terça-feira, 23 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19129: (D)o outro lado do combate (37): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: As intervenções cirúrgicas na base do Sará: fotos do médico holandês Roel Coutinho (Jorge Araújo)


Foto nº 3

Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar]. [P18848].



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, 
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > 
A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE >  AS INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS NA BASE DO SARÁ (FOTOS DO MÉDICO HOLANDÊS ROEL COUTINHO)


(Parte II – Resposta ao P18848) (*)


1. INTRODUÇÃO


Ainda que com algum atraso, o que lamento, a presente narrativa surge na sequência de uma outra relacionada com a temática em título – P18848 – com o objectivo de alargar um pouco mais a reflexão sobre os conteúdos então apresentados. Pretende-se, assim, dar cumprimento à promessa feita no fórum, no sentido de melhor esclarecer as dúvidas suscitadas em cada um dos comentários elaborados pelo auditório, e foram muitos, o que naturalmente agradeço.

São relevante neste caso, por exemplo, os cometários do C. Martins, que aproveito para citar:

"CONFUSÕES… PROPAGANDA [Vd. foto nº 1]

É sabido da grande dificuldade na evacuação de feridos do PAIGC, no interior do território da Guiné. Analisando as fotos nomeadamente a da dita intervenção cirúrgica verifica-se que o cirurgião [médico cubano Dr. António] tem bata cirúrgica e tem luvas, mas não tem máscara facial. O doente está coberto com um lençol do qual se encontra material cirúrgico, supostamente já utilizado.

Suponho que esteja a suturar um ferimento no abdómen. O doente foi anestesiado com anestesia local ou geral? Ninguém em redor tem qualquer preocupação com a assepsia, no mínimo colocarem máscaras faciais, e estarem afastados. Não se vêm quaisquer insectos, sendo a intervenção cirúrgica ao ar livre e no meio da mata, é de estranhar. Não se vê qualquer aparelho para avaliar os sinais vitais, nomeadamente um esfigmomanómetro (medidor de tensão arterial).

Julgo que se o doente não morreu do ferimento… morreu da cura. Como foi esterilizado o material? Segundo as informações que tenho… tentavam evacuar os feridos… só que a esmagadora maioria morria durante o trajecto. O PAIGC tinha hospitais de rectaguarda em Boké, na Guiné Conacri, e em Ziguinchor, no Senegal. Foram efectivamente ajudados por médicos cubanos, e provavelmente alguns estiveram no interior da Guiné, mas a grande maioria só estiveram nos respectivos hospitais já referidos.

É preciso analisar se são factos reais ou se é mera propaganda". AB. C. Martins.


Antes de mais, considero as questões acima identificadas como pertinentes. Aliás, a mesma opinião já a tinha manifestado no comentário escrito a este propósito.(*)

Chegados aqui, convém recordar que a narrativa anterior, tendo por base uma dimensão histórica específica, foi estruturada a partir da triangulação das fontes consultadas, em que grande parte do espaço foi ocupado com imagens seleccionadas de um universo de algumas centenas, do álbum do médico holandês Roel Coutinho, clínico que durante os anos de 1973/1974 cooperou com a estrutura militar do PAIGC no apoio aos actos médicos, quer de combatentes, quer da população sob o seu controlo.

Por isso, acredito que as imagens apresentadas correspondam a "factos reais", todas elas obtidas num contexto de "reportagem fotográfica" de dimensão deontológica, para mais tarde recordar como experiência vivida naquela região e naquela época, e como valor sociocultural e profissional a partilhar ao longo da vida. Adiciona-se, também, o facto do médico Roel Coutinho ter percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, nomeadamente as bases de Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).

Para além das imagens (fotos) terem sido obtidas há quarenta e cinco anos, não entendo o conceito "propaganda" como perspectiva enganosa, mas sim "propaganda" como conjunto de acções específicas para dar a conhecer algo. Estou nesta… por ser este o objectivo das minhas narrativas.


2. TESTEMUNHOS DO MÉDICO DOMINGO DIAZ DELGADO (1966)


Como suporte historiográfico, recordo alguns dos testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n-1936-), referentes à sua passagem pela base do Sará, durante o segundo semestre de 1966, ou seja, sete anos antes das imagens do médico Roel Coutinho.


Diz ele: […] "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. 

De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo [NT]. 

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 1966] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]


Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as principais bases do PAIGC existentes nessa região e os possíveis itinerários até à fronteira com o Senegal de modo a proceder à evacuação dos feridos para o Hospital do PAIGC, em Ziguinchor.


3. TESTEMUNHOS DO MÉDICO ROEL COUTINHO (1973-1974)


Aos depoimentos do médico cubano Domingo Diaz Delgado reportados ao ano de 1966, e referidos no ponto anterior, apresentamos abaixo uma sequência de imagens do espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho] obtido durante os anos de 1973/1974.

Na ordem estabelecida, independentemente da omissão de explicações sobre cada detalhe, creio ser possível encontrar respostas às questões pertinentes apresentadas pelo camarada C. Martins. No global, com a divulgação destas imagens, procura-se satisfazer, igualmente, a curiosidade de todos.

Por último, é justo agradecer ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG, contributos importantes para o esclarecimento possível sobre a prática dos actos médicos em contexto de conflito bélico e como uma visão «do outro lado do combate».




Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974 
[fotos  de 3 a 13]



Foto nº 4

ASC_Leiden_-_Coutinho_Collection_-_18_05_-_Medical_consultation_in_Sara,_Guinea-Bissau_by_a_Cuban_doctor. [Mesa improvisada com medicamentos, …].


Foto nº 5

ASC Leiden - Coutinho Collection - A 01 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Washing hands before operation. [O médico cubano, Dr. António, lavando as mãos antes de uma operação cirúrgica].


Foto nº 6
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 02 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Putting on a surgical gown. [O médico cubano, Dr. António, vestindo a bata cirúrgica].



Foto nº 7
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Preparation of local anesthesia. [O Dr. António preparando a anestesia local].



Foto nº 8
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 05 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Surgical instruments table. [Mesa com instrumentos de cirurgia].


Foto nº 9
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 09 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Local anesthesia. [O Dr. António introduzindo a anestesia local].



Foto nº 10
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 35 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Cuban nurse checks blood pressure. [O enfermeiro cubano Gustavo medindo a pressão sanguínea durante uma operação cirúrgica].


Foto nº 11
ASC Leiden - Coutinho Collection - B 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Operation from distance. [Operação cirúrgica observada à distância].


Foto nº 12

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat. [O médico cubano, Dr. António, durante uma consulta].



Foto nº 13

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - "Waiting room". [População do Sará aguardando pela sua consulta médica].



Nota Final:

Para concluir este texto, quero relevar as preocupações, enquanto médico, do camarada C. Martins. Outra coisa não era de esperar de um profissional que diariamente tem na sua frente, e como principal preocupação deontológica, a segurança dos cuidados de saúde prestados a quem deles precisam.

Outro caso, é a missão dos profissionais de saúde em contexto de guerra, particularmente a do conflito armado que nós, os ex-combatentes, conhecemos há mais de meio século no CTIG. Essa situação não era apenas problemática para a logística das nossas forças armadas. Para o PAIGC, quer gerir recursos que não havia/tinha, materiais e humanos, seria certamente muito mais dramático e doloroso, onde, por essa causa/efeito, a questão do "protocolo clínico" não era possível observar/respeitar.

Não pondo em causa a competência de cada um dos clínicos que decidiram colaborar com os movimentos de libertação, creio que o primeiro objectivo, presente em cada acto, seria "não fazer mal", esforçando-se por reduzir, tanto quanto possível, os efeitos adversos das diferentes práticas de saúde não seguras, onde se incluíam, também, as cirurgias. (**)

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

22OUT2018.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 25 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19046: (D)o outro lado do combate (36): Bigene, agosto de 1972, «Operação Silenciosa"... (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P19128: Agenda cultural (652): DocLisboa 2018, 16.º Festival Internacional de Cinema... Todo o cinema do mundo: 243 obras, de 54 países... Uma sugestão do nosso blogue: vejam o filme "Para la guerra", de Francisco Marise, na Culturgest (Grande Auditório), na 5.ª feira, dia 25, às 19h00


"Para la guerra", de Francisco Marize (2018, 65'), com Andrés Rodriguez Rodriguez. 


Cartaz do doclisboa' 18,  16º Festrival Internacional de Cinema, a decorrer de 18 a 28 de outubro de 2018. Salas: Culturgest, São Jorge, Cinemateca. Cinema Ideal. Ver programa aqui.

São 243 obras exibidas nesta edição de um dos  mais prestigiados festivais internacionais de cinema documental, vindas de 54 países, sendo  68 as estreias mundiais.


2018: dez filmes a não perder 
por Por Eurico de Barros e Rui Monteiro |


Time Out Lisboa, Quarta-feira 17 Outubro 2018

"Para la Guerra", de Francisco Marise


Chama-se Andrés Rodríguez Rodríguez, foi “combatente internacionalista” cubano e respondia pela alcunha de El Rayado quando lutou em Angola entre 1975 e 1977, na sangrenta guerra civil que se seguiu à independência desta ex-colónia portuguesa, e que envolveu também forças sul-africanas; e chamou-se Mandarria quando esteve na Nicarágua entre 1983 e 1987. 

Hoje, este sexagenário que viveu para fazer a guerra, continua a elogiar Fidel Castro e o comunismo, faz exercícios de combate e recorda as peripécias da sua vida para a câmara do documentarista Francisco Marise, neste filme da Competição Internacional. 

EB [Eurico de Barros]
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Fotograma do filme "Para la guerra", do realizador argentino Francisco Marise, talvez um dos 10 melhores dos filmes em competição no doclisboa'18, segundo  a crítica especializada. A ver, na Culturgest, dias 25 (5ª feira) e 27 (sábado).

2. Sinopse do filme , segundo o programa  do doclisboa'18 

Para a guerra explora a memória e a solidão de um ex-soldado internacionalista cubano a partir da observação do seu corpo e dos seus gestos (extra)ordinários. 

Um filme de guerra sem um único tiro, mas com uma ferida, a de um veterano das forças especiais que procura os companheiros que sobreviveram à sua última missão há já 30 anos.

To War  / Para la guerra Francisco Marise 2018 • ARGENTINA, ESPANHA, PORTUGAL, PANAMÁ / ARGENTINA, SPAIN, PORTUGAL, PANAMA • 65’ 

25 OUT / 19.00, Culturgest – Grande Aud. 27 OUT / 14.00, Culturgest – Pequeno Aud.

Legendagem em português e inglês, Preço: 3,5 euros para séniores.

Este filme passa com um outro documentário, "Les Grands Squelettes", de Philippe Ramos:


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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19127: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (8) :A minha cunha era tão frágil., que não rachava um pau de Gamão ou Abrótea (José Colaço)

1. Mensaegm, com data de 21 do corrente, do José [Botelho] Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65):


Assunti : A minha cunha era tão frágil que não rachava um pau de Gamão ou Abrótea.

Começo por dizer que tive no comando das minhas companhias homens com H grande de humano, excepção na especialidade em Mafra, no  curso do STM:  aí o comandante de companhia tenente Lopes Pinto só falava directamente para os seus instruendos para os mandar para o barrbeirro (era assim que ele falava). No pelotão só não foi 100% de carecadas porque o cabo miliciano se enganou ou fez de propósito ao tirar os números, eu não sei porquê fui um dos contemplados,  pelo menos  o meu número não fazia parte da lista. Motivo desta falta: tínhamos o cinto da farda a segurar as calças por baixo dos arreios o que não era permitido.

Agora vamos à minha cunha:  passou-se na recruta, sendo o comandante de companhia o tenente Mesquita. Soube já depois de regressar da Guiné, também ele devido à sua rebeldia,  tinha sido vitima da hierarquia castrense.

Recruta no RI3 em Beja,  como eu morava em Castro Verde , aproveitava os fins de semana para desactivar,  com o mínimo de prejuízo,  a actividade de pequeno agricultor pois eu era o único elemento masculino da famííia em actividade, o meu pai tinha falecido,  o meu irmão vítima de acidente de moto do qual ficou paraplégico, estava internado no ex-hospital do Rego., hoje Curry Cabral.

A viagem para Castro Verde era feita de motorizada. Acontece que nesse dia choveu como Deus a mandava,  foram 60 km debaixo de água, ainda consegui fazer alguma coisa no Sábado mas no Domingo uma febre a quase 40º e de seguida o vírus da papeira. De cama,  faltei à chamada no quartel, na sexta feira seguinte aparece na minha casa o meu conterrâneo e amigo 2º sargento  Reinaldo, a dizer que eu, morto ou vivo,  tinha que me apresentar no quartel pois estava dado como refractário.

Com muito custo lá apanhei a camioneta no Sábado para Beja e na Segunda Feira fui fazer a apresentação ao Tenente Mesquita. Oviu-me com muita atenção e parece-me que acreditou nas verdades que lhe estava dizer, mas tinha que ser castigado: próximo fim de semana cortado...

Com muito custo da minha parte pois encontrava-me bastante debilitado, lá fui aguentando o treino militar durante a semana, para não dar baixa ao hospital,  o que me faria quase de certeza perder a recruta.

Sexta feira à tarde sozinho, a falar com os meus botões,  tomei a seguinte decisão: Ir falar com o tenente Mesquita pois ele estava de oficial de dia à unidade, cheguei ao gabinete, pedi licença,  bati a minha palada o melhor que sabia e recontei-lhe a minha história novamente.

- Está bem vai lá de fim de semana.

Mas eu ainda indaguei:
- Meu tenente,  mas eu estou na escala de serviço de faxina à cozinha.

Resposta final:
- Está bem,  manda f...isso, mas na Segunda Feira, à uma da manhã aparece-me cá, senão dou-te uma que te desapego a cabeça do corpo.

Na Segunda feira à uma hora da manhã, quando me apresentei no quartel quem nos estava a receber era um primeiro cabo chico, o "Bimbo". Diz-me ele;
- ó Doje doje [1212]  estavas de xerviço,  e foste embora... Dei o número  ao nocho  tenente, mas o nocho tenente deve ter enviado a participação para xesto dos papeis, porque ninguém me chamou.

Na guerra da Guiné tive a sorte de encontrar aquele então capitão com H grande de humano que dá pelo nome de João Luís da Costa Martins Ares (hoje coronel reformado).


Guiné 61/74 - P19126: Notas de leitura (1113): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,

O tempo passa e cada vez mais me convenço que estamos perante um segredo de polichinelo que se intenta manter com vivíssima matéria de investigação. Um complô, está demonstrado, única e exclusivamente constituído por guineenses. Há informações de que aqueles últimos meses que precedem o assassínio decorrem numa atmosfera irrespirável em Conacri, os guineenses já não se sentam à mesa com os cabo-verdianos. Pôs-se em andamento o complô, são presos todos os cabo-verdianos e ameaçados de fuzilamento. 

Uma testemunha privilegiada, Oscar Oramas, embaixador de Cuba na Guiné Conacri, assiste à conversa dos sublevados com Sékou Touré, poucas horas depois do assassínio, justificam-se porque não querem continuar a ser mandados por cabo-verdianos. Todos os fuzilados serão guineenses, sem exceção. Desapareceram comodamente todos os documentos das comissões de inquérito. 

Anos depois, diferentes dirigentes de topo do PAIGC queixavam-se dos excessos cometidos. Deu jeito, nos tempos subsequentes, atribuir-se o assassínio a Spínola e à PIDE/DGS, como a história se faz de provas factuais e da consulta de fontes, jamais se encontrou qualquer documento comprometedor. Mas nos tempos que corre, e em nome dos mitos, todos estes acontecimentos aparecem atravessados por fantasmas para contornar habilmente irmãos desavindos, de duas parcelas de África com coisas em comum e muitíssimas outras em atrito.

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1)

Beja Santos

O nome do jornalista José Pedro Castanheira está associado a dois trabalhos de reportagem de excecional valor para o período da guerra da Guiné e do fim do Estado Novo. Tendo dado conta que se aproximavam os 20 anos da efeméride do assassinato de Amílcar Cabral, obteve meios para uma investigação aprofundada, falou com alguns protagonistas de maior peso, a viúva de Cabral, Ana Maria de Sá Cabral, António de Spínola, Luís Cabral, entre outros, visitou o local do crime, debruçou-se sobre a documentação existente nos arquivos da PIDE sobre tentativas de eliminar Amílcar Cabral.
Esta reportagem será a catapulta de um livro que foi acolhido muitíssimo bem em Portugal e vários países.

A outra grande reportagem que revela o talento jornalístico de José Pedro Castanheira foi a reunião de diferentes protagonistas em Londres que participaram no encontro secreto de Março de 1974, do lado português estava o então cônsul em Milão, o futuro embaixador José Manuel Vilas Boas.

Para surpresa de muita boa gente, em 1994, ficava-se a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros, de Marcello Caetano, Rui Patrício, diligenciava negociações que levassem ao acordo de paz e ao reconhecimento da República da Guiné-Bissau, estava já imparável o processo de reconhecimento na ONU, o que tornaria ainda mais calamitosa a situação portuguesa, adensava-se a hipótese de uma intervenção militar da Organização da Unidade Africana.

António de Spínola

A reportagem de Castanheira aprofunda quatro pistas para a compreensão do atentado:

(i) um golpe de Estado de uma fação guineense;

(ii) a cumplicidade de Sékou Touré;

(iii) uma operação desencadeada por Spínola;

(iv) ou uma iniciativa da PIDE.

Inicia-se a reportagem com os acontecimentos que terão ocorrido cerca das 23,00h de 20 de Janeiro de 1973, quando Cabral e a mulher regressavam de uma receção em Conacri na embaixada da Polónia. Interpelado por um grupo onde a figura proeminente era Inocêncio Kani, um ex-comandante da Marinha do PAIGC, Cabral não deixa que o amarrem, Kani disparou um tiro à queima-roupa, Cabral pretende ainda conversar com os sublevados, alguém de nome Bacar assesta-lhe uma curta rajada que o atinge na cabeça, Cabral morre.

Um segundo grupo liderado pelo chefe dos guardas, Mamadu N’Diaye, aprisiona Aristides Pereira, que trabalhava numa casa próxima, e metem-no numa vedeta, barbaramente amarrado.

Um terceiro e último grupo, chefiado por João Tomás, apodera-se da prisão do partido, conhecida por Montanha, e libertam detidos que faziam parte do complô. Contam com a conivência dos guardas, e detêm um número elevadíssimo de dirigentes que metem na prisão, advertindo-os que iam ser fuzilados no dia seguinte.

Os revoltosos vão dar conhecimento a Sékou Touré, este não dá cobertura ao assassínio, manda prender os conspiradores, mais adiante ouviremos as recordações de um participante privilegiado, Oscar Oramas, embaixador de Cuba em Conacri, será o primeiro diplomata a ver o corpo de Cabral abatido, telefonará a Sékou Touré, assistirá à reunião deste com os sublevados.


Ana Maria Cabral na Função Amílcar Cabral na Cidade da Praia 


Seguem-se dois processos misteriosos, duas comissões de inquérito de que jamais conheceremos os resultados.

Uma comissão de inquérito internacional de que farão parte, entre outros, Agostinho Neto e Joaquim Chissano. As autoridades guineenses nunca deixaram vir à luz os resultados do inquérito. Do lado do PAIGC, na medida em que Sékou Touré entregou os revoltosos à nova direção do partido, forma-se uma comissão de inquérito que seria presidida por Fidélis Almada e onde estariam nomes como Otto Schacht, António Buscardini e José Araújo. Também não se virá a conhecer a documentação constante às inquirições, os sublevados, em número que nunca se pôde quantificar com rigor, foram divididos em grupos, e executados. Pedro Pires garantiu ter assistido aos fuzilamentos na região Sul. Castanheira fez perguntas a vários dirigentes. Disse-lhes Aristides Pereira:

“Nunca consegui ter uma ideia exata dos fuzilados. Pedi ao Fidélis uma lista, mas nunca me chegou às mãos”.

Fidélis confirma que o relatório da comissão não fornece números:

“Creio que se provou a culpa de 71, mas nem todos foram executados". 

Fernando Baginha fala em 110. Luís Cabral confessa que não houve um interrogatório sereno, Carlos Correia admite que “tenha havido maldade em algumas denúncias”.

A cumplicidade de Sékou Touré é outro mistério. Vários investigadores avaliam um elevado grau de indecisão quando se dá o assassínio, outros admitem que ele recebeu prontamente os sublevados temendo que se tratava de algo parecido com a invasão de Conacri, de 22 de Novembro de 1970. Não são de fiar as declarações de Senghor de que a morte de Cabral foi instigada por Sékou Touré, eram adversários figadais. Senghor afirmava ter provas de que a morte de Cabral fora apoiado por Touré, mas nunca mostrou tais provas.

Aristides Pereira foi sempre reservado sobre a participação guineense no complô, mas na longa e importante entrevista que concedeu ao jornalista José Vicente Lopes, deixou bem claro que Osvaldo estaria envolvido na trama e não excluiu o apoio expetante de Nino Vieira. Morto Cabral, era preciso camuflar a querela multisecular entre cabo-verdianos e guineenses.

O alibi foi o de que por detrás do complô exclusivamente guineense estava a manipulação de um braço longo, a DGS, dentro de um plano maquinado por Spínola. Todas as investigações nesta direção encontram prateleiras vazias, nem um só papel no arquivo da DGS, todas as maquinações para matar Cabral precedem Spínola na Guiné e Fragoso Allas na direção da PIDE em Bissau. Spínola adiantará a Castanheira argumentos de uma tremenda ingenuidade. Esperava que a invasão de Conacri, desenhada por Alpoim Calvão, trouxesse um Amílcar Cabral sequestrado que aceitaria de bom grado fazer parte do governo da Guiné.

Também sem exibir provas, Spínola diz ter recebido um convite de Amílcar Cabral para se encontrar com ele em Bissau, em Outubro de 1972. Alega que esta proposta lhe chegou por via de Fragoso Allas, Marcello Caetano disse-lhe redondamente que não. Na sua entrevista com o Castanheira diz igualmente que não se lembra do nome de quem era o delegado de confiança de Amílcar Cabral. Enfim, há muita gente a abusar do diz-se e consta.

(Continua)
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Notas do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19125: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (7): as "cunhas" e os TSF...(Hélder Sousa, ex-Fur Mil de Trms, TSF, Piche e Bissau, 1970/72)


Porto > Ribeira > 27 de maio de 2015 > VI Encontro dos "Ilustres TSF" > Em baixo o C. Lã. De pé, da esquerda para a direita: A. Calmeiro (já entretanto falecido), M. Rodrigues, E. Pinto, J. Reis, H. Sousa, M. Martins, F. Cruz, e F. Marques. Faltou o  Nelson Batalha que   já não compareceu por razões de saúde, e que viria a morrer,  entretanto, um ano e meio depois (*)


Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comnplementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Hélder Sousa:

[Foto à esquerda: O camarada, amigo, grã-tabanqueiro, colaborador permanente do nosso blogue Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72): desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de novembro de 1970, e regressou 2 anos depois, exatamente a 10 de novembro de 1972. Ei-lo aqui, no "Pelicano", em Bissau, é o primeiro da esquerda, de perfil; à direita o Nelson Batalha (1948-2017) e ao centro  o Fernando Roque, que não era TSF mas TPF. A foto é do Hélder Sousa que é, também, o régulo da Tabanca de Setúbal, e tem mais de 140 referências no nosso blogue]


Data: domingo, 21/10/2018 à(s) 02:11
Assunto: As "cunhas"....

Caros amigos

Tenho acompanhado as várias publicações do nosso blogue e, dentro destas, esta última série, relacionada com o tema 'Então e depois? Os filhos dos ricos também vão p'ra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais iguais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada, que acho interessante e que pode ser tratada com mais ou menos ligeireza e com mais ou menos profundidade. (**)

Porque as escritas (e as leituras das mesmas...) serão mais eficazes se não forem muito extensas, vou tentar abordar o tema pelo prisma de forma "mais ligeira e menos aprofundada".

Cumprir ou não a "comissão de serviço por imposição" era um dilema que se colocava realmente mas não era tema alimentado por largas maiorias.

Havia quem entendesse que era dever defender os "seus" territórios ameaçados pela cobiça internacional. Conheci alguns.

Havia quem quisesse dar corpo à missão que a Pátria lhe impunha. Conheci alguns.

Havia quem pensasse que não deveria ir para África mas... o peso na consciência de "faltar ao dever", o anátema de "cobardia", o não saber quando e como voltar a estar com amigos e família, acabava por ter o peso suficiente para fazerem o "cruzeiro das suas vidas". Conheci bastantes.

Havia ainda quem achasse que sim, porque sim.

E havia também outros....

Nesta amálgama de possibilidades então muitos foram, pobres, remediados e ricos, e alguns, também pobres, remediados e ricos, 'não foram'. Refractaram-se, desertaram, ou ficaram por cá, resguardados...  Poderemos pensar que esses, os de cá, tinham "cunhas". Talvez, acredito que isso possa ter acontecido com muitos mas seguramente não com todos. Conheci alguns.

E então eu? Como foi?

Para mim foi um "percurso normal".  Fui incorporado no CSM em Santarém, na 3ª incorporação de 1969, em plena época de exames, a meio de Julho.

Vi recusado o pedido de dispensa para comparecer a exames na 2ª quinzena e por isso não me parece que tenha tido 'facilidades'.

No ano anterior, no Verão de 1968, com o dinheiro que amealhei na apanha do tomate, aproveitei o "Turismo Estudantil" e fui até Paris, Bruxelas e Londres. Menos "turismo" e mais "prospecção" para uma eventual "retirada da circulação". Quando chegou a incorporação, a opção foi "cumprir".

Fiz uma recruta empenhada, com bom aproveitamento geral, e já vos dei conta num 'post' daquela série "A terra que mais gostei ou odiei" (***),  que tive uma classificação tão boa que me colocou em condições de ser 'convidado' a passar ao COM mas não aceitei porque entretanto saiu a especialidade TSF, que me disseram ser muito boa, e como tal,  perante a quase certeza de poder vir a ser um "COM atirador"...., continuei o meu percurso no CSM.

Como me "saiu" TSF? Não faço ideia!

Os meus pais não tinham dinheiro suficiente para 'comprar' ninguém, não tinham conhecimentos capazes de o fazerem, por isso desconheço realmente como foi. Aliás, nesse Turno, em Santarém, apenas 'saíram' dois TSF, os outros 13 (pois o 2º Ciclo do CSM para TSF comportou 15 elementos) foram de Vendas Novas, Tavira e Caldas da Rainha.

Gosto de pensar que poderá ter sido numa informação que dei de ter construído,  com o meu vizinho do andar de baixo da casa onde vivia,  uma comunicação a partir de duas chaves de "morse" que um primo dele nos arranjou ...

Em Lisboa, no então BT [, Batalhão de Telegrafistas], fiz o 2º Ciclo, após isso fui fazer um estágio para Tancos, na EPE [, Escola Prática de Engenharia].

Findo o estágio houve exames para classificação. Dos 15 fiquei em 7º. Fui para o Porto, para o então RTm dar instrução.

Entretanto as mobilizações dos camaradas do meu Curso estavam a ser conhecidas a 'conta-gotas', pois do final de Abril de 1970 ao final de Agosto, dos 15 apenas tinham partido 6 e nós sabíamos que no dia 3 de Setembro entrariam todos os que estavam a acabar o seu percurso formativo e que assim estariam à nossa frente para 'marcharem'.

Pensava eu, assim, que tendo ainda dois dos meus camaradas à minha frente para serem mobilizados e com o acrescento dos que aí vinham, que a mobilização já não se daria e, caso isso tivesse acontecido, não teria havido "cunha" nenhuma... Mas não foi assim, já que no dia 1 de Setembro, dois dias antes do "reforço" da lista para mobilização, saiu a "rifa" a 7 de nós, do meu Curso, com passaporte para a Guiné.

Na Guiné, dos 7 que para lá foram, 3 arrumaram-se por Bissau.Eu e outros 3 fomos para o "mato". 

Não me parece que aqui tenha funcionado alguma "cunha". Fui para Piche com uma missão específica, que não vem agora aqui ao caso, embora o meu Capitão que chefiava o STM (Serviço de Telecomunicações Militares) onde me incorporei, tivesse garantido antes que nenhum de nós iria chefiar Postos em 'zonas problemáticas' e,  no meu caso concreto, em compensação, como a zona seria 'problemática', quando terminasse a missão iria para zonas mais pacíficas, como Bissau, Bolama, Teixeira Pinto, por exemplo.

Não foi assim! Quando regressei de Piche fui 'requisitado' para a Companhia de Transmissões para integrar o Serviço de Escuta. Esta história já dei conta em 'post' faz muito tempo. (****)

O meu desempenho na "Escuta" poder-se-à dizer que me foi agradável. Não me vou alongar em motivos, poderá ficar para outra ocasião, mas não foi por "cunha", foi bem vivido.

Portanto, quanto a mim, desconhecendo na verdade como me "saiu" TSF, foi um percurso 'limpo, sem cunhas'. 

Conheci "filhos de ricos" que foram mobilizados e que foram para a Guiné. Conheci "filhos de não ricos" que ficaram por cá, alguns talvez com 'cunhas', mas outros nem por isso. Conheci alguns "filhos de patriotas" que procuraram fazer as suas vidas em lugares mais saudáveis do que os difíceis climas africanos. E também outros "meninos de suas mães" que foram para fora.

Por isso digo: "há de tudo"!

Um abraço
Hélder Sousa
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Notas do editor:


(****)  Vd. poste de 12 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

Vd. também  poste de 26 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)

Ver ainda poste de 11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira

domingo, 21 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19124: Blogpoesia (590): "No meio da geometria", "Não tem pele a alma" e "Estado de alma", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


No meio da geometria

Vivemos mergulhados na geometria.
Geometria das flores e das galáxias.
Das esferas e planetas.
Das dunas e dos vulcões.
Somos massa e pedra multiforme.
Temos ossos e temos carne.
Somos frágeis em demasia.
Átomos e moléculas de carbono em ebulição.
Temos pés e temos mãos.
Seria o fim do mundo se também tivéssemos asas.
Descontentes, tudo lamentamos.
Até o ar gelado que nos dá a vida.
Nos fingimos doces, só por fora.
Cá por dentro, tão amargos.
Insaciáveis. Queremos tudo.
Prometemos e não cumprimos.
Ortorrômbicos e octaédricos.
Nem um só ângulo recto...

Berlim, 19 de Outubro de 2018
8h 32m
dia de sol, frio
Jlmg

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Não tem pele a alma

Sua cor é a transparência e brilha à luz do bem.
Tem o sopro da vida eterna e a força do amor sem fim.
Sempre atenta ao que o corpo pede.
Faz de conta a ver se aprende quando ele erra o seu caminho.
Não tem pele a alma
Tem o sopro da vida eterna e a força do amor sem fim.
Sempre atenta ao que o corpo pede.
Faz de conta quando ele erra só para ver se aprende
Como o astro-rei gravita ao sabor do tempo.
Sabe de cor os passos que seu corpo dá.
Dá-lhe a arte pura de saber dizer.
É em união perfeita que os dois se entendem.
Têm a sabedoria inata de saber sorrir.
Só a lei da morte os pode separar.
Que ela venha tarde...

Berlim, 16 de Outubro de 2018
10h46m
Jlmg

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Estado de alma

Não é sempre a mesma a cor do mar.
As núvens do céu não param de mudar.
Seus tons e suas formas.
O sol e o vento as molda como quer.
Cada dia nasce e é de sua maneira.
Todos temos nossas formas de adormecer e de dormir.
O chorar e o sorrir é ao corpo que compete mas vem da alma a hora de os sentir.
Cada voz tem o seu tom.
Tem cor e não tem pele
E mais nenhuma é igual.
Ninguém escolhe onde nascer
Nem a hora de morrer.
O sabor da vida só depende do estado de alma...

ouvindo HAUSER - Vocalise (Rachmaninov)
Berlim, 14 de Outubro de 2018
8h51m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de14 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19101: Blogpoesia (589): "Com um ponteiro de lousa...", "É amarelo o Outono" e "Pardo e negro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

sábado, 20 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19123: Memórias de Gabú (José Saúde) (72): Jau, o nosso guia (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

Gabu em memórias 
Jau, o nosso guia 

Era de etnia fula. Sorriso rasgado, afável, extremo companheiro em todos os momentos em que a guerra impunha a ordem, o Jau, o nosso guia, estava sempre disponível para nos orientar pelo interior de um matagal excessivamente intenso onde o capim e os trilhos estreitavam, sendo que o sol quase não penetrava em ramagens superiores rotuladas como freneticamente extensas. 

As memórias que guardo dos escaparates da guerra são de facto imensas. Gabu, tal como as outras regiões, fora chão palmilhado por camaradas que para ali foram drasticamente atirados. Aliás, estas pequenas histórias avulsas que amiúde descrevo fazem integralmente parte da vida de um qualquer enigmático e mui respeitoso camarada que pisou o solo guineense. 

O horizonte, sempre bélico e carregado de expectativa, escondia ao entardecer mais uma noite de intensos pesadelos. Ou, mais uma noitada onde a missão imposta passava pelo montar de uma emboscada. Depois, lá vinha a luta titânica travada no breu e ao largo de um tempo, quiçá infindável, em que as insónias se assumiam como mais fortes em corpos de jovens soldados impossibilitados do calor afetuoso dos seus carinhosos lares. 

Os irrequietos mosquitos, emitindo zumbidos ensurdecedores, davam a volta à cabeça do mais tranquilo camarada. Na época das chuvas as trovoadas pareciam quebrar a linha de um céu onde a noite parecia fazer-se dia. Tal a sonoridade dos temíveis trovões e sobretudo o lampejar da intensidade de raios sucessivos que se abatiam sobre as nossas cabeças. 

Estávamos em África. Solo pátrio do meu camarada Jau. De quando em vez lá me ia soletrando algumas palavras que visavam, creio eu, tranquilizar-me uma vez que o entoar estridente da “filarmónica” não dava folgas. Abrigávamo-nos enrolados em ponches que minimamente nos protegiam das chuvadas. Ele, conhecedor acérrimo de uma realidade que lhe era comum, lá se desfazia em cultos de gáudio. 

O Jau era um homem feito com as vicissitudes da guerrilha. Conhecia os meandros de um conflito virado literalmente para a luta guerreira e onde os ocultos rostos do inimigo causavam estragos. Muito “viajámos” pelo interior das tabancas de Gabu as quais congregavam gentes simples e crianças desprotegidas que encarecidamente reclamavam apenas a paz. 

À memória ocorre-me um interminável número de casos que fizeram parte do nosso quotidiano convívio. Recordo, por exemplo, quando o tempo era de Ramadão. O Jau, fiel aos seus princípios éticos, pedia-me para descansarmos porque o momento requeria a sentimental reza. Respeitava. Virado alegadamente para Meca, lá imaginava a linha do horizonte que o transportava à Terra Santa, orava e a sua alma sentia-se mais leve. 

Quando o jejum impunha rigorosas obrigações, recusava a ração de combate e passava todo o dia a mascar cola. A cola era uma pequena semente de uma planta que se destinava a não sentir a necessidade de uma refeição. Alimentava-se durante a noite, ou seja, após o pôr do sol e antes deste iluminar a ancestralidade da terra. 

Numa sintética abordagem ao conteúdo genérico do respetivo fruto – noz de cola –, sabe-se que este não representando abundância, tinha sim, por outro lado, o condão em condensar uma dimensão social nas sociedades sediadas na costa ocidental de África. 

Especificando o êxtase que o mascar da cola causa (va) no indivíduo, admite-se que o seu estado anímico se torna transcendente, sendo o espaço e o tempo uma espécie de reunião entre o céu e a terra. 

Eis, talvez, o significado primordial que levava o Jau, tal como a plebe, em ocasiões propícias, a mascar o lascivo fruto. Tanto mais que ele, o fruto, sintetizava imagens de mundos sagrados e profanos onde não faltava também o universo oculto que o mesmo envolve. 

A talho de foice, lembro, ainda, um contacto com o IN em que atrevi levantar-me e, numa estonteante correria, procurar granadas do morteiro 60, visando a sua utilização imediata dado que as vozes dos guerrilheiros soavam por perto e o Jau, sabendo a dimensão do perigo, gritava-me: “deite-se furriel que isto é perigoso”. 

Hoje, vergado já ao peso da idade, arremato, despretenciosamente, que o Jau foi um grande amigo e companheiro que muito me ensinou, restando lançar agora o oportuno apelo: camarada, fazes ainda parte, ou não, deste cosmos dos mortais? Ou, fostes, mais um, levado na fatídica enxurrada no pós entrega do território ao novo governo do país que te viu nascer?  


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 61/74 - P19122: Os nossos seres, saberes e lazeres (289): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (8): Em Pau, com chuva torrencial, à procura de Henrique IV, aqui nascido (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Ai do viajante que não esteja preparado para momentos desconsoladores, desde greves de comboios a chuva inclemente, situações que levam à alteração de planos. Assim aconteceu ao viandante em Pau, viu a cidade e as suas panorâmicas por um canudo, contudo bem se consolou com uma grata memória aos soldados portugueses que morreram em França, e que são chorados, relembrou o filme "A Rainha Margot", de Patrice Chéreau com a interpretação fabulosa de Isabelle Adjani, muitos dos exteriores do filme foram filmados no Convento de Mafra, para que conste e o castelo onde nasceu Henrique Navarra é uma pérola preciosa do estilo Renascentista.
A chuva não para o viandante e ele amanhã regressa a Toulouse, para uma tocante despedida.

Um abraço do
Mário


Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (8): 
Em Pau, com chuva torrencial, à procura de Henrique IV, aqui nascido

Beja Santos

O que leva o viandante a Pau? Há duas razões de sobra. A primeira tem a ver com as três estrelas de Michelin ao Boulevard des Pyrénées, um vasto terraço que permite desfrutar em dias claros o assombroso panorama que vai do Pic do Midi de Bigorre ao Pic d’Anie, isto para já não falar de nesta varanda se poder igualmente contemplar o gave de Pau, que corre os baixos da cidade, quem a fundou teve a feliz intuição de posicionar a capital do Béarn num ponto que assegura panoramas incontornáveis. A segunda tem a ver com Henrique de Navarra que desde os anos de estudo o viandante esquecera, este Henrique de Navarra nasceu e foi educado aqui, rei protestante, convencionou-se o seu casamento com Margarida de Valois, trama muito trágica que Alexandre Dumas aproveitou para o seu romance “A Rainha Margot” e Patrice Chéreau realizou uma película soberba com Isabelle Adjani na protagonista. Tudo somado, antes de regressar a Toulouse, o viandante quis cuscar a beleza natural e o património desta antiga capital do Béarn, região depois anexada à França.




Tudo correu às avessas, o viandante chega com chuva torrencial, não há transportes, e nisto deu a pensar numa velha imagem de Pau com as suas águas calmas e luzidias e veio cá fora junto de uma eclusa ver passar as águas do gave de Pau em turbilhão e pensou para os seus botões: Nunca te fies com as aparências de uma só imagem, há sempre verso e reverso, toma lá que é para aprenderes.


Vista panorâmica do Pic du Midi de Bigorre ao Pic d’Arie, Pau.

Outra vista panorâmica tirada do Boulevard des Pyrénées, Pau. 

Veja-se uma velha imagem do Boulevard des Pyrénées, atenda-se que o viandante anda com o guia Michelin, onde até se lê que nas montanhas crescem e pastoreiam os rebanhos que dão o leite que depois vai para Roquefort, o queijinho que ele tanto aprecia. Antes de partir, andou a ver imagens na Wikipedia sobre o desfrute panorâmico do Boulevard des Pyrénées, como é que era possível não vir? Uma treta, cai uma cortina de chuva, irritante, está tudo nublado… Nem tudo está perdido, passeia-se na proximidade e é nisto que vem uma rematada surpresa.




O monumento aos que caíram pela Pátria é imponente, ergue-se diante do Boulevard des Pyrénées. Quando o viandante se aproxima tem a suprema alegria de ver os seus compatriotas homenageados: Aos soldados portugueses mortos pela França, sereis chorados. E o viandante faz continência e fica igualmente tocado com a lápide aos republicanos espanhóis que procuraram defender a França, a sua pátria de exílio, foram mortos duas vezes, mas saúda-se a sua suprema coragem.





Não vamos aborrecer o leitor com a história do Béarn, a Navarra do Sul dada à Espanha, nem vamos falar de Margarida d’Angoulême, irmã de Francisco I, trouxe o Renascimento para o castelo e as ideias da Reforma. A sua filha, Jeanne d’Albret, que casou com António de Bourbon e desse casamento nasceu Henrique de Navarra, futuro Henrique IV de França, o senhor do édito de Nantes, que consagrou a tolerância religiosa. Aproveitando uma aberta daquela chuva inclemente, o viandante procurou captar a beleza peculiar de uma residência aristocrática de primeiríssima classe, uma bela construção aprofundada pelo estilo renascentista. E andava nisto quando regressou a chuva, o melhor era fazer horas vagabundeando pelo centro da cidade. E é nisto que fica especado com um curioso cabeleireiro, não resistiu, pediu licença à patroa e fotografou uma atmosfera garrida, não se importaria nada de ver a sua cidade de Lisboa pejada de estabelecimentos como este, um festival de luz e cor. E com tanta chuva à volta, preparou-se para aconchegar o estômago, ler a documentação sobre Toulouse, que amanhã fará presença aqui no blogue, e o tema tem a ver com Património da Humanidade.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19097: Os nossos seres, saberes e lazeres (288): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (7): De Lourdes a Gavarnie, um grande ecrã dos Pirenéus (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19121: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - XL (e última) Parte: Canal do Suez, Roma e regresso ... "A vida é o que fazemos dela, / As viagens são os viajantes. / O que vemos não é o que vemos / Senão o que somos" (Bernardo Soares / Fernando Pessoa)



Foto nº 4


Foto nº 3


Foto nº 5


Foto nº 1


Foto nº  2


Foto nº  6


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1.  Úlltimas duas rrónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias" [3 meses e oito dias], do nosso camarada António Graça de Abreu.

Escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 220 referências, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

[Foto à direita: Hai Yuan e António Graça de Abreu]



2. Sinopse da série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias" (*)

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016; [não sabemos quanto despenderam, mas o "barco do amor" deve-lhes cobrado uma nota preta: c. 40 mil euros, no mínimo, estimamos nós];

(ii) três semanas depois de o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga; visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016; volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016);

(vi) o navio "Costa Luminosa" chega, pela manhã de 29/10/2016, à cidade de Melbourne, Austrália; visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e a esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

(vii) de 8 a 10 de novembro. o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro); Phuket, Tailândia (12-13 de novembro); Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

(viii) na III (e última) parte da viagem, Graça de Abreu e a esposa estão, a 17 de novembro de 2016, em Cochim, na Índia, e descobrem a cada passo vestígios da presença portuguesa; a 18, estão em Goa, seguindo depois para Bombaím (20 e 21 de novembro de 2016);

(ix) com 2 meses e 20 dias, depois da Índia, os nossos viajantes estão no Dubai, Emiratos Árabes Unidos, passando por Muscat, e Salah, dois sultanatos de Omã, em datas que já não podemos precisar (, as fotos deixam de ter data e hora...), de qualquer modo já estamos em finais de novembro/ princípios de em dezembro de 2016;

(x) tempo ainda para visitar Petra, na Jordânia, e atravessar os 170 km do canal do Suez (Egito), antes de o "Costa Luminosa" entrar no Mediterrâneo; a viagem irá terminar em Civitavecchia, porto de Roma, antes da chegada do novo ano, 2017.


3. Fim da Viagem de volta ao mundo em 100 dias > Canal do Suezs e Roma > s/d, c. final de dezembro de 2016] (pp. 25-29], da terceira e última Parte, que nos foi enviada em formato pdf]


Canal do Suez, Egipto

Desde Aqaba, o navio enviesou e caiu no mar Vermelho, na imparável subida para o Mediterrâneo e a Europa. Passamos ao lado de Sharm-el-Sheik, situada a estibordo, navegamos junto a Hurghada, escondida a bombordo, lugares de excepção no Egipto turístico agora afectados pelo terrorismo que lhes despovoa as centenas de hotéis onde se alojavam aos milhares as gentes vindas de múltiplas paragens da Europa, em busca do sol, das águas tépidas do mar, da história do Egipto, dos faraós e dos árabes. [Foto nº 1]

Chegado à noite à cidade de Suez para a travessia do Canal, o Costa estaciona atrás de um cruzador norte-americano que, creio, regressa aos States após missão no Golfo Pérsico. Assim que raiar a manhã, avançaremos num comboio de navios durante os 168 quilómetros de águas do Canal do Suez. [Foto nº 2]

O dia começa com nevoeiro, os horizontes estão curtos, envoltos na bruma. Aí vamos no início da travessia que durará até às três da tarde. A névoa levanta e temos este extraordinário Canal para ver e cruzar. Com muito trânsito de navios, em ambas as margens há filas e filas de camiões, e automóveis egípcios, que esperam que a navegação dos grandes barcos diminua para, em pequenos ferries, poderem passar de um lado para o outro do canal.

O Costa segue viagem lentamente como que tacteando as águas. Avançamos de sul para norte e, na margem direita, espraiam-se quase só terras desérticas, num perder de vista por pequenos montes e areais imensos. A margem esquerda foi mais bafejada pela sorte. As águas do rio Nilo, que corre quase paralelo ao Canal, a uns oitenta quilómetros de distância, a poente, foram domadas, encaminhadas e trazidas até estes lugares. Em vários troços são visíveis grandes extensões de terreno verde e fértil. Aqui o camponês, o felah, abre canais de irrigação, trabalha a terra, conta com as águas sagradas do Nilo. E há trigo e legumes, várzeas e pomares, e é necessário dar de comer a milhões e milhões de pessoas. O Egipto tem hoje 83 milhões de habitantes para alimentar, e um vasto território quase todo desértico.  [Foto nº 3]

Impressionante é a segurança montada em ambos os lados do Canal. Ao longo de todas as duas correntezas das margen -- quase 170 quilómetros vezes dois --, foi construído um muro aí com 5 metros de altura, que separa e delimita o curso das águas, com guaritas, soldados e pequenos destacamentos militares. Tudo activo e vigilante diante da quase permanente passagem de navios. Imaginem o que seria um enorme petroleiro ou um navio de cruzeiros como o nosso, ser atacado e incendiado por radicais islâmicos, a partir das margens do Canal do Suez!

Estamos a chegar a Port Said, a cidade junto à saída para o Mediterrâneo, burgo fundamental que nasceu e cresceu quando da construção do Canal. Quem por aqui andou, em Novembro de 1869, foi o nosso Eça de Queirós, então com apenas 24 anos, que escreveu para o Diário de Notícias quatro extensas crónicas publicadas em Janeiro de 1870 sobre as “festas” de inauguração do Canal do Suez. Considerou os seus textos “uma narração trivial, um relatório chato” e fala assim da cidade:

“Por uma bela manhã, entrámos em Port Said por entre os dois grandes molhes que se adiantam paralelamente pelo mar, feitos de poderosos blocos de pedra solta. Port Said é uma cidade de indústria e de operários: isto dá-lhe uma especialidade de fisionomia: estaleiros, forjas, serralharias, armazéns de materiais, aparelhos destilatórios. (…) nem edifícios, nem monumentos, nem construções sólidas e sérias: tudo é ligeiro, barato, provisório. A igreja católica é como uma grande barraca: vê-se o céu azul através do seu tecto feito de grandes traves mal unidas. Tudo isto dá a Port Said um aspecto triste.”

Não desembarcámos em Port Said, passámos ao lado do porto e da baía, mas deu para ver que, cento e cinquenta anos após a visita de Eça de Queirós, a cidade cresceu exponencialmente, hoje tem 600 mil habitantes contra os 12 mil existentes na altura da viagem do autor de A Relíquia. 

Em breve, depois de entrar na noite dos séculos, cá regressarei para tomar um chá de menta com o nosso Eça de Queirós, para falarmos do Egipto, dos atribulados tempos actuais e para conversarmos longamente sobre uma das nossas grandes paixões, a China e os Chineses. Não foi Eça quem escreveu no capítulo XVIII de Os Maias: “Os anos vão passando (…) E com os anos, a não ser a China, tudo na terra passa.”


Roma, Itália

Aí está a nossa Europa!

O estreito de Messina, com a ponta da bota da Itália calabresa a dar o pontapé na Sicília e nós a navegar entre.


Mais duas horas ao sabor da ondulação e passamos mesmo ao lado do vulcão Stromboli, um cone perfeitinho a sair do mar e, do lado norte, o fumo permanente das erupções. A ilha e o vulcão, em 1949, foram cenário de filme “Stromboli terra di Dio”, com a Ingrid Bergman, realizado por Roberto Rossellini, então marido da diva sueca. [Foto nº 4]

Chegada a Civitavecchia, porto de Roma. Viagem de uma hora até à “cidade eterna”, por uma auto-estrada a ondular pelos campos do velho Lácio. Chego, saúdo Rómulo e Remo, e não esqueço a mãe loba, estou no coração da Roma dos santos papas, de Júlio César e Constantino, de gentes como Sofia Loren e Federico Fellini. Revisitar Roma, a basílica de São Pedro, a excelência perfeita da Pietá do Miguel Ângelo, logo à entrada, à direita, o esplendor na imensa nave da maior igreja do globo. [Foto nº 5]

Como das outras visitas, não vi o Papa, mas deambular ao acaso por Roma após uma volta ao mundo, após tanto mar e infindáveis terras, tudo criado pelo engenho de Deus e alguma loucura dos homens, concede-nos a excelência de sermos criaturas inventadas pelos deuses, de sermos os homens que ergueram maravilhas como São Pedro, o Museu do Vaticano, com bem menor dimensão, a nossa igreja de Santo António dos Portugueses.[Foto nº 6]

Roma é uma cidade que levo, há muitos anos, suspensa nas pregas do coração, onde regressarei, de certeza, logo no início de uma próxima reencarnação.

Amanhã o Costa conclui a jornada de volta ao mundo, segue de Civitavecchia para Savona, pedaços de mar Mediterrâneo que conhece de cór. Depois, um avião para Lisboa e regressaremos a casa, ao dulcíssimo lar. Foram três meses e oito dias de viagem por oceanos infindos, terras de todos os assombros e magias. Começo a ter saudades da ditosa pátria, do conforto da minha casa, de respirar Portugal.

Recordo palavras de Bernardo Soares, aliás Fernando Pessoa:

A vida é o que fazemos dela,
As viagens são os viajantes.
O que vemos não é o que vemos
Senão o que somos.

António Graça de Abreu

FIM

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