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico-Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira (ex- Alf Mil Inf da CCAÇ 1420 - Guiné 1965/67 e Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 - Guiné 1970/72)


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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18883: Parabéns a você (1474): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil Cav da CCAV 8350 (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18893: Estórias avulsas (90): o meu amigo da Cheret que foi substituir um velhinho que tinha sido apanhado à mão mas que acabou por 'fintar' o PAIGC (Virgílio Teixeira)

1. Mensagens de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) [natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue]:

Data: 2 de agosto de 2018 às 17:44
Assunto: CHERET

 Luís, lamento o incómodo das férias, mas eu não me dou sem fazer nada, e não gosto de praia, e não tenho quintas. (...)

Ontem estive aqui na biblioteca [em Vila do Conde] onde passo a maior parte do tempo a escrever, não gosto de estar em casa fechado, e encontrei um amigo de longa data e até já falei dele, há poucos dias.

É um rapaz da minha idade, formado antes de ir para a tropa em Engenharia Electrotécnica, opção de Tecnologias Avançadas, mas diz-me que raramente vai ao computador, e o telemóvel dele é mesmo igual ao meu, o mais simples Nokia do mercado, com teclas.

Veio viver para Vila do Conde, mora agora aqui perto, e vai frequentar a Biblioteca, mas só para ler. É um tarado em leituras, e não precisa nada disto porque é de boas famílias. E diz ele que a sua nova companheira - deve ter tido 10 casamentos e 100 companheiras - vive aqui, e ele mudou-se do Porto para cá, é um do grupo do Café Cenáculo, Campo Lindo, Porto 1961.

Ele é um óptimo rapaz, mas deve ter uma 'panca' qualquer que desconheço. É muito inteligente. Fez a tropa mais ou menos na mesma época que eu, esteve na Trafaria e a especialidade dele, não sei explicar bem, mas era o responsável pela segurança das Transmissões, e vivia num bunker no QG de Santa Luzia. Encriptava e desencriptava, não sei bem. Perguntei-lhe agora finalmente qual era a sua missão na Guiné, estava então no CHERET - perguntei-lhe o que era aquilo e ele também não sabia decifrar o que era, fiz umas pesquisas, incluindo o blogue e lá encontrei.

A 'panca' dele começa logo por aqui. Foi mobilizado para a Guiné, casou-se - a primeira vez - com uma miúda linda e jeitosa, que vim a conhecer na Pensão da Dona Berta em Bissau. 

Em vez de viajar de barco por conta da tropa, e porque tinha posses, foi mesmo na TAP e lá chegou 6 dias antes do navio, que ele nem sabe o nome. Quando chegou ao aeroporto com a mulher, em Lua de Mel, perguntaram para onde ia ficar, ele conhecia vagamente o nome do Grande Hotel e lá deu essa morada, e esteve lá um ou dois dias. Depois passou para a Dona Berta, ficava mesmo na Avenida do Império , Praça da República que ia dar à Parça do Império], ao lado do Bento e da Catedral de Bissau, tinha vistas do 1º andar privilegiadas.

Foi passeando e conhecendo a terra, Bissau diga-se, nunca se dirigiu ao QG, ele andava em Lua de Mel, e o clima queima!

Estive uma ou duas vezes com eles, e depois devo ter ido para a minha terra, ele nem sabe em que mês ou dia foi lá parar, passa-lhe tudo ao largo. E assim os dias foram passando, uma semana, duas etc, estava ele um dia com a mulher, no cais do Porto de Bissau sentado a olhar o mar. Ao lado estava outro militar, já velhinho, a olhar também para o mar a ver se chegava o navio com o seu substituto, pois já deveria ter vindo. E contou ao meu amigo que estava ali sem saber o que fazer pois o gajo que o vinha substituir desaparecera, estava dado como desertor. Mas qual é a função dele ali? Era da CHERET, o homem que ia substituir, Com uma calma ele, o meu amigo, lá disse então: "Sou eu mas nem me lembrava o que tinha de fazer"....

Agora é só para ver o que lhe foi acontecendo, era uma missão em que só poderia andar de avião, não era permitido viajar de estrada nem por rios. Foi parar a Catió numa LDM, e depois despachado para Piche, mais ou menos na altura do desastre do Cheche [, que foi em 6 de fevereiro de 1969], e do grande ataque da guerrilha em Piche.

Depois foi evacuado para o HM 241 em Bissau, para a Psiquiatria em Maio de 69, no mesmo mês e datas onde eu também lá estava mas não nos cruzámos, veio evacuado com outro amigo nosso que também estava na Psiquiatria, chegaram a Lisboa e em vez do Hospital da Estrela foram passar uns dias ao Algarve...

Isto talvez tenha pano para mangas, deve ser um caso interessante. Diz algo
Um Ab,
VT

Data: 2 de agosto de 2018 às 17:44
Assunto: CHERET

Voltando ao tema da CHERET, já sei que se chama... "Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões2!

Como escrevi depressa, esqueci algumas coisas. Aqui vai a versão, corrigida, da história:

Um elemento da CHERET, um alferes miliciano, numa coluna, em que não devia ir, foi capturado à mão e levado para os santuários do PAIGC.

Feita a lavagem ao cérebro, eles lá sabiam ou souberam a missão secreta dele, e apertaram o dito coitado Cheret.

Ele,  pelos vistos,  embrulhou bem os gajos do PAIGC, trocou-lhes as voltas, pelo que passado pouco tempo todas as comunicações e transmissões do PAIGC eram interceptadas pelas nossas tropas, por qualquer um, não precisavam de ajuda para desencriptar, não sei se é este o termo.

Daí a proibição deste pessoal deslocar-se a pé ou em coluna por terra ou via marítima, só mesmo aérea.

Pelos vistos,  mais tarde a este colega meu [, que enconteri em Bissau e me contou esta história,]  andou sempre em todos os meios menos avião. Ele era tão 'apanhado'  que nem sequer andava de arma, explicou que era muito pesada, não sei o que aconteceu, tenho de explorar bem isto. Mas só o faço se isto tiver algum interesse bloguístico e não sei se ele quer contar mais, mas posso sempre pressionar.

Além de vários problemas na vida dele, e sempre foi professor universitário, com as sucessivas mudanças de mulheres, um filho dele acabou por se suicidar. Quando me contou, nem sabia o que dizer.

Esta função para mim era desconhecida, são aqueles que estão fechados a 7 chaves.

Um Ab, e boas férias, de vez em quando vou chateando para acalmar.
Virgilio Teixeira


2. Comentário do editor LG:

Virgílio, como deves imaginar, nos meses de verão (julho e agosto), em que o pessoal vai a "banhos", o blogue anda muito mais calma, tanto em termos de postes publicados como de acessos e comentários. Pelo que histórias como aquela que  acabas de contar, serão sempre bem vindas... Não precisas de identificar o camarasda, mas dá mais detalhes, se possível, para a a história ser credível: poe exemplo, como é que o 'velhinho'  do PAIGC, depois de ter sido apangado à mão e depois de os ter 'fintado' ?  Deve haver registos de um alferes miliiciano, para mais da arma de transmissões, apanhado à unha pelo PAIGC... Vê zse sabes exatamente quando e onde...

Vou comer uma sardinhada com uns amigos, como uma por ti e bebo um copo à tua saúde (e à saúde do teu amigo, agora reencontrado). Aqui, na Lourinhã, podias vir à praia e ficar na biblioteca, a ler e a escrever... Sobre a aguardente DOC da Lourinhã, tens aqui os  sítios dos pordutores: só há dois, a Adega Coperativa da Lourinhã e a Quinta do Rol... Os preços são variáveis (e altos demais para a minha carteira...) mas o produto é excelente, garanto-te: 

"Durante mais de duzentos anos, as casas produtoras dos melhores Vinhos do Porto beneficiaram da Aguardente de Lourinhã para produzir os seus afamados vinhos licorosos. Nos últimos trinta anos com o apoio científico da Estação Vitivinícola Nacional sediada em Dois Portos foi testada e confirmada a sua superior qualidade, a qual apenas encontra paralelo, a nível europeu nas aguardentes francesas das regiões do Cognac e do  Armagnac".

Há uma confraria que faz a promoção deste produto, e de que faz parte a minha mulher: a Colegiada de Nossa Senhora da Anunciação da Lourinhã... Eu vou aos jantares e festas deles (e delas), e vou aprendendo alguma coisa com estes "confrades"...
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Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)

Câmara Municipal de Bolama


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Estava-se num período de grandes dificuldades, as empresas queixavam-se da falta de dinheiro papel para Lisboa, Lisboa tomava medidas rigorosas proibindo todas as dependências do banco do império de sacarem sem cobertura imediata sobre a metrópole ou o estrangeiro.
Os trabalhadores metropolitanos queixavam-se do poder de compra exíguo e ameaçavam regressar a Portugal caso não fossem contempladas as suas reivindicações e dois gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Lda, tratavam as desavenças ao pontapé e à estalada, chegando ao cúmulo de um criado indígena dar palmatoadas no empregado branco, o mundo colonial estava virado do avesso...
E data desse ano de 1923 a primeira referência à Companhia de Fomento Nacional, sediada em Aldeia do Cuor, quando folheei este papel não contive a emoção, estavam finalmente explicados os vestígios de grandes construções em pedra que conheci em 4 de Agosto de 1968 e que ninguém, em todo o Cuor, me deu explicação razoável. Esta Companhia de Fomento Nacional antecede a Sociedade Comercial do Gambiel, ali trabalhou Armando Zuzarte Cortesão, eminente cartógrafo, à chegada a Missirá ofereceram-me a sua cama em ferro, mandei fazer um colchão de folhelho, tudo durou até 19 de Março de 1969, uma granada incendiária só deixou uns ferros calcinados.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

A documentação referente a esta época releva a escassez e a penúria que paira sobre a Guiné. Logo em 14 de Fevereiro de 1921, trabalhadores metropolitanos recrutados para obras no banco em Bissau dirigem-se ao gerente pedindo aumento de vencimentos, “visto que tudo tem aumentado a tal ponto que os nossos vencimentos descontando as mesadas que enviamos às nossas famílias não chegam para a nossa manutenção e como tudo dia-a-dia vai num crescente ameaçador, vimo-nos na contingência de vir pedir a V. Exa. que se dine a tender o nosso pedido. Em Lisboa, quando fomos contratados os salários que nos foram dados eram do triplo que se pagava lá; agora, como em Lisboa se está pagando seis escudos por dia, é justo que sejamos aumentados na proporção acima, pois que de contrário não nos valerá a pena estarmos aqui sacrificando as nossas saúdes e o bem-estar das nossas famílias para mais tarde quando voltarmos à metrópole irmos sem saúde e sem dinheiro para nos tratarmos”.

De facto, havia obras no edifício da agência em Bissau, ali se trabalhava afanosamente segundo a planta do senhor Felgueiras, o mestre e de obras, o gerente recomendava que o construtor do mobiliário falasse com ele. E seguia-se a lista das necessidades de móveis e utensílios: para o salão do primeiro andar, uma mesa de centro, um sofá inglês, algumas cadeiras simples e outras estofadas, dois contadores, um espelho biselado, duas colunas, várias carpetes e galerias com sanefas; no hall um bilhar, bancos estilo império e 4 mesas para chá (servindo para bridge); para a sala de jantar uma mesa elástica para 12 pessoas, um guarda-prata, 2 trinchantes, um aparador, 12 cadeiras e 2 vasos para begónias; no gabinete de trabalho, uma secretária de ministro, uma cadeira giratória, uma mesa para máquina de escreve, cadeiras, um pequeno armário classificador, uma pequena estante rotativa, uma coluna para busto e um relógio; na livraria, duas estantes, uma pequena mesa simples e duas cadeiras; no quarto de vestir, uma cómoda, um guarda-fato, uma chaise-longue, uma mesa de centro e cadeiras… Lista altamente pormenorizada, abarcando quartos, o quarto de criadas, vestíbulo, cozinha, gabinete de gerência, sala de espera, área de atendimento público e tesouraria. Desconhecemos qual tenha sido a reação de Lisboa a tais pedidos.

Não escapa a esta correspondência algumas cenas truculentas, podem meter tiros, denúncia de imoralidades ou história de vigarices. É o caso do ofício enviado em 14 de Outubro de 1921 com o título Celorico Gil.
Começa com o texto de dois telegramas, e o gerente de Bissau explica-se:
“O procedimento do senhor Celorico Gil é deveras inexplicável, e só o podemos classificar de idiota, pois é impróprio de um advogado que se preze. Já tínhamos conhecimento de que este senhor andava propagando aqui que ia processar o Banco e exigir uma indemnização de 100 contos, mas nunca supusemos que dissesse tal baboseira a sério.
Para responder a V. Exas, aguardámos o regresso a Bissau do senhor Celorico Gil que na ocasião se encontrava em Bolama; procurámo-lo na Casa Gouveia, onde habitava, e negou-se a receber-nos, alegando nada ter a tratar com o Sr. Rolão. Insistimos, mandando-lhe dizer que não era o Sr. Rolão que o procurava mas sim o gerente do Banco, para assunto oficial; persistiu na recusa.
Que pretendeu o Sr. Celorico Gil telegrafando a V. Exas? Visar o signatário? Com mentiras e insinuações, que nós com a maior facilidade desfazemos com documentos, foi tolice porque gastou dinheiro no telegrama e demonstra que muito pouco vale como carácter e como advogado.

Este senhor não podia ver, e o seu rancor chegava a ponto de afirmar a toda a gente que logo que chegasse a Lisboa procuraria o nosso Governador, Dr. João Ulrich, de quem pessoalmente é amigo, e que havia de conseguir a imediata demissão do signatário!
Nós só podemos encarar tão estulta vaidade rindo-nos, tanto mais que nem nós quereríamos estar exercendo um cargo de confiança e responsabilidade dependentes do primeiro parvenu¸ como o grotesco Sr. Celorico, pessoa que aliás não conhecemos, a quem nunca fomos apresentados e com que nunca trocámos sequer uma palavra.
Que mal nos podia fazer este cavalheiro se o processo ainda está correndo e o exame de peritos é desfavorável aos sírios Sóda Frères? Que responsabilidade temos nós na prisão dos inculpados, se não fomos nós que os acusámos nem os mandámos prender?

A assinatura do cheque falsificado está perfeitamente limitada, e portanto nem sequer temos responsabilidade pelo seu pagamento. Não temos nenhum interesse que os falsificadores fossem os sírios Sodas ou outrem, o que queremos é que o assunto se arrume.
O Sr. Celorico atreveu-se a insinuar maldosamente, como tivemos conhecimento pelo nosso guarda-livros, que estava convencido de que o cheque teria sido falsificado no próprio Banco, por algum empregado! Um cheque que primitivamente e antes de ser pago tinha sido visado, pois o caso ocorreu o ano passado, quando a nossa emissão se esgotou!
Repetimos e confirmamos o que declarámos já no nosso telegrama: assumimos inteira responsabilidade pessoalmente pela nossa parte no processo, que se limitou a participar os factos ocorridos.
Pena temos nós de não termos elementos mais concretos sobre as insinuações a respeito do nosso pessoal, porque talvez o Sr. Celorico se arrependesse da leviandade e infâmia”.

Alçado tipo de topo do quartel militar (duas fotografias de Francisco Nogueira retiradas do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, edições Tinta-da-China, 2016)

De 1922 para 1923, sentem-se novas dificuldades na Guiné, surgem reclamações, algumas de teor bem curioso, é o caso de uma carta datada de Bissau, de 24 de 4 de Fevereiro de 1922, da empresa Huilerie de Copenhaga dirigida à administração em Lisboa protestando com a falta de dinheiro papel, queixando-se de que não podiam pagar aos indígenas com cheques visados e perguntava-se:
“Havendo dinheiro em Bolama, que, se não é o suficiente para fazer face aos encargos do comércio, com a actual depreciação da moeda, de forma alguma remediaria quem neste momento não tem nenhum, por que motivo não dão V. Exas. as competentes ordens para pôr em circulação tal dinheiro?
Além disso, queremos também frisar o caso do senhor gerente da filial de Bissau, de não tratar com a devida correcção os agentes das casas comerciais, bem como sabemos também que o dinheiro ainda não acabou no banco, pois há sempre meio de satisfazer pequenos cheques para pagamento ao gentio e todavia não nos foi pago um cheque de um fornecimento feito ao Estado, senão metade, ficando o resto em depósito”.

As dificuldades financeiras sentidas na metrópole são comunicadas a Bissau e pede-se o maior rigor, como se pode ler no documento reservado que o BNU em Lisboa envia em 31 de Julho de 1923:
“A situação extremamente melindrosa a que nos estavam conduzindo os intermináveis saques a descoberto das Dependências do Ultramar – já por nós mais de uma vez denunciada – levou-nos a tomar medidas de rigor extremo, nomeadamente com as Dependências de Angola e Moçambique que são aquelas que de uma maneira mais sufocante pesam sobre esta Sede com saldos devedores que, em seu conjunto, se elevam já a uma verdadeira enormidade.
A primeira dessas medidas, como naturalmente estava indicado, foi a proibição rigorosa que fizemos a todas as dependências daquelas Províncias de sacarem sem cobertura imediata sobre a Metrópole ou Estrangeiro, proibição essa que agora tornamos extensiva a essa Filial.
Todas as operações que se traduzam em transferências para a Metrópole ou Estrangeiro igualmente ficam absolutamente proibidas sem a respectiva contrapartida”.

Imagem retirada da revista “Mundo Português”, que era publicada pela Agência Geral das Colónias

Nesse mesmo ano de 1923 Lisboa pede ao gerente de Bissau que ponha o seu maior empenho em conseguir uma solução digna para o conflito com os gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Limitada.
Recorreu-se a um intermediário, o diretor interino da Agrimensura, que era muito íntimo deles, foram desagradáveis, e o gerente de Bissau adianta as suas razões:
“Os gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Lda há muito que vinham sendo acusados de agredirem empregados europeus e de gozarem de poucas simpatias na praça, não só pela sua falta de educação, que os levava a frequentes inconveniências, mas também por terem sempre, como supremo argumento, a imposição dos seus músculos de montanheses.
Chegaram ao cúmulo de segurarem um empregado branco para que, às suas ordens, e intimidado sob ameaças, um criado preto lhe desse palmatoadas!
Este ato, indefensável por indigno, revoltou justificadamente os europeus de todas as nacionalidades representadas nesta colónia, que pediram a expulsão dos acusados, tendo o governador da Província comunicado o caso para o Ministério das Colónias.
Confidencialmente, o Administrador do Conselho, Adolfo de Jesus Leopoldo, Tenente do Exército Metropolitano, que procedeu às investigações, informou-nos que são absolutamente verdadeiras as acusações lançadas sobre os gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Lda.
Consta-nos que um deles, José Barbosa, o principal responsável e o mais antipático, forjou telegramas falsos para a sua sede, conseguindo ainda manter-se mais algum tempo. Já embarcou para Lisboa e o outro deve também retirar-se brevemente”.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 30 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18880: Notas de leitura (1087): “Máscaras de Marte”, por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2018 (2) (Mário Beja Santos)