quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2330: A Marinha e a Força Aérea nas terras do Cantanhês (Mário Fitas, CCAÇ 763)

1. Mensagem do Camarada Mário Fitas, de 2 de Dezembro

Assunto - Os Marinheiros e os seus Navios

Caro Luís,

Corpo di bó, tá bom?

É verdade, há já alguns dias que tenho andado desenfiado. Mas só em termos de escrita, pois o trabalho de pesquisa e contactos continuam.

Como ainda sou "blufo" no Blogue, tenho andado a ver coisas para trasmente e tem sido de grande utilidade.

Vou ver se consigo falar com o Benito, para se fazer o levantamento das operações em conjunto das CCAÇ 763 e 1484.

Ao ler o Post Guiné 63/74 – DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (1), vi a correspondência trocada entre o Moura Ferreira da CCAÇ 1621 – substitutos da CCAÇ 763 em Cufar - e o Lema Santos sobre um ataque ao Orion ao largo de Cadique, em 8 de Maio de 1966.

Orion com as marcas da Guerra assinaladas. Foto de M. Lema Santos.

Fui aos meus canhenhos, e lá está: “O 2º. Grupo de combate (o meu) montou segurança a um comboio naval no Cais de Impungueda e o Pel Art a pedido das F.N. flagelou Cafal”.


O 2º Gr Comb da CCAÇ 763 em Impungueda no dia em que o Lema Santos descreve o ataque ao Orion. O chefe dos Vagabundos (Mário Fitas, o 1º da esquerda) com o Manuel Ferreira (o homem que fazia tiro instintivo com a MG42, e que foi evacuado com hepatite, nunca mais soube deste meu maravilhoso companheiro). Do lado direito, o meu Cabo Piçarra, cacimbado de Beja, grande amigo. Foto de Mário Fitas.

A narração da verdadeira Guerra vai-se completando. Não há hipóteses de engano, o cruzamento está feito.

Assim sendo, aqui vai mais uma aventura dos Lassas de Cufar, na esperança, que o Lema Santos saiba alguma coisa sobre quais foram as LDM e a LFG que safaram o enrascanço. Porque da parte da F. Aérea, o Victor Barata já me deu uma boa pista, sobre os pilotos respectivamente do T6 que aterrou de emergência em Cufar, Alf. Pilav. Ribeiro e o parelha Ten. Cor. Pilav. Lopes Pereira.

Narra assim, a História da CCAÇ 763:

17 de Setembro de 1965 – A Companhia a 3 Gr Comb colaborou na operação Retorno, planeada para aniquilar o IN referenciado no novo acampamento localizado em Flaque Injã, tendo embarcado pelas 24h00 no cais de Impungueda em 2 LDM.

Pelas 1h25 a Companhia desembarcou na bolanha imediatamente a oeste de Caboxanque, rapidamente progredindo e ultrapassando esta tabanca e a de Flaque Injã internando-se na mata a leste desta. Era intuito da Companhia dirigir-se ao antigo acampamento, destruído no decorrer da operação Satã, que constituiria o 1º objectivo a alcançar.

Durante a progressão dentro da mata foram emboscados 5 elementos IN, dos quais 2 foram aprisionados, indicando a existência do novo acampamento. Este foi imediatamente detectado e quando a Companhia montava o dispositivo para atacar, o IN rompeu fogo com armas ligeiras fazendo uso de cartuchos com bala tracejante. Apesar da forte resistência oposta, as NT conquistaram o acampamento repelindo o IN que atacou imediatamente e a quem causaram 6 baixas e apreenderam diverso material.

Depois de batido o local a Companhia dirigiu-se em direcção a Caboxanque surpreendendo um numeroso grupo IN que atacou imediatamente causando-lhe mais 2 mortos e apreendendo uma ML, uma pistola e munições. Posteriormente, quando junto ao rio e aguardando reembarque, a Companhia foi atacada por um grupo entre 100 a 200 IN que tentaram a aproximação fazendo uso de armas ligeiras MP e LGF. As nossas tropas ripostaram. Considerado, porém, o elevado número de elementos IN foi pedido o apoio da FAP que flagelou duramente as posições do adversário.

Um dos T6 foi atingido com 17 impactos, pelo que teve de aterrar de emergência em Cufar. Após um demorado contacto, e com reforço de 2 LDM e da vedeta que entretanto chegaram ao local, o IN foi reduzido ao silêncio e repelido, permitindo desta forma o reembarque da Companhia.


Nota:

Segundo os nossos informadores, seria uma Companhia do Exército Popular (FARP), comandada pelo Comandante Nino. Seria? Aqui já não pode haver informações. Só do outro lado.

Continuando:

Ontem, dia 1 de Dezembro, estive num almoço tradicional rememorando Vila Fernando, a minha pequenina mas bela aldeia do Alentejo. Não me é possível deixar de escrever aqui um momento que me comoveu, mas que me encheu de orgulho, quando o capitão Rui Baixa, meu companheiro de brincadeiras de criança, me descreveu, como - ainda primeiro sargento - com o seu cabo escriturário, em Guidaje, limparam as campas dos Páras ali sepultados, e de tábuas dos caixotes do bacalhau fizeram cruzes para assinalar que os Portugueses nunca seriam esquecidos. Orgulho-me deste Homem Grande da Planície.

Como na Pami, o formigueiro vai abrindo novos caminhos.

Quem quiser que saiba beber desta inesgotável fonte que é a Tabanca Grande.
Do tamanho do Cumbijã, o abraço de sempre.

Mário Fitas

2. Nova mensagem do Mário Fitas, em 3 Dezembro:

Olá, Briote,

(...) É verdade, toda a operação por mim transcrita da História da CCAÇ 763, tem a ver com o T6 e o envolvimento do Dakota.

Não há nada escrito na História da Companhia, mas as descrições nos dias seguintes demonstram, de facto, a grande actividade da CCaç 763. Pois, a mata de Cufar Nalu, as tabancas a Sul e estrada e cruzamento para Catió eram patrulhadas, pelo que está escrito com dois grupos de combate sempre fora, e o Pelotão de Artilharia a flagelar Flaque Injã, Caboxanque, Cadique Iála e Cadique Nalu.

Mas eu vou tentar descrever o que a memória vai buscar. Recordo perfeitamente que o Dakota ia levar um motor para o T6 e o equipamento necessário para a sua colocação. Só que em Setembro ainda é época de chuvas na Guiné. A pista de Cufar era na altura a melhor pista de todo o Sul, mandada fazer pelo Sr. Camacho, dono da quinta de Cufar e terá sido inaugurada pelo Gen Craveiro Lopes em 1955. Em terra batida, tinha uma certa consistência.

O Dakota fez-se à pista de poente para nascente, ou seja sobre o ilhéu de Cantone para Cufar, mais propriamente do fim da pista para a porta do aquartelamento rolando naturalmente. A determinada altura a roda esquerda do trem de aterragem foi deixando um rasto e enterrando-se na pista, até que a aeronave adornou um pouco e afocinhando, enterrou as hélices no chão.

O Dakota enterrado na pista de Cufar (o Mário Fitas é o 1º da direita). Foto do Mário Fitas.

Isto tudo poderá ser confirmado com mais pormenores por algum camarada ou, inclusive, pessoal da FAP que, pertencente à BA12, se deslocou para Cufar, para reparar tudo.

Pelo exposto, as fotos do T6 e do Dakota estão de facto relacionadas com a operação Retorno, de 17 de Setembro de 1965. E acho que têm cabimento na descrição.

Estou à espera que o Carlos Filipe me forneça mais alguns dados sobre os cães, pois ele é que chefiava a secção de cães. Assim que tiver o material envio.

Um abraço do tamanho do Cumbijã,
Mário Fitas

PS - O assunto também inclui agora a malta da FAP. Era tudo boa gente, e para nós extraordinário sabermos que havia sempre alguém que dava uma ajuda quando havia enrascanço.
__________

Notas de vb:

(1) Vd.posts do Manuel Lema Santos:

25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

13 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1842: 10 de Junho: Nós também estivemos lá (A. Marques Lopes / Lema Santos)

21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1665: Operação Larga Agora, Tancroal, Cacheu, local maldito para a Marinha (Parte I) (Lema Santos)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema

7 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1571: A Operação Larga Agora, o Tancroal / Porto Batu e as cartas náuticas do Instituto Hidrográfico (Lema Santos)

11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1420: O cruzeiro das nossas vidas (5): A viagem do TT Niassa que em Maio de 1969 levou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Manuel Lema Santos)

21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2329: O Hino de Gandembel cantado ao vivo na já famosa Casa Teresa, em Matosinhos, sede da delegação Norte da Tabanca Grande



1. Mensagem de ontem do A. Marques Lopes, tendo em anexo este vídeo supra:

Foi na quarta-feira passada, 28 de Novembro, na Casa Teresa (1), em Matosinhos: o Álvaro Basto trouxe a máquina de filmar e a viola e o Almeida cantou o Hino de Gandembel (2) A assistência era: eu, José Teixeira, Rocha, Xico Allen, António Pimentel, Barroso, Custóias, Álvaro Bastos e seu pai. O Álvaro Bastos acompanhou à viola.

Havia mais gente (paisanos, como diz o Idálio Reis) noutra mesa ao lado... e os que estavam no rés-do-chão também ouviram, claro. Gostaram e não nos chamaram pimbas (3).


A. Marques Lopes


2. Comentário de L.G.:

António: Já cá chegou... Fico grato ao cineasta, Álvaro Basto, nosso querido camarada do Xitole... E a ti, que inseriste o vídeo no You Tube, na tua conta Cantacunda

A Casa Teresa já é famosa... na Internet. É a sede - todas as quartas feiras ao almoço - da vossa tertúlia de Matosinhos & Arredores (sem ofensa para os do Porto, Vila Nova de Gaia, Maia...). Como está a crescer, é melhor é chamar-lhe Delegação Norte da Tabanca Grande.

O pessoal estava divertido, mas já é altura de saberem a letra de cor... Para a próxima, toca a cantar o refrão como deve ser, senão chamo os... críticos musicais! ... Ou, em último caso, a ASAE! (Não faço isso, senão nunca mais poderia saborear aquela marvilhosa feijoada de búzios que lá comi da outra vez!!!)...

Bom, vocês são gente de poucos galões e de muitas estrelas!... Gente, maravilhosa, que tem sempre uma resposta na ponta da língua, e um grande sentido de amizade, camaradagem, hospitalidadade... e humor... Enfim, vocês não param de nos surpreender! São uma delegação de referência da nossa Tabanca Grande!

Os meus respeitosos cumprimentos à Teresa, dona da casa...

PS - António:

Amanhã, 5ª feira, dia 6, vou estar no Porto, às 23h, no Contagiarte, para assistir a um concerto da banda de música klezmer Melech Mechaya onde toca (violino) o meu filho, João... A iniciativa integra-se no Festival Etnias... A entrada é de borla, ou tem um preço simbólico, julgo eu ... Se alguém (dsa Delegação Norte da Tabanca Grande) quiser lá aparecer, beberemos um copo juntos!...

O Bar Contagiarte fica na Rua Álvares Cabral, 372, 4050- 040 PORTO... Fica perto da Praça da República.


Vê o sítio do Contagiarte :

Não é um simples bar, é muito mais do que isso… é um espaço de sensibilização, formação e dinâmica cultural. Situado numa zona classificada no centro da cidade do Porto, o Contagiarte foi inaugurado em 11 de Dezembro de 2003 e tem-se vindo a tornar como espaço focal de divertimento e entretenimento na cidade do Porto frequentado diariamente por centenas de pessoas desta cidade e de cidades circundantes.
________

Notas de L.G.:

(1) Vd. referências no nosso blogue à Casa Teresa, que já faz parte obrigatória do roteiro gastronómico, cultural, sentimental e convival da nossa tertúlia ou Tabanca Grande:

9 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1412: A minitertúlia de Matosinhos e... Leça da Palmeira (Carlos Vinhal / Xico Allen)

29 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1393: Saudações tertulianas na chegada do novo ano de 2007 (1) : Luís Graça / Pedro Lauret

(2) Sobre o Hino de Gandembel, vd post de 1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2319: Hino de Gandembel: interpretação de António Almeida (CCAÇ 2317, Gandembel/Balana, 1968/69)

Vd. ainda os posts de:


3 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2326: O Hino de Gandembel e a iconografia do soldado atormentado pelo desassossego (Idálio Reis)


22 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2295: Hino de Gandembel, cantado no almoço da mini-tertúlia de Matosinhos (A. Marques Lopes / Carlos Vinhal)


4 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2153: Hino de Gandembel: talvez a mais popular canção entre as NT no ano de 1969 (José Teixeira)


4 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2152: Hino de Gandembel, hoje um hino de alegria (Idálio Reis / Gabriel Gonçalves)


3 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2150: O Hino de Gandembel, cantado pelo GG [Gabriel Gonçalves], o baladeiro da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)


3 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2149: Hino de Gandembel: Quem foi o autor da letra ? (José Teixeira / Idálio Reis)


26 de Setembro de 2006> Guiné 63/74 - P2133: Guileje: Simpósio Internacional (1-7 de Março de 2008)(4): Hino de Gandembel, quem se lembra da música ? (Pepito / Luís Graça)


(3) Vd. posts de:

1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)

2 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2323: Um insulto aos heróis de Gandembel (Zé Teixeira)

2 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2324: (Ex)citações (1): Um pouco de humor de vez em quando também nos faz bem (Henrique Matos)

Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)



Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Benito Neves, bancário, reformado, residente em Abrantes, ex-Fur Mil da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) (1)

Foto 27 > "Catió, 1967. Tenente João Bacar Jaló (ou Djaló), comandante da Companhia de Milícia 13, à porta da sua casa em Priame... Pela presença da viatura, provavelmente ia deslocar-se ao Comando do Batalhão para participar em mais um planeamento de uma operação, era normal pedirem a sua presença e atenderem as suas recomendações. Com o seu saber e a sua experiência no terreno, a ele se deveram por certo o êxito de muitas operações e o reduzido número de baixas sofridas. Nesta altura já lhe tinham sido atribuídas duas Cruzes de Guerra, um em 1964 e outra em 1965; em 1970, já ao serviço dos Comandos, é-lhe atribuída a Torre Espada". (BN) (2)

Foto e legenda: © Benito Neves (2007). Direitos reservados



Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72), a quem desejamos boa saúde e boa viagem até Santiago de Compostela (4). Lição nº 7: O que a Brinsam faz durante o dia... Parágrafo final: "A Brinsam é uma menina estudiosa e amiga da família. Quando ela for crescida, ela vai ser uma boa militante do nosso Partido".

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (5)
por Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112
Edição no blogue: Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.


Parte III - O amor em tempo de guerrilha e contra-guerrilha (pp. 29-35)

Resumo do episódio anterior (5):

De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) (3). Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhês. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.


(i) A deserção do filho de Luís Ramos, furriel miliciano do Exército Português, e a morte da mãe de Pami Na Dondo

Entretanto a guerrilha vai aumentando. Mas, do outro lado, as coisas também não estão paradas, antes pelo contrário. O Governo Português começa a enviar tropas em massa para a Guiné. Num desses contingentes o furriel miliciano Ramos, filho do empregado da Casa Brandoa, deserta, e ingressa na guerrilha. Numa passagem por Cadique Iála, para visitar sua mulher Sanhá já muito debilitada, Pan Na Ufna passa por Flaque Injã e, delirante, conta a sua filha todos os pormenores da deserção do filho de Luís Ramos.

Na zona, as coisas começam a complicar-se. A Catió chegam reforços significativos após a intervenção na ilha do Como. O Cantanhês, zona libertada, começa a assustar o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Fins de 1964, Sanhá dá o último suspiro na sua morança na povoação de Cadique Iála. Seguindo a tradição, Pan, acompanhado de sua filha, faz o choro de sua mulher para que o espírito desta se volatilize em paz, mandando matar o melhor boi e adquirindo uns bons litros de aguardente de cana.


(ii) Em Março de 1965, os Lassas [CCAÇ 763] (6) instalam-se em Cufar, numa antiga fábrica de descasque de arroz

A Quinta de Cufar com a sua bela pista de aterragem em terra batida - inaugurada pelo General Craveiro Lopes quando ainda presidente da República Portuguesa -, depois de fortemente bombardeada, é ocupada pelo exército português. A população de Cufar, Cufar Nalu e Cufar Novo é obrigada a fugir para norte. Algumas famílias instalam-se nas povoações a sul de Cufar.

Ao Cafal chegam informações de que o exército português se prepara para instalar um aquartelamento na antiga Quinta. São feitas várias tentativas de assalto à velha fábrica de descasque de arroz, mas os militares portugueses, embora sofrendo algumas baixas, resistem, acompanhados pelo antigo cipaio João Bacar Jaló - agora alferes de segunda linha -, comandando uma Companhia de milícia nativa que colabora com o inimigo português. Os comités das tabancas a sul de Cufar informam dos movimentos do exército português.

Princípios de 1965: é confirmada a intenção da instalação do aquartelamento de Cufar na antiga Quinta. Nino manda mais reforços para a mata de Cufar Nalu e pede atenção sobre a psicossocial das povoações a sul, que vão sofrer a pressão do inimigo. É reforçado o apoio e controlo das tabancas de Iusse, Impungueda, Mato Farroba e Cantone. Pan Na Ufna com o seu grupo, conhecedor perfeito da zona, entra nos reforços cedidos a Cufar Nalu.

Março de 1965: as informações são mais precisas. Chega a Cufar uma companhia do exército colonial, com os fins de combater a guerrilha e construir um aquartelamento. Segundo as informações, irão tentar fazer um tampão sobre a população a sul, e a respectiva acção psicossocial. Há que preparar a resposta, a qual como veremos, não será nada fácil.

(iii) Pami e Malan vivem a sua estória de amor, em plena guerra

Sempre que tem oportunidade, Malan Cassamá desce até Flaque Injã para passar alguns momentos com sua mulher. Quando não é possível, é a professora que se desloca até mais a Norte para se encontrar com o seu companheiro.

À sombra das mafumeiras, poilões enormes ou nos mangais junto ao rio, corpos unidos, suados pela força do desejo, dão largas ao seu amor. Compreendem que fazem parte da própria natureza que os envolve, o seu dualismo é um mundo só. São uma existência única. O exterior e interior é nuvem que os envolve, e se transmuta em tornado de prazer. Dois corpos, dois seres que se transformam, entrelaçando-se num só. São belos os momentos de Pami e Malan; mas... a realidade é bem diferente! A guerra tem de separá-los e ficam as promessas e os desejos de que seja muito próximo o novo encontro.

No intervalo das suas aulas em Flaque Injã, a professora vai conversando com os seus companheiros da guerrilha. Os sucessos e insucessos são comentados, e a moralização e fortificação do ideal independentista e anti-colonialista são temas imprescindíveis nessas mini-conferências.

(iv) Donde se fala do renegado cipaio João Bacar Jaló e da contra-ofensiva dos Lassas

As informações vindas do outro lado do Cumbijã não são muito agradáveis. Em Cufar estariam instalados aproximadamente duzentos homens, incluindo uns vinte a trinta traidores da milícia, do antigo cipaio João Bacar Jaló, que andariam a dar conhecimentos sobre o terreno e populações da zona, bem como a adaptação aos militares chegados que, embora não pertencendo a tropas especiais, estariam muito bem enquadrados, parecendo ser muito activos, e até um pouco sabedores da matéria, pois já teriam começado a acção psicossocial intensamente sobre as populações do lado sul de Cufar e, nos poucos contactos com a guerrilha, estacionada em Cufar Nalu, não se teriam intimidado, antes pelo contrário, reagindo com envolvimentos perigosos e rápidos.

Vamos ter problemas com esta gente, não lhe poderemos dar facilidades. A guerrilha tem de cair em cima deles e dar-lhe um ensinamento. Qualquer aproximação da mata de Cufar Nalu ou das populações tem de ser anulada, e fortemente castigada. São as orientações emanadas do Cafal. Mas, não será muito bem assim! As tropas instaladas em Cufar cheiram as coisas, e não têm medo. Com um comando experiente, bem estruturadas, a sorte a fortalecer-lhe a moral. Há que ter cuidado.

Verdade! A 15 de Maio de 1965, a casa de mato - acampamento - instalada na mata de Cufar Nalu é assaltada e destruída. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destruem várias tabancas na zona, e não se furtam ao contacto.

Em princípios de Junho [de 1965] o atrevimento é maior, o PAIGC vê o seu acampamento de Cabolol assaltado, e é obrigado a abandonar, no chão, vários guerrilheiros mortos e diverso equipamento. Estes colonialistas são mesmo como as abelhas Lassas. Dê-se-lhes daqui para a frente o nome de Lassas.

Os chefes do Cafal estão furiosos. Os Lassas começam a conquistar a população menos politizada. As milícias e guerrilha começam a ter dificuldades com estes militares que, para além de não darem descanso, conseguem construir um aquartelamento, ocupando agora toda a Quinta.


(v) Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã

Em Julho o descaramento é demasiado. Desembarcam debaixo de fogo, passam para o outro lado do Cumbijã e assaltam Flaque Injã e Caboxanque. O acampamento de Flaque Injã é destruído, e a sua escola, completamente arrasada. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

É o caos. Ao regressar da mata onde se tinha refugiado, Pami NJa Dondo não quer acreditar no que vê! Fica petrificada. Não!... Não pode ser!?... Um nó aperta-lhe a garganta... Os alvos dentes cravam-se-lhe nos lábios carnudos até doer e o sangue aparecer. Como um riacho de pedra em pedra, as lágrimas rolam-lhe pelo magro e esguio rosto. Não é dor!... É revolta!

Porquê? A sua escola!? O seu encanto!?... Ah guerra!... Horrível flagelo do relacionamento humano!

Pami olha para o coto do seu braço esquerdo e sente a antítese. Na guerra mata-se para não se morrer, destrói-se para se não ser destruído. Mas a professora, neste momento, sente que seria preferível sentir a sua própria destruição e morte, do que ver aquele dantesco espectáculo. Da garganta a sufocar - em perfeito português - sai-lhe um grito de dor e revolta:
- Monstros!...

Não vale a pena!... Senta-se no solo e encosta-se de encontro ao tronco seco de um velho poilão, inclina a cabeça sobre o peito. Escorrendo sobre a cara e queixo, as lágrimas correm-lhe por entre os pequenos e desnudados seios. Com a destra, e única mão que lhe resta, tenta limpar os lacrimejantes olhos que, embaciados, não deixam ver o céu que agora procura, e pergunta ao Deus do padre Francelino o porquê de tudo isto?

Parece ouvir num sussurro uma voz muito ao longe:
- Os homens!... Pami!... os homens! Também eu morri na cruz por eles! Para quê?!...

Em puro acto de regressão, sente a necessidade do leite quente materno, mas a realidade é o frio cortante, de uma noite sem estrelas. Levanta-se e tenta encontrar a foto do comandante Nino, tirada na China, que Malan lhe tinha oferecido. Em vão! O que não foi destruído, foi levado. O velho dicionário é monte de cinza negra no chão. Toca-lhe, e o adorado amigo transforma-se em nuvem de negras borboletas esvoaçando.

Dirige-se para o acampamento, e tenta ajudar no tratamento dos feridos e no enterramento dos mortos.

Uma semana depois, novamente a notícia: os Lassas voltaram a Cabolol, e fizeram grandes estragos!


(vi) Notícias moralizadoras para a guerrilha: uma delegação da OUA vista as regiões libertadas

Os chefes da guerrilha mandam os seus grupos fugir ao contacto, e entrar no desgaste do bate e foge. Há ordens para enfrentar os militares de Cufar, apenas quando se tiver a certeza de poderem ser emboscados, e cair com força em cima deles. Utilize-se a emboscada com abelhas.

Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Mais uma vez, Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento, que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê, terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Meados de Agosto, [Pami] desce com Malan até Cobumba. Malan e o seu grupo exectutam várias emboscadas e ataques ao pessoal do quartel de Bedanda, causando várias baixas ao exército português, entre as quais se conta a morte de um sargento. O grupo de guerrilha regressa à sua base em Cansalá, mas Malan consegue autorização para ficar dois dias com a sua mulher.

As notícias são mobilizadoras para o esforço da guerrilha. E a visita de uma delegação da Organização de Unidade Africana (OUA) a zonas libertadas, a convite do PAIGC, é bastante moralizadora para os combatentes pela Independência.

(Continua)
_____________

Notas de L. G.:


(1) Vd. posts de:

15 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2268: A falsificação da história da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67)(Benito Neves)

18 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1673: O blogue do nosso contentamento (Benito Neves, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67)

2 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1559: Ex-Alf Mil Avilez, da CCAV 1484, hoje professor de arte, foi o autor do mural de Catió (Benito Neves)

(2) Morreu em combate, com o posto de capitão graduado, comandante da 1ª Companhia de Comandos Africanos, sediada em Fá Mandinga (Sector L1, Bambadinca), em 16 de Abril de 1971. Participou na Op Mar Verde (invasão de Conacri), em 22 de Novembro de 1970.

Vd. posts de:

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1769: Estórias do Gabu (4): O Capitão Comando João Bacar Jaló pondo em sentido um major de operações (Tino Neves)

(3) Vd. posts do Mário Dias:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

(4) Vd. post de 27 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)

(5) Vd. posts anteriores desta série:

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

Resumo:

A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.


Vd. também postes de:

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

29 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2315: Catió: A morança que poderá ter sido a da nossa Pami Na Dondo, a Guerrilheira (Victor Condeço)

(6) Lassas era a alcunha por que eram conhecidos os militares da CCAÇ 763, de que fazia parte o Mário Vicente, Fur Mil Fitas. No seu primeiro livro (Putos, Gandulos e Guerra, edição de autor, Cucujães, 2000, p. 75), pode ler-se:

"Por informações recebidas, a C.C. será conhecida no PAIGC com a alcunha de Lassas. Pelo que se veio a saber, lassa era "uma espécie de abelha existente na Guiné que, não sendo molestada, não tem problemas, mas se for atacada é terrivelmente perigosa quando enraivecida. Esta alcunha resultaria, portanto, da actuação da C.C. pois, quando chegava a uma povoação em que a população estivesse e não fugisse, não haveria problemas, pois falava-se com essa população e tentava-se resolver os problemas que houvesse. Se, caso contrário, a população fugisse e abandonasse as suas moranças, as mesmas eram literalmente destruídas" (...) .

O termo crioulo que ouvi, muitas vezes, aos meus soldados, quando fugíamos das terríveis abelhas africanas era Bagera, bagera!!! (LG)

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2327: PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI Parte): Minas I (A. Marques Lopes)

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Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 ( 1970/72) > Estrada (asfaltada) Mansabá-Farim > O Carlos Vinhal e o Sousa à sua esquerda, segurando uma mina anticarro detectada a tempo e levantada. Em Moçambique, chamavam-se marmitas às minas A/C, devido à sua forma redonda: veja-se a letra do Turra das Minas , um dos mais célebres fados do Cancioneiro do Niassa (1). Carlos Vinhal, nosso mui estimado e valioso co-editor, foi Furriel Miliciano de Artilharia, com a especialidade de Minas e Armadilhas, CART 2732, Mansabá (1970/72).

Foto: © Carlos Vinhal (2006). Direitos reservados.

Foto editada por L.G., alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Mensagem de 14 de Setembro de 2007, do A. Marques Lopes (natural de Lisboa, hoje coronel DFA, na reforma, e residente em Matosinhos), com mais um texto extraído do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971:


As terríveis minas (e eu que o diga...) e outros engenhos explosivos. Fico-me por aqui esta semana. Na próxima há mais. Bom fim-de-semana
A. Marques Lopes


Comentário de L.G.:


Muitos de nós fomos vítimas de minas, armadilhas, fornilhos e outros engenhos explosivos. Eu fui, o Marques Lopes foi, o Beja Santos foi, o Luís Moreira foi, só para dar três ou quatro exemplos. Outros camaradas, por seu turno, como o Carlos Vinhal e o David Guimarães eram especialistas em minas e armadilhas... O David viu morrer um amigo seu e outro ficou cego, ao manipular um engenho explosivo (1).

Há muitas histórias trágicas destas, passadas no TO da Guiné. Todos tínhamos (e continuamos a ter) muito respeitinho por estes artefactos de morte... E somos a favor da sua proibição absoluta... É a arma dos pobres produzida pelos países ricos...

Por razões de segurança, vamos omitir alguns pormenores técnicos relativos à composição (química) de minas, nesta parte do Supintrep: não queremos que ninguém se ponha, nem a sério nem a brincar, a tentar fabricar um engenho explosivo no sótão ou na garagem... Muito embora na Net haja centenas de sítios sobre essa matéria, com instruções muito específicas, de A a Z, sobre o fabrico caseiro de minas e outros engenhos explosivos...

A nós interessa-nos apenas saber como os guerrilheiros do PAIGC aprendiam a utilizar as minas (ou marmitas, em Moçambique) e como utilizavam esses engenhos explosivos que mataram e feriram gravemente muitos camaradas nossos. Sem esquecer, obviamente, as armilhas que as NT punham à volta dos seus aquartelamentos e destacamentos, ou nos trilhos usados pela guerrilha e pelas populações sobre o seu controlo... ou ainda nas moranças que deixávamos intactas, nas zonas controladas pelo PAIGC .. A nossa guerra (de nós contra o PAIGC e do PAIGC contra nós...) teve muitas faces, não apenas duas, como dizia há tempos o Jorge Cabral: esta seguramente é uma das mais ignóbeis e horrendas...

PS - A qualidade das imagens, sobre engenhos explosivos, que constam do exemplar do Supintrep que chegou às mãos do A. Marques Lopes, é muito má. Ele e eu tentámos fazer o nosso melhor para que se tornassem minimamente legíveis...


PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI) > UTILIZAÇÃO DE ENGENHOS EXPLOSIVOS (2)


[Revisão e fixação do texto: A.M.L. / L.G.]


(1) Generalidades

Dum modo geral, o IN executa este tipo de forma de combate com três finalidades distintas: (i) interdição de itinerários ou de acessos a zonas controladas pelo IN; (ii) protecção de reacção em zonas de emboscadas; (iii) substituição de outras actividades não realizadas.

Para esse fim, usa indiscriminadamente armadilhas, fornilhos ou minas A/C e A/P, com maior preponderância destas. Muitas vezes conjuga o emprego de minas com o uso e granadas ou petardos de trotil em reforçamento da acção explosiva. Toda a gama de armadilhas, muitas delas expeditas, é conseguida pelo factor comum granada de mão descavilhada, a qual será accionada pelo deslocamento ou de arame de tropeçar ou de quaisquer ramos ou pedras que retêm a alavanca. Têm sido também verificados accionamentos eléctricos com comando à distância.

Na esperança de obtenção de bons resultados, é normal conjugarem o emprego de uma mina com outra próxima, razão da vulgaridade em se detectarem minas implantadas próximo das accionadas.

Como técnicos que são de camuflagem e dissimulação, utilizam todos os meios possíveis para procurarem esconder as minas implantadas, furtando-as assim à intensa actividade de detecção desenvolvida pelas NT.

Nos itinerários asfaltados procuram as bermas para a implantação dos explosivos e, se possível, também falhas de asfalto ou buracos para conseguirem os efeitos pretendidos.

(2) Técnicas de fabricação e implantação de minas

(a) Extractos de apontamentos de cursos frequentados no estrangeiro por elementos do PAIGC (cópia)

1. Meios de instalação e fabricação de minas

Fabricação de minas

A mina é um obstáculo explosivo.

Uma mina compõe-se de invólucro, de embalagem e instalação de fogo. Há minas anti-pessoal, anti-cavalos, anti-tanque, anti-carros blindados e as que podem destruir construções. Pode-se utilizar materiais em madeira, panela em porcelana, garrafa de vidro, caixa de ferro e bocados de pedras e de ferro para envolver minas.

Embalagem de explosivo

Mete-se 5 a 10 Kgs de explosivo nas minas anti-tanques e 50 a 200 grs na mina anti-pessoal e cavalo. Pode-se meter a pólvora negra na mina anti-pessoal e cavalo aumentando 0,5 de quantidade desejada.

Instalação de fogo

Incendiada pela pressão, pelo atropelo num fio, pela electricidade e pela instalação retardadora de minas a pressão.






(...) O contacto desta mistura [clorato de potássio e acúcar] com o ácido sulfúrico produz o fogo para explodir o detonador e explosivo.

Mina anti-tanque eléctrica e pressão


Pode-se aproveitar uma granada para fazer mina, instalando-a como o desenho indica.





Mina retardadora (...)

Minas a pressão anti-pessoa: enterra-se ao mesmo nível da terra ou entre ervas.

Mina em armadilha anti-pessoa: enterra entre as ervas. O comprimento do fio ligado a esta mina à estaca ou árvore atinge 5 a 7 m.

Mina retardadora (enganadora): enterra-se nas casas e nos sítios onde o inimigo frequenta muitas vezes. Pode-se adaptar muitas formas para instalar as minas enganadoras – sobretudo com o fim de excitar e seduzir e desorientar os inimigos.


2. Cuidados a ter quando se enterra as minas

(i) É preciso pôr alguém de guarda.

(ii) É preciso guardar silêncio; não deixar nenhum sinal ou instrumento.

(iii) Estabelecer sinais conhecidos por nóa ao lado das minas.

(iv) É precisio camuflar as minas o mais possível conforma as cores do terreno. Pode-se fazer uma camuflagem falsa.

(v) Depois de ter enterrado as minas antes da chegada dos inimigos, deve-se enviar alguém para vigiar esta zona com o fim de não ferir os nossos próprios camaradas.

(vi) Quando se chegar ao ponto para enterrar minas não se deve mudar de lugar nem mexer enquanto não acabar o serviço.

(vii) Conforme as diferentes categorias e de tarefa deve-se organizar um grupo composto por 1 a 3 homens para cumprir a missão de enterrar minas. Não se deve agir comodamente na zona da mina com o fim de camuflar bem.


3. A aplicação de guerra de minas


O fim da aplicação: garantir a vitória de combate e a segurança na acção dos partidários.

Realiza-se a guerra de destruição e de minas para fazer obstáculo atrás dos inimigos, para aniquilar as suas armas modernas, atacá-los por surpresa, fazendo-lhes uma grande ameaça e paralizando-os.

Os meios da aplicação na guerra subversiva são os seguintes:

As minas devem ser instaladas numa zona possível a ser utilizada pelo inimigo na ofensiva: o pequeno caminho da floresta e da aldeia, a construção no campo de batalha, a construção importante nas aldeias, depósitos, armazéns e os sítios próximos das pontes sabotadas por nós, é mais provável impedir ou matar os inimigos se se instalar as minas nas estradas e nas florestas.

O emprego da guerra de minas:

(i) Quando o inimigo se esgota nós o batemos: trava-se a guerra de minas no lugar onde está o inimigo.

(ii) Quando o inimigo se imobiliza nós o importunamos. Pode-se enterrar minas ao lado do campo militar dos inimigos, na entrada que dá para o campo militar.

(iii) Quando o inimigo foge nós o perseguimos: pode-se enterrar minas nas estradas e todas as linhas principais de comunicação por onde o inimigo foge.

As necessidades de emprego de minas isoladas e em grupo:

As minas isoladas e em grupo dispõem das seguintes vantagens: instalação simples, prática, económica, não são limitáveis pelos caracteres do terreno.

Utiliza-se pouca mina alcançando grande vitória.

Conforme as necessidades de combate pode-se transferir facilmente as minas por toda a parte.

Deve-se escolher estradas indispensáveis à passagem dos inimigos passam e os objectos que os inimigos devem tocar para aí instalar ou enterrar as minas.

Enterra-se as minas sem que os inimigos saibam, isto é, defíceis a serem descobertas e liquidadas pelos inimigos.

Resumo:

Deve-se utilizar as minas com eficácia com o fim de aniquilar um grande número de inimigos.

(Continua)

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. alguns posts sobre este tópico (minas e armadilhas) (lista meramente indicativa):

25 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2303: Tabanca Grande (42): Francisco Palma, Soldado Condutor Auto da CCAV 2748/BCAV 2922 (Canquelifá, 1970/72)

18 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2278: Estórias do Xitole (1): A triste sorte do sapador Quaresma... morto por aquela maldita granada vermelha (David Guimarães)

16 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

21 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os paraquedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gamparà (Victor Tavares, CCP 121)

15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1529: Belmiro dos Santos João, de Miranda do Douro, vítima de mina antipessoal em Catió (Fernando Chapouto / A. Marques Lopes)

29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1325: Mansabá: o comandante do COP6, Correia de Campos, e as Minas na Bolanha de Manhau (Carlos Vinhal)

16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado (Luís Graça)

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLIX: Cancioneiro de Mansoa (6): O pesadelo das minas (Eduardo Magalhães Ribeiro)

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969) (Luís Graça)

10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)

23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David Guimarães)

20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho) (Luís Graça)


(2) Vd. último post desta série > 29 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2228: PAIGC - Instrução, táctica e logística (5): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (V Parte): Flagelações (A. Marques Lopes)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2326: O Hino de Gandembel e a iconografia do soldado atormentado pelo desassossego (Idálio Reis)

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Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Vida quodiana... No comments!... As grandes fotografias dispensam legendas.

Fotos: © Idálio Reis (2007). (Editadas por L.G.). Direitos reservados.

Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Mensagem de hoje do Idálio Reis

Grande companheiro Luís

Julgo prudente não emitir qualquer opinião ante a verborreia maliciosa e cínica do paisano Manuel Trindade (1).

Já tive a oportunidade de me pronunciar sobre o hino de Gandembel, aquando do envio, [em 6 de Novembro último,] do CD do António de Almeida. Segue de novo em anexo.

A Tertúlia deverá tomar conhecimento prévio desse post, e então procurarei conseguir dar a compreender o que a letra daquela canção, genuinamente popular, quer significar. A guerra teve várias faces, mas a pior de todas tem sido a do seu branqueamento.

Fraternal abraço à tertúlia do Idálio Reis


3.
Mensagem de 6 de Novembro de 2007:

Meus caros editores-mor:

Enviei para a Escola do Luís um CD contendo 2 versões do Hino de Gandembel, do meu camarada ex-soldado António Almeida.

Demorou mais algum tempo que previa, mas ele andou a encetar diligências para se fazer acompanhar por uma banda, com gravação num estúdio.

Como me afirmou, foi a 1.ª vez que se viu metido nestas alhadas e sentiu-se um pouco nervoso.

De qualquer forma, o Almeida está de parabéns e o Blogue fica mais rico. Quem quiser apoiá-lo, o seu telemóvel é o 932896244.

Anexo um pequeno texto que apelidei de traços de Gandembel, para lhe emprestar algum enquadramento.

Um grande abraço do Idálio Reis.

Comentário de L.G.:


Idálio: Por lapso, o teu texto, tão autêntico, tão profundo, tão rico, de análise de conteúdo à iconografia de Gandembel/Balana e à letra do vosso hino, que acompanhou o envio do CD-ROM com a versão musical do Hino de Gandembel, não foi lamentavelmente publicado na altura (2)... Se o tivesse sido, talvez não houvesse nenhum (pré)-texto humorístico como aquele que publicámos...

E a propósito dou-me agora conta de que, muitas vezes sem querer, podemos magoar as pessoas e os seus sentimentos mais propfundos, com as coisas que escrevemos e publicamos aqui, no nosso blogue... É um risco calculado, com que todos os camaradas da Guiné têm que saber viver... Nada do aqui dizemos é neutro, inócuo, inocente, gratuito...mesmo quando abordamos, com ligeireza, o nosso quotidiano (sofrido) de guerra...

Um ou outro dos nossos camaradas já se têm afastado da nossa Tabanca Grande, discretamente, sem grandes protestos, porque nem sempre se reconhecem nas coisas que publicamos, e implícita ou até explicitamente têm criticado a nossa orientação editorial. Como sabes, o nosso blogue tem feito um esforço por ser plural, pluralista, aberto, isento... Não é fácil, ainda por cima quando se é generoso e se abre as portas a toda (ou quase toda) a gente...

Tu, que estiveste em Balana, sabes a importância que tem uma ponte...Ora o nosso blogue não é apenas um jornal de caserna, uma câmara de eco dos que nele escrevem, um circuito de comunicação fechada e autofágica, é também uma ponte, um elo de ligação entre duas margens, mas também uma via para a outra margem... para aqueles, mais jovens, como porventura é o caso do Manuel Trindade e de outros paisanos que nos visitam - e que, no fundo, nos admiram e respeitam, embora possam não compreender-nos, em parte ou em grande parte... Não vamos cortar essas pontes. E, muito menos, silenciar com tiro de morteiro certeiro aqueles que estão do outro lado, na outra margem...

Temos, contudo, o direito... à indignação quando não respeitam os nossos sentimentos. De qualquer modo, és um homem sábio quando decides desvalorizar o caso... Dito isto, vamos ao que interessa, que é o teu texto, que merece toda a nossa atenção e reflexão.

Não serve de consolo dizer-te isto, mas tenho que o dizer, embora tu o saibas muito melhor do que eu: Gandembel e Balana ficarão para sempre ligados à tua companhia, aos teus bravos da tua companhia, a CCAÇ 2317. Gandembel/ Balana é vosso, para sempre: refiro-me não ao pedaço de floresta desmatada do sul da Guiné, junto ao Rio Balana, onde flutuou a bandeira verde-rubra entre Abril de 1968 e Janeiro de 1969, mas sim às memórias, às emoções, ao desassossego, à saudade, ao medo, à fome, à tristeza, ao desalento, à merda, ao sangue, às lágrimas... e também ao orgulho, ao brio, à coragem, à brincadeira, à camaradagem, à alegria, à esperança... Isso, camarada, nada nem ninguém (nem muito menos a História) vos pode roubar!!!




Hino de Gandembel cantado por António Almeida, residente em pedrouços, Maia, ex-soldado da CCAÇ 2317 ( Gandembel / Balana , 1968/69), com acompanhamento musical de um amigo e conterrâneo. Vídeo: 2 m 42 s. Alojado no You Tube > Nhabijoes.

Vídeo: © António Almeida / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Traços de Gandembel: das fotografias ao seu hino
por Idálio Reis

Meus caros Luís, Vinhal e Briote.

Faço enviar, para o Luís, um CD de áudio onde o meu camarada ex-soldado António Pinto de Almeida, residente em Pedrouços-Maia, fez gravar o hino da sofrida Gandembel, cantado a seu modo, entoado como ele o fazia há quase 40 anos. Mas agora, até se deu ao privilégio de se fazer acompanhar de uma banda, e ao ouvi-lo fiquei encantado.

A maneira como se prestou a fazer partilhar este favor que lhe pedi, já o agradeci em nome da Tertúlia. Para quem sempre esteve ao lado desta enorme gente, mais uma enorme prova de estima e consideração por este seu velho amigo.

Porventura, caberá a vez ao nosso balador-mor Gabriel Gonçalves saber conjugar, com o seu benjamim, essa voluntariosa missão técnica de sonoplastia, e assim em definitivo fazer florescer mais uma das célebres cantigas de amigo, para fazer repartir sonoramente por todos nós.

Aproveito a circunstância deste envio, para me debruçar um pouco sobre esta canção, invocando também as fotografias que apareceram no post P2152 de 4 de Outubro (2).

O Luís tem feito destacar uma, em que eu-próprio apareço envolto no cobertor que me servia de colchão, a tentar que uma pá provocativamente calejante, porque a gastaram de tantas canseiras, emitisse um sonido tangível, cristalino e plangente, a fim de que uma transformada canção de gesta ecoasse rio Balana abaixo, e chegasse em velocidade da luz, embalada ao mundo dos meus e dos nossos.

E para seus contentos, lembro-me que lhe incuti uma secreta aspiração, ainda que reconhecesse ser muito difícil de sobrepujar. De todo não chegou ao destino, tudo indiciando que os seus ecos se vieram a sumir no marulhar de um macaréu de lua, acabando por se esvanecer na salsugem do Geba.

E aí se quedou de mansinho durante muitos anos, enquistada talvez nalguma ostra perlífera, e um dia o Luísv Graça & Camaradas da Guiné a remoçou em melopeia cândida e dolente, que cativantemente nos vem seduzindo e incontidamente nos emudece, já que ela teve o condão de aglutinar miríades de recordações marcadas por aquele frenesim delirante que aquela tremenda Guiné tantas vezes nos avassalou.

Procuro perceber as causas desse estancamento repentino, e agora me lembro que, naqueles tempos de antanho, havia imensas dificuldades para transpor as fronteiras do império. A autocracia totalitária tudo abafava, inclusive o exaspero ou o desalento.

De todo o modo, a guerra subversiva que nos entranhava, ainda continha um certo poder de rebusca para de todo não dobrar a cerviz. Deleitantemente houve enlevos que parecem terem-se mantido, como a fotografia que nos mostra este conto-imagem, que fundamentalmente se consubstancia na fidelidade. Ela é uma parte imanente da nossa memória plena, a querer continuar a perdurar bem presente até ao infinito, que não ousa enganar, trair ou ludibriar.

A fotografia fixa uma imagem a advir de um pulsar num determinado momento-instante. Creio que os milhões de vezes que o indicador da mão direita premiu o botão da máquina, revérberos de uma luz intensa, se transformaram em estrelas cintilantes a iluminar o sonho vivo da presença. Mesmo que se assemelhassem a um fogo-fátuo, conseguiram que esboçássemos um doce sorriso, porque ainda estávamos de pé, numa Guiné onde se intentava viver obsessivamente para ver amanhecer o dia posterior.

As 2 fotografias que aparecem no Post, como as que fomos guardando num recanto especial como autênticas relíquias, são fortemente expressivas ao revelarem-se-nos. Talvez por isso, têm de ser observadas com uma apurada acuidade visual, para que nos elucidem em contemplação, o que foram as vivências desses conturbados tempos que nos assolou com tantos confrontos.

E uma grande maioria delas arrebatam-nos sensorialmente a fim de lhes emoldurar uma legenda capaz de as interpretar. Ah!, mas quantas delas denotam uma possança tão forte que nos anuviam os sentimentos e por vezes quaisquer palavras que se lhes apensem, perdem sentido.

Torna-se então preferível aprofundar uma sua absorção, deixar que elas exteriorizem todo o seu conteúdo, mas no êxtase da sua contemplação, nada se consegue comentar. Tudo parece resultar do local e do momento que se pulsou a máquina que a fixou.

Também elas transparecem uma particularidade muito peculiar, a da sua intemporalidade, no contexto em que um relance da sua visão nos transmite todo o itinerário das nossas vidas até ao presente, onde se cruzam emoções em rodopio, uma furtiva lágrima pinge sobre a barba esbranquiçada, para questionar-mo-nos se tantos tropeços valeram a pena.

Aventuro-me a afirmar que nem tudo valeu a pena, apesar de as nossas almas se terem mostrado demasiado grandes, não haja a mínima dúvida. Mas quantas vicissitudes nos foram compulsivas!

O Luís gostou mais de uma, de um conteúdo mais global [«nesta fotografia de um camarada sozinho, no palco da guerra, no cu do mundo, estamos lá todos»]. Será muito difícil não encontrar uma qualquer fotografia que não nos inebrie, dado que elas conseguem desnudar-se nas facetas várias da camaradagem [«as alegrias, as tristezas, a coragem, a solidão, a esperança, os medos, os sonhos, os intervalos»].

É tudo isso, meu caro Luís, a saudade que o isolamento de Gandembel fazia aflorar de um modo persistente, toma lugar com muita veemência. Talvez por isso, a fotografia representa a iconografia do soldado atormentado pelo desassossego.

Já o Nuno Rubim propendeu para uma outra. Intento reconhecer as razões dessas escolhas, já que sobre esta, permitam-me tecer alguns comentários, ao que legendei de banhos de imersão, onde o elemento água toma aqui um valor insuperável.

Gandembel, num dos períodos mais cruciais, o do início do aquartelamento, debateu-se com falta de água, mesmo a provir de charcas que o leito do Balana ia contendo, e que bebemos durante quase 2 meses, ainda que reconhecendo ser imprópria para consumo. Um dos nossos maiores contentamentos deu-se no dia em que começou a haver água bastante, com os débitos do rio a aumentarem.

Esta fotografia revela 2 aspectos: a fartura de água que até servia para o pessoal se comprazer naquelas banheiras verticais, mas os cuidados que eram requeridos, já que os bidões estavam dentro do aquartelamento, apesar da distância ao Balana não superar o meio quilómetro. Mas ninguém ousava banhar-se no próprio rio, pelo risco bélico que sempre nos confrontava.

Já o hino de Gandembel contextualiza a gesta dos que tiveram a desdita de nela ousarem (sobre)viver. A sua concepção surge em circunstâncias particularmente difíceis, onde transparece uma mescla de clemência, agonia, alívio, alegria. O seu contributo para o estímulo da Companhia foi valioso, na pacificidade das tensões, e daí que se viesse a repercutir por alguns aquartelamentos. Hoje o Blogue, ao fazer divulgar a sua forma cantada, fá-lo resplandecer, e torna-se um hossana.

Mas permita-se-me uma leitura aliás bastante subjectiva, muito em especial de alguns dos seus versos.

(i) Das peripécias de guerra mais penosas, foi a audição dos milhares dos ecos das saídas dos morteiros 82, «Gandembel das morteiradas» que quase quotidianamente flagelavam aquele aquartelamento; os momentos de ansiedade e expectativa, enquanto a granada silvava os ares na sua trajectória indefinida, eram aterradores: «Meu alferes, uma saída/Tudo começa a correr»; havia um estrondo quando deflagrava, e tudo se poderia esvair naquele contacto com o solo: onde? longe? ao lado? «Não é p´ra aqui, é p´ra Ponte/Logo se ouve dizer».

(ii) Uma das outras facetas negras, que envolve um doloroso e prolongado tempo, foi a do espectro da fome, pois a variedade das refeições quase não se alterava, em que os frescos não existiam: «A comida principal/É arroz, massa e feijão». Longos períodos sem uma bebida que não fosse água: «Bebida, diz que nem pó/Acontece o mesmo ao vinho».

Sim, Gandembel foi um local onde o perigo pairava a cada momento, e o seu tempo mais agradável conhecia-se por bonança. E, por vezes ao entardecer, saía de uma caserna-abrigo, um coro à capela, à busca de um contentamento de tranquilidade, e também de rogo para que a noite decorresse sem queixumes.

Mas quantas vezes, no pedido não satisfeito, as noites estremunhavam e o cansaço ou desalento agudizavam-se. E mal despontava o dia, em alvor da madrugada fustigante, ouvia-se um forte brado, de revolta, não mais que um grito de chamamento para ninguém: «TIREEEEEM-ME DAQUI!».

Um fraterno abraço a todos, do Idálio Reis.

________


Notas de L.G.:

(1) vd. posts de:

1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)

2 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2323: Um insulto aos heróis de Gandembel (Zé Teixeira)

2 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2324: (Ex)citações (1): Um pouco de humor de vez em quando também nos faz bem (Henrique Matos)

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2319: Hino de Gandembel: interpretação de António Almeida (CCAÇ 2317, Gandembel/Balana, 1968/69)

Guiné 63/74 - P2325: Massacre do Chão Manjaco: Todos iguais na morte, mas nos relatórios uns mais iguais do que outros (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali (Catió) > Rio Cumbijã > Junho de 1970. Em primeiro plano, o Alf Mil Trms, que pertenceu inicialmente à da CCS do BCAÇ 2884, Pelundo, 1969/70; transferido depois para o batalhão de Catió, por razões disciplinares de que muito se orgulha: foi punido pelo Ten Cor Romão Loureiro (1) .


Foto: © João Tunes (2005). Direitos reservados.



1. Mensagem de João Tunes:

Camaradas,

Considero um excelente contributo, para o registo da guerra colonial, o relatório secreto transcrito no post P2320 sobre o massacre no chão manjaco (2). E se um dia se puder obter o relatório do PAIGC sobre a mesma acção, teremos uma visão clara e objectiva sobre um dos acontecimentos mais traumáticos na vertente psico da guerrilha/contra-guerrilha verificada nos teatros de operações onde, em treze anos de guerra, se verificou o estertor do multi-secular império colonial português. Muitos parabéns, pois.

Para além do enquadramento objectivo do resultado do massacre que se obtém pelo relatório militar publicado, um aspecto singular nele me chamou a atenção e que julgo ter implicações óbvias de leitura. Quanta retórica de indignação nós não gastamos a enaltecer uma presumida igualdade de todos os que, sob a bandeira portuguesa, se bateram pela continuidade da soberania portuguesa (militares do quadro, militares milicianos, guineenses integrando ou apoiando a tropa portuguesa).

No entanto, repare-se que o relatório, quanto às baixas (os sete assassinados), não esquece as devidas distinções de consideração no trato, pois que, entre os sete caídos em missão, na mesma missão, até na morte foram desiguais no trato militar: 3 (três) eram “Ex.mo Major”, 1 (um) era “Sr. Alferes” e 3 (três) eram “nativos”.

Enquanto no realce aos três militares que se destacaram na acção da CCAÇ 2586, o primeiro cabo e os soldados como tal são nomeados, sem direito a Excelência ou a Sr. (mas sem a carga preta de serem nomeados como nativos). Presumindo-se que todos, das excelências até aos nativos, eram cidadãos de Portugal do Minho a Timor, as distinções são, pelo menos, paradoxais. Mas relevantes.

Fiz o meu modesto elogio a este excelente post no meu blogue [e que se reproduz a seguir, com a devida vénia. L.G.]

Abraços para todos os estimados camaradas.

João Tunes


2.
Blogue de João Tunes (Ano V na Blogosfera) > Água Lisa (6) >1 de Dezembro de 2007
Quando a Guerra Correu Mal, Muito Mal


Um dos episódios mais dramáticos que o absurdo da guerra colonial implicou, em preço de sangue e emoção, para as Forças Armadas portuguesas, foi o massacre de quatro oficiais portugueses e três guineenses ao serviço do exército colonial, ocorrido junto ao quartel do Pelundo no centro-norte da Guiné, em Abril de 1970. Não pelo número de baixas, pois houve combates com muitas mais vítimas do lado português, mas por quatro ordens de razões: o número de oficiais superiores entre as vítimas; a qualidade militar dos três majores (faziam parte da elite do corpo de oficias sob comando de Spínola e contavam-se entre os melhores especialistas militares em contra-guerrilha); terem sido assassinados não só com requintes de crueldade como se encontravam desarmados; o volte-face que representou esta acção do PAIGC (a missão destinava-se a receber a rendição de forças do PAIGC e era o culminar de longas negociações e de acção de aliciamento) em que uma prevista rendição de guerrilheiros se transformou num golpe profundo que liquidou três oficiais portugueses de elite e acentuou o caminho para a guerra total.

Aqui [no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] acaba de ser editado o relatório militar secreto da força operacional que fez a recolha dos corpos dos massacrados e que saiu do quartel do Pelundo em acção militar desencadeada após tardar o regresso da força que ia receber a rendição da força do PAIGC (e para a qual se previa a sua integração no exército português).

Trata-se de um documento de grande importância no esclarecimento sobre as partes dramáticas vividas na guerra colonial, incidindo sobre um dos seus episódios mais traumáticos. De consulta obrigatória para os interessados em saber como elas mordiam, mesmo quando a miragem de uma grande ou pequena vitória parecia estar frente aos olhos.

[Na minha comissão militar na guerra da Guiné, conheci e fiz amizade pessoal com os três majores massacrados, todos inteligentíssimos, destemidos, cultos e de formação humana excepcional, sendo o mais brilhante entre eles (Passos Ramos), o que acrescenta absurdo ao acontecido, um militar que era contra a ditadura e a guerra colonial. Em tempos idos, dediquei-lhes este post.](3) (4).

___________

Notas dos editores:

(1) 27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes

(...) "Obrigado por finalmente teres avivado a minha memória, lembrando-me o número do meu Batalhão do Pelundo. É isso, BCAÇ 2884, sob comando desse Tenente-Coronel de pacotilha Romão Loureiro (antes da Guiné, o tipo havia feito a maior parte da sua carreira "militar" na União Nacional, tendo chegado a Presidente da Câmara de Viseu... e foi fazer aquela comissão para poder ascender a Coronel, mas [...] sabia tanto de guerra como eu sei da cultura de alcagoitas) (...).

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2320: Relatórios Secretos (1): Massacre do Chão Manjaco: O resgate dos corpos (Virgínio Briote)

(3) Vd. post de 11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo)

(4) Outros textos do João Tunes publicados na I Série do nosso blogue, e que merecem ser relidos, pela qualidade da escrita e pela sua postura crítica:

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXVII: A 'legenda' do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74- DCCCXVIII: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCV: O 'turra' Luandino Vieira recusa Prémio Camões (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCII: O limpo e o sujo, nós e os pides (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCI: Todos camaradas, mas uns mais do que outros ? A propósito do assassínio de Amílcar Cabral (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: Fazer a catarse antes de vestir a toga de juiz (João Tunes)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXVI: E os patriotas guineenses, torturados e assassinados em nome de Portugal ? (João Tunes)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)

12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)

domingo, 2 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2324: (Ex)citações (1): Um pouco de humor de vez em quando também nos faz bem (Henrique Matos)



Na foto, à esquerda: Dois primatas em Guileje... O maior é o nosso amigo e camarada J. Casimiro Carvalho, ex- Fur Mil Op Esp, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350, Dez 1972/Mai 1973). Na nossa Tabanca Grande não queremos ninguém como o macaco da justiça: cego, surdo e mudo...

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Albano Costa (Guifões, Matosinhos):

Caros Luís Graça e co-editores

É só para fazer uma pequena rectificação, sobre a foto do post P2321: o colega que está na foto não é o Zé Teixeira, mas sim um outro colega, de nome Carlos Azevedo... Ele esteve em Bedanda, em 1970/72, não faz parte da Tabanca Grande, mas vive na mesma freguesia do Zé Teixeira.

O Blogue cada vez está mais interessanto, bem hajam.

Um abraço
Albano Costa

2. Mensagem do editor, L.G.:

Zé: Está esclarecido o mistério do tuga... Gostei da tua prosa. Como viste, publiquei-a de imediato.


3. Mensagem do Zé Teixeira (Matosinhos):

Certo, Luís. O blogue é um espaço aberto onde toda a gente deve expor as suas ideias. A dinâmica do próprio blogue se encarregará de fazer as correcções devidas. Foi o que eu tentei fazer de imediato. Podes crer que fiquei chocado, embora compreenda que para quem presumivelmente não esteve na guerra criasse outas expectativas.

Abraço fraternal do

J.Teixeira

4. Comentários, já publicado, ao post P2323:

Henrique Matos:

Contrariamente à opinião do Zé Teixeira, que respeito, confesso que até me diverti bastante a ler o apontamento de Manuel Trindade sobre o Hino de Gandembel, pois estou convencido que se tratou duma paródia e apenas se destinava ao Beja Santos. Um pouco de humor de vez em quando também nos faz bem.

Luís Graça:

Leiam o que escrevi no post 2205, de 23 de Outubro último:

A bianda, o tacho, a comes-e-bebes, o rancho, além do álcool, era talvez a principal preocupação do tuga na Guiné... O supremo luxo era um bifinho com batatas fritas e ovo a cavalo, em Bissau, Bafatá, Nova Lamego, regado com vinho verde ou com umas bazucas...

Veja-se, nos nossos cancioneiros, como o fantasma da fome, a pulsão da comida (e da bebida), inspirava os nossos poetas e humoristas de caserna. É apenas uma amostra... Também deveria fazer parte de qualquer filme-documentário sobre o quotidiano das NT, nos buracos (aquartelamentos e destacamentos) em que vivia... Esta também é outra face da guerra. Talvez um dia alguém a consiga passar para o grande écrã. Como diz o Jorge Cabral, a 'nossa' guerra não teve apenas duas faces, era um verdadeiro caleidoscópio...

Eu acrescentaria mais o seguinte: aguentámos tudo o que havia a aguentar - para além do razoável e às vezes até do humano - com estoicismo, com valentia, com galhardia, com 'sangue, suor e lágrimas', sem dúvida, mas também com muito humor (negro, às vezes)...

Henrique Matos< 5. Ver também o comentário do Joaquim Mexia Alves (Monte Real, Leiria):

A minha primeira reacção foi igual à do Zé Teixeira e confesso que essa reacção ainda não me abandonou. Sou uma pessoa de humor, julgo eu, e gosto do humor, como se poderá ver por algumas coisas que escrevi. Não sou no entanto apologista de que tudo serve para o humor, e há coisas que tocam tão profundamente as nossas vidas, sobretudo ao nível dos sentimentos, que devem ser respeitadas por todos.

Posto isto, desvalorizo o assunto, não lhe dando importância, pois me parece a melhor forma de com ele lidar. Ao que percebi, o Manuel Trindade não pertence à Tertúlia nem esteve na guerra em África, por isso não pode perceber como certas coisas doem e não é com humor deste que cicatrizam, mas enfim, tudo bem.

A minha pergunta, que coloco aos nossos comandantes é: Será boa politica a intervenção de pessoas que não tendo vivido a guerra, aqui querem opinar sobre ela, seja de que maneira for, com humor ou sem humor? Não poderá perder-se um pouco a identidade da Tertúlia?

Abraço camarigo do

Joaquim Mexia Alves

Guiné 63/74 - P2323: Um insulto aos heróis de Gandembel (Zé Teixeira)

1. Mensagem de Zé Teixeira (ex-1.º Cabo Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, actualmente residente em Matosinhos, bancário, reformado, um homem bem disposto que tem por alcunha, entre os escuteiros, de que é dirigente, o Esquilo Sorridente; é, além disso, um dos nossos antigos e proactivos membros da nossa tertúlia) (1):


Meus caros amigos [editores]:

Agradecia que retirassem ao meu nome da foto humorística em Ponte Balana ano 2000, só porque não se trata da minha pessoa. Apesar de ter voltado à Guiné, foi em 2005 e não tive oportunidade de ir a Balana, muito menos, como é compreensível ir lá de propósito arriar o calhau.

Sobre os comentários do Sr. Manuel Trindade (2), lamento a sua pobre imaginação em reduzir a canção ou hino de Gandembel a uma música pimba, no sentido depreciativo que lhe dá, que eu considero, no mínimo humor de mau gosto, logo desprezível..

Não creio que tenha vivido em situações de guerra, caso contrário entenderia facilmente que a reacção da nossa gente às situações difíceis que lhe apareciam pela frente, passado o sofrimento que tantas vezes era atroz, pelos perigos que tinha de enfrentar, pelos camaradas feridos e em sofrimento, pelos amigos que nos deixavam para sempre; a reacção, no combate ao medo que nos ficava na alma e entorpecia os sentimentos e a mente era cantando quantas vezes (na caserna do Zé Soldado), com uma bazuca [cerveja] a mais, coisas alegres que recordávamos da nossa terra, já existentes ou recriando-se piadelicamente os acontecimentos sofridos.

Não eram hinos a contar a heroicidade, esses ficam para os mais letrados ou doutores chamados Trindade, eram estórias reais. E essas é merecem ser escritas e contadas aos vindouros, não os hinos heróicos que mistificam a realidade.

Eu que não vivi Gandembel, mas visitei em tempo de guerra, integrado nas colunas que lhe levavam uma réstia de esperança do mundo e sentia a poucos quilómetros o horror do seu sofrimento, com ataques de dia e de noite (3). Eu, que ao chegar lá, senti a Parada a ser varrida por uma rajada inimiga em pleno dia e não me limpou o sarampo, porque um conterrâneo meu, ali estacionado, me gritou ao longe, encostado a um abrigo, Foge daí!. Eu entendo bem a linguagem e a mensagem do seu hino, talvez escrito por um jovem com a 4ª classe (linguagem da altura). O hino pretende contar a sua história.

A alimentação, o tal feijão era que muitas vezes havia para comer. Não merece ser reduzido a confundido com situações de flatulência/ canhoadas e morteiradas, porque estas eram reais e traziam a morte. Eu também vivi situações destas. Em Buba, por exemplo e a CCAÇ 2317 também lá estava, uma temporada em que a alimentação era feijão com amostras de chispe ao meio dia e amostras de chispe com feijão à noite, ou então arroz com marmelada.

Os abrigos de madeiras eram reais, construídos com suor, perigos, lágrimas de saudade, lágrimas de medo. O cimento foi amassado com sangue dos camaradas que deixaram lá a vida

Reduzir isto a música pimba, é um insulto aos camaradas de Gandembel.

J.Teixeira
Esquilo Sorridente

2. Comentário de L.G.:

(i) As minhas sinceras desculpas pelo lapso, em relação à legenda da fotografia em causa. Os neurónios do meu PC já andam a ficar baralhados. De facto, em Novembro de 2000, em Ponte Balana, não podias ser tu, porque não tens o dom da ubiquidade. Tratava-se de um dos camaradas do grupo do Albano Costa. Já rectifiquei a legenda...

(ii) Quanto à tua indignação... entendo-a, compreendo-a e aceito-a... Mas, como sabes, no nosso blogue não há tabus nem censura (editorial): a intenção do Manuel Trindade (que eu não conheço pessoalmente) não era de insultar os nossos camaradas de Gandembel/Ponte Balana, nem de menosprezar o seu hino...

A tua reacção é saudável e ajuda a compreender melhor o nosso comportamento quotidiano nos buracos onde vivíamos (!)...

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)

(3) Vd. post de 25 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2129: Quero depositar um ramo de flores em Gandembel (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P2322: Antropologia (3): 1952: Mulher mandinga da... Colónia da Guiné (Luís Graça / Beja Santos)

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Guiné > Colónia da Guiné (sic) > Circunscrição Civil de Bafatá - Administração > 1952 > Uma foto de uma mulher mandinga, reproduzida no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nº 27, Julho de 1952... Exemplar pessoal do Beja Santos. Mais do que a foto da mulher, a imagem vale pelo carimbo... Em 1951, o Estado Novo regovou o Acto Colonial, de 1930, fazendo, com a revisão da Constituição,com um upgrade no domínio da organização político-administativa dos territórios ultramarinos, mais de acordo com os "ventos da História": passou assim a chamar províncias ultramarinas às colónias portuguesas (expressão em uso até então, desde pelo menos o Séc. XIX)...
Mas a Administração Colonial de Bafatá não trocou logo de carimbos... As ligações, por barco, eram mais lentas em 1952 e o erário público, por seu turno, não podia ser perdulário... Enfim, um fait divers para a petite histoire do Império... (LG)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.





Capa e contracapa do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Ano VII, nº 27, Julho de 1952... Um exemplar comprado pelo Mário Beja Santos, em Novembro de 1969, em Bafatá (2).

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2289: Antropologia (2): A literatura infanto-juvenil dos anos 40 e os estereótipos coloniais (Beja Santos)

(2) 30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2317: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (11): O fantasma de Infali Soncó

sábado, 1 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > POnte Balana > Novembro de 2000 > Um tuga, um homem de calças na mão...na Ponte Balana, antigo destacamento de Gandembel, ao tempo da CCAÇ 2317 (Abril de 1968/Janeiro de 1969). O motivo foi um ataque de... formigas carnívoiras!

Foto: © Albano Costa (2006) (1)


1. Chegou até nós através da Caixa de Correio do Beja Santos... É uma apreciação humorística, bem humorada, irreverente, quiçá iconoclástica, do Hino de Gandembel, ou pelo menos de uma das suas versões musicais... O Beja Santos e o seu amigo ou colega de trabalho, o amanuense Manuel Trindade, não levam porventura a mal que a mensagem (em princípio, privada) seja partilhada a nível da caserna ou até da Tabanca Grande...

Ora aqui está uma questão apropriada para o feriado (patriótico) de hoje, primeiro de Dezembro (e para a próxima sondagem): O Hino de Gandembel (2) não era esperado que fosse algo de muito guerreiro, feroz, marcial ? Se sim, a versão que nos chega, não passa de uma paródia da guerra, tipo guerra [de 1908] do Raul Solnado (3)...

Eis a opinião do Manuel Trindade, que presumimos ser um assíduo leitor/visitante do nosso blogue... Embora ele seja um paisano, e um jovem - comparado connosco, os cotas que fizeram a guerra da Guiné, e a avaliar pelo estilo da sua escrita : escreve k7pirata em vez de cassete pirata - a sua intervenção merece, pela irreverência, frescura, verve e originalidade, um tratamento aparte na nossa caserna... Vai para a secção, não dos Perdidos & Achados, mas do Humor (4)... Além disso, com os agradecimentos dos editores.

Naturalmente que gostaríamos, a seguir, de ouvir a opinião dos guerreiros de Gandembel/Balana, a começar pelo nosso venerando Idálio Reis...

2. Mensagem de Manuel Trindade:

Dr. Beja Santos,

Pensava que ia ouvir um hino (2) e sai-me uma coisa quase pimba... pimba.

A coisa poderia estar numa “k7pirata” e poderia passar no bailarico da colectividade.
Gostei das alusões ao feijão e coisas afins, conectado com wc (white chapel), que em Gandembel talvez não fosse tão branca quanto isso, se é que era branca...

No entanto existem pistas na letra que permitem estabelecer uma conexão entre feijão, wc, morteirada e canhoada, o que deixa antever problemas de...flatulência.

Ainda por cima o intérprete fala em abrigos de madeira (nos clássicos filmes norte-americanos dos “rapazes da vaca” o abrigo de madeira distava uns metros da habitação, salvaguardando-a dos efeitos... da feijoada).

Ainda pensei que no final teríamos um grito bélico, másculo (um exercício do tipo da selecção de râguebi da neozelandesa), do género: urra, urra/Gandembel/ao turra/arrancar a pele... Mas não! A coisa em vez de terminar com a dignidade que se impõe, termina em desfalecimento, ou seja o som vai baixando até deixar de se ouvir.

Dr. Beja Santos, impõe-se um novo hino para Gandembel. Espero que não leve a mal este exercício deste pobre amanuense.

Um abraço,

Manuel Fidalgo

Centro Europeu do Consumidor
Direcção-Geral do Consumidor
Lisboa
______

Notas dos editores:

(1) Vd. post e 6 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P850: O Álbum fotográfico do Albano Costa (2): a Ponte Balana (Gandembel)

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2319: Hino de Gandembel: interpretação de António Almeida (CCAÇ 2317, Gandembel/Balana, 1968/69)

(3) Vd. os seguintes posts:

Raul Solnado, Wikipédia

SPA - Sociedade Portuguesa de Autores > As mil faces de Raul Solnado > As gargalhadas que ganharam a guerra, entrevista de Raul Solnado, por Artur Queiroz

(...) "Raul Solnado é um actor de mil faces mas foi com as gargalhadas que se impôs como uma figura mítica do espectáculo. E quando a guerra colonial era sagrada e indiscutível, ele pôs Portugal a rir-se de uma guerra sem sentido, uma rábula que foi o seu maior êxito de sempre." (...)


A - Foi por isso que em plena guerra colonial pôs Portugal a rir à gargalhada com a sua versão da guerra?


RS - Aquela rábula tem um início anterior à guerra. Eu fui a Madrid e vi o Miguel Gila representar o texto. Fiquei logo apaixonado pela rábula porque o non sense é o tipo de humor que mais me toca.Comprei o disco, traduzi o texto mas guardei-o, não por temer a censura mas porque tinha dúvidas que as pessoas gostassem daquilo.


A - E quando é que a sua guerra saiu da gaveta?


RS - Foi já no início da guerra em Angola. Eu fui com o Humberto Madeira - um cómico fabuloso - à quermesse do Nacional da Madeira, na Quinta da Vigia, um sítio lindíssimo onde agora está instalado o Governo Regional. Num mês fizemos 45 espectáculos e lá para o fim sentimos que era preciso refrescar o repertório. Disse ao Humberto Madeira que gostava de fazer a guerra, talvez as pessoas gostassem. Ele apoiou-me e avancei. Nessa noite o público riu-se tanto que pediu bis. Foi ali que começou o sucesso da minha guerra...


A - Quais eram as suas dúvidas em relação ao texto?


RS - Não era em relação ao texto, mas ao gosto do público, hoje as pessoas riem melhor que naquela altura. Eu não sabia se um texto non sense ia funcionar. Os cómicos têm sempre essa dúvida. Uma piada leva duas horas a ser construída e depois desaparece como um fósforo. É ao contrário dos cantores que quanto mais cantam um tema, mais ele se populariza e ganha notoriedade.


A - A estória da sua ida à guerra começou na Madeira e depois alastrou a que palcos?


RS - Mal cheguei a Lisboa fui fazer um espectáculo no ringue de patinagem de Oeiras e o êxito foi igual ao da Madeira. Na altura ia fazer a revista "Bate o Pé" e fiquei com a certeza de que a rábula não ia falhar.


A - Mas aí já tinha que submeter o texto à comissão de censura...


RS - Pois, e era uma censura visual e de texto, por isso eu tinha um grande receio que não passasse. O Nelson de Barros, grande jornalista e o maior autor de revistas que conheci, disse-me que mandávamos o texto como sendo para o personagem Cantinflas, uma rábula que tinha feito no teatro Apolo. Quando o texto veio aprovado, ninguém queria acreditar. O problema era a censura visual.


A - Como funcionava essa comissão de censura visual?


RS - No ensaio geral, cinco ou seis censores viam o espectáculo. Depois diziam que era preciso tapar um umbigo, descer umas saias, coisas assim. No Carnaval só se podia dizer merda uma vez por sessão. Como eu não ia vestido de Cantinflas, estava receoso que a rábula fosse cortada. Mas estes textos de non sense têm de ser bem compreendidos, caso contrário não funcionam. E eu disse aquilo a uma velocidade tal que nem eu próprio percebi o que dizia. Os censores também não perceberam e, no final, um deles disse-me que estava tudo aprovado mas deu-me um conselho: olhe lá, não faça aquilo da guerra, não tem piada nenhuma! E eu disse-lhe que era obrigado a fazer mas que então só fazia aquilo na estreia. Como já sabia o que vinha a seguir, pedi à Valentim de Carvalho que gravasse aquilo na estreia e lançasse o disco. Depois era impossível travar a rábula. Os censores ficaram baralhados com o Cantinflas! (...)

(4) Vd. post de:

26 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2304: Humor de caserna (2): Welcome to Mansambo, a melhor colónia de férias do ano de 1968 (Torcato Mendonça / Luís Graça)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)