Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º encontro da tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > O reencontro de dois camaradas do tempo de Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70): J. L. Vacas de Carvalho (Pelotão de Reconhecimento Daimler 2206, 1969/71); Mário Bejas Santos (Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).
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Luís Graça (2007). Direitos reservados.
44ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de
Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 13 de Abril de 2007. Subtítulos do editor do blogue.
Meu caro Luís, ainda bem que descansaste na Páscoa. Comigo aconteceu o mesmo, não me recordo de uma semana em Inglaterra com 18 ou 19 graus, sem uma pinga de chuva. Reenvio-te o texto, pois faltavam os elementos referentes às leituras. Se tudo correr bem, esta tarde seguirá mais outro texto. Por favor, dá esta versão como a definitiva (...) . Mário.
A operação Bucol
por Beja Santos
Em meados de Maio, vale a pena percorrer em Missirá os caminhos que levam a 15 cubatas reconstruídas e três abrigos resistentes. Não há praticamente sinais do desastre de Março, luta-se contra o tempo e as chuvas fustigantes que acabam de chegar.
Há 45 dias, ou mesmo mais, que o centro da nossa existência está marcado pelos seguintes eixos: pelas idas permanentes a Mato de Cão, emboscadas nocturnas, as pequenas surtidas no Geba por causa de Mero ou de proteger as viagens do Sintex mas sobretudo a reconstrução de Missirá, que neste momento é visível, é a nossa grande alegria. É nesse preciso instante que me meto numa aventura, para a qual vou arrastar meia Missirá, em que quebrei as regras elementares da prudência, invadindo território alheio sem ponderar as consequências.
Um pedido do Comandante Teixeira da Mota
Um dia, recebo um aerograma do Comandante Teixeira da Mota, chegado em data recente a Bissau, colocado no Comando Naval (2). Depois da troca de cumprimentos, o ilustre historiador avança subtil e gentilmente um pedido:
"Acabei há dias de escrever um longo artigo contendo as aventuras de um príncipe fula, que vencido em guerra civil, aí por volta de 1600, foi parar a Mazagão e daí a Lisboa e Madrid a pedir auxílio militar, acabando por se baptizar. Juntei elementos que me permitirão reconstituir a sequência e duração de reinados dos imperadores fulas do Futa-Toro desde o lendário conquistador Tenguela e seu filho Coli (ambos continuam nas bocas dos fulas de hoje) desde 1465 e 1591. Vou ver se publico este estudo em Dakar. A propósito, para completar uma nota desse artigo, pedia-lhe para averiguar junto da gente de Missirá o que sabem acerca de uma tabanca aí perto, além Gambiel, no Joladu, chamada Bucol.
"O que eu pretendia saber é se a tabanca é antiga ou moderna, qual o grupo étnico de quem a fundou e lhe deu o nome e se este é de língua fula, mandinga ou beafada. A tabanca em si nada tem com o meu artigo, mas num documento antigo diz-se que os fulas invasores destas bandas partiram de uma cidade chamada Bucol, no Sudão, e interessava-me averiguar se o nome é fula ou não, pois não encontro esse nome nos clássicos da história sudanesa".
Ao fim dessa tarde, pedi para me reunir com Quebá Soncó e o chefe da tabanca Mussá Mané. Havia tais e tantos pormenores a esclarecer que decidi pedir ajuda de interpretação ao Cabo Domingos Silva, papel de Bissau que falava perfeitamente português, crioulo, mandinga e beafada . Quebá começou por me dizer que o príncipe Coli fazia parte das histórias da Guiné, tinha sido um grande guerreiro e um grande muçulmano. Quanto a Bucol, sabia que era tabanca beafada, fora lá várias vezes antes da guerra, o nome era antigo , muito antes dos mandingas serem os senhores do Cuor. Muito provavelmente, sugeriu, Bucol era nome fula.
O chefe de tabanca recordava uma grande construção, uma parede imensa do que lhe parecia ter sido uma muralha, quando visitara
Bucol na sua infância. Tinha sido uma tabanca rica, terra de agricultura fértil, talvez a mais rica do Gambiel. Nada sabia sobre a origem da palavra Bucol , mas com os mandingas tinham chegado depois dos fulas, muito provavelmente tinha sido fundada por fulas mas confirmava que se falava beafada em Bucol.
Ouvi-os e perguntei repentinamente a Quebá:
-Oiça, não parece muito difícil irmos com o Sintex até junto da Aldeia do Cuor, acima do rio Gambiel e atravessarmos a bolanha do lado de Joladu e subirmos talvez duas horas a pé. Concorda?.
Quebá vacilou, lançando contra-argumentos de peso:
-Alfero, o inimigo é muito poderoso na zona de
Sinchã Jobel. Lembre-se do que foi a nossa ida ao rio Gambiel, em Janeiro. A bolanha do lado da Aldeia do Cuor é grande, seremos facilmente avistados pelos sentinelas... Eu, se fosse a si, não ia . - Não tomei ali nenhuma decisão, adiei a resposta ao Comandante Naval em Bissau.
Aproveitando um boleia de DO para um RVIS entre Madina/Belel até ao Rio Gambiel
Como a vida se faz de muitas peripécias e também de felizes encontros, conhecer Bucol pelo ar foi uma imprevista coincidência, três dias depois. Regressado de Mato de Cão ao amanhecer, apresentei-me o Major Pires da Silva para lhe dar conta de um episódio preocupante: a gente de Madina/Belel tentara dinamitar um pontão na estrada de Gambaná, mesmo em frente ao grande palmeiral de
Chicri. Mas fora uma operação mal sucedida, o pilar fora sacudido pela carga mas aguentara firme. Tínhamos assim provas de que o inimigo tentava eliminar qualquer hipótese da circulação rodoviária e dificultar-nos os patrulhamentos diários a Mato de Cão.
Mas mal entrei no gabinete quando ele me disse eufórico:
- Ora ainda bem que veio. Está a chegar uma DO e vamos fazer um RVIS
entre Madina até ao Gambiel. Não desisto de percorrermos o Cuor e desalojarmos definitivamente o inimigo.
E de facto, meia hora depois a DO levantou voo acima dos Nhabjões, atravessou o Geba, vi Mato de Cão, depois Sinchã Corubal, os trilhos bem sulcados à saída de Cabuca, Madina cada vez mais activa, verdadeiras autoestradas passando por Quebá Jilã e inflitrando-se no Oio a partir de Barnir até Sinchã Boébé, já muito perto de Sarauol.
Em escassos meses, era notório a crescente presença de pontos de passagem, de campos lavrados, ocupação do território. Sem revelar a razão de fundo do meu interesse, pedi ao piloto para sobrevoarmos os
rios Passa e Gambiel. No termo do rio Gambiel, pedi-lhe para sobrevoar a estrada que, antes da guerra, chegava a
Geba. E pude confirmar que a região de Bucol não tinha sinais de presença humana, se bem que à volta do rio Gambiel fossem nítidos os campos lavrados entre Mansomine e Joladu.
No regresso a Missirá, pedi para conversar com Cibo Indjai, bravo soldado e um dos nossos mais valorosos caçadores. Como se estivesse a procurar informações sobre a presença do inimigo junto do rio Gambiel, questionei Cibo sobre campos cultivados na região de Bucol e Ponta, no fundo terra firme na vastíssima bolanha em frente à Aldeia do Cuor, do lado de lá do rio Gambiel.
- Ali não há nada, meu alfero, há bolanha e floresta cheia de capim. É bom para apanhar gazela. Bucol deve ter sido uma grande tabanca, há restos de construção, devia ser gente rica. Ali só há inimigo de passagem. Para cima é que é território deles.
Uma patrulha de reconhecimento a Bucol, clandestina e temerária
Com a maior das naturalidades, perguntei a Cibo se ele encontrava perigos numa patrulha de reconhecimento a Bucol. Caçador experimentado e dominando a palmo os diferentes recantos do Gambiel, respondeu com igual espontaneidade:
- Não vejo dificuldade nenhuma. Podiámos levar o Sintex em cima do Unimog grande, patrulhávamos a picada acima de Aldeia do Cuor, atravessamos o rio no Sintex ao princípio da manhã, caminhamos pela bolanha, percorremos Ponta e seguimos até Bucol. Depois de Aldeia do Cuor são três horas de viagem. Bem, talvez 5, para ver com cuidado se há gente de Sinchã Jobel ali perto.
E dois dias depois anunciei ao anoitecer que sairíamos de manhã num patrulhamento um pouco excêntrico, com Unimog, Sintex, salva vidas, dois morteiros, 40 homens, iríamos atravessar o Gambiel, 15 homens ficariam a tomar conta da viatura, os outros 25 iriam reconhecer a região. Em particular, Quebá Soncó suplicou-me:
- Eu vou, mas por favor prometa que é ir só a Bucol e voltar. Ir mais acima só com três companhias, ali há muito mais gente que em Madina, há muitos obstáculos, irá morrer muita gente.
Descansei Quebá, pedindo-lhe que guardasse completo sigilo. Saímos pelas três da manhã, vimos nascer o sol quando o Sintex, mesmo em frente à Aldeia do Cuor, começou a passar a tropa no longo trilho que avança numa bolanha de 4 quilómetros até ao mato circundante do que foi a tabanca de Ponta. Cibo, Sambu, Mamadu Camará e Quebá Soncó seguiam na dianteira. A viagem foi muito fatigante devido ao acidentado do terreno e confirmou-se a falta de presença humana. Ponta deve ter sido enorme e Queta mais tarde assegurou-me:
- Sim, Ponta era rica, tinha muita gente fula, oincas, beafadas, gente que atravessava Mansomine até Oio, para fazer negócios. Ponta foi abandonada em 63, logo no início da guerra, muita gente fugiu para Geba e Bafatá, outros foram para Sinchã Jobel. Naquela patrulha confirmamos que o território estava abandonado.
Dentro da mata e usando a maior prudência chegámos praticamente ao fim da manhã a Bucol. Lembrava um pouco a Aldeia do Cuor e o tal pano de muralha que falara Mussa Mané era empedrado e alto. Não consegui nenhuma explicação da sua utilidade, houve quem referisse tratar-se de um vestígio de uma refinaria. Com os binóculos, procurei sinais de presença humana e nada encontrámos. O regresso foi calmo e eram 4 da tarde quando entrámos em Missirá onde o Teixeira das transmissões anunciava a passagem de um comboio de navios pela noite escura em Mato de Cão.
Os dados obtidos seguiram no dia seguinte em aerograma para Bissau:
(i) ninguém associava o príncipe Coli a Bucol;
(ii) a povoação teria sido fundada por fulas e falava-se até antes da guerra predominantemente beafada;
(iii) ninguém sabe a antiguidade da tabanca, mas havia ali riqueza e certamente construções apoiadas por colonos cabo-verdianos.
O que não lhe disse é que tinha sido um acto estupidamente destemido, não teria qualquer explicação plausível caso me encontrasse com tropas de Geba ou tivesse havido um reencontro com uma patrulha de
Sinchã Jobel [, regulado de Mansomine]. Não sei de facto o que se passou na minha cabeça para cometer tal atrevimento. Eu sei que dentro de meses voltarei ao
Enxalé onde irei almoçar com o Alferes Taveira. Mas o Enxalé tinha a lógica que é quadrícula militar actual não contemplada: o nosso inimigo era comum, fora e continuaria a ser comum. O nosso inimigo não estava no Xime, nem em Mansambo, nem mesmo nas margens do rio Gambiel, estava em Madina, era entre S. Belchior e Enxalé que se fazia o transbordo de armamento pesado em canoas para a região de Aldeia Formosa. Só que a quadrícula é cega e não se podia interferir em sector alheio.
Omiti a ida a Bucol em Bambadinca e no correio para Lisboa. Penso mesmo que em Sinchã Jobel não se soube desta intrusão. Rendi-me ao imaginário do mundo de aventuras, sabe-se lá se não esperava encontrar em Bucol uma outra Tombuctu, uma esquecida cidade de ouro que pudesse mudar o rumo àquela guerra desventurada.
Capa do romance de Albert Camus,
L' étranger [O Estrangeiro], referido na crónica anterior (1). Paris: Librairie Générale Française (LGF). 1959. (Colecção "Livre de Poche", 406). Capa atribuído ao pintor Lucien Fontanarosa.
La Peste (1955) e
L'étranger (1959) são os únicos livros publicados, em vida do autor, que apareceram numa colecção popular como o
Livre de Poche (Livro de Bolso). Este livro foi oferecido ao Beja Santos pelo seu amigo Carlos Sampaio (3), que irá morrer em combate em Moçambique (LG).
O meu antigo aluno, Jorge Martins, escreveu-me e mandou-me uma prenda. Já me tinha oferecido um livro do Mário Cesariny,
Intervenção Surrealista, depois de ter feito exame de História. Agora manda-me um livro chamado
Pena Capital também do Cesariny, e é com imenso prazer que o leio nos meus serões, assenhoreando-me do seu poder alquímico, em que palavras banais se tornam foguetões líricos. Por exemplo:
Sou um homem
Um poeta
uma máquina de passar livro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra.
Mas também aquele belo poema:
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheç tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço meu te procura
Ainda não sei que estou ler um dos poetas essenciais do século XX, um deslumbramento onde confluem a poesia medieval, a instantaneidade surrealista, Cesário Verde, Mário Sá Carneiro. Cesariny trouxe uma grande companhia e na volta do correio agradeci ao meu antigo aluno, disponibilizando para receber mais.
Capa do romance de Jorge Amado,
Terras do Sem Fim. Lisboa: Livros do Brasil. (Colecção "Livros do Basil", 8).
Com o renascimento de Missirá, e por pura coincidência, retomo leituras de primeira água. Aí pelos 17 anos, comprei
Terras do Sem Fim, de Jorge Amado. É uma saga à volta de S. Jorge dos Ilhéus, com o derrube das matas transformadas em cacaueiros. É um mundo de exploradores escravos, caciques tenebrosos, jagunços, aldrabões, prostitutas de todos os níveis, emboscadas, riquezas súbitas e a transformação de Sequeiro Grande em terra de cacau depois de muito sangue derramado. Não é possível esquecer Juca Badaró, o Dr Jessé, os amores de Ester e do Dr Virgílio, entre uma vastíssima galeria de figuras que circulam entre Baía, Ilhéus, Tabocas e Itabuna. Consegui este Jorge Amado em Bafatá, leio e releio e começo a aprender que não há livros bons definitivamente lidos para sempre.
As obras estão praticamente concluídas, para a semana iremos ameaçar nas redondezas de Madina. Já a seguir vou receber a visita de um Coronel que vem dos serviços jurídicos de Bissau ouvir-me por causa do recurso que interpus da minha punição. E lá para o fim do mês, estou a sair do banho vindo de uma emboscada nocturna quando vejo em cima de um abrigo um fogo capitoso, demolidor, arrasador, e escorriam-me as lágrimas convencido que estava que era gente de Madina a desfazer Finete. Não, era o primeiro grande ataque a Bambadinca, provando que a Operação
Lança Afiada não desmotivara o Buruntoni nem o Fiofioli. Nós ainda não sabíamos mas o curso da guerra tinha irremediavelmente mudado.
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. último post desta série > 27 de Abril de 2007 >
Guiné 63/74 - P1704: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (43): Em louvor de Bambadinca, a nossa tabanca grande
(2) Vd. post de 30 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1637: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (40): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (2)
(...) "Avelino Teixeira da Mota (1920-1982): Vd. o excelente artigo de Carlos Manuel Valentim, S/Tenente (Comissão Cultural da Marinha) , publicado na Revista da Armada, nº 352, Abril de 2002:
Avelino Teixeira da Mota, uma vida dividida entre a África e o Mar" (...)
(3) Vd. post de 23 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1623: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (39): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (1)