domingo, 15 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)


Citação: (1963-1973), "Guerrilheiros do PAIGC atravessando uma ponte", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43132 (2018-7) [Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral]




Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER,  CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do nosso blogue



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE: UM ITINERÁRIO ATÉ AO HOSPITAL DE ZIGUINCHOR (SENEGAL)



1. Introdução


Há exactamente dois anos, tomei a iniciativa de dar início neste fórum de ex-combatentes à publicação, em fragmentos, de algumas das memórias grafadas no livro escrito pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos», onde o autor dá a conhecer as histórias que lhe foram contadas, em castelhano (espanhol), por quinze médicos cubanos que estiveram na Argélia, na Guiné (Bissau), no Congo Leopoldville (belga), no Congo Brazzaville (francês) e em Angola, apoiando os movimentos de libertação daqueles territórios.

No caso concreto da Guiné foram três os entrevistados, por esta ordem: 

(i) o médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado [P16224; P16234; P16285 e P16304];

(ii) o médico de clínica geral, com experiência em cirurgia, Amado Alfonso Delgado [P16357; P16380; P16396; P16420 e P16441];

(iii) e o médico militar, especialista em cirurgia geral, Virgílio Camacho Duverger [P16592; P16613; P16721 e P17151], 

os quais relatam algumas das suas muitas memórias [experiências], vividas na primeira pessoa, e das motivações que os levaram a optar por um dos lados do combate.

Como antecedente histórico ao acima exposto, recorda-se que os apoios cubanos ao PAIGC tiveram a sua génese no encontro realizado em Conacri, em 12 de Fevereiro de 1965, entre Ernesto "Che" Guevara (1928-1967) e Amílcar Cabral (1924-1973), com o primeiro a comprometer-se a ajudar, na medida das possibilidades, o segundo, na qualidade de líder daquele movimento nacionalista.

Decorridos três meses, a 11 de Maio de 1965, a primeira (grande) ajuda de Cuba chega a Conacri, a bordo do navio Uvero, constituída por cento e trinta e sete caixas de medicamentos, sessenta e seis caixas com armas, munições, minas e uniformes militares, assim como alimentos, cigarros e fósforos.




Mas é em Janeiro de 1966, por causa/efeito da participação de Amílcar Cabral (1924-1973) na I Conferência Tricontinental efectuada em Havana, durante a qual é aprovada a criação da Organização de Solidariedade dos Povos de África, Ásia e América Latina (OSPAAAL), que o Secretário-Geral do PAIGC recebe a notícia de mais apoio (material e técnico) traduzido no envio de viaturas para a deslocação dos guerrilheiros, mecânicos, instrutores militares e médicos, como corolário da reunião tida com o presidente Fidel de Castro (1926-2016).

No âmbito da cooperação técnica na área da «Saúde», o primeiro grupo de nove médicos chega a Conacri no início de Junho de 1966. Passado um mês (Julho) estes são divididos em três equipas, com a seguinte distribuição operacional:

(i) Frente Norte >  Domingo Dias Delgado (cirurgião); Pedro Labarrere (medicina interna) e Teudi Ojeda Suárez (ortopedista);

(ii) Frente Sul >  Rómulo Soler Vaillant (cirurgião); Luís Peraza Cabrera (cirurgião) e Julio Garcia Olivera (Bebo) (cirurgião);

(iii) Boké (Hospital na Guiné-Conacri) >  Raúl Currás Regalado (medicina interna); Jesús Pérez (ortopedista) e Virgílio Camacho Duverger (cirurgião). Ali já se encontrava, há dois meses, o médico panamiano Hugo Spadafora (1940-1985).


2. Testemunhos do médico Domingo Diaz Delgado (1966)

Para enquadramento desta narrativa – a da logística clínica em contexto da guerrilha – recupero alguns testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n.1936), referentes à sua passagem pelas bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Sará, na Frente Norte, itinerários percorridos durante o segundo semestre de 1966.

Conta ele: 

[…] "Luís Cabral levou-me até Ziguinchor. Aí permaneci dois ou três dias, tendo-me encontrado com os chefes militares mais importantes que actuavam no Norte da Guiné, entre eles Osvaldo Vieira (1938-1974) porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera. 

Despediram-se de mim [6 de Julho] e saí com um grupo de combatentes. Era noite quando cruzei a fronteira por essa zona escoltado por uns quantos. A caminhada, feita por um terreno acidentado, para mim foi terrível. Demorei quatro a cinco horas até chegar à primeira base guerrilheira que se chamava Sambuiá. Passei a noite nessa base, já com os pés bastante maltratados. 

Essa caminhada que fiz em quatro ou cinco horas, quando regressei fi-la em cinquenta minutos, porque tinha menos trinta quilos e levava já um ano caminhando naquele terreno.

Passada a noite nesse lugar, de madrugada retomámos a caminhada até à próxima base da guerrilha, penetrando profundamente no território da Guiné (Bissau). 


À volta de quarenta minutos caminhámos com uma vegetação que nos protegia da aviação, mas para alcançar o rio Farim, que teríamos de atravessar para chegar à base de Maqué, faltava ainda percorrer sete quilómetros muito planos, e sem qualquer protecção natural".

Acrescenta: 

(...) "Pouco habituado a estas tarefas, caminhava lentamente face ao estado em que estavam os meus pés e todo o corpo. O meu estado de desespero também começou a dar sinais e que não me deixava ficar tranquilo, e não dava conta que olhavam para o céu, uma vez que naquele lugar os helicópteros armados e os jactos (aviões de guerra), metralhavam e matavam quem fosse detectado. Os guerrilheiros estavam desesperados porque tinham que zelar pela minha segurança, pois era o primeiro médico que ali chegava.

Finalmente chegámos ao rio Farim, onde o abundante caudal tornava difícil a sua travessia nas pequenas canoas que eles fabricavam com troncos de árvores. Atravessámos o rio e chegámos pela noite à base de Maqué, onde levava dois dias a andar e estava bastante mal. 

No trajecto tivemos de beber água em más condições. Ali a água potável era a dos rios, e eles habituaram-se a fazer uns buracos na terra, bem localizados e escondidos para encherem quando chovia. Ao longo do itinerário realizado sabiam onde tinham os buracos para tirar a água com terra e era a que, a partir desse momento, comecei a beber.

Como era o primeiro grupo cubano na Guiné (Bissau), não tínhamos antecedentes. Quando cheguei à base de Maqué já as diarreias começavam a fazer estragos, mas nem por isso deixámos de comer o que encontrávamos pelo caminho. No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará". […]



Base de Sará (1966) – Da esqª/dtª., o instrutor militar tenente Alfonso Pérez Morales (Pina); o ortopedista Tendy Ojeda Suárez; o cirurgião Domingo Diaz Delgado e o médico de clínica-geral Pedro Labarrere. (in. op. cit.).



Continua: 

"A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. 

Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo. 

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dez'66] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]



Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as bases por onde passou o médico Domingo Diaz Delgado.


3. Testemunhos do médico holandês Roel Coutinho (1973/74)


Para melhor compreensão do descrito pelo médico cubano Domingo Diaz Delgado no ponto anterior, nada melhor do que associar às suas palavras algumas imagens do mesmo contexto, ainda que entre si exista uma diferença temporal superior a sete anos. Esta oportunidade, e coincidência, só foi possível graças ao espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho], também ele cooperante com o PAIGC, particularmente na actividade clínica dos sujeitos dela carenciada: combatentes e população sob o seu controlo.

A sua missão na guerrilha decorreu nos anos de 1973 e 1974, tendo percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, com destaque para Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).

Ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, agradecemos a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG.



Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974.




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 14 08 > Roel Coutinho in Sara > Guinea-Bissau [o médico Roel Coutinho lendo e ouvindo a rádio portátil em Sará].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > G07 > Ziguinchor, Senegal > Vaccination [o médico Roel Coutinho administrando uma vacina com injector de jacto, visando a imunização (protecção imunológica de uma doença infecciosa) de adultos].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > B23 > Infirmary in Sara > Guinea-Bissau > Heartbeat check-up by doctor Antonio [O médico cubano Dr. António durante uma consulta com auscultação cardíaca].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A19 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [O médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico, acompanhado de dois enfermeiros, um cubano (Gustavo) e um guineense].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F34 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Transporting the wounded from Candjambary to the Senegalese border [Transporte de ferido desde Canjambari até à fronteira do Senegal].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F35 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Carriers of wounded people [Carregadores de feridos].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F36 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Bearers of the wounded on one day walking distance to the Senegalese border [Um dia de caminho até à fronteira do Senegal (de Canjambari)].




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F37 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Armed escort carrying the wounded to the Senegalese border [Transporte de ferido para a fronteira do Senegal com escolta armada].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > C40 > Walk from Candjambary to Sara > Guinea-Bissau > Military escort with rifle during trip [Militar – criança-soldado? – do PAIGC, armado de Kalashnikov (AK-47), durante uma escolta].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > G04 > Ziguinchor, Senegal > Infirmary ambulance [Ambulância da enfermaria (Hospital do PAIGC) de Ziguinchor, (aguardando a chegada de feridos do interior da Guiné?)].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 11 05 > Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiras no hospital do PAIGC, em Ziguinchor, tratando de guerrilheiros feridos].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 11 06 > Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiras no hospital do PAIGC, em Ziguinchor, tratando de guerrilheiros feridos].




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 10 05 > Nurses in Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiros no hospital do PAIGC, em Ziguinchor].



Itinerário da evacuação dos feridos entre Canjambari e Ziguinchor. A verde; marcha a pé até à fronteira com o Senegal. A amarelo; em ambulância até ao hospital do PAIGC de Ziguinchor.



Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

06JUL2018.
________________

Nota do editor:

Último poste da série > 17 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18749: (D)o outro lado do combate (33): As deserções no PAIGC no Sector de Tite ao tempo do BART 2924 (1971-1972) e suas consequências (2) (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P18847: Blogues da nossa blogosfera (96): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (15): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


AO FIM DA TARDE

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ

Ainda é dia ao fim da tarde
ainda há uma réstia de sol no horizonte.
Entre o fim do dia e a morte
ainda há uma ponte onde mora o frio
e onde o coração bate
ao som das luminosas águas de um rio.
......

Não te posso responder a quente senão choro…
o que há muito não acontece.
À margem da realidade
na magia de um sonho impossível que esmorece
nada mais consigo do que estender meu braço
e tocar os dedos da tua mão firme.
Mas tudo muda e resplandece
e se acende dentro de mim
no frágil redemoinho das palavras que disseste
e só a alma entende.
A música sorridente do teu rosto
canta bem fundo na alma nua da utopia
que ilumina a ponte da tristeza e da agonia.
Não saias dos meus olhos
e deixa-te estar um pouco mais
sobre esta ponte do fim da tarde em que ainda é dia
e há uma réstia de sol no horizonte
deliciosa mentira de uma primavera tardia
no castelo sideral da fantasia
onde hoje habito entre os teus olhos e o infinito.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18775: Blogues da nossa blogosfera (95): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (14): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18846: Blogpoesia (576): "O que se diz das omoplatas...", "As flores da minha mente" e "Os males da alma", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


O que se diz das omoplatas...

Se diz que as omoplatas, desencantadas, na criação,
Se agarraram ao corpo como se fossem lapas.
O seu sonho era lhes crescessem asas Queriam voar.
Como não,
Só para reinar,
Decidiram servi-lo para sempre, com o que o que viesse à mão.
Muito versáteis.
Governam o corpo.
Fazem de mastros de caravela ou só de remos, se não houver vento.
Servem de escudo, no caso de ataque.
Desfecham socos, se alguém lhes bate.
Cultivam artes para serem fortes.
Cuidam do aprumo como mais ninguém.
De vaidosas,
Sem elas, não haveria adónis
Nem os bustos seriam aras.
Bailarinas, se dedicam à dança,
Com a esperança forte na sedução.
São dominadoras.
Mantêm as pernas, os seus suportes, mesmo distantes,
ao seu serviço.
Só se sentem em paz quando abraçam...

Mafra, 9 de Julho de 2018
17h42m
Jlmg

********************

As flores da minha mente

Semeei na minha mente
Um punhadinho de sementes,
Sem saber de que seriam.
Esperei que desabrochassem.
Minha mente ficou um jardim.
Flores de tantas cores.
Das maiores às mais pequenas.
Com elas desenhei canteiros
E teci os meus poemas.
Fiz arranjos tão harmoniosos
Como os andores da procissão.
Tão forte o seu perfume,
Vieram aves e borboletas.
Mais parecia um festival.
Quando caía a hora das trindades,
Ali vinham as andorinhas,
Faziam ninhos no meu sobrado e
O enchiam de chilreios.
Meu jardim ardia em coro
Que se ouvia no mundo inteiro.

Mafra, 11 de Julho de 2018
Jlmg

********************

Os males da alma

Arremesso ao vento os males da minha alma, confiante de que afoguem nas nuvens e se desfaçam na imensidão do nada.
Chovam do céu as bênçãos da trovoada que despedace a secura dos lagos e rios em combustão.
Venham do alto as riquezas desperdiçadas pelos ricos famintos e ociosos.
Se encham de abastança as mesas pobres, apenas pobres por injustiça.
Se convençam os governantes de que o poder que têm nas mãos lhes foi apenas confiado para o bem de todos.
Contentem-se os ávidos de paz e de justiça com as sementes puras da concórdia.
Se estreitem as relações dos povos na base firme do respeito mútuo.

Bar do Castelão em Mafra, 13 de Julho de 2018
8h26m
ouvindo Concerto nº 1 para piano e orquestra de Chopin por Olga Scheps
Jlmg
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18836: Blogpoesia (575): "O Meu Jardim", poema de Fernando Tabanez Ribeiro, ex-2.º Tenente da Reserva Naval

sábado, 14 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18845: Bombolom XXII (Paulo Salgado): O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



T/T Carvalho Araújo a caminho da Guiné. A 26 de abril de 1970, avistámos à rè o  T/T Vera Cruz (a caminho de Angola ou Moçambique, presumivelmente).


Foto (e legenda): © António Tavares (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Paulo Salgado, ex-alf mil op esp. CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72


Bombolom III  (Paulo Salgado) (3) > O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



O desembarque do navio Zaire [1] decorreu num ambiente de estranha confusão a que os militares não estavam habituados, não obstante alguma desorganização nestas circunstâncias, por falta de meios. Durante a viagem, sede, fome e miséria no bojo do Zaire foram uma constante. Depois, do barco até à praia, os soldados sentiram o miserando esforço dos indígenas para carregar às costas os militares. Sim, às costas.

Tenho tido oportunidade de aprofundar os meus conhecimentos, com várias leituras, sobre a primeira grande guerra em África [2]. Estava-se na primeira vintena de anos do século XX, carregada de episódios políticos, nacionais e internacionais, alguns deles relativos às posições assumidas por ingleses e alemães que, no fundo, pretendiam, juntamente com outras potências (França, Itália, Bélgica…), dominar o continente africano, com prejuízo para Portugal, afastando-o, por vezes com maneiras cordatas, diplomáticas, todavia frequentemente pela coação política. Recorde-se o vexame do Ultimato inglês [3], ainda no século XIX, que pensadores e escritores da época apelidaram de enorme afronta do aliado tradicional (por exemplo, Guerra Junqueiro).

Passo, então, a transcrever os seguintes excertos da obra indicada em rodapé (ver nota 2):

«…quando, já noite cerrada, cheguei ao local que o Quartel-general tinha destinado ao estacionamento do meu batalhão [na zona do Rovuma, perto de Porto Amélia - nota deste escriba], encontrei-me numa pequena clareira, raspada à pressa no seio da floresta, sem ar e sem luz, dando-me a impressão do poço Poe [4] aberto na solidão daquele mato…foi ali o nosso primeiro bivaque [5]

Prossegue um pouco mais adiante a descrição pessoal deste ilustrado combatente à chegada ao Norte de Moçambique, em 1915:

«Parece que o Quartel-general ignorava a viagem que há um longo mês vínhamos fazendo em direcção a estas paragens».

Ao ler este precioso depoimento pessoal, de que transcrevi dois breves excertos, decerto escrito em circunstâncias adversas, não posso deixar de referir a viagem atribulada do Carvalho Araújo, nome do bravo marujo, que transportou para o Teatro de Operações da Guiné, na sua primeira viagem [6] após restauro e adaptação a transporte de tropas.

Após a IAO [7], e cumpridas as férias antes do embarque, ia a malta de barco. Ao longo de sete dias, a “carne para canhão” esteve sujeita às miserandas condições de habitação do navio. Sobretudo os soldados viajavam no bojo do barco, em condições deploráveis, enquanto os graduados tinham algo de mais positivo lá no alto.

Sou muito claro: só a necessidade e a obrigação de orientar as tropas nos faziam descer ao fundo, aos graduados, aos porões, onde se jogava às cartas e se vomitava imenso... Uma miséria no ano de 1970!

Igualmente, chegados a Brá – quem lá passou, sabe como era! – distribuíram-nos tendas esburacadas e colchões meio podres, e atacados pela mosquitada. Depois, já no mato, a sobreposição com os “velhinhos”, uma confusão dos diabos…

Como vedes, camaradas, as situações vividas em guerra na África estavam separadas por cerca de cinquenta anos e não houve grandes melhorias. Diferente e melhor na guerra colonial, pois que estavam garantidos na Guiné e, creio, nos restantes TO, o serviço postal militar (SPM), a distribuição, precária mas existente, de víveres e outros produtos, a electricidade fabricada por geradores, o apoio clínico, o apoio pastoral, o apoio dos “héli-canhões” ou dos “fiats”…

Até à próxima crónica do meu bombolom.

Paulo Salgado – 30.6.2018
__________________

Notas do autor:

[1] Foram vários os navios utilizados no transporte de tropas para o norte de Moçambique e sul de Angola durante as operações havidas na Primeira Grande Guerra, por força do confronto entre Inglaterra e Alemanha, e na qual Portugal participou, dada a velha aliança com os ingleses. De acordo com o Capitão-de-Mar-e-Guerra, José António Rodrigues Pereira (Revista Militar, nºs 2551 e 2552), mencionam-se os seguintes navios envolvidos nesta guerra no norte de Moçambique, 1914-1916: Moçambique, Durhan Castle, Beira, Cazengo, Ambaca…

[2] Por exemplo a leitura do livro Epopeia Maldita – o Drama da Guerra de África, de A. Cértima, publicado em 1924, como já referira na crónica anterior do meu Bombolom.

[3] Como é sabido, o governo inglês exigiu a Portugal, em memorando, no ano de 1890, a retirada das forças portuguesas que, por direito, tinham ocupado o território compreendido entre Angola e Moçambique. O governo português e o rei foram muito atacados pelos republicanos. Entre outros intelectuais, Guerra Junqueiro vituperou a concessão do governo e do rei D. Carlos na sua obra, direi patriótica e panfletária, Finis Patriae, onde escreveu versos de revolta, de que ora se recorda «Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente// Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?» É de recordar, no entanto, que as diversas tomadas de posição por republicanos pouco interesse prático revelaram, como defendia Eça de Queirós.

[4] É uma referência do autor do livro citado (ver nota 2) ao conto ‘O Poço e o Pêndulo’, de Edgar Alan Poe, que fala, como sabeis, de um condenado que sente a sensação horrível de estar preso numa masmorra, num espaço claustrofóbico.

[5] Bivaque designa um acampamento rudimentar para passar a noite na natureza, vigiando. Trata-se de uma expressão muito utilizada nas campanhas militares, herdada da palavra francesa bivouac. Bivaque é também a designação de boné, utilizado por militares ou paramilitares.

[6] Este navio fazia a carreira dos Açores, transportando pessoas e gado dos Açores para o Continente; já meio consumido pelo uso e pelo tempo, foi, por necessidade, transformado em navio transportador de militares para a Guiné. Nele seguiu a CCAV 2721, onde este escrevinhador estava incluído, e duas companhias e uma secção de morteiros.

[7] No Arquivo do Centro de Documentação do 25 de Abril – Universidade de Coimbra, há um texto – que eu conheça, pois haverá outros – sobre a mobilização, a IAO – instrução de aperfeiçoamento militar, que, na Guiné passou a fazer-se, creio eu, a partir de 1972, e que refere o que passo a transcrever:

«O militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem. Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam-se de novo em parada no quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho-de-ferro mais próxima».

__________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2018  Guiné 61/74 - P18757: Bombolom III (Paulo Salgado) (2): As guerras - a primeira e a colonial

Guiné 61/74 - P18844: Os nossos seres, saberes e lazeres (276): De Aix-en-Provence até Marselha (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 2 de Maio de 2018:

Queridos amigos,

É com a maior satisfação que partilho convosco algumas imagens de um museu excecional, enquanto arquitetura, enquanto acervo, enquanto organização museográfica e museológica. É claro que há de quê para esta imponência, a Roma das Gálias transformou Arles e o seu porto numa placa giratória entre o Mediterrâneo e a Europa do Norte, a decadência da região acontecerá com as primeiras invasões bárbaras, no século V, quando ruiu o Império Romano do Ocidente. Ficaram estes esplendorosos vestígios de um mundo antigo, genial na arquitetura, no saneamento, no direito, na capacidade de assimilação, na organização militar, e algo mais. Percorre-se Arles e sente-se na perfeição como estes vestígios falam do génio e como se vão articular, em uma singular harmonia, com a arquitetura medieval. É também outra dimensão atrativa inultrapassável que Arles oferece aos viandantes, que saem com o desejo de aqui em breve voltar.

Um abraço do
Mário


De Aix-en-Provence até Marselha (8)

Beja Santos

O viandante sabia da existência de um edifício moderníssimo destinado a abrigar as coleções excecionais da arte romana em Arles. É este o museu azul situado perto dos vestígios do circo romano, nas margens do Ródano, aqui está a arqueologia de Arles e vizinhanças, é um acervo que vai do Neolítico à Antiguidade tardia. Foi um projeto de Henri Ciriani inaugurado em 1995, é um museu tão excecional que tem três estrelas no Guia Michelin, a partir de 2016.


Já se falou um pouco da história de Arles, da Gália Narbonense, que se estendia desde os Pirenéus até aos Alpes, as principais cidades eram Narbonne e Marselha. A 6.ª legião de César instalou-se aqui, Arles tornou-se imediatamente um importante estaleiro naval, construíram-se fortificações e monumentos públicos, Arles transformou-se num ponto de comutação de vias marítimas e terrestres, este período de relativo esplendor vai sofrer com as invasões dos Ostrogodos, Visigodos, Normandos e Francos, a partir do século V. Começava a decadência de Arles.


O museu contempla áreas distintas: Arles antes da chegada dos Romanos; os Romanos em Arles; um grande porto fluvial-marítimo; as atividades artesanais e agrícolas, a vida quotidiana, os ritos e práticas funerárias do mundo romano e, por fim, Arles e o mundo cristão. Acervo riquíssimo instalado neste edifício triangular de linhas depuradas, facilmente visível a uma boa distância. Acervo de tal maneira rico onde é possível encontrar fragmentos de cerâmica grega, o presumível retrato de César, a estátua colossal de Augusto ou a estátua de Neptuno, ânforas, baixos-relevos, sarcófagos, mosaicos e joias. Sem esquecer esse caso único que é um barco inteiro da Antiguidade, espantosamente intervencionado e conservado.


O busto presumível de Júlio César.



Este museu permite ficar com ideia do que era o polo comercial grego, Arelate, importante até à conquista romana. Arelate era a pequena Roma das Gália. No fim do I século a.C. Augusto deu a Arelate um impulso económico e arquitetónico de grande fôlego. Havia dinheiro, pois aqui convergiam as rotas comerciais do Alto Império, Arles apropriou-se de um património cultural excecional.



A lógica de organização do museu é de que esta casa de cultura é muito mais do que uma coleção de objetos belos, serve para descobrir e compreender o passado: como viviam os Romanos, em que deuses acreditavam, quais as suas atividades económicas, daí circular-se em espaços que possuem essa lógica cronológica e temática, está tudo cuidadosamente pensado para responder a estas diferentes questões, há mesmo maquetes que procuram restituir os monumentos romanos no seu estado original.


Está aqui a mais importante coleção arqueológica antiga da Provença, coleções excecionais que fazem de Arles e este museu uma obrigação para qualquer visitante que queira saber e compreender a vida do Império Romano nas Gálias.



Se a escultura é excecional, este barco é o ex-líbris do Museu Arqueológico de Arles, há ânforas, muita loiça em cerâmica, há metal em lingotes, tudo serve para confirmar a importância e a intensidade do porto de arte para a Europa do Norte e o mundo mediterrânico. O viandante jamais supusera ver com os seus olhos um autêntico barco do mundo antigo, permaneceu séculos dentro de lamas, foi assim que escapou à deterioração total, uma equipa de cientistas transformou-o neste documento histórico inultrapassável.



O viandante está regalado, começou pela cidade romana, esteve no teatro e no anfiteatro, viu sinais espalhados pelas ruas, percorreu os criptopórticos, descansou as pernas e bebeu uma cerveja na Praça do Fórum, aqui perto deste museu andou pelas termas de Constantino, vai partir amanhã para outro destino, faz contas jamais esquecer este museu acolhedor e dinâmico, ainda tem algumas memórias que quer aqui exarar e deixa-as para o apontamento seguinte, é melhor deglutir este banquete do génio romano, não podendo deixar de saudar a esplêndida e arrojada arquitetura que o encerra e que inclui um horto que nos dá a perceção do mundo romano. Arles é para guardar no coração, e para toda a vida.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18818: Os nossos seres, saberes e lazeres (275): De Aix-en-Provence até Marselha (7) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18843: (De) Caras (112): O João Rocha (1944-2018), em Bissau e em Brá, nos primeiros tempos do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (Fernando Calado)


Foto nº 1 > Guiné > Brá > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > O João Rocha e o Fernando Calado, sentados no jipe do comandante.


Foto nº 1 A > Guiné > Brá > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > Detalhe: o João Rocha e o Fernando Calado, sentados no jipe do comandante.


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > Um grupo de oficiais milicianos, na Av da República (vendo-se ao fundo a Praça do Império e o Palácio do Governador), no dia seguinte ao desembarque (29 de julho de 1968). O João Rocha é o primeiro a contar da esquerda para a direita, o Fernando Calado o 4.º e o Ismael Augusto o 5º.


Foto nº 2 A > Guiné > Bissau > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > Detalhe: à esquerda, o João Rocha. Av da República, 30 de julho de 1968.



Foto nº 2 B > > Guiné > Bissau > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > Detalhe: os primeiros à esquerda, o Fernando Calado e o Ismael Augusto. Av da República, 30 de julho de 1968.

Fotos (e legendas): © Fernando Calado (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), membro da nossa Tabanca Grande, camarada de quarto do Ismael Augusto e do João Rocha, acaba de nos mandar dois fotos com o  João, que acaba de deixar a "terra da alegria"...

Caro Luís,

Junto 2 fotos com as seguintes referências:

1ª. Estou eu e o Rocha em Brá encostados ao jipe do comandante [ten cor inf Manuel Maria Pimentel Bastos]

2º. A primeira saída no dia a seguir à chegada a Bissau [, que ocorreu a 29 de julho de 1968]. São visíveis o Ismael, eu próprio e o Rocha (o 1º à esquerda com a camisola escura).

Um grande abraço,


2. Comentário de LG:

Falámos ao telefone.  A meu pedido, o Fernando mandou-me estas fotos, O Fernando soube, com surpresa da morte do amigo e camarada João Rocha (ª). Disse-me que partilharam juntos o quarto em Bambadinca, mais o Ismael Augusto ( alf mil, cmdt do pelotão de manutenção), até o João ir de férias, talvez por volta de abril de 1969. "Foi seguramente antes do ataque ao quartel, em 28 de maio de 1969", assegura o Fernando.

O João foi a Moçambique, de férias, ver a família, e atrasou-se no regresso, por razões que não sabemos. Foi punido disciplinarmente. Confirma-se assim a versão do António Pimentel, ex-al mil Pel Rec Imnfo, CCS/BCAǪ 2851 (Mansabá e Galomaro, 1968/70) (*). Ele acabou por baixar ao HM 241, em Bissau, nunca mais tendo voltado  a Bambadinca nem sido substituído.  

O Ismael e o Fernando ficaram os dois no quarto até ao resto da comissão. O Fernando lembra-se bem do João e das suas gargalhadas. Era um camarada que irradiava simpatia. Encontraram-se depois em vários convívios do pessoal de Bambadinca (1968/71). Tem ideia de ele ter trabalhado na TAP, não sabe ao certo se como piloto ou comissário de bordo. 

Recorde-se que o BCAÇ 2852 desembarcou em Bissau em 29 de julho de 1968. O Comando e a CCS instalaram-se em Brá,  ficando como  reserva do Comando-Chefe. Fizeram patrulhamentos, recenseamentos de população, ação psicossocial, construiram tabancas, etc. As companhias operacionais deixaram de pertencer ao comando do batalhão, sendo  colocadas em Binar (CCAÇ 2404), Mansoa (CCAÇ 2405) e Olossato (CCAÇ 2406). 

Em outubro de 1968 a CCS/BCAÇ 2852 vai tomar conta do setor L1 (Bambadinca). Foi aí que eu conheci, em julho de 1969, o Ismael e o Fernando.

Um dos homens do Pel Rec Info  era o ex-furriel miliciano Pinto dos Santos, organizador de um dos primeiros convívios do pessoal de Bambadinca (1968/71)  realizado em 29 de maio de 1999,  em Resende, na sua quinta.

Bolas, Fernando e Ismael, como éramos "putos" (a avaliar hoje pelas nossas caras...). E no entanto tínhamos já, sobre os ombros,  o pesado fardo de fazer, conduzir ou alimentar uma guerra!... (**)

__________________

Guiné 61/74 - P18842: In Memoriam (318): José Augusto Rocha (1938-2018), ex-alf mil, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65... Um camarada cuja tribuna só podia ser "político-ideológica"...


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Abrigo "Cova do Comando" da CCAÇ 557 no Cachil. Alguém chamou a esta subunidade, que também participou na Op Tridente (jan/mar 1964), "a esquálida e esgroviada Companhia de Caçadores 557". Por detrás desta foto estão cinquenta e cinco dias a ração de combate, cerca sessenta dias sem mudar de roupa nem tomar banho, e com água racionada para beber

Legenda: a começar da esquerda para a direita o 1.º Cabo Enfermeiro Leiria; 1.º Cabo Radiotelegrafista Joaquim Robalo Dias; Dr. Rogério Leitão, que já partiu; atrás o 1.º Cabo Enfermeiro António Salvador, e por último, de quico, a sair do buraco, eu, Soldado de Transmissões José Colaço. mAs barbas com cerca de 90 dias. Os cabelos já tinham levado um corte para melhor se aguentar o calor. Aquela "divisória" entre o 1.º Cabo Dias e dr. Rogério, é uma cobra que durante a noite se lembrou de nos assaltar o abrigo e que só de manhã com a luz do dia foi detectada a um canto da cova. Foi condenada à morte pela catana de um milícia.

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mandou-me o José Colaço um email, ontem, às 13h32,  a dizer telegraficamemte o seguinte:

"Morreu o Dr. José Augusto Rocha, ex- alferes miliciano e 2º comandante da companhia de CCAÇ 557, 1963/65."

Os jornais de hoje trouxeram de imediato a triste notícia (Público, Expresso, Diário de Notícias...).

O título do Expresso, digital, na secção Sociedade, dizia, às 13h28:

"Morreu José Augusto Rocha, um dos advogados que defenderam presos políticos". [De entre os inúmeros presos públicos que defendeu, conta-se o nome da Diana Andringa, membro da nossa Tabanca Grande.]

E acrescenta-se:

"Defendeu presos políticos no tempo em que ir a Tribunal Plenário era um risco que exigia coragem e vontade de ser solidário. Licenciou-se na Faculdade de Direito de Coimbra onde viveu a Crise Académica de 1962. O Senado da Universidade expulsou-o por ter organizado um encontro de estudantes contra as ordens do ministro da Educação. Partiu esta madrugada, aos 79 anos."

Em dezembro passado, o presidente da República tinha-o condecorado com a Ordem da Liberdade no Grau de Grande Oficial. Nasceu em Viseu, em 1938. Morreu antes de completar os 80m anos. Vai ser  cremado hoje, sexta-feira, dia 13, no Cemitério dos Olivais, às 17h.

Mais algumas notas biográficas sobre este nosso camarada:

(i) foi director da Associação Académica de Coimbra, em 1962;

(ii) foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62;

(iii) esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses;

(iv) cumpriu o serviço militar e foi mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano (CCAÇ 557, 1963/65);

(v) termina a licenciatura em direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965:

(vi) inscreve-se  na Ordem dos Advogados, em 13 de agosto de 1968;


 2. Blogue "Caminhos da Memória" > Segunda feira, 19 de outubro de 2009 >   Memória breve da história da Guiné > Um texto de José Augusto Rocha

 [Excertos, com a devida vénia...] (*)

A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro «Ana Mafalda» (...), adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné. (...)

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no Regimento de Lanceiros 2, conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo. Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo Monteiro, filho do exilado político Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva.

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro, Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político. Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5, em Lisboa. Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no Regimento de Lanceiros 2, cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557 [CCAÇ 557], rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no «Ana Mafalda».

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a Operação Tridente, destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no «Café Bento» – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado».

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial (...).

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a Operação Tridente, mas nenhuma sobre a CCÇ 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante. A Operação Tridente, assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesa, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque. Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de tarrafe, lamaçais que, na maré baixa,  chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao tarrafe, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da CCAÇ 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque. O médico da Companhia, de nome [Rogério] Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens,  totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió. Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra-humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau.

 (...) Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões [F 86] [no original, Fiats lapso do autor], que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido. Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».

Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.(...)


3. O José Augusto Rocha e o nosso blogue:
O alf mil Rocha, em Bissau, 1964...
A única foto que o Zé Coleço
tem deke...


(i) Comentário do nosso editor Luís Graça:

(...) Conheci, pessoalmente, o  José Augusto Rocha em 15 de outubro de 2009 (**).  Foi-me apresentado pela Diana Andringa, na estreia, no Doclisboa 2009, do seu filme Dundo, Memória Colonial.

Tivémos um conversa cordial, mas  dise-me logo que não era homem de blogues nem pretendia "alimentar" o nosso banco de memórias...  De resto não gostava de falar da Guiné e da guerra, a não ser no contexto das suas memórias políticas que estava a (ou tencionava) elaborar.. Falou-me do texto que estava a escrever (e de que reproduzimos uma parte substancial), para o blogue "Caminhos da Memória", uma promessa que tinha feito, "a título excepcional"... Um dos autores que alimentava esse blogue era justamente a Diana Andringa.

Falou-me por alto da Op Tridente, e de vários nomes do seu tempo:  Cavaleiro Ferreira, Barão da Cunha, Saraiva...  Fiquei a saber, por outro lado, que, na altura, em 1962, aquando da crise académica, e quando foi ele expulso de todas escolas do país, tinha a frequência do 5º ano do curso de licenciatura em direito... Só depois de regressar da Guiné, em finais de 1965, é que pôde completar o curso.

(ii) O José Colaço, nosso grã-tabanqueiro, ex-sold  trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) acrescentou o seguinte a respeito do nosso camarada José Augusto Rocha:

(...) O ex-alferes miliciano Rocha era o meu comandante de pelotão, o 4º,  ou seja,  o pelotão de armas pesadas. Ele era também o 2º comandante da companhia.

Guardo dele, durante a nossa estada na guerra da Guiné, bem como de todos os oficiais e sargentos e restantes camaradas, as melhores recordações. Mas, para este ambiente funcionar como uma máquina bem oleada, houve, e ainda há, um homem que, além de militar com a sua patente de capitão, via no seu subordinado, no homem que estava à sua frente, outro ser humano como ele... Este homem dá pelo nome de João da Costa Martins Ares, hoje coronel reformado.

O Rocha possivelmente não te contou esta passagem: no início da nossa comissão é recebida uma mensagem dos serviços da PIDE com o seguinte teor, mais ou menos: que  o capitão deunciasse o dia a dia do alferes Rocha pois ele era elemento a ser vigiado na sua conduta diária. As palavras não eram exactamente estas mas o sentido era vigiar o Rocha e informar os serviços da PIDE.

O capitão toma a seguinte resolução: chama o alferes Rocha, tem uma conversa séria de homem para homem, mostra-lhe a mensagem; o Rocha, por sua vez, conta-lhe todo o seu passado politico de oposicionista ao governo de Salazar, mas dá um voto de confiança ao capitão, o qual poderá contar com ele e, mais, que nunca seria atraiçoado.

Deste modo, o capitão conseguiu mais um amigo para levar a bom porto aquela nau durante vinte e três meses. (...) (**)

(iii)  Mensagem de email do José Augusto Rocha para o nosso editor Luís Graça, com data de 22/10/2009 :

(...) Sensibiliza-me o que diz sobre o depoimento que fiz para os Caminhos da Memória, mas permita-me que lhe diga que o seu depoimento sobre a guerra colonial é uma reflexão corajosa e muito lúcida. Se o termo não fosse controverso, acrescentaria: bela!

Bem, agora sim, estive a ler tudo o que consta do seu blogue, que se reveste de importância decisiva para a história da guerra colonial... ainda por fazer, ou não totalmente feita.

E a leitura que fiz, deu-me conhecimento de que, afinal, havia mesmo já alguém (o José Colaço) que tinha escrito sobre o Como e CCaç 557, ao invés do que digo no meu depoimento… Só me admiro que ele [não] fale do engano da avi(ação, até porque penso que foi ele que enviou o meu pedido de socorro para o Comando de Catió! ...) (***)

 (iv) Três dias antes, a 19 de outubro de 2009, o José Augusto Rocha tinha esclarecido, sem qualquer margem para dúvidas, qual era a sua posição face ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande,  razão por que não faria sentido eu vir agora decidir,  a título póstumo, sentá-lo à sombra do nosso poilão... Seria trair a sua confiança, desrespeitar a sua vonatde e fazer batota, violando as nossas próprias regras do jogo... O José Augusto Rocha nunca faria nem fará parte do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 

(...) Quanto ao seu blogue, tenho as maiores dificuldades em nele colaborar. Tenho alguma radicalidade quanto a estas coisas da guerra colonial e sempre entendi que os encontros e confraternizações, a propósito dela, tendem a contar só meia memória, a memória boa, vista do lado de cá… Embora não pretenda julgar quem quer que seja, penso que compreender o passado implica um juízo de valor sobre o certo e o errado e, muitas vezes, nessas manifestações de convívio não é possível esconder a nossa discordância em relação ao que se ouve e isso cria um ambiente pouco propício ao encontro. Fui duas vezes a coisas dessas e jurei não mais ir! 

(...) Por estas e por outras, quanto à guerra colonial, vou ficar-me pela “curta memória da guerra colonial das Guiné”, a publicar nos Caminhos da Memória, dando, quanto a este capítulo, por encerrado o meu dever de memória (...) (***)

(v) O último email que troquei com ele, nestes últimos 3 anos, em 8 de maio de 2015, e em que já nos tratávamos por tu, tirou-me as derradeiras ilusões sobre a possibilidade de ele vir um dia aceitar o nosso convite para se juntar ao nosso blogue, enquanto coletivo de ex-combatentes da guerra da Guiné. A sua posição sobre a guerra colonial era firme, coerente e definitiva, aos 76 anos, e só tive que respeitá-la... Tenho hoje pena de, não obstante a nossa  troca de emails, nunca termos podido, em tempo útil, ou seja, em vida, sentarmo-nos, à mesa para  uma conversa mais franca, "tête-à-tête", olhos nos olhos, sobre a nossa experiência enquanto combatentes e as nossas posições político-ideológicas face à guerra colonial:

(...) Quanto ao mais, tudo é mais difícil e diria mesmo impossível. A minha posição em relação à guerra colonial, a única que  entendo  possível, urgente e inadiável, é a sua denúncia activa, nela tendo um grau de responsabilidade incontornável, todos quantos assistiram e até participaram nos massacres( e depois até foram condecorados por esses feitos em nome da Pátria) de todo um povo cujo único crime foi existir. Ainda hoje vivo memórias horrorizadas de tudo que vi e presenciei e me foi narrado. Daí que pense que blogues como os "Camaradas da Guiné”, usando uma expressão de Roland Barthes,  “ tendem em instituir-se como exteriores à História” e “é lá onde a História é recusada que ela mais claramente age”. Daí que a minha tribuna só possa ser política e ideológica, o que, como é evidente, não cabe no âmbito neutro e apolítico do teu blogue. Mas será que, bem vistas as coisas, existem blogues apolíticos a falar de acontecimentos de uma guerra, mesmo a propósito de camaradagem entre os seus autores e actores? Conversa longa que não cabe neste escrito. Não estaremos perante uma operação mitológica?

Espero que compreendas e não leves a mal esta minha posição, mas as minhas memórias da Guiné são políticas e como tal estão a ser escritas e delas darei justo testemunho cívico e republicano. (...)

Não, não lhe levei a mal... Sei ver, ouvir, ler, parar, escutar... Ou penso que sei... Mas confesso que nunca lhe respondi, por falta de oportunidade ou talvez por laxismo, lassidão, cansaço... E hoje, que ele morreu, eu tenho pena de não ter feito um esforço adicional, não para o convencer, mas pelo menos, para clarificar  a missão (talvez impossível) do nosso blogue e sua íntrínseca ambiguidade.  É possível fazer pontes, tentando concilitar o que é inconciliável ? Às vezes também tenho dúvidas... Mas há 14 anos que o tentamos, recusando as posições radicais...

Aqui fica, entretanto, a posição, intelectualmente honesta, do nosso camarada José Augusto Rocha  (1938.2018) cuja memória eu faço questão de honrar. Porque a função do blogue não é julgar, muito menos a discriminar os camaradas que combateram na Guiné... E o José Augusto Rocha foi um combatente e um camarada...

Para a sua família e amigos mais  íntimos, incluindo os seus camaradas de companhia. e nossos grã-tabanqueiros José Colaço e Francisco Santos, endereçamos os nossos votos de pesar e de solidariedade na dor. (ªªª)
 _______________


Guiné 61/74 - P18841: Notas de leitura (1083): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (43) (Mário Beja Santos)

Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Finda a pesquisa no acervo dos relatórios de Bolama e Bissau, entre 1917 e 1972, era obrigatório um mergulho num número infindável de pastas catalogadas com uma enorme variedade de assuntos, desde execuções hipotecárias até à compra de mobiliário.
Esta introdução socorre-se da fórmula de tratamento em que da sede de Lisboa se trata a gerência por V. Senhorias e Bolama e Bissau dirigem-se ao governo do BNU por V. Exas.
Documentação aliciante, diga-se de passagem, figuras gradas do antigo regime como Francisco Vieira Machado, Teófilo Duarte, Castro Fernandes ou Marcelo Caetano despacham sobre esta impressionante variedade de assuntos que lhes chegam às mãos.
Por nada existir entre 1903 e 1917, começamos no auge da guerra com histórias de politiquice, intriga e a magna questão da exportação das sementes oleaginosas.
É longo o caminho que temos pela frente.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (43)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

O acervo documental de peças dispersas referentes a correspondência trocada fundamentalmente pelas filiais de Bolama e Bissau com o governo do BNU em Lisboa é muito mais de que a história de uma instituição de que se desconhece uma boa parte da sua história. Talvez valha a pena começar pelas lacunas da multivariada documentação.

A primeira agência terá começado a funcionar em Bolama em 1903. Bolama era capital, ali funcionavam os serviços do governo enquanto em Bissau cresciam os negócios. Não dispomos de qualquer espólio útil entre esta data e 1917, momento em que surge a filial de Bissau. Gradualmente, irá crescendo a tensão entre estes dois polos bancários, e pelo que nos é possível ler nos relatórios de execução Bolama e as suas gentes lutaram denodadamente para que não houvesse mudança de capital, o que veio ocorrer em 1941, nessa altura Bolama já vivia em ambiente fantasmático, era uma sombra do passado, e passado houvera como ainda hoje se pode ver dos vestígios do seu património arquitetónico.

Da documentação pública sobre esta matéria, da responsabilidade da Caixa Geral de Depósitos (que acolheu todo o arquivo do BNU) consta que foi em 1902 que entrou em funções a agência em Bolama, com apenas dois empregados e o gerente. Não encontrei documentação comprovativa, mas é facto que por portaria de 24 de Janeiro de 1903, Júdice Biker, Governador da Guiné, determinou que fossem recebidas com moeda as notas do Banco na Província. A função emissora do BNU procurava pôr fim ao caos existente pelas diversas espécies de moedas em circulação.

Só encontrei dois documentos referentes a 1911, com datas de Setembro e Outubro, e que se prendem com contas e valores do tesouro e encargos do banco com o Estado, por natureza inconclusivos para qualquer análise. A partir de 1917 há com frequente regularidade relatórios de execução, falta o de 1932, extinguem-se em 1941. Os relatórios de Bissau também têm lacunas: não existem entre 1928 e 1930, falta o de 1938, casos há em que há mapas anexos aos relatórios mas faltam relatórios, isso acontece logo no pós-guerra; e temos falta de relatórios respeitantes a 1973, 1974 e 1975, pelo menos, encontra-se documentação avulsa sobre este período e aquando do período da independência.

Vejamos a importância atribuível a esta documentação partir de 1917, já que, com o detalhe possível, em capítulo próprio, se procura uma interpretação para os sucessivos olhares dos gerentes de Bolama e Bissau entre o período da I Guerra Mundial e a independência.

Logo em 1917 o gerente dá-se ao cuidado de prestar informações de caráter sociopolítico e económico que não têm tratamento ou que claramente se distinguem ao que vem mencionado nos relatórios de execução.

Em Agosto, a propósito da guerra nos Bijagós, informa-se Lisboa do que o governador limitara o estado de guerra às ilhas de Canhabaque e João Vieira, em virtude dos seus habitantes se encontrarem em estado de rebelião armada. Houvera igualmente uma carta reservada da agência de Bissau em que era explicitamente referido Isaac Thomas Hawkins que pedia indemnização pelo facto da coluna de operações estacionada em Bubaque lhe estar a prejudicar os negócios, tendo o cônsul geral de Inglaterra em Bathurst (Gâmbia) informado o cidadão britânico que devia sujeitar-se às leis portuguesas e que não era tolerável que ele pretendesse imiscuir-se nas decisões do governador. Era em Bubaque que estava estabelecida a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, o senhor Hawkins era um conhecido exportador de coconote.

O leitor deverá estar preparado para encontrar nesta correspondência minudências, atos insólitos, agravos e desagravos políticos de toda a ordem, o papel do gerente era estar a toda a hora a transmitir em Lisboa chegadas e partidas de personalidades, analisar a praça e seguramente que dispunha de relações que lhe permitiam uma linguagem franca e desassombrada. Minudências como a de informar a gerência do BNU em que o antigo Governador Coronel Agostinho Coelho decidira que o gerente de Bolama, bem como o guarda-livros deveriam ser professores numa escola central a funcionar em Bolama, sugeria-se a revogação de uma cláusula do contrato entre o BNU e o governo português.

Documento hilariante, uma velha guerra entre um contundente gerente de Bissau e um médico avençado, acusado de bebedolas

Respondendo a uma carta de Lisboa, acerca de uma queixa apresentada quanto a um comportamento do gerente de Bissau, este responde:

“É infundada a queixa recebida por V. Exas., pois não é verdade que tivéssemos assinado telegrama algum pedindo a conservação do Coronel Coelho como o governador da Província, e depois de recebida a carta de V. Exas. averiguámos que o promotor desse telegrama foi o senhor Carlos Costa Carvalho, gerente da casa Salomão Pereira Neves & Companhia. Apenas assinámos com todo o comércio nacional e estrangeiro um telegrama para o ministro das colónias pedindo que o produto da venda dos terrenos de Bissau fosse aplicado em benefícios de Bissau e fizemo-lo por tal pedido não ter o carácter político.
Sobre a transferência de sede da Província para Bissau, como o Coronel Coelho era dessa opinião e ele fosse nosso amigo, dispensando-nos atenções que não dispensava a outros, visitando-nos várias vezes em casa e escolhendo-nos de preferência para sua companhia nos passeios de tarde, desse também lugar a que viessem a supor que nós patrocinávamos ou defendíamos a opinião do governador. Em Bolama rebentou esta semana um grande escândalo entre o inspector e subinspector da Fazenda que diariamente se visitavam, por o primeiro ter enviado à esposa do segundo uma carta obscena, dando motivo a um conflito em que ambos ficaram de cabeças partidas. Em Bissau não quisemos relações e vivemos isolados”.

Imagem retirada da revista “Mundo Português”, da Agência Geral das Colónias

O gerente de Bolama esforça-se por aclarar as competências de cada uma das agências, e não esconde azedume e a eletricidade que vai no ar:

“Devemos dizer a V. Exas que existem em Bissau várias casas comerciais tendo em Bolama sucursais que fazem importantes negócios, principalmente de mancarra que aqui armazenam, visto o mercado deste produto ser mais importante nesta cidade do que em Bissau; a pretexto da gerências dessas casas estar em Bissau nada aproveitará a agência de Bolama com as suas operações.
A gerência da agência de Bissau, não recuando diante de nenhum expediente na mira de açambarcar as operações da Província, tem recorrido a um sistema pouco correcto tendente a conseguir o seu fim e em vez de se considerar uma dependência do nosso banco procede de forma a só poder ser considerada um concorrente da agência de Bolama.
Não temos a intenção de vir fazer acusações e muito menos de perturbar a harmonia que deve existir entre as dependências.
A inimizade pessoal da gerência da agência de Bissau contra o gerente da firma Visconde de Thiène, George Teston, forçou esta a não querer fazer transacções com aquela agência; como este cliente nos dá bons lucros, a agência de Bissau tem usado expedientes impróprios para que as operações daquela casa não se façam em Bolama. O senhor Teston seguiu para Paris a fim de se entender com o senhor de Thiène e tenciona passar por Lisboa a fim de expor o assunto a V. Exas., para o que nos pediu uma carta de apresentação que lhe demos”.

O relatório da agência em Bissau, neste ano de 1917 dá-nos notícias curiosas, a moeda de prata desaparecera praticamente da situação em Bissau, era referido que os indígenas tinham muita prata enterrada, e devido à falta de prata aumentara a circulação das notas emitidas pelo BNU, havendo indígenas que já recebiam e guardavam notas de pequeno tipo, principalmente de um escudo, o que até então não sucedia e comenta:
“Se o indígena pudesse pelas cores distinguir o valor das notas maior ainda seria a circulação. O pior de tudo é que nem notas pequenas temos em cofre e pedia-as à agência de Bolama, mas ela também não as tem".
Começava então a ganhar forma a estrutura dos relatórios, com itens reservados à situação da agricultura e aos valores da produção, ao estado das indústrias locais, às vias de comunicação com o interior, ao estado da telegrafa sem fios, aos serviços públicos, o movimento dos portos, importações e exportações e admitia-se a eventualidade de vir para a Guiné o banco colonial.

Assunto de peso, no auge da guerra, eram as sementes oleaginosas, o gerente de Bissau reagia desta maneira:
“Tem-se ressentido muito a Província com a proibição da saída das oleaginosas para o estrangeiro.
Já por várias vezes e sem resultado tem o comércio da Guiné tentando obter do governo a suspensão dessa iníqua proibição, pois que se a razão dela é a necessidade de oleaginosas na metrópole o certo é que nem o governo facilita meios de transporte nem os industriais da metrópole diligenciam obtê-los.
Enfim, o que se vê é que nem o governo nem os industriais têm procurado resolver a questão e quem sofre é a província em geral, é o seu comércio exportador, o de importação que está subordinado à exportação, e é o indígena, que não tem quem lhe compre os produtos e deixa de intensificar as respectivas culturas.
Fomos procurados pelos principais comerciantes nacionais e estrangeiros de Bissau que solicitaram o nosso concurso junto do governo para boa e rápida solução do problema”.

E ainda nesse mês de Outubro o gerente de Bissau insistia com a sede, nos seguintes termos:
“Por telegrama expedido daí sabemos que o governo pensa em proibir novamente a exportação destas sementes oleaginosas, das colónias para o estrangeiro.
Tal medida será a morte desta Província porque o mercado de Lisboa, não comportando a produção que regula por 8 mil toneladas de coconote e 14 mil toneladas de mancarra, fará baixar as cotações por falta de concorrência, sofrendo com isso as receitas da alfândega.
Rogamos a V. Exas. a fineza de nos telegrafarem se o governo vier a proibir a exportação para o estrangeiro, a fim de podermos a tempo tomar as medidas que em tal caso é conveniente. Se o governo respeitar na lei contratos já feitos, é favor igualmente avisarem-nos”.

(Continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 6 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18816: Notas de leitura (1081): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (42) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18829: Notas de leitura (1082): História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema; Editorial Franciscana, Braga, 1982 (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18840: Parabéns a você (1470): António Tavares, ex-Fur Mil SAM do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72) e Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2658 (Guiné, 1970/71)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de Julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18837: Parabéns a você (1469): António Dâmaso, Sargento-Mor Paraquedista Ref, das CCP 122 e 123 (BCP 12 / Guiné)